Monte Gigante - Um novo Mestre

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O nascimento de um novo mestre Rochoso, na cidade de Monte Gigante, em meio a morte e destruição

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Monte GiganteUm novo Mestre.

Raiken ergueu-se de um salto da cama, assim que seu despertador deu o primeiro toque e em seguida abriu ruidosamente a porta de seu armário, tirando de lá as roupas que seu pai havia lhe dado na noite anterior.

Ele as dispôs sobre a cama, ainda com os lençóis desarrumados e mesmo sabendo que acabaria por levar uma bronca da mãe por causa da bagunça, ele não conseguiu evitar de ficar como que congelado vendo seu uniforme de cordeiro.

Cordeiro. Ele não imaginava que essa palavra, em tempos imemoriais, havia pertencido a um animal, mas que agora significava o primeiro passo para entrar na vida adulta da sociedade Armoy-rin.

A “cidade escondida” como era chamada Armoy, não tinha recebido esse apelido jocoso à toa, uma vez que sua localização ficava em um imenso salão natural, metros dentro de uma caverna, a única entrada e saída da base de Monte Gigante, a montanha que tinha a curiosa forma de um ser humano abaixado, com um dos joelhos tocando o solo e a cabeça erguida na direção dos céus.

Ao ouvir os sons que vinham da praça central, localizada a alguns quarteirões de sua casa, Raiken piscou algumas vezes, afastando assim o devaneio em que se encontrava, não sem antes se perguntar por que pensamentos a respeito de sua cidade estavam a lhe assaltar nos últimos tempos, sendo que suas preocupações anteriores eram muito mais simples.

Um exemplo era a mania quase obsessiva em manter a ordem na coleção de livros e brinquedos relacionados aos Mestres Rochosos, os Armoy-rin mais importantes de todo o mundo, na opinião do garoto é claro.

Ele se despiu, olhando para a parede sul de seu quarto, onde um imenso espelho estava fundido à parede, do mesmo modo que ficavam a maioria das construções da cidade, todas esculpidas nas pedras que os cercavam.

A pele era quase transparente, com tons azulados e ornamentada com pequenos desenhos verdes que surgiam no primeiro ano de vida e acompanhavam os Armoy-rin até o momento de sua morte. Os traços de Raiken pareciam pequenas ondas com esferas ligando-os, indo da base do pescoço até as costas de suas mãos.

Os olhos eram grandes e negros, com pálpebras que fechavam horizontalmente e verticalmente, ideais para se proteger das típicas tempestades de areia que de tempos em tempos castigavam a cidade, uma

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adaptação evolutiva que representou papel fundamental no desenvolvimento da sociedade que ali se formou.

O restante do corpo apresentava proporções humanas clássicas, com uma cabeça, duas pernas e dois braços presos a um tronco ligeiramente mais fino e alongado e além dos olhos negros, a boca, nariz e orelhas não apresentaram muitas mudanças desde os primeiros habitantes de Monte Gigante.

Mais uma vez o jovem se obrigou a despertar, dando alguns tapinhas na própria face e, assim que terminou de vestir o uniforme, um traje feito de couro escuro com uma série de roldanas e espaço para cordas de diversos tamanhos e larguras ele se voltou a uma prateleira, onde estavam espalhados cerca de vinte figuras articuladas, representando os primeiros Mestres Rochosos.

Ele os ajeitou em posições de combate, alterando as poses várias vezes até se dar por satisfeito e com um sorriso no rosto começou a reunir os livros que narravam as aventuras de seus heróis, deixando-os todos numa área pouco abaixo dos brinquedos.

- Agora sim... - sua voz mostrava o falsete de quem está entrando na puberdade, com palavras saindo mais finas e outras mais grossas, algo comum entre os jovens de doze anos, mas que o deixava muito irritado, pigarreando antes de continuar falando e mal percebendo que não estava mais sozinho. - Espero que os gêmeos não entrem no meu quarto, mas agora vou saber se algum deles entrar... Aposto que vão tirar tudo isso de lugar...

Ele se afastou dando alguns passos de costa e logo depois foi se voltando para a porta, interrompendo seu monólogo assim que identificou quem estava vendo-o.

- Pai! Que susto!

- Aposto que nada vai acontecer com seus tesouros Rai... - Ambür era um imenso Armoy-rin e estava apoiado no batente da porta, um dos braços musculosos mantido atrás do corpo, como que para disfarçar a ausência do outro, cuja manga pendia vazia de seu traje de couro, repleto de correias bolsos e cordas, que deixava à mostra apenas sua cabeça. - Agora é melhor descer e comer algo antes de partirmos... Sabe como sua mãe demora a nos liberar, querendo conferir se tudo está bem.

Ele passou a manzorra sobre a cabeça calva do filho, outra característica dos homens de Armoy, e ambos seguiram abraçados até onde o restante da família estava, o cheiro do café da manhã preenchendo o local, com Manyran tentando controlar Idid e Eded que insistiam em disputar quem conseguia dar mais voltas ao redor da mesa sem se cansar.

- Gostaria de que você aproveitasse o feriado Ambür... - o cansaço era visível na voz da mulher, conforme ela dava um leve beijo nos lábios do marido,

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pouco antes de serem separados por uma das crianças. - Idid! Senta para comer!

- Mas mãe... Isso de novo?

No prato diante deles havia uma massa amarelada, com pedaços de um pão negro ao lado, além de um copo com um líquido esverdeado, que provinha do poço que mantinham no pequeno quintal.

O pequeno Armoy-rin fez uma careta ao beber, mas ao notar o ar triste que passou pelos rostos de seus pais, se calou e tratou de comer sem reclamar.

A família vinha passando por uma fase difícil, o pai havia sido despedido da empresa de mineração onde trabalhara por quase toda a vida, tendo sido acusado de ter posto vários colegas em perigo devido às ações imprudentes que custaram a vida de três mineiros, bem como o braço direito do próprio Ambür.

O sustento atual da casa provinha dos bicos que Manyran fazia, vendendo roupas que ela mesma costurava, ou dos doces que ela fazia, doces esses que os próprios filhos acabavam por não comer.

Raiken, entendendo como o comentário do irmão menor afetara seus pais, prometeu a si mesmo que faria tudo ao alcance para reverter aquela situação, por isso sua ansiedade aumentava cada vez mais, fazendo com que ele até esquecesse das festividades daquele dia.

Longe dali, duas pessoas discutiam exatamente os planos para o grande dia.

- Tudo será perfeito meu filho... Um desfile de entrada, depois que aparecermos na sacada do castelo para a aclamação pública, afinal de contas todos devem agradecer ao grande Mestre Rochoso que os manteve em segurança nesses últimos vinte anos...

- Duvido que eles realmente queiram me agradecer...

- O que disse Zurpor? Deixe de resmungar... Agora preste atenção... Quando aparecermos ao público...

Kurlony, o governante de Armoy, continuava a desfilar todos os detalhes sobre as festividades do Dia da Passagem, quando os poderes do Mestre Rochoso deixavam seu corpo para que um novo surgisse.

Alheio a tudo o que seu pai falava, Zurpor não deixava de pensar que, em pouco tempo, tudo o que lhe dava sentido à vida seria arrancado e num instante ele voltaria a ser o filho de um dos piores líderes Armoy-rin de toda a história.

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Historiadores da cidade escondida registraram o surgimento do primeiro Mestre Rochoso durante um terremoto que quase matou todos os humanos que haviam buscado refúgio em Monte Gigante.

Duerin era seu nome, um jovem que viu sua família sumir sob toneladas de pedra e terra, terminando ele próprio perdido em um dos labirintos naturais formados pelos diversos túneis que na época ainda não haviam sido explorados.

Foram mais de quarenta dias e quarenta noites sem notícias e após ser dado como morto, mesmo com seu corpo não tendo sido encontrado junto aos de seus familiares, ele ressurgiu, a pele apresentando pequenas protuberâncias feitas de rocha, como se as mesmas tivessem sido cravadas em sua carne.

Desde aquela época o acampamento, que foi sendo reconstruído até se tornar algo próximo da atual Armoy, já recebia ataques dos carniceiros.

Criaturas quadrúpedes, lembrando grandes besouros, exibiam carapaças brancas quase imperfuráveis, várias patas com espinhos que eram usados como armas e uma fileira de presas articuladas capazes de cortar pedra como se não fosse nada, os carniceiros sempre atacavam em bandos, causando pesadas baixar entre os Armoy-rin.

Uma viúva andava com seus três filhos quando foram cercados por um dos monstros, longe demais de qualquer um dos guardiões da cidade e mesmo eles não fariam frente à criatura que se aproximava, uma das maiores já vistas até então.

Quando as presas estavam a poucos centímetros das costas da mãe, que se ajoelhara sobre os filhos numa tentativa vã de protegê-los, algo chamou sua atenção quando ela percebeu que ainda não havia sido morta.

Assim que se virou seus olhos se arregalaram quando viu a imagem de Duerin de pé, ao lado de algo que parecia uma coluna de pedras, em cujo centro jazia o corpo sem vida do carniceiro.

Ele revelou mais tarde que, sob seu comando, as rochas haviam se fechado ao redor da criatura salvando a mãe e seus filhos, uma família que ele assumiu ao se ver apaixonado pela bela mulher.

Vinte anos depois os poderes deixaram Duerin, aparentemente escolhendo de forma aleatória um novo hospedeiro, na forma de uma garota chamada Sayeru.

Começou desse modo a linhagem dos Mestres Rochosos até chegar ao mais recente, Zurpor, que era chamado de volta à sua realidade pelo pai, que ordenava ao rapaz experimentar as roupas cerimoniais que, segundo ele, haviam custado o resgate de um rei.

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- Magnífico meu filho... É a imagem de um grande herói que vai se formando diante de mim...

Kurlony não imaginava como tais palavras feriam o filho, que acreditava ter sido o Mestre Rochoso que mais desperdiçou sua dádiva, uma vez que seu pai jamais permitiu que ele se arriscasse ao usar seus poderes em prol do povo.

Não. Ele sempre foi mantido em segurança no castelo, mesmo quando túneis desabavam ou pessoas eram mortas pelos carniceiros, a influência do pai era sempre o suficiente para manter Zurpor em seus aposentos, muitas vezes deitado na cama tampando os ouvidos, numa tentativa frustrada de não ouvir os pedidos de socorro trazidos a ele por seus poderes.

- Pai... Não sei mesmo se tudo isso é necessário... - uma tentativa de sorrir deixou o semblante do mestre rochoso ainda mais triste, ao ver que suas palavras caíam em ouvidos surdos. - A transferência de poderes de meu antecessor se deu sem nenhuma parada ou...

- Não serei o governante para sempre filho. - Kurlony muitas vezes esquecia que o filho já era adulto falando de modo catedrático, como os professores se dirigiam à crianças. - Precisamos manter o povo contente e com essa festividade não apenas isso acontecerá, como também marcará sua imagem forte o suficiente para ser aclamado como o novo rei de Armoy...

Enquanto falava o velho olhava para o teto, a mente já se perdendo nos sonhos de riqueza que o acompanharia até o fim de seus dias, não importando como seria lembrado, mas sim garantindo o futuro do filho único.

- Agora venha comigo... - ele passou a mão enrugada pelos ombros largos de Zurpor, conduzindo-o pelos corredores do castelo, com uma imensa comitiva de servos fazendo os últimos ajustes na roupa do mestre. - É hora de acenar para o povo reunido na praça Janupis... Vê se melhora esse sorriso.

- Pai tem certeza de que não tem problema? - Raiken olhava para os grupos de pessoas que seguiam para a praça central de Armoy, todos usando suas melhores roupas, mas exibindo semblantes sérios, alguns tentando esconder cartazes. - Quero dizer... Parece que só a gente tá indo trabalhar...

- Não me interessa ir adular aquele bosta do Kurlony e o seu filhinho inútil... Prefiro aproveitar que todos vão estar ocupados para explorar aquele novo túnel que se abriu na região norte...

- Mas não é melhor esperar mais gente? - mesmo não querendo parecer medroso, o tom de voz usado por Raiken o traiu e ele fechou a cara, evitando olhar para seu pai.

- Não se preocupe filho... - Ambür passou carinhosamente sua imensa mão na cabeça do garoto, gesto que sempre tranquilizava os dois. - Preciso

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provar que ainda sou um bom explorador e a melhor maneira é descobrir o que tanto pode vir daquele túnel... Mas antes...

Pai e filho se dirigiram em silêncio até um estabelecimento que Raiken nunca pusera os pés por ainda não ter idade. Acima da porta de rocha sólida, que se abriu com um alto rangido, havia uma placa com os seguintes dizeres: Boteco Quartzo.

- Pai... Você sabe o que a mãe fala sobre...

- Eu sei filho... - com certa vergonha passando rapidamente pela face, Umbür se dirigiu até o balcão, erguendo a mão para o atendente, um outro Armoy-rin tão grande quanto ele. - Sumum! Me vê um Fogo Azul...

- É pra já velho amigo! Cazarias! Traz a taça mais nova... - um jovem tímido fez o que lhe foi pedido, desaparecendo logo em seguida, sem dizer uma só palavra e após o dono do bar encher um pequeno copo de cristal e entregá-lo ao cliente, que entornou o líquido de uma vez, tendo acessos de tosse, Sumum olhou para o garoto que parecia incomodado por estar ali e não conseguiu conter a curiosidade. - Então... Imagino pelo jeito que estão vestidos que não pretendem ir à celebração...

- Olha bem pra minha cara Sumum... Veja se eu vou lá lamber a bunda daquele inúteis...

- Tem um pessoal que pensa como você... Estão preparando um grande protesto e...

- E no fim do dia eu preciso é de dinheiro para garantir a comida dos meus filhos... Deixe os outros desocupados e jovens sonhadores pensando que podem mudar o mundo com placas e palmas... Eu preciso continuar no mundo real... Quanto eu lhe devo?

- Você sabe muito bem que eu jamais vou aceitar seu dinheiro... Nem sei por que ainda pergunta...

- Por que você sempre me lembra de dias melhores... - ele ergueu o que restara do braço amputado, no rosto um olhar de tristeza.

- Os dias melhores ainda estão por vir... Acredite nisso velho amigo...

- Sei, sei... Venha Rai... Hora de descobrirmos se vamos ter uma boa surpresa ou uma decepção.

Raiken se manteve calado, admirado como os dois homens pareciam amigos, com laços estranhos, vindo de uma vida de dificuldades compartilhadas, que ele ainda não entendia, mas que fazia seu coração se aquecer, admirando ainda mais seu pai.

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- Ei garoto! - Sumum sorriu ao perceber o sobressalto do menino, que voltou para o atendente um olhar arregalado. - Cuide bem desse velho... Acredito que você não faz ideia de como ele é importante para certas pessoas... E quanto a você, volte e traga seu filho para ele ouvir umas boas histórias... E também uma certa dose de verdade...

- Tá louco seu morcego velho? - Umbür tinha um largo sorriso no rosto ao se virar para o amigo. - Se esse túnel tiver o suficiente de pedras Ambar nunca mais eu ponho os pés nessa bodega!

Ambos riram e em poucos instantes pai e filho estavam de volta às ruas, seguindo contra o fluxo de transeuntes que iam para a praça e tão concentrados estavam que mal perceberam um som baixo, algo como um zumbido, que vinha de um beco escuro ali perto.

A praça Janupis tinha formato circular e comportava a maioria da população uma vez que raramente acontecia de todos serem liberados de seus serviços, mas Kurlony fez questão de que todo seu povo estivesse presente para o momento mais importante da vida de seu filho, por isso o decreto real de que aquele dia seria feriado.

- Ouça o público ovacionando seu herói antes mesmo que você apareça na sacada...

- Não sei não pai... Alguns gritos que estou escutando não parecem ovações... Tem certeza de que deveríamos ir até lá?

- Ora Zurpor... Deixe de bobagens... Venha, me dê seu braço e iremos fazer uma entrada digna dos maiores artistas...

- Cuidado! - Kurlony escapou por pouco de uma bola fétida que vinha certeiramente contra sua cabeça, terminando por explodir na parede logo atrás deles, Zurpor então puxou o velho de volta para o castelo. - Vamos entrar e...

- Não! Isso é intolerável! Guardas!

Assim que vários Armoy-rin, trajando pesadas armaduras feitas de diversos metais e com suas armas em punho, começaram a caminhar de forma ameaçadora na direção do povo, de imediato cartazes foram abaixados, sendo substituídos por qualquer coisa que servisse de arma.

O palco para uma guerra estava armado,mas antes que qualquer grupo antagonista desse o primeiro passo um som conhecido preencheu o ar da praça.

Não muito longe um túnel acabara de desabar.

- Pai... - Zurpor começava a caminhar na direção da bancada de onde havia acabado de fugir. -Talvez fosse melhor eu ver se alguém está em perigo...

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- Não! Não deve ter ninguém lá e se estivesse é problema dele, pois hoje todos deveriam estar aqui e...

Gritos.

Pai e filho ficaram em silêncio, apurando os ouvidos para tentar entender os sons que chegavam a eles, pois não parecia ser o dos guardas contendo os manifestantes.

Era algo muito pior.

Os gritos de desespero não encobriam o zumbido característicos das feras que estavam chegando até a praça Janupis, não deixando espaço para que qualquer um dos presentes pudesses escapar.

Carniceiros estavam por todos os lados, mas a princípio não atacaram era como se estivessem reunindo suas vítimas, não deixando escapatória alguma, pois aqueles que tentavam recebiam golpes fortes, não mortais, apenas o suficiente para seguirem até onde as criaturas queriam.

- Eles jamais fizeram algo assim pai... Preciso ajudar o povo...

Ao sentir a mão enrugada de Kurlony em seu braço, o Mestre Rochoso se voltou lentamente, não acreditando no que já sabia que iria ver.

O rosto de seu pai estava mais sério do que nunca, uma expressão dura que não aceitaria argumento algum, não importando a seriedade do que estava acontecendo na praça, ele jamais deixaria seu filho sair da segurança do castelo.

Mesmo assim Zurpor não poderia ficar parado, não quando surgia sua última oportunidade de usar os dons que recebeu, evitando assim de entrar para a história de Armoy como o mais inútil dos mestres rochosos.

Foi esse último pensamento que o levou a ir contra tudo que aprendera na vida, ou seja, obedecer cegamente a seu pai e ignorando os protestos do mesmo, se virou para a janela que dava para a praça, saltando sem se preocupar com a altura.

Um tipo de pilar feito de pedras surgiu do chão aparando a queda do mestre, descendo logo em seguida até que ele pudesse saltar em segurança, indo na direção do tumulto.

- Rápido! - apesar dos gritos desesperados do povo, o mestre rochoso se fez ouvir. - Corram na direção do castelo! - vendo a hesitação de todos, principalmente por causa do modo como a manifestação ia ser contida, Zurpor se voltou para os soldados. - Abram os portões e deixem todos entrarem! Já!

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Os guardas não estavam acostumados a ouvir tamanha confiança ou tom de comando saírem da boca do mestre rochoso, na maioria das vezes ele apenas servia de inspiração para piadas e comentários maldosos, por isso eles mantiveram a posição por alguns instantes, mas assim que Zurpor se voltou para eles, os olhos brilhando e fazendo com que o solo abaixo deles começasse a tremer, a evacuação da praça teve início de imediato.

Os carniceiros pareceram perceber o plano, pois logo começaram a convergir na direção do mestre rochoso, sem deixar de usar suas pinças articuladas para cortar os corpos de quem quer que entrasse em seu caminho.

Tal cena acabou por fazer Zurpor hesitar e tal erro terminaria com sua morte, pois um dos monstros conseguiu se esgueirar até suas costas, mas antes dele ter seu tronco trespassado, conseguiu saltar para o lado e estendeu as mãos, pretendendo fazer uma coluna de pedra esmagar seu atacante.

Para desespero total, seus poderes sumiram de repente deixando-o totalmente indefeso e sem outra opção a não ser erguer os braços, agora de volta ao normal, sem nenhum sinal das pedras características de um mestre e torcendo em seu interior para que a morte viesse de modo rápido e indolor.

Como se em resposta a suas preces, o solo abaixo dele tremeu, fazendo com que Zurpor abrisse os olhos, acreditando que seus poderes haviam retornado.

Ele estava errado.

O carniceiro que o ameaçara jazia morto, ao seu redor se mantinha fechado um imenso punho feito de rocha, pedras e terra e antes que algum dos Armoy-rin fugitivos sequer percebesse o que estava acontecendo, uma figura desceu até a praça, vindo da área onde, a pouco tempo, um túnel parecia ter desabado.

O recém-chegado empertigou o corpo, moveu a cabeça para os lados provocando um leve estalo em seu pescoço, depois fez um movimento circular com o ombro, como que procurando se livrar de uma pequena dor incômoda.

Ele virou o rosto na direção de Zurpor, que se surpreendeu ao perceber várias pequenas pedras que pareciam cravadas na alva pele de seu salvador e tamanho era seu assombro que ele só conseguiu balbuciar uma única sentença:

- Mas quem?...

Para responder a essa questão uma pequena viagem no tempo se faz necessária, mais exatamente quando Ambür e Raiken haviam alcançado seu objetivo e logo depois de tudo preparado, se despediam.

- Está tudo bem firme filho?

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- Conferi mais de cinco vezes pai... - O rapaz trazia preso ao peitoral uma série de cinturões pelos quais uma longa corda branca passava por dentro de argolas de metal, ligando-o a outro colete que seu pai estava vestindo. - Tudo parece em ordem...

- Você sabe o que costumo falar quando tudo já parece pronto não é?

- Sim pai... - após soltar um suspiro de impaciência Raiken começou a fazer mais uma verificação e ao terminá-la se voltou para o pai. - Pronto... Vamos começar?

- Não esqueça do mais importante... - Ambür seguia o que disse ao filho para fazer e também terminava de conferir seu equipamento. - De tempos em tempos darei alguns puxões de leve para indicar que estou bem, mas se eu ficar sem comunicação por mais de uma hora vá buscar ajuda... Nunca... E eu repito... Nunca entre atrás de mim sozinho entendeu?

Com uma expressão séria, que em nada combinava com seu costumas espírito infantil e brincalhão, deixando claro que ele sabia o quanto aquela incursão era importante para sua família, Raiken acenou positivamente com a cabeça parecendo finalmente pronto.

Agora ele iria conhecer as emoções que vinham da principal função de um Armoy-Rin, a exploração do túneis.

Meia hora depois ele estava tomado pelo mais profundo tédio.

Seus olhos negros e acostumados à escuridão se mantinham fixos numa pequena aranha, que emitia um leve brilho esverdeado à medida que se aproximava de sua presa, uma lesma que parecia hipnotizada pelo modo como a bioluminescência da caçadora diminuía e aumentava numa cadência rítmica.

O pai acabara de sinalizar que tudo corria bem e justamente quando o som afastado de gritos de protesto contra o atual mestre rochoso chegava aos ouvidos do garoto, ele sentiu um puxão extremamente forte em seu colete.

Algo havia dado errado.

Raiken arregalou os olhos quando conseguiu ver à distância um grupo de carniceiros que seguia na direção da cidade, mas não podia fazer nada a não ser usar o código de três puxões para confirmar se seu pai estava bem.

Fez os movimentos uma, duas, três vezes.

Na quarta tentativa sem resposta o desespero foi ficando maior e deixando imediatamente de lado as instruções de seu pai, o rapaz se colocou a correr dentro do túnel, no peito uma oração a todos os deuses para que tudo estivesse bem e ele escapasse com apenas uma lembrança de que não deveria estar fazendo aquilo.

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Uma esperança vã, pois assim que seguiu por uma curva do túnel viu seu caminho bloqueado por toneladas de rocha, a poeira ainda baixando após o desabamento, a corda branca desaparecia por entre os escombros.

- Não! Pai! - ele começou a sentir uma pressão no peito, provavelmente o cansaço por causa da corrida, logo seguido por uma irritante sensação de coceira por várias partes do corpo, enquanto ele encostava as mãos espalmadas contra as pedras, conforme ainda tentava se comunicar com Ambür. - Pai! Fala comigo!!

Ele caiu de joelhos e entre amargas lágrimas que teimavam em escorrer pelo seu rosto sujo de poeira, começava a passar pela sua cabeça como iria contar à mãe e aos irmãos o que havia acontecido.

- Não, não, não... - o desespero aumentava assim como desconforto físico que ele estava sentindo e de repente como se algo dentro dele se debatesse violentamente, tentando encontrar uma saída, Raiken ergueu a cabeça e jorros de energia saíram de seu corpo. - PAI!

Um estrondo pode ser ouvido ao longe, deixando claro para os manifestantes da praça Janupis que um túnel acabara de desabar.

Lá dentro, no entanto, ocorria exatamente o contrário, as rochas começaram a se afastar, criando um tipo de esfera de energia, alterando até mesmo as paredes do túnel deixando no centro um espantado Ambür, que olhava incrédulo para si, sabendo que deveria estar morto, e para o filho que tinha os olhos ainda brilhando.

A roupa de Raiken estava toda rasgada, por quase toda a extensão de sua pele brotavam pequenas pontas acinzentadas.

- Filho... Se-seu corpo...

Finalmente o próprio Raiken percebeu o que estava acontecendo e com um imenso sorriso, apoiou o pai sobre um de seus ombros e, como que para provar o que ele já sabia, mentalizou o chão do túnel se movendo e levando-os para fora.

- É isso mesmo pai... Sou o novo mestre rochoso!

Assim que ambos pisaram do lado de fora, no entanto a alegria deu lugar ao horror, quando os gritos das pessoas que estavam sendo atacadas pelos carniceiros chegaram aos dois.

Uma troca de olhar foi o suficiente para deixar claro que tudo na vida deles acabara de mudar para sempre.

- Vai... Você, mais do que ninguém, sabe como usar os poderes de um mestre... Salve todos.

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Sem falar nada, após um momento de concentração, parte do chão começou a rachar ao redor de Raiken, formando uma rocha que flutuava debaixo dele.

- Demais... Mestre Jontaris fez isso em seu quinto ano como mestre... - o deslumbramento foi momentâneo pois novos gritos ecoaram. - Pai...

- Vai... Vou encontrar com sua mãe e os meninos em casa e o esperamos lá... Nos deixe orgulhosos.

Com uma velocidade absurda o garoto, agora um mestre rochoso, voou para a praça Janupis e ao chegar viu Zurpor, seu antecessor e o único que ele não tinha em sua coleção, sendo ameaçado enquanto protegia o povo.

Um carniceiro o encurralou e estava prestes a matá-lo quando Raiken se concentrou novamente, fazendo uma mão de pedra brotar do chão, agarrar e esmagar o monstro.

O garoto, para assombro de Zurpor e de todos ainda presentes na praça, saltou da rocha, pousou suavemente, ergueu o rosto e numa atitude desafiadora, estalou seu pescoço, como se o que acabara de fazer fosse algo corriqueiro.

Raiken sabia que os maiores mestres só haviam conseguido aquele nível de controle sobre as rochas após anos de treino e por toda a história nunca antes havia sido registrado alguém tão jovem ou com os poderes tão adiantados como ele.

- Mas quem?...

A pergunta mal foi ouvida, tamanho o alvoroço que voltava a tomar a praça após a chegada do jovem e ele não pode responder, uma vez que dois monstros o atacaram, mal dando tempo para que ele erguesse os braços diante do corpo, cruzando-os contra as pinças que o acertaram, fazendo-o sumir dentro de uma construção próxima, que desabou em seguida.

Zurpor se voltou para o monstro que acertara o jovem e mais uma vez achou que sua hora havia chegado, mas antes que o carniceiro pudesse concluir o ataque que estava preparando várias estalagmites surgiram do chão empalando-o.

As criaturas zuniram em uníssono, lamentando a morte de mais um de seus irmãos, convergindo para onde o novo mestre rochoso deveria estar, até monstros aparentemente sem pensamentos inteligentes perceberam a maior ameaça a suas existências e desse modo Zurpor, permanecendo congelado de medo, assistiu impotente enquanto eles seguiam na direção do que restara de uma das melhores loja de cerâmica da cidade.

Sem aviso algum uma nuvem de poeira atravessou os destroços da loja enquanto uma figura, quanto muito um borrão, saiu de lá a uma velocidade

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espetacular, atravessando as fileiras de monstros, que caiam para os lados com os corpos trespassados por lanças de pedra.

O bólido parou no centro da praça e os sobreviventes do ataque ergueram os punhos em celebração quando perceberam que um novo mestre rochoso surgia entre eles.

Raiken permanecia de pé, olhos atentos a tudo que estava ao seu redor, o jovem descobria uma afinidade nunca antes imaginada com todas as pedras ao seu redor, conseguindo perceber a chegada do rei Kurlony poucos instantes desse começar a aproveitar aquela oportunidade de ouro.

- Cidadãos! Eis que no momento de maior necessidade um novo mestre rochoso surge para nos salvar!

Mais ovações e agora até mesmo os manifestantes que pretendiam deixar clara sua insatisfação com o rei aplaudiam, pois todos reconheciam no jovem herói algo que a muito haviam esquecido.

Como era ter um protetor verdadeiro.

Zurpor tentou se aproximar, mas recebeu um olhar de reprovação tão intenso de seu pai que ele se viu forçado a recuar, no peito as emoções eram um turbilhão de caos, entre mágoa e ódio ao rei e ao seu substituto, bem como ao povo que ele pretendia proteger, mas que não conseguira devido à influência de Kurlony.

Ao encostar num paredão mal teve tempo de gritar quando as rochas se moveram, prendendo-o num abraço e puxando-o para trás até que ele sumisse sem deixar nenhum vestígio.

Sem nem imaginar o que acontecia ao filho, o experiente rei continuava sua bajulação.

- As portas do castelo estão abertas a você, jovem mestre... Poderá treinar e aperfeiçoar suas habilidades lá, além de ter tudo o que que quiser ou precisar para que sua missão seja...

- Tenho uma casa e uma família... - Raiken se lembrava de como o mestre rochoso anterior, sob a tutela do rei, havia sido um completo inútil e mais uma vez, aparentando mais maturidade do que deveria, terminou de responder. - Um mestre rochoso deve servir ao povo, estando sempre à disposição, o que seria impossível preso dentro de uma fortaleza... Por isso não posso aceitar seu convite.

Enquanto Kurlany começava a apresentar um tique nervoso, com o olho esquerdo piscando de forma inconsciente e repetitivamente, o jovem começou a se afastar, tendo percebido o pai em meio à massa de curiosos.

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O sorriso que o novo mestre exibia morreu ao perceber as feições assoladas de Ambür, os olhos lacrimejantes e o peito que se movia rapidamente entre os soluços que faziam o corpo do imenso Armoy-rin se convulsionar.

Assim que se aproximou, o pai o tomou num abraço apertado e enquanto ele olhava por cima do ombro do explorador, procurando pelo restante de sua família, a verdade lhe foi contada, num sussurro lamentoso.

- O-os... Carniceiros... Não a-atacaram apenas a pr-praça... Nossa casa...

Sem conseguir falar mais nada, não era necessário afinal, os dois se afastaram da multidão, que foi silenciando quando a notícia do que ocorrera àquela família ia se espalhando, lembrando a todos que tinham deixado alguém em casa de que o mesmo poderia ter acontecido a eles.

Horas mais tarde pai e filho ainda velavam os restos da casa onde ambos haviam conhecido a verdadeira felicidade, ainda sem coragem de buscar entre os escombros o que poderia ter restado de sua família.

Sem aviso Raiken se desvencilhou do pai, ficou de frente ao que restara de seu lar, estendeu os braços naquela direção e, em meio às lágrimas, fez com que o solo se erguesse, formando o que, para ambos, seria um monumento digno de seus mortos.

Logo depois, novamente abraçados, se dirigiram até o Boteco Quartzo onde acabariam por morar dali em diante.

Não muito longe dali, uma figura encapuzada observava a cena antes de sumir dentro de uma parede próxima, de um modo parecido com o que acontecera a Zurpor, mas ao contrário do antigo mestre rochoso, o desconhecido fez conscientemente tal ação.

Ele ressurgiu quase que instantaneamente noutro lugar, distante muitos quilômetros de Armoy, num salão natural quase tão grande, outro encapuzado o esperava.

- E então? - ele se voltou para o colega que mal acabara de surgir. - você o viu? O novo mestre rochoso?

- Nunca antes alguém tão jovem fora escolhido e nunca vi um mestre se integrar tão rápido à dádiva... Acredito que realmente ele seja quem estávamos esperando...

- Melhor não tomarmos decisões precipitadas... Isso quase rendeu desastres no passado... Devemos acompanhar os desdobramentos com calma e paciência, afinal temos ao menos 20 anos para descobrir se é realmente ele... E quanto ao antecessor?

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- Foi retirado de forma discreta... Não sentirão falta dele tão cedo.

- Algo errado irmão? - ao perceber que seu companheiro olhava repetidamente para cima, o encapuzado não resistiu a questioná-lo. - Surpreso?

- A quanto tempo isso vem acontecendo?

- Aparentemente desde o surgimento do novo mestre rochoso.

- E o que isso quer dizer?

O outro permaneceu em silêncio, erguendo a cabeça, ainda escondida sob o pesado capuz, fitando uma imensa rocha vermelha de formato único, que preenchia o ambiente com uma pulsante luz escarlate.

Parecia um imenso coração a bater.

Apenas o começo.

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