Monografia TCC IESB - TCU e moralidade administrativa

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CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE BRASÍLIAINSTITUTO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE BRASÍLIA (IESB)PAULO HENRIQUE RAMOS MEDEIROSA ATUAÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO E O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVABrasília/DF 2009Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Ciências Jurídicas do Instituto de Educação Superior de Brasília, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas.Orientadora: Profª. Daniela de Macedo Britto Ribeiro Trindade de Sousa

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CENTRO DE EDUCAO SUPERIOR DE BRASLIAINSTITUTO DE EDUCAO SUPERIOR DE BRASLIA

PAULO HENRIQUE RAMOS MEDEIROS

A ATUAO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIO E O PRINCPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

Braslia/DF 2009

PAULO HENRIQUE RAMOS MEDEIROS

A ATUAO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIO E O PRINCPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao curso de Cincias Jurdicas do Instituto de Educao Superior de Braslia, como requisito parcial para obteno do grau de Bacharel em Cincias Jurdicas. Orientadora: Prof. Daniela de Macedo Britto Ribeiro Trindade de Sousa

Braslia/DF 2009

PAULO HENRIQUE RAMOS MEDEIROS

A ATUAO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIO E O PRINCPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao curso de Cincias Jurdicas do Instituto de Educao Superior de Braslia, como requisito parcial para obteno do grau de Bacharel em Cincias Jurdicas. Braslia/DF, 29 de junho de 2009.

Banca Examinadora:

Prof. Daniela de Macedo Britto Ribeiro Trindade de Sousa orientadora

Prof. Saul Tourinho Leal

Prof. Waldemar Ferreira de Souza Netto

minha me, Paulina, que desde cedo me ensinou a agir com tica e respeito moral em todas as reas de minha vida.

AGRADECIMENTOS

minha orientadora, Prof Daniela de Macedo Britto Ribeiro Trindade de Sousa, pela dedicao e interesse nesta pesquisa e, em especial, pela sua compreenso e incentivo nos momentos em que a leitura de acrdos parecia no ter mais fim. Aos colegas de trabalho na Assessoria do Ministro Ubiratan Aguiar, Presidente do Tribunal de Contas da Unio (TCU), pelos debates conceituais e pelo interesse ao acompanharem o andamento desta pesquisa, em especial colega Ceclia dos Santos Macdo, pela cota de emprstimos de livros na biblioteca do Tribunal. Ao Consultor Jurdico do TCU, Edimilson Erenita de Oliveira, pelas dicas e sugestes para elaborao deste trabalho, bem como pelo fornecimento de cpia de sua monografia (trabalho de concluso de curso de Cincias Jurdicas). minha chefe imediata no TCU, Maria Virgnia de Faria Franco Turbay, e ao Ministro Ubiratan Aguiar, pela liberao para o gozo de minha licena-capacitao, sem a qual seria impossvel a elaborao deste trabalho no prazo acordado com o IESB. A DEUS e minha esposa, Ana Cludia Megale Dutra, fontes de inspirao em todos os momentos e pontos de apoio durante a difcil caminhada que foi a elaborao desta monografia.

RESUMO

A presente monografia teve como principal objetivo identificar, tendo como foco a moralidade administrativa, se e como o Tribunal de Contas da Unio (TCU) emprega princpios constitucionais na fundamentao de suas deliberaes. Alm desse objetivo principal, foram propostos outros objetivos especficos para a pesquisa, podendo ser destacados: a identificao de critrios para verificar como o TCU ultrapassa o controle meramente de legalidade do ato administrativo e, no passo seguinte, verifica a violao moralidade; a averiguao se a inexistncia de leis impediu o Tribunal de responsabilizar gestores e terceiros com eles envolvidos; a avaliao se o embasamento de deliberaes apenas em princpios constitucionais foi suficiente para fundamentar os julgamentos; e a investigao do modo como o princpio da moralidade vem sendo confrontado com outros princpios constitucionais nos casos de coliso entre princpios. O marco terico que deu suporte pesquisa teve como ponto de partida o conceito de moral comum conhecido desde a Grcia antiga, construdo na Filosofia em torno da tica, passando-se, em seguida, ao estudo de conceitos relacionados moral no mbito da Filosofia do Direito. No Direito Administrativo foram buscadas doutrinas sobre ato administrativo e, no Direito Constitucional, teorias sobre princpios constitucionais e neoconstitucionalismo substrato do estudo. Como procedimentos de pesquisa, foram avaliados 808 acrdos prolatados pelo TCU no perodo de 20/1/2004 a 10/6/2009, considerando menes moralidade administrativa e, em menor escala (50 acrdos), ao princpio da proporcionalidade, tendo sido 435 deliberaes consideradas de interesse para a composio dos resultados da anlise. Foram efetivadas anlises pontuais para auxiliar o alcance dos objetivos inicialmente propostos e conduzir s concluses do trabalho, sob quatro enfoques: verificao da meno e do emprego, como fundamentao, do princpio da moralidade ao longo do perodo pesquisado; utilizao dos princpios constitucionais isoladamente ou em conjunto com normas legais e/ou infralegais; recorrncia dos tipos de irregularidades; e remisso isolada e inter-relao entre o princpio da moralidade e outros princpios constitucionais explcitos utilizados na fundamentao dos acrdos. A principal concluso da monografia apontou que o TCU aplica diretamente os princpios constitucionais ao fundamentar suas deliberaes, tendo como premissa subjacente o respeito moralidade como direito da sociedade. Outras concluses obtidas a partir da anlise da jurisprudncia avaliada indicaram que o Tribunal no se furtou em exercer suas competncias constitucionais ante a falta de descrio em lei de eventuais condutas consideradas lesivas moral; que o embasamento apenas em princpios constitucionais suficiente para fundamentar os julgamentos; e que o principal parmetro para indicar que um ato administrativo atentou contra o princpio da moralidade a aferio da finalidade atingida a partir da prtica do ato. Por fim, registrou-se que o procedimento utilizado nesta monografia, que investigou a atuao do TCU por meio do emprego dos princpios constitucionais em suas fundamentaes, pode ser estendido a outras pesquisas que lanam mo das idias do neoconstitucionalismo para avaliar a evoluo da jurisprudncia dos tribunais. Palavras-chave: moralidade administrativa; fora normativa da Constituio; neoconstitucionalismo; princpios constitucionais; Tribunal de Contas da Unio.

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Quantitativos de acrdos apreciados pelo TCU, analisados e considerados de interesse para a pesquisa (por ano e por colegiado) ................................................................. 44 Tabela 2 Quantitativo e percentual das menes ao princpio da moralidade nos acrdos analisados e do emprego do princpio como fundamentao nos acrdos considerados de interesse para a pesquisa ........................................................................................................... 45 Tabela 3 Quantitativo de deliberaes por forma de emprego dos princpios constitucionais na fundamentao ..................................................................................................................... 46 Tabela 4 Quantitativo de deliberaes por forma de emprego dos princpios constitucionais na fundamentao detalhamento por colegiado..................................................................... 48 Tabela 5 Consolidao da anlise quanto ao princpio da moralidade quantitativo de deliberaes por tipo de irregularidade .................................................................................... 51 Tabela 6 Consolidao da anlise quanto ao princpio da moralidade tipos de irregularidades selecionados para anlise ................................................................................. 52 Tabela 7 Consolidao da anlise quanto ao princpio da moralidade quantitativos de menes a princpios constitucionais explcitos na fundamentao ......................................... 82 Tabela 8 Consolidao da anlise quanto ao princpio da moralidade quantitativos e percentuais de menes a princpios constitucionais explcitos na fundamentao ................. 84

O homem que aspira perfeio moral, ocupa-se da virtude; o homem no comprometido com os valores morais, pensa apenas na sua acomodao na terra; o homem tico pensa apenas nos deveres e sanes; o homem sem tica pensa apenas nos seus direitos e benefcios.

Confcio

SUMRIO

1 2 2.1 2.2

INTRODUO ............................................................................................................ 10 MORALIDADE ADMINISTRATIVA ........................................................................ 15 Moral na Filosofia e na Filosofia do Direito ................................................................ 15 Moralidade na perspectiva jurdica ............................................................................... 19

2.2.1 Moralidade administrativa ............................................................................................ 19 2.2.2 Princpios constitucionais ............................................................................................. 27 2.2.3 Ato administrativo ........................................................................................................ 38 3 3.1 3.2 A ATUAO DO TCU E A MORALIDADE ADMINISTRATIVA ........................ 42 Atuao do TCU no controle do ato administrativo ..................................................... 42 Avaliao da jurisprudncia do TCU ........................................................................... 43

3.2.1 Princpio da moralidade ................................................................................................ 45 3.2.1.1 Menes e emprego do princpio da moralidade ao longo do perodo pesquisado ...... 45 3.2.1.2 Formas de emprego dos princpios constitucionais ...................................................... 46 3.2.1.3 Recorrncia dos tipos de irregularidades ...................................................................... 50 3.2.1.4 Emprego isolado e inter-relao do princpio da moralidade com outros princpios constitucionais explcitos.......................................................................................................... 82 3.2.2 Princpio da proporcionalidade ..................................................................................... 85 3.2.3 Coliso de princpios constitucionais ........................................................................... 88 4 CONCLUSO .............................................................................................................. 92 REFERNCIAS ....................................................................................................................... 99 APNDICE 1 - Relao dos acrdos do TCU consultados ................................................. 102 APNDICE 2 Dados relevantes dos acrdos do TCU considerados de interesse para a pesquisa princpio da moralidade ........................................................................................ 112 APNDICE 3 - Dados relevantes dos acrdos do TCU considerados de interesse para a pesquisa princpio da proporcionalidade ............................................................................. 141

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INTRODUO O senso comum mostra que a sociedade brasileira no mais suporta a ao de

polticos, gestores e empresas que, mesmo no infringindo, de modo explcito, normas positivadas em lei, atuam com desrespeito moralidade administrativa. Em muitas ocorrncias, noticia-se a existncia de corrupo na conduo dos negcios pblicos, rtulo associado a prticas de desvio de recursos pblicos. Ao confirmar esse esprito de indignao popular, Moreira Neto (2007, p. 51) observa que a moralidade tem sido cada vez mais cobrada dos parlamentares, dos juzes e dos administradores, na medida em que aumentam as decepes populares com a conduta de seus dirigentes. Embora essa idia geral da coletividade sobre a inobservncia da moralidade possa estar sendo confundida ou entendida de modo complementar em relao definio que usualmente se confere moral comum (cujo conceito distinto daquele atinente moralidade administrativa, mas com certa zona de interseo entre ambos), no h dvidas de que o grande nmero de irregularidades cometidas em detrimento dos recursos pblicos que, rotineiramente, veiculado pela mdia refere-se, em muitas situaes, a casos efetivos de ofensa moralidade na gesto da coisa pblica. O Tribunal de Contas da Unio (TCU), como rgo constitucionalmente incumbido do controle externo da Administrao Pblica (art. 70 e ss. da Constituio Federal de 1988), no que tange ao emprego de recursos federais, tem na vigilncia da moralidade uma de suas principais reas de atuao. O resguardo da observncia desse princpio por parte dos gestores pblicos e das pessoas fsicas e jurdicas que, de algum modo, se relacionam com os rgos da estrutura estatal ao gerir parcela dos mencionados recursos , portanto, uma tarefa diuturna da Corte de Contas. A reviso de literatura efetivada sobre trabalhos que tiveram como foco a moralidade administrativa mostrou que Lima (2006) realizou, com interesse semelhante ao desta pesquisa, investigao sobre esse conceito, a fim de, num segundo momento, verificar como estaria ocorrendo a atuao dos Tribunais de Contas e do Poder Judicirio na fiscalizao e avaliao do respeito ao citado princpio constitucional. O conjunto de conceitos apresentado nesta monografia estende a anlise de Lima (2006) e tem, como base do marco terico, as teorias de Direito Constitucional centradas na fora normativa da Constituio e na consequente imperatividade de seus princpios, que

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podem ser aplicados diretamente a casos concretos, prescindindo, assim, de leis e outros diplomas infralegais para lhes dar eficcia. Nesse aspecto, considerou-se essencial a contribuio do neoconstitucionalismo para dar sustentao terica anlise realizada sobre a jurisprudncia do TCU, sem deixar de lado contribuies oriundas de autores do ramo do Direito Administrativo. Para explorar o conceito de moralidade, a abordagem teve como ponto de partida o conceito de moral comum conhecido desde a Grcia antiga, conforme empregado na Filosofia por autores gregos - a partir do estudo da tica - e por outros que por eles foram influenciados. Outras contribuies foram buscadas, tambm, na Filosofia do Direito. O enfoque sobre o princpio da moralidade administrativa, por sua vez, centrou-se na Teoria Geral do Direito, no Direito Constitucional e no Direito Administrativo, assim como na legislao brasileira que trata do tema, especialmente a Constituio Federal de 1988. Essa reviso de conceitos trouxe subsdios para que aspectos de interesse para a rea do Direito servissem de justificativa e dessem contedo ao trabalho, entre os quais podem ser citados: a) importncia atual da moralidade administrativa no apenas em termos acadmicos, face nova dimenso dada ao estudo de princpios constitucionais e sua normatividade, mas tendo em conta, tambm, as inmeras ocorrncias de irregularidades que chegam ao conhecimento do TCU e que envolvem esse princpio; b) dificuldade para identificao dos casos em que um ato administrativo deve ser avaliado no apenas quanto legalidade, mas ultrapassar esse primeiro patamar e recair para o controle da moralidade; c) anlise da jurisprudncia do TCU frente aplicao do princpio constitucional da moralidade e de outros que lhe forem correlatos, a fim de propiciar alguma generalizao acerca dos julgados do Tribunal (padres na fundamentao dos julgados, por exemplo), guisa de concluso. Destaque-se que enquanto Lima (2006) verificou a jurisprudncia de Tribunais de Contas e do Poder Judicirio tanto no nvel estadual, como na esfera das Cortes superiores, como o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justia, sendo, por conseguinte, uma pesquisa horizontal, nesta monografia o foco restringiu-se unicamente ao repositrio de jurisprudncia do TCU, o que implicou numa anlise vertical. Essa delimitao possibilitou o aprofundamento da avaliao dos acrdos da Corte de Contas que foram considerados para a pesquisa, em termos do emprego de princpios constitucionais, especialmente o princpio da moralidade, na fundamentao dos julgados.

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A monografia justifica-se, assim, por apresentar interesse acadmico crescente, demonstrado, por exemplo, por Lima (2006), que afirma ser ainda incipiente a jurisprudncia sobre o assunto no mbito dos Tribunais de Contas1. Alm disso, trata-se de estudo que tem como uma de suas metas explicitar como a doutrina dominante, especialmente nas reas do Direito Administrativo e do Direito Constitucional, e a jurisprudncia do TCU lidam com o princpio da moralidade, tanto em termos conceituais, como para servir de alicerce para a fundamentao de deliberaes2 no mbito da Corte de Contas. No que diz respeito ao problema de pesquisa que motivou a realizao deste trabalho, deve-se destacar que o estudo de princpios constitucionais que trazem consigo contedo normativo, como o caso do princpio da moralidade, pode esbarrar na falsa impresso de que tais princpios so de tal modo abstratos e de difcil conceituao que sua aplicao prtica torna-se invivel. Na verdade, os princpios constitucionais insculpidos no caput do art. 37 da Constituio Federal, de interesse para esta pesquisa, tm carter auto-aplicvel, dependendo, contudo, de interpretao doutrinria e jurisprudencial para que seu contedo seja adequadamente delimitado, de modo que o dever-ser neles contido incida nos fatos do mundo real conforme previsto na legislao. A reviso terica que precedeu a fase de anlise de julgamentos do TCU constituiu subsdio essencial para que fosse delimitado o entendimento sobre o princpio da moralidade e sobre os demais princpios de interesse para a pesquisa, como o da legalidade e o da impessoalidade, aos quais foi agregado o princpio da proporcionalidade. Em relao a todos esses princpios incidiu a viso do neoconstitucionalismo e a intrnseca ligao desse paradigma com a defesa de direitos fundamentais que, no caso deste trabalho, pode ser resumido como o direito que a sociedade tem de usufruir de uma ao do Estado totalmente pautada pela moralidade administrativa.

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De modo ainda tmido, mas cada vez mais seguro, os tribunais de contas tm analisado os atos de gesto administrativa com olhos na moralidade administrativa. Poucos so os julgados, se comparada a jurisprudncia em formao com o volume de recursos pblicos e o nmero de atos administrativos praticados, e vasto o trabalho por se fazer na identificao de situaes de afronta moralidade pblica (...). (LIMA, 2006, p. 78). 2 Consideram-se acrdos as deliberaes colegiadas do TCU, nos termos do art. 67, inciso V, de seu Regimento Interno: Art. 67. As deliberaes do Plenrio e, no que couber, das cmaras, tero a forma de: (...) V acrdo, quando se tratar de deliberao em matria da competncia do Tribunal de Contas da Unio, no enquadrada nos incisos anteriores. (grifo nosso).

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Nesse contexto, o trabalho de interpretao que vem sendo realizado pelos doutrinadores e, no caso da jurisprudncia, pelo TCU3, pode auxiliar na compreenso de qual o alcance que vem sendo conferido expresso moralidade administrativa tanto na rea acadmica, como pelo Tribunal, ao apreciar situaes concretas. Doutrina e jurisprudncia podem, portanto, nortear a delimitao da moralidade administrativa, tendo em vista o amplo espectro de conceitos que visam explic-la, especialmente nos casos em que no h lei que detalhe a aplicao concreta do princpio. Partindo-se do problema de verificar como o rgo de controle externo vem aplicando o princpio constitucional da moralidade a casos concretos, o objetivo principal da pesquisa restringiu-se averiguao da atuao do rgo de controle externo em processos nos quais foi detectado desrespeito a esse princpio e queles que lhe so correlatos, considerando deliberaes prolatadas pelo Tribunal de janeiro de 2004 a junho de 20094. Algumas questes, como as seguintes, caracterizaram problemas pontuais para a presente pesquisa: a) Qual o parmetro para indicar que um ato administrativo atentou contra o princpio da moralidade? b) Como ultrapassar o controle meramente de legalidade do ato administrativo e, no passo seguinte, verificar a violao moralidade? c) H lacuna legal, a exemplo da falta de definio especfica sobre o que seja a moralidade administrativa ou parmetros que tornem possvel identificar sua transgresso, para imputar responsabilidades a gestores e a terceiros com eles envolvidos (pessoas fsicas e jurdicas)? d) O embasamento apenas em princpios constitucionais suficiente para fundamentar o julgamento pela irregularidade de contas e a imputao de dbitos e/ou multas a responsveis (alm de outras sanes)? e) Princpios constitucionais vm sendo aplicados diretamente pelo TCU na fundamentao de suas deliberaes? f) Como o princpio da moralidade vem sendo confrontado com outros princpios constitucionais, em casos concretos analisados pelo TCU, quando h coliso entre princpios? g) O princpio da proporcionalidade vem sendo utilizado pelo TCU? Em qual contexto?3

Por bvio, a interpretao jurisprudencial quanto ao princpio da moralidade tambm vem sendo levada a efeito por inmeros tribunais do pas. No se encontra no escopo desta pesquisa, contudo, avaliar a jurisprudncia de outros tribunais de contas e do Poder Judicirio, mas apenas a do TCU. 4 No Apndice 1 apresentada a relao dos acrdos analisados, englobando deliberaes prolatadas entre 20/1/2004 a 10/6/2009, divididos entre os desconsiderados e aqueles considerados de interesse para a pesquisa.

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h) Como o TCU, tendo em conta os questionamentos precedentes, avalia casos concretos a ele submetidos que atentam contra o princpio da moralidade administrativa? A resposta a essas indagaes constituram o corpus do trabalho e levaram ao cumprimento dos objetivos gerais e especficos inicialmente propostos no projeto da pesquisa, que podem ser resumidos na avaliao da jurisprudncia do TCU quanto aos principais casos nos quais foi empregado o princpio da moralidade administrativa (e aqueles correlatos) para fundamentar as deliberaes do Tribunal e, em conseqncia, identificar como o rgo de controle externo lida com situaes administrativas consideradas moralmente reprovveis. A estrutura da monografia foi organizada, em sua primeira parte, na apresentao do marco terico sobre moral e moralidade administrativa, com especial ateno s teorias que defendem a normatividade dos princpios constitucionais, para, em seguida, proceder-se anlise da jurisprudncia da Corte de Contas e conseqente proposta das concluses consideradas pertinentes.

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MORALIDADE ADMINISTRATIVA O marco terico desta monografia buscou referncias na Filosofia e na Filosofia do

Direito para conceituar a moral comum e no Direito Constitucional e no Direito Administrativo para explorar o conceito de moralidade administrativa. No caso dos subsdios oriundos do Direito Constitucional, o foco da discusso recaiu sobre a temtica dos princpios constitucionais, na perspectiva do neoconstitucionalismo. Alm da discusso doutrinria sobre moral e moralidade, foi verificada a legislao brasileira (constitucional e infraconstitucional) que trata da moralidade administrativa e de outros conceitos relacionados, como a improbidade administrativa. A diversidade de reas do conhecimento e ramos do Direito empregados no marco terico justifica-se na medida em que a moralidade pode parecer, primeira vista, um conceito abstrato, de difcil explicao em termos prticos. Neste trabalho, contudo, foram buscadas definies e caracterizaes de moralidade que, a partir da doutrina e considerando o que a legislao em vigor dispe sobre o tema, pudessem embasar o alcance do objetivo maior da pesquisa, que se circunscreve utilizao desse princpio pelo TCU. A seguir, so apresentadas as duas subsees que compem o marco terico desta monografia.

2.1

Moral na Filosofia e na Filosofia do Direito Nessas reas do conhecimento, o foco da pesquisa restringiu-se a tpicos

relacionados tica e moral comum, tendo sido buscados conceitos capazes de auxiliar nas discusses das sees subsequentes da monografia, centradas na moralidade administrativa. A civilizao grega, que teve seu apogeu no sculo VI antes de Cristo (a.C.), trouxe para o estudo da filosofia as primeiras e, at hoje, essenciais contribuies para o estudo da tica e da moral. Apresenta-se, a seguir, um breve resumo sobre as idias de Scrates, Plato e Aristteles, que balizaram a construo do pensamento moral desde a Antiguidade. Scrates (470 ou 469 a 399 a.C.) tinha como cerne de seu mtodo as indagaes contnuas denominado maiutica -, que levava seu interlocutor, por si mesmo, ou seja, por seu prprio raciocnio, ao conhecimento ou soluo de sua dvida. Essa busca incessante da verdade, num infatigvel percurso das respostas (NALINI, 2008, p. 57), levaria ao

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conhecimento (saber), uma das trs noes que formavam a base da moral socrtica, constituda pelo saber, pela virtude e pela felicidade. Na condio de discpulo de Scrates, Plato (427 a 347 a.C.) aperfeioou a maiutica e a transformou em sua prpria dialtica, cuja essncia estava centrada na contraposio de intuies sucessivas. Sua tica considerava o problema moral como coletivo, e no individual. Esse idealismo moral que enfatizava o aspecto coletivo pode ser explicado pelo fato de que Plato defendia que a vida humana s alcanaria o seu fim ltimo no seio da cidade, local que teria como misso tornar virtuoso o homem, na leitura feita por Nalini (2008, p. 60) da obra A Repblica, do mestre grego. Nesse sentido, a formao do ser humano no mbito da polis, de responsabilidade do Estado, deveria ser integral, no apenas por meio da educao formal, e considerar, tambm, a necessidade de se preocupar com as dimenses afetivas, ticas e transcendentes do homem. Para os fins desta monografia, levando-se em conta a amplitude da obra de Plato na Filosofia, cabe destacar apenas que suas teorias e compreenses do mundo como a Teoria das Idias -, centradas no estudo da tica e da poltica, revelavam a convico desse filsofo de que seria por meio do conhecimento e da prtica das virtudes sabedoria, valor e temperana - que o homem poderia alcanar a felicidade. Barker (1978) observa, contudo, que essa felicidade no se limitava ao mbito individual, visto que a essncia da moralidade social, para Plato, considerava a funo do indivduo na sociedade, bem como seus deveres sociais. Conforme resume Barker (1978, p. 222 grifo nosso): por trs desta frmula, e desta concepo de moral social, est o conceito da sociedade como um conjunto, ou organismo moral, vivendo uma vida tica na qual cada indivduo um rgo, e tem uma funo determinada. O terceiro grande filsofo a ser mencionado nesta breve remisso aos autores da Grcia antiga Aristteles (384-324 ou 322 a.C.), discpulo de Plato e seguidor de sua doutrina. Destaque-se que a tica aristotlica no empregava um mtodo nico a todo o seu pensamento, mas se servia de procedimentos de investigao prprios para cada rea do conhecimento. A finalidade da tica para Aristteles seria a descoberta do bem absoluto o bem supremo ou a verdadeira felicidade. Essa meta poderia ser alcanada por meio da prtica das virtudes, subdivididas em (a) dianoticas ou intelectuais e (b) as ticas ou morais.

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Nalini (2008, p. 61) explica a diferena entre essas virtudes: As primeiras dependem do entendimento e se adquirem por via teortica, mediante o ensino. As virtudes ticas ou morais residem na vontade e s depende da vontade desenvolv-las. Em suma, o desenvolvimento da tica no ser humano, na concepo de Aristteles, dependeria to-somente da vontade de cada pessoa, cujo fim ltimo seria a consecuo do bem. Nota-se, na compreenso dos trs filsofos gregos apresentados, que as noes de tica e moral por eles desenvolvidas esto, de algum modo com nfases distintas para cada um deles -, sempre relacionadas busca do bem e da felicidade; ao exerccio de virtudes ligadas ao conhecimento e sabedoria; educao formal e integral, sob responsabilidade da polis; entre tantos outros aspectos que conformam a base de suas idias e que conduziram s teorias sobre a moral construdas desde ento. Apresentados os comentrios precedentes, que resumem o estudo da tica e da moral na Grcia antiga, e antes de prosseguir a discusso, cabe diferenciar esses dois termos. Nalini (2008, p. 28) observa: h quem no distinga tica de moral. Esse autor esclarece, contudo, que h, sim, diferena entre os conceitos. tica seria a cincia do comportamento moral dos homens em sociedade (NALINI, loc. cit.), cujo objeto seria a moral, um dos aspectos do comportamento humano. Mesmo aps detalhar que o objeto da tica a moralidade positiva5, Nalini (2008) reconhece que a distino conceitual entre os construtos apresentados no elimina o uso corrente de tica e moral como expresses sinnimas. Para os fins desta monografia, tal discusso no implicar em problemas conceituais, visto que os debates adiante apresentados, na fase de anlise de julgados do TCU, sero centrados to-somente nas noes sobre a moral e a moralidade administrativa, sem adentrar em questes sobre tica. Como seguidor da tradio grega, Imannuel Kant, que viveu no perodo de 1724 a 1804, procurou o fundamento ltimo do discurso metafsico, sendo que a importncia de sua doutrina para esta monografia reside no fato de que esse autor valorizava, sobremaneira, a dimenso moral do homem. De acordo com Pereira (2004), Kant considerava que seria a conscincia moral, precisamente, o que distinguiria o homem dos outros seres. A tica, na filosofia moral de Kant (1993, 2003) que tem na liberdade a base de todo o seu sistema jurdico -, pode ser explicada a partir de princpios prticos que determinam a vontade. Tais princpios subdividem-se em dois grupos:5

Moralidade positiva, para Mynez (1970, p. 12 apud NALINI, 2008, p. 29), o conjunto de regras de comportamento e formas de vida atravs das quais tende o homem a realizar o valor do bem.

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a) mximas, que so os princpios prticos que valem apenas para os homens que as aceitam; b) imperativos, que so os princpios prticos que valem universalmente para todos e que constituem mandamentos obrigatrios que expressam a necessidade objetiva de uma determinada ao. Quanto aos imperativos, Kant (1993, 2003) classificou-os em dois grupos: a) imperativos hipotticos (prescries prticas): determinam a vontade apenas no caso de se desejar alcanar determinado objetivo. Exemplo: se quiseres passar de ano, deves estudar. b) imperativos categricos (leis morais): determinam a vontade

independentemente de qualquer objetivo a ser alcanado; valem universalmente e independem de qualquer condio subjetiva acidental. Exemplo: no deve nunca mentir. Quanto distino que Kant (1993, 2003) faz entre os imperativos hipotticos e os imperativos categricos, destaque-se que os primeiros se referem a prescries prticas e esto relacionados vontade apenas no caso de se desejar alcanar determinado objetivo. O direito se encontra no mbito dos imperativos hipotticos, pois estabelece uma condio um dever-ser -, um comando, expresso na lei, que pode, ou no, ser cumprido. A heteronomia do direito est caracterizada por sua coercibilidade, pois, se uma determinada ao prevista na norma jurdica no praticada, incide uma sano no indivduo que desrespeita tal norma. J nos imperativos categricos no h qualquer condio, visto que determinam a vontade independentemente de qualquer objetivo a ser alcanado, ou seja, valem universalmente para todos os seres racionais e independem de qualquer condio subjetiva acidental. A moral encontra-se nesse tipo de imperativo, sendo autnoma, no dependendo, portanto, de uma coero externa que obrigue o indivduo a praticar determinada ao (o ato moral). Para a presente pesquisa, o interesse volta-se para os imperativos categricos, pois apenas estes so leis morais, universais e necessrias, no obstante alguns autores, como Gert (2009), considerarem haver sobreposio na conduta governada pela moral (imperativo categrico) e naquela conduzida pela lei ou pelo Direito (imperativo hipottico)6.

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A lei ou um sistema legal pode ser distinguido da moralidade ou de um sistema moral por ter regras e penalidades escritas, de modo explcito, e autoridades que interpretam as leis e aplicam as penalidades. Apesar da frequente existncia de considervel sobreposio entre a conduta governada pela moralidade e aquela governada pela lei, leis so frequentemente avaliadas em bases morais. Crticas morais so frequentemente

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Kant (1993, 2003) define do seguinte modo as frmulas do imperativo categrico, que podem auxiliar no entendimento do que seriam as leis morais: a) primeira formulao - a lei universal: Age de modo que a mxima da tua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princpio de legislao universal; b) segunda formulao - o reconhecimento e o respeito pelos outros: Age de modo a considerar a humanidade, seja na tua pessoa, seja na pessoa de qualquer outro, sempre tambm como objetivo e nunca como simples meio; c) terceira formulao - a autonomia: Age de modo que a vontade, com a sua mxima, possa ser considerada como universalmente legisladora em relao a si mesma. A moralidade para Kant , portanto, a relao das aes com a autonomia da vontade, isto , com a legislao universal possvel por meio das suas mximas sendo estas validadas pelos imperativos. Em resumo: a ao que possa concordar com a autonomia da vontade permitida; a que com ela no concorde proibida (PEREIRA, 2004, p. 20). Nalini (2008) conclui, a partir das formulaes da filosofia prtica de Kant, que a significao do comportamento, para esse autor, no residia em resultados externos, mas na pureza da vontade e na retido dos propsitos do agente considerado.

2.2 2.2.1

Moralidade na perspectiva jurdica Moralidade administrativa Na origem dos estudos sobre moralidade administrativa o principal expoente foi

Maurice Hauriou, primeiro autor a utilizar essa expresso no incio do sculo XX, tendo partido o mestre francs da doutrina do abuso do direito, de acordo com Lima (2006), ou da teoria do desvio de poder, de acordo com Moreira Neto (2007). Hauriou definiu do seguinte modo a moralidade administrativa7: conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administrao. Di Pietro (2007, p. 69 grifos do original) esmia essa definio: implica saber distinguir no s o bem e o mal, o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, mas tambm entre o honesto e o desonesto.utilizadas para fundamentar mudanas na lei. Alguns tm at mesmo sustentado que a interpretao da lei deve fazer uso da moralidade [Dworkin, 2003]. 7 Na obra Prcis de droit administratif et de droit public general (Paris: L. Larose, 1900), citada por Moreira Neto (2007, p. 58).

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Destaque-se que Hauriou foi o autor pioneiro a ressaltar a distino entre a moral comum e a moral administrativa. Essa diferenciao encontra amparo na doutrina contempornea de Alexandrino e Paulo (2006, p. 119-120): A denominada moral administrativa difere da moral comum, justamente por ser jurdica e pela possibilidade de invalidao de atos administrativos que sejam praticados com inobservncia deste princpio. A compreenso que se tem nesta monografia, contudo, a de que h uma zona de interseo entre ambos os conceitos, no havendo, assim, uma dicotomia absoluta entre a moral comum e a moral a ser observada na Administrao Pblica. Segue-se, nesta monografia, portanto, a mesma compreenso que Garcia (2001) tem sobre tais conceitos quando faz a seguinte afirmao: em um primeiro plano, no vislumbramos uma dicotomia absoluta entre a moral jurdica [princpio da moralidade] e a moral comum, sendo plenamente factvel a presena de reas de tangenciamento entre elas, o que no raro possibilitar a simultnea violao de ambas. A noo acadmica sobre a moralidade administrativa ganha contornos levemente distintos para autores dos ramos do Direito Administrativo e do Direito Constitucional, mas a impresso geral que a doutrina tem sobre o conceito, bem resumida por Furtado (2007, p. 103), a de que poucos institutos jurdicos so de definio to difcil quanto o princpio da moralidade. Medauar (2008, p. 126), que compartilha desse entendimento, justifica essa dificuldade de traduo verbal do conceito de moralidade administrativa por considerar que quase impossvel enquadrar em um ou dois vocbulos a ampla gama de condutas e prticas desvirtuadoras das verdadeiras finalidades da Administrao Pblica. Mesmo com a dificuldade amplamente reconhecida pela doutrina para se formular um conceito de moralidade administrativa, os autores que estudam o tema tentam propor um conjunto de idias para que seja alcanada uma compreenso mnima sobre o assunto. Aps destacar, no mesmo sentido de Furtado (2007) e Medauar (2008), que o princpio de difcil conceituao doutrinria, Moraes (2005, p. 101) ensina que a idia de moralidade na gesto da coisa pblica deve englobar o respeito aos princpios ticos de razoabilidade e justia, visto que no bastar ao administrador o estrito cumprimento da legalidade. Alm disso, esse autor defende que o princpio da moralidade est intimamente vinculado idia de probidade, dever inerente do administrador pblico (MORAES, 2005, p. 102).

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Para Justen Filho (2006, p. 792), a moralidade consiste num conjunto de imposies ticas norteadoras do exerccio da funo administrativa, impositivas dos deveres de lealdade e de honestidade na gesto dos recursos e no exerccio das competncias. Mello (2005), por sua vez, entende que o princpio da moralidade engloba as noes de lealdade e boa-f, que podem ser aplicadas em todas as direes, tanto nas relaes internas do Estado, como nos atos que envolvam terceiros externos Administrao Pblica. Seguindo esse entendimento, acerca do mbito de aplicao do princpio, Carvalho Filho (2007, p. 18) acrescenta que tal forma de conduta deve existir no somente nas relaes entre a Administrao e os administrados em geral, como tambm internamente, ou seja, na relao entre a Administrao e os agentes pblicos que a integram. Medauar (2008), em vez de propor um conceito capaz de consolidar todo seu entendimento sobre o princpio da moralidade, prefere que a percepo sobre tal princpio seja apreendida a partir de um enfoque contextual, no mbito do qual a deciso administrativa foi tomada. A deciso imoral, de acordo com essa autora, destoa do contexto e do conjunto de regras de conduta extradas da disciplina geral norteadora da Administrao. (ibid., p. 126). Furtado (2007), com argumentao semelhante de Medauar (2008), considera que a apreenso conceitual do princpio da moralidade seria possvel apenas por meio da descrio de condutas que afetem seu mbito de atuao ou que sejam a ele contrrias. (FURTADO, op. cit., p. 103). Aps exemplificar seu raciocnio com as condutas previstas na Lei 8.429, de 2 de junho de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa) que atentam contra a probidade na gesto pblica, Furtado (loc. cit.) ressalva que certo que o princpio da moralidade no pode ser restringido por meio de lei. Alm de no poder sofrer limitao em face de norma legal, deve-se destacar que a conduta considerada moralmente correta usualmente no vem descrita na lei. Disso decorre a importncia de que o princpio seja no apenas conhecido pela sociedade, mas que por ela seja adotado como regra permanente de atuao a ser exigida do administrador pblico na conduo dos negcios a eles confiados, para que situaes que contrariem a moralidade sejam denunciadas e apuradas pelas autoridades competentes. O princpio da moralidade, observa vila (2005, p. 7 grifo nosso), exige condutas srias, leais, motivadas e esclarecedoras, mesmo que no previstas na lei. A partir da reviso de literatura apresentada, chega-se compreenso de que a moralidade administrativa est ligada s noes de lealdade com a Administrao Pblica; atuao dos rgos e agentes pblicos sempre pautada pela boa-f e honestidade; transparncia na divulgao e execuo dos atos administrativos;

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ausncia de favorecimentos, privilgios e perseguies casusticos, entre outras condutas que podem ser consideradas eticamente corretas e que, usualmente, no esto descritas em lei. Especialmente quanto ao aspecto relacionado a favorecimentos casusticos (ou mesmo prtica de atos pela Administrao que visem prejudicar, deliberadamente e sem fundamentos, determinada pessoa fsica ou jurdica), mostra-se evidente o interrelacionamento entre os princpios da moralidade e da impessoalidade. Alm disso, no obstante ser a moralidade administrativa considerada, por alguns autores, como Meirelles (2001), distinta da moral comum, considera-se que a zona de interseo entre ambos os conceitos, conforme defendido nesta pesquisa, implica que a atuao dos rgos da estrutura estatal que tm prerrogativas de controlar o ato administrativo ser pautada no apenas pelas noes anteriormente apresentadas, mas, tambm, pelo senso de moral comum presente na conscincia de cada julgador ou autoridade responsvel pela aplicao do Direito. Na subseo 3.1 desta monografia, adiante, far-se- a delimitao do papel do TCU no controle do ato administrativo. Delimitado o conceito de moralidade administrativa, foram buscadas na legislao brasileira as principais normas que trazem em seu bojo contedo relacionado a esse princpio. Na Constituio Federal, a moralidade foi positivada como princpio no art. 37, caput8, a seguir transcrito:Art. 37. A administrao pblica direta e indireta de qualquer dos Poderes da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios obedecer aos princpios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficincia e, tambm, ao seguinte: (...) (grifos nossos)

Nota-se que, no mesmo dispositivo constitucional, outros dois princpios de interesse para esta pesquisa alinham-se ao princpio da moralidade, quais sejam, os princpios da legalidade e da impessoalidade. O princpio insculpido no art. 37, caput, da Constituio, presente em captulo que trata Da Administrao Pblica, um princpio jurdico aplicvel a toda a Administrao Pblica e que orienta a produo, a aplicao e a interpretao do Direito na rea pblica. O princpio da moralidade deve ser visualizado sob dois aspectos para sua correta interpretao: o primeiro, na tica objetiva, tendo em vista a boa-f que deve guiar a atuao dos rgos do Poder Pblico e, em conseqncia, de seus agentes; e, o segundo, sob a8

Princpios constitucionais que a doutrina reconhece como explcitos. No caso de princpios que podem ser extrados do conjunto do ordenamento jurdico, a doutrina denomina-os de princpios implcitos.

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perspectiva subjetiva, atinente ao dever de probidade dos agentes pblicos. Destaque-se que ambos os aspectos irradiam sobre os particulares que tratam com a Administrao Pblica, devendo ser, portanto, por eles observados. Medauar (2008) chama a ateno para o fato de que a moralidade foi mencionada na Constituio de 1988 no apenas como princpio, mas, tambm, na forma de instrumentos para sancionar sua inobservncia. Dois so os instrumentos de ndole constitucional para sancionar as transgresses ao princpio da moralidade: a ao popular e as sanes por improbidade administrativa. O primeiro instrumento foi positivado no art. 5, inciso LXXIII, da Constituio Federal, presente em captulo que trata Dos direitos e deveres individuais e coletivos, como uma das possveis causas de pedir da ao popular, regulamentada pela Lei 4.717, de 29 de junho de 1965. A redao do citado dispositivo constitucional a seguinte:Art. 5 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes: (...) LXXIII - qualquer cidado parte legtima para propor ao popular que vise a anular ato lesivo ao patrimnio pblico ou de entidade de que o Estado participe, moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimnio histrico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada m-f, isento de custas judiciais e do nus da sucumbncia; (grifos nossos)

O segundo instrumento constante da Constituio Federal para a defesa da moralidade administrativa relaciona-se conseqncia da prtica de atos revestidos de irregularidades que podem caracterizar a improbidade administrativa. Tal instrumento, que remete legislao infraconstitucional, foi previsto no art. 37, 4, da Constituio, que tem a seguinte redao: Os atos de improbidade administrativa importaro a suspenso dos direitos polticos9, a perda da funo pblica, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao errio, na forma e gradao previstas em lei [Lei 8.429/1992], sem prejuzo da ao penal cabvel. (grifo nosso).

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A Constituio Federal apresenta outro dispositivo relacionado ao tema, conexo ao seu art. 37, 4: Art. 15. vedada a cassao de direitos polticos, cuja perda ou suspenso s se dar nos casos de: (...) V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, 4.

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A legislao infraconstitucional prevista na Lei Maior foi materializada na Lei 8.429/199210, conhecida como a Lei de Improbidade Administrativa, que disciplinou, com detalhes, como podem ser identificados os atos de improbidade (arts. 9 a 11), alm de ter indicado, em seu art. 4, a necessidade de que os agentes pblicos velem pela estrita observncia dos princpios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe so afetos. (grifos nossos). Entre as hipteses que se encontram no texto dessa norma legal incluem-se aquelas que implicam em inobservncia da moralidade administrativa, com suas respectivas conseqncias, quais sejam, sanes de natureza civil e poltica (independentemente das sanes penais e administrativas, alm de outras de carter civil, previstas na legislao especfica), que podem resultar da ao de improbidade administrativa. Silva (2008, p. 669), ao relacionar a improbidade imoralidade, afirma que a improbidade administrativa uma imoralidade qualificada pelo dano ao errio11 e correspondente vantagem ao mprobo ou a outrem. Di Pietro (2007, p. 745 grifo do original), por sua vez, faz a comparao entre esses princpios com as seguintes ponderaes: pode-se afirmar que, como princpios, significam praticamente a mesma coisa, embora algumas leis faam referncia s duas separadamente (...). Para que no restem dvidas sobre os conceitos de moralidade e improbidade administrativa e a relao entre ambos, apresentamos, a seguir, a resposta de Barboza (2008, p. 15 grifos nossos) ao seguinte questionamento: Que relao tem a improbidade administrativa com o princpio da moralidade administrativa?O princpio da moralidade administrativa uma norma jurdica tipo princpio, que se diferencia da norma jurdica tipo regra por no prever uma hiptese concreta e uma conseqncia para essa hiptese12. J as normas caracterizadoras da improbidade administrativa (artigos 9, 10 e 11 da LIA [Lei de Improbidade Administrativa]) so normas tipo regra; elas descrevem fatos (atos mprobos) aos quais o artigo 12 atribui conseqncias (sanes).10

Jurisprudncia do STF: A lei 8.429/1992 regulamenta o art. 37, pargrafo 4 da Constituio, que traduz uma concretizao do princpio da moralidade administrativa inscrito no caput do mesmo dispositivo constitucional. (Pet-QO 3923, Relator: Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno). 11 Da redao dos incisos I e III do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa, que trata das penas aplicveis, depreende-se que nem sempre haver dano a ser ressarcido ao errio: Art. 12. Independentemente das sanes penais, civis e administrativas, previstas na legislao especfica, est o responsvel pelo ato de improbidade sujeito s seguintes cominaes: I - na hiptese do art. 9, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimnio, ressarcimento integral do dano, quando houver, (...); (...) III - na hiptese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, (...). 12 Na seo 2.2.2 Princpios constitucionais desta monografia, adiante, ser apresentada a distino entre normas, princpios e regras.

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Feita essa distino, cabe dizer que a LIA encontra-se inteiramente orientada pela idia de moralidade administrativa, imposta como exigncia jurdica na forma do princpio da moralidade administrativa. Pode-se mesmo dizer que o critrio geral definidor da improbidade administrativa pauta-se pelo princpio da moralidade administrativa, que impe ao agente pblico a observncia de um comportamento tico, o qual vai sendo definido a partir da tica pblica em construo e tal parece justificar, inclusive, a impreciso dos contornos da improbidade administrativa. (...) Em concluso, cabe afirmar que a improbidade administrativa viola direta ou indiretamente o princpio da moralidade administrativa.

Alm da Constituio Federal e das leis mencionadas (Lei da Ao Popular e Lei de Improbidade Administrativa), cabe mencionar a Lei 8.666, de 21 de junho de 1993 (Lei de Licitaes e Contratos Administrativos), de grande emprego pelo TCU na anlise de processos. Essa lei destaca o princpio da moralidade entre aqueles a serem seguidos nas licitaes pblicas, conforme caput de seu art. 3:Art. 3 - A licitao destina-se a garantir a observncia do princpio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administrao e ser processada e julgada em estrita conformidade com os princpios bsicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculao ao instrumento convocatrio, do julgamento objetivo e dos que lhes so correlatos. (grifos nossos)

Todos os procedimentos determinados pela Lei 8.666/1993 visam ao atendimento das finalidades precpuas da licitao e so orientados pelos princpios que tm origem no texto constitucional (art. 37, caput e inciso XXI), entre eles os da moralidade, da legalidade e da impessoalidade. Especialmente quanto ao princpio da moralidade, a Lei de Licitaes, na parte que disciplina as sanes administrativas aplicveis aos contratos, traz regramentos que prestigiam esse princpio, a exemplo do que dispe seus arts. 86 e 8713, que podem ser empregados nos casos de atraso injustificado na execuo do contrato e pela inexecuo total ou parcial do

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Lei 8.666/1993: Art. 86. O atraso injustificado na execuo do contrato sujeitar o contratado multa de mora, na forma prevista no instrumento convocatrio ou no contrato. (...) Art. 87. Pela inexecuo total ou parcial do contrato a Administrao poder, garantida a prvia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanes: I - advertncia; II - multa, na forma prevista no instrumento convocatrio ou no contrato; III - suspenso temporria de participao em licitao e impedimento de contratar com a Administrao, por prazo no superior a 2 (dois) anos; IV - declarao de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administrao Pblica (...).

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contrato a Administrao. Se o contratado no demonstrar a seriedade e compromisso necessrios para cumprir a avena com o rgo contratante do Poder Pblico, tais dispositivos legais daro ensejo sano, que tem cunho tanto repressivo, como moralizante. O arcabouo legal brasileiro traz outras leis que se somam s anteriormente apresentadas e que, de algum modo, fazem meno moralidade administrativa. Entre esses outros normativos podem ser destacadas a Lei 1.079, de 10 de abril de 1950 (crimes de responsabilidade14) que se relaciona ao art. 85, inciso V, da Constituio Federal 15 -, a Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990 (Regime jurdico dos servidores pblicos civis da Unio, das autarquias e das fundaes pblicas federais) e a Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999 (processo administrativo no mbito da Administrao Pblica Federal). Carvalho (2008, p. 104-105) resume como a moralidade administrativa apresentada no ordenamento jurdico brasileiro:Alm da moralidade insculpida como princpio no caput do artigo 37 da Constituio da Repblica, certo que o artigo 2, pargrafo nico, e da Lei n 4.717/65 a consagrou de forma expressa. No mesmo sentido, o artigo 2, caput, da Lei n 9.784/99. Ainda como expresso [na] legislao da moralidade como princpio vinculante, tem-se, no nvel infraconstitucional, a Lei n 8.429, de 02.06.92 (Lei de Improbidade Administrativa), a Lei Complementar n 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a Lei n 10.028/00 (que regula aspectos penais da Responsabilidade Fiscal).

Por se encontrar fora do escopo desta pesquisa detalhar dispositivos especficos e procedimentos dessas leis com relao moralidade administrativa, no sero apresentados comentrios adicionais quanto a cada uma delas (no obstante o fato de virem, eventualmente, a ser mencionadas adiante nesta monografia, na fase de anlises de julgados do TCU, para ilustrar alguma situao especfica).14

Na Reclamao 2138/DF, o Supremo Tribunal Federal discutiu a diferena entre os regimes de responsabilidade previstos nas Leis 1.079/1950 e 8.429/1992, para fins de delimitar a espcie de responsabilidade dos agentes polticos e a legislao a eles aplicvel, em casos de ofensa moralidade administrativa: A Constituio no admite a concorrncia entre dois regimes de responsabilidade polticoadministrativa para os agentes polticos: o previsto no art. 37, 4 (regulado pela Lei n 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102, I, "c", (disciplinado pela Lei n 1.079/1950). Se a competncia para processar e julgar a ao de improbidade (CF, art. 37, 4) pudesse abranger tambm atos praticados pelos agentes polticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretao ab-rogante do disposto no art. 102, I, "c", da Constituio. (excerto da ementa Relator: Min. Nelson Jobim - Relator para o Acrdo: Min. Gilmar Mendes - Julgamento: 13/6/2007 - rgo Julgador: Tribunal Pleno). 15 Constituio Federal: Art. 85. So crimes de responsabilidade os atos do Presidente da Repblica que atentem contra a Constituio Federal e, especialmente, contra: (...) V - a probidade na administrao; (...) Pargrafo nico. Esses crimes sero definidos em lei especial, que estabelecer as normas de processo e julgamento. (grifos nossos)

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2.2.2

Princpios constitucionais Princpio, conforme ensinamento de Mello (2005, p. 888-889), omandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposio fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o esprito e servindo de critrio para sua exata compreenso e inteligncia exatamente por definir a lgica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tnica e lhe d sentido harmnico.

vila (2007, p. 179-180 - grifos do original) refora esse conceito, ressaltando que os princpios servem de fundamento para a interpretao e aplicao do Direito. Deles decorrem, direta ou indiretamente, normas de conduta ou instituio de valores e fins para a interpretao e aplicao do Direito. No contexto da Constituio, os princpios podem ser entendidos como o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituio, seus postulados bsicos e seus fins (BARROSO, 2003, p. 151), ou, de forma sumria, pode-se dizer que seriam as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificaes essenciais da ordem jurdica que institui. (BARROSO, loc. cit.). Bonavides (2008), em uma perspectiva histrica, explica como os princpios passaram de meros guias do pensamento jurdico at adquirirem normatividade nas Constituies, na forma adiante explicitada, com o auge do movimento que a doutrina intitula de crise do ps-positivismo16. A transio nessa caminhada doutrinria, desde seus primrdios at chegar ao ponto no qual se reconhece a normatividade dos princpios constitucionais, pode ser mais bem compreendida a partir do ensinamento que Bonavides (2008) apresenta sobre a matria. Esse autor entende que a doutrina sobre a juridicidade dos princpios abrange trs fases distintas: a jusnaturalista, a positivista (ou juspositivista) e a ps-positivista. Na Velha Hermenutica, na aluso que Bonavides (2008) faz ao jusnaturalismo, os princpios [gerais de Direito], embora fossem reconhecidos como possuidores de dimenso tico-valorativa, capazes de inspirar os postulados de justia, encontravam-se no campo da abstrao e tinham normatividade basicamente nula e duvidosa (ibid., p. 259). Essa viso predominou at o advento da Escola Histrica do Direito.

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O ps-positivismo a designao provisria e genrica de um iderio difuso, no qual se incluem a definio das relaes entre valores, princpios e regras, aspectos da chamada nova hermenutica e a teoria dos direitos fundamentais. (BARROSO, 2003, p. 325 grifos do original).

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A fase seguinte, que vai do sculo XIX at a primeira metade do sculo XX, foi dominada pelo positivismo (ou juspositivismo), que se fundamenta numa concepo monista, identificando o Direito com o Estado, apontado como o detentor exclusivo do monoplio da produo normativa, e que marcado, de acordo com Bonavides (2008), pela insero dos princpios nos Cdigos, como fonte normativa meramente subsidiria. Nesse paradigma, resume esse autor, os princpios na ordem constitucional eram vistos apenas como pautas programticas, sendo considerados, desse modo, em regra, carentes de normatividade. Na fase atual, iniciada nas ltimas dcadas do sculo XX e denominada como a do ps-positivismo, houve o reconhecimento de que os princpios constantes nas Constituies representam grandes pilares valorativos que guiam a ordem constitucional norteando, em conseqncia, a interpretao da Constituio - e que, nessa condio, passaram a ser tratados como direito, o que lhes confere a fora necessria para estabelecer obrigaes legais. Nessa nova fase, os princpios foram convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifcio jurdico dos novos sistemas constitucionais (BONAVIDES, 2008, p. 264). Miranda (2007, p. 265) identificou as caractersticas dos princpios constitucionais que so, de modo mais recorrente, mencionadas na doutrina, entre as quais podem ser destacadas as seguintes: a) A maior aproximao da ideia de Direito ou dos valores do ordenamento; b) A irradiao ou projeco para um nmero vasto de regras ou preceitos, correspondentes a hipteses de sensvel heterogeneidade; c) A adstrio a fins, e no a meios ou regulao de comportamentos; d) A versatilidade, a susceptibilidade de contedos com densificaes variveis ao longo dos tempos e das circunstncias; e) A virtualidade de oferecer critrios de soluo a uma pluralidade de problemas. Uma das principais classificaes proposta pela doutrina contempornea - sendo Canotilho (2003) um dos exemplos a serem citados - para se entender o alcance, em termos de eficcia, e o significado dos princpios constitucionais, no contexto do ps-positivismo, aquela que os relaciona no contexto das normas e das regras17. Miranda (2007) e Barroso (2009) explicam que as normas jurdicas so um gnero que comporta, entre outras classificaes, duas grandes espcies: as regras e os princpios17

Silva (2008) prefere a distino apenas entre normas e princpios que, para Barroso (2009), j se encontra superada -, mas reconhece a existncia da discusso ora apresentada, que defende a classificao das normas como gnero, do qual os princpios e as regras seriam espcies: H, no entanto, quem concebe regras e princpios como espcies de norma, de modo que a distino entre regras e princpios constitui uma distino entre duas espcies de normas (SILVA, op. cit., p. 92 grifos do original).

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(normas-princpios e normas-regras, para aquele autor). Bonavides (2008, p. 277) segue esse mesmo entendimento e, apoiado na doutrina de Robert Alexy18, ensina que tanto os princpios como as regras so normas e que, nessa condio, ambos constituem igualmente fundamentos para juzos concretos de dever, embora sejam fundamentos de espcie mui diferente. Alm dessa distino essencial entre os conceitos de normas, princpios e regras, outra classificao apresentada pela doutrina de interesse para este trabalho aquela proposta por Canotilho (2003), que organiza os princpios constitucionais em quatro possveis espcies: princpios jurdicos fundamentais; princpios polticos constitucionalmente conformadores 19; princpios constitucionais impositivos20 e princpios-garantia21. Apenas o primeiro princpio ser aqui explicitado. Princpios jurdicos fundamentais, na lio do mencionado autor, so aqueles que foram historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na conscincia jurdica geral e que encontram uma recepo expressa ou implcita no texto constitucional (CANOTILHO, 2003, p. 1.165 grifo do original). Grau (2004), ao analisar a obra de Canotilho (2003), cita, como exemplos dessa espcie de princpios, aqueles constantes no art. 37, caput, da Constituio Federal, destacando, entre outros, a ttulo de exemplo, os princpios da impessoalidade22 e da proporcionalidade23. Aps ressaltar a importncia dos princpios e posicion-los como alicerce de um determinado direito, que no mero agregado de normas, porm um conjunto dotado de unidade e coerncia, Grau (2004, p. 151), em vista de os princpios estarem integrados e inseridos internamente ao sistema jurdico, identifica-os como normas jurdicas24. Conclui

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Na obra Theorie der Grundrechte, Baden Baden, 1985. Para Barroso (2009), deve-se a esse autor e a Ronald Dworkin a disseminao, no Brasil, a partir do final da dcada de 80, dos estudos sobre a teoria dos princpios e a conseqente formulao da idia de normatividade dos princpios constitucionais, a partir das obras Teoria dos direitos fundamentais (Alexy) e Levando os direitos a srio (Dworkin). 19 So os princpios constitucionais que explicitam as valoraes polticas fundamentais do legislador constituinte. (CANOTILHO, 2003, p. 1.166 grifo do original). 20 Nos princpios constitucionais impositivos subsumem-se todos os princpios que impem aos rgos do Estado, sobretudo ao legislador, a realizao de fins e a execuo de tarefas. (CANOTILHO, 2003, p. 1.1661.167 grifos do original). 21 So princpios que visam instituir directa e imediatamente uma garantia dos cidados. (CANOTILHO, 2003, p. 1.167 grifo do original). 22 Princpio da imparcialidade da administrao, para Canotilho (2003, p. 1.165). 23 Na classificao proposta por Miranda (2007), princpios como o da proporcionalidade e o da legalidade so considerados princpios poltico-constitucionais, enquanto, para Barroso (2003), esses princpios, alm dos demais que constam do caput do art. 37 da Constituio Federal, seriam princpios constitucionais gerais. 24 Uma das grandes mudanas de paradigma ocorridas ao longo do sculo XX foi a atribuio norma constitucional do status de norma jurdica. (BARROSO, 2009, p. 196).

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esse autor, no que diz respeito a essa normatividade, que a interpretao da Constituio dominada pela fora dos princpios (GRAU, loc. cit.). Ainda com o intuito de estabelecer a distino entre princpios e regras, Barroso (2009), a partir de compilao de diversas contribuies doutrinrias, prope um critrio simplificador para alcanar esse objetivo, a partir de trs aspectos: contedo, estrutura normativa e modo de aplicao. Assim, quanto ao contedo, um princpio pode ser identificado com as decises polticas fundamentais, os valores a serem observados em razo de sua dimenso tica ou os fins pblicos a serem realizados. As regras, por outro lado, seriam comandos objetivos, prescries que expressam diretamente um preceito, uma proibio ou uma permisso. A estrutura normativa de princpios e regras diferencia-se ante o fato de que, enquanto a estrutura daqueles aponta para ideais a serem buscados por serem os princpios a sntese dos valores mais relevantes da ordem jurdica (BARROSO, 2003, p. 153) -, para as regras a norma descreve de maneira objetiva a conduta a ser seguida. No que tange ao modo de aplicao, Barroso (2009, p. 207), com suporte nos ensinamentos de Dworkin (1978), aponta ser este o principal aspecto que diferencia os princpios das regras. Nestas, h aplicao da modalidade tudo ou nada, ou seja, ocorrendo o fato descrito na norma ela dever incidir, produzindo o efeito previsto. A regra somente deixar de ser aplicada, por conseguinte, se outra regra a excepcionar ou se for invlida. Nos princpios essa modalidade de aplicao no utilizada, pois nestes indica-se apenas uma direo, um valor, um fim, tendo todos o mesmo valor jurdico ou, em outras palavras, o mesmo status hierrquico (BARROSO, op. cit., p. 208). O emprego de um princpio em um determinado caso concreto, quando mais de um princpio seria cabvel, pode ensejar o conflito entre eles, a ser dirimido na forma proposta por autores como Dworkin (1978) e Bonavides (2008). A resoluo desse tipo de conflito coliso de princpios - passa pela ponderao entre os princpios envolvidos, na dimenso do valor, sendo que o princpio de maior peso deve prevalecer na situao concreta sob anlise. Bonavides (ibid., p. 280) alerta, contudo, que isso no significa que o princpio do qual se abdica seja declarado nulo, nem que uma clusula de exceo nele se introduza. Ao contrrio das regras, conclui Barroso (2009, p. 208 grifo do original), princpios no so aplicados na modalidade tudo ou nada, mas de acordo com a dimenso de peso que assumem na situao especfica. No mesmo sentido a concluso de Bonavides (op. cit., p. 280 grifo do original): se quer dizer que os princpios tm um peso diferente nos casos concretos, e que o princpio de maior peso o que prepondera.

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Mesmo considerando que o foco desta monografia o princpio da moralidade, reconhece-se, portanto, a possibilidade de que, em situaes concretas submetidas ao TCU, princpios possam colidir, em casos em que apenas um deles deveria preponderar, em detrimento de outro(s). Nessas situaes, deve o julgador ponder-los, aplicando o de maior peso. Alm disso, no se pode olvidar o fato de que a Constituio Federal expressamente mencionou, lado a lado, os princpios da moralidade e da legalidade no caput de seu art. 37, o que implica que um autnomo em relao ao outro (FURTADO, 2007). Por essa razo, pode haver controle do ato administrativo de modo concomitante ou isolado com relao ao emprego desses princpios pelos rgos de controle, como o TCU, sem prejuzo da ponderao entre eles, quando for o caso. Ressaltados o conceito, as caractersticas e a importncia dos princpios na Constituio, pergunta-se: qual seria a conseqncia de sua inobservncia, quando comparada ao descumprimento de uma norma-regra, por exemplo? Mello (2005, p. 889 grifo nosso) responde a essa indagao do seguinte modo:Violar um princpio muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desateno ao princpio implica ofensa no apenas a um especfico mandamento obrigatrio, mas a todo o sistema de comandos. a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalo do princpio atingido, porque representa insurgncia contra todo o sistema, subverso de seus valores fundamentais, contumlia irremissvel a seu arcabouo lgico e corroso de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofend-lo, abatem-se as vigas que o sustm e alui-se toda a estrutura nelas esforada.

Considerando que a moralidade administrativa (ou o princpio da moralidade) foi abordada em seo anterior desta monografia, cabe conceituar, de modo breve, os princpios da legalidade e da impessoalidade, antes de prosseguir a discusso. O princpio da legalidade, na lio de Meirelles (2001, p. 82), implica que a eficcia da atividade administrativa est condicionada ao atendimento da lei, e significa que o administrador pblico est sujeito aos mandamentos da lei e s exigncias do bem comum, e deles no se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato invlido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso. Esse autor conclui: Na Administrao Pblica no h liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administrao particular lcito fazer tudo que a lei no probe, na Administrao Pblica s permitido fazer o que a lei autoriza. (ibid., p. 82 grifo nosso).

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No contexto contemporneo, no qual se aprimoram os mecanismos de controle de constitucionalidade das leis, o princpio da legalidade deve ser percebido no apenas como o estrito cumprimento da norma pelo gestor pblico ou por todos aqueles abrangidos pelas situaes nela definidas, mas compreendido, tambm, em bases valorativas. Medauar (2008, p. 122) resume esse entendimento ao defender que essas bases acabam sujeitando as atividades da Administrao no somente lei votada pelo Legislativo, mas tambm aos preceitos fundamentais que norteiam todo o ordenamento - o que implica o relacionamento recproco entre os princpios da legalidade e da moralidade. Di Pietro (2007, p. 745) conclui:a legalidade estrita no se confunde com a moralidade e a honestidade, porque diz respeito ao cumprimento da lei; a legalidade em sentido amplo (o Direito) abrange a moralidade, a probidade e todos os demais princpios e valores consagrados pelo ordenamento jurdico.

O princpio da impessoalidade, por sua vez, admite seu exame, na doutrina de Furtado (2007), sob trs aspectos: a) como dever de isonomia por parte da Administrao Pblica, que deve conferir aos particulares tratamento isonmico, sem qualquer discriminao; b) como dever de conformidade ao interesse pblico, equiparando-se, nessa acepo, ao princpio da finalidade, para que a prtica do ato administrativo no implique em qualquer favorecimento ou perseguio; c) como imputao dos atos praticados pelos agentes pblicos diretamente s pessoas jurdicas em que atuam, o que acarreta a retirada da responsabilidade pessoal do agente pblico, perante terceiros, pelos atos que praticam (hiptese aplicvel, por exemplo, ao agente que praticou o ato quando era competente para tal e que, posteriormente, teve sua investidura anulada). Esse princpio, na acepo de Medauar (2008), tem o intuito essencial de impedir que fatores pessoais, subjetivos, sejam os verdadeiros mveis e fins das atividades administrativas. A finalidade da ao pblica deve ser, portanto, o alcance do interesse da coletividade, desconectado de quaisquer razes pessoais. A referida autora apresenta essa compreenso do princpio da impessoalidade apenas para atender, em suas palavras, a requisitos didticos (MEDAUAR, 2008, p. 124), pois defende a implicao recproca entre esse princpio e o da moralidade (assim como em relao ao princpio da publicidade).

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Carvalho Filho (2007, p. 18-19 grifos nossos), no mesmo sentido apontado por Medauar (2008), tece as seguintes consideraes sobre o inter-relacionamento entre os trs princpios de maior interesse para a pesquisa:A Constituio referiu-se expressamente ao princpio da moralidade no art. 37, caput. Embora o contedo da moralidade seja diverso do da legalidade, o fato que aquele est normalmente associado a este. Em algumas ocasies, a imoralidade consistir na ofensa direta lei e a violar, ipso facto, o princpio da legalidade. Em outras, residir no tratamento discriminatrio, positivo ou negativo, dispensado ao administrado; nesse caso, vulnerado estar tambm o princpio da impessoalidade, requisito, em ltima anlise, da legalidade da conduta administrativa.

Embora tenham sido mencionados anteriormente nesta monografia autores que, como Kant (1993, 2003), faziam rgida distino entre Direito e moral, cabe registrar que houve, a partir do fim do sculo passado, considervel abertura na doutrina, tanto da Filosofia do Direito como do Direito Constitucional, implicando em superao dessa diferenciao, fruto da crise do positivismo jurdico. O avano mais significativo dessa nova maneira de compreender o Direito e a interpretao que se pode ter das Constituies - e do reflexo que essas acabam tendo na elaborao das leis - pode ser creditada ao neoconstitucionalismo, cujo ensinamento sobre normatividade de princpios constitucionais, como se ver a seguir, constitui a essncia terica desta pesquisa. O neoconstitucionalismo uma corrente terica que prope uma nova percepo da Constituio e do papel que esta representa para a interpretao jurdica em geral. A escolha desse novo Direito Constitucional ou de uma nova maneira de se estudar a Constituio nesse ramo do Direito - est alinhada ao tema e aos objetivos deste trabalho, visto que o constitucionalismo moderno promove (...) uma volta aos valores, uma reaproximao entre tica e Direito. (BARROSO, 2003, p. 326 grifo nosso). Ademais, o pressuposto que norteou a elaborao desta monografia a de que a principal expresso do intrnseco relacionamento entre moral e Direito que vai de encontro s teorias que defendem a diferenciao entre ambos, a exemplo do entendimento que Kant manifestava sobre o tema -, especialmente para o Direito Constitucional, a existncia de princpios constitucionais que expressam as convices e valores basilares de determinada sociedade, em dado momento da histria. Conforme explica Barroso (2007), o neoconstitucionalismo pode ser identificado, no Brasil, com o advento da discusso prvia, convocao, elaborao e promulgao da Constituio de 1988. Em termos tericos, esse autor ensina que trs grandes transformaes

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motivaram o surgimento desse novo paradigma: (1) o reconhecimento de fora normativa Constituio; (2) a expanso da jurisdio constitucional e (3) o desenvolvimento de uma nova dogmtica da interpretao constitucional. Para os fins deste trabalho, apenas o primeiro e o terceiro aspectos foram considerados. A noo que norteou a realizao deste trabalho a que leva em conta a premissa de que a Constituio tem, por si s, fora normativa25, nos termos defendidos por Hesse (1991), independentemente de normas infraconstitucionais. Para esse autor, o desfecho do embate entre os fatores reais de poder (poderes militar, social, econmico e intelectual) e a Constituio escrita no haveria de verificar-se, necessariamente, em desfavor desta, conforme defendido por Lassale (2001). A fora que Hesse (1991) confere Constituio tem o seguinte respaldo de Barroso (2007, p. 21): as normas constitucionais so dotadas de imperatividade, que atributo de todas as normas jurdicas, e sua inobservncia h de deflagrar os mecanismos prprios de coao, de cumprimento forado. Um exemplo de mecanismo de coao exatamente a ao popular, de ndole constitucional. No que tange nova dogmtica da interpretao constitucional - uma das grandes transformaes que motivaram o surgimento do neoconstitucionalismo, na lio de Barroso (2007) -, o destaque a ser dado a esse tpico refere-se atribuio de normatividade aos princpios constitucionais, que materializa a mencionada fora normativa, e definio de suas relaes com valores e regras. Essas duas vertentes de interpretao jurdica seriam, no entendimento do citado autor, um dos smbolos do ps-positivismo. Barroso (2007, p. 27 grifo nosso) explica, do seguinte modo, o sentido da referida normatividade a ser conferida aos princpios, que depende da atividade do intrprete do Direito para a definio de seu alcance:Princpios no so, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas especficas, mas sim normas que consagram determinados valores ou indicam fins pblicos a serem realizados por diferentes meios. A definio do contedo de clusulas como dignidade da pessoa humana, razoabilidade, solidariedade e eficincia tambm transfere para o intrprete uma dose importante de discricionariedade. Como se percebe claramente, a menor densidade jurdica de tais normas impede que delas se extraia, no seu relato abstrato, a soluo completa das questes sobre as quais incidem.25

Para fomentar o debate acadmico, vale mencionar autores que discordam do entendimento manifestado neste trabalho, a exemplo de Souza (2003, p. 117), que reconhece os princpios constitucionais apenas como elementos ideolgicos ou, em suas palavras, como valores ideolgicos da ordem jurdica. Esse autor manifesta sua divergncia ao expressar que certos tericos atuais [referindo-se aos seguintes doutrinadores: Dworkin, Betti, Esser, Boulnager, Larenz, Mller, Alexy, Crisafulli, Trabuchi e Bobbio], reconhecendo a fora de imposio [dos princpios constitucionais] que por esse motivo passa a encerrar, chegam a confundi-la com a prpria fora impositiva da norma, com o que no concordamos. (ibid., p. 117).

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Tambm aqui, portanto, impe-se a atuao do intrprete na definio concreta de seu sentido e alcance.

Ao acolher a tese de que os princpios tm fora normativa e podem ser aplicados diretamente a casos concretos sendo, portanto, verdadeiras prescries de conduta -, o Supremo Tribunal Federal (STF) assim se posicionou:Os princpios constitucionais, que no configuram meras recomendaes de carter moral ou tico, consubstanciam regras jurdicas de carter prescritivo, hierarquicamente superiores s demais e positivamente vinculantes, sendo sempre dotados de eficcia, cuja materializao, se necessrio, pode ser cobrada por via judicial e o art. 37, caput, da CF/1988 estabelece que a Administrao Pblica regida por princpios destinados a resguardar o interesse pblico na tutela dos bens da coletividade, sendo que, dentre eles, o da moralidade e o da impessoalidade exigem que o agente pblico paute sua conduta por padres ticos que tm por fim ltimo alcanar a consecuo do bem comum, independentemente da esfera de poder ou do nvel poltico-administrativo da Federao em que atue. (...) o legislador constituinte originrio, e o derivado, especialmente a partir do advento da EC 1/98, fixou balizas de natureza cogente para coibir quaisquer prticas, por parte dos administradores pblicos, que, de alguma forma, buscassem finalidade diversa do interesse pblico, portanto, as restries impostas atuao do administrador pblico pelo princpio da moralidade e demais postulados do art. 37 da CF so auto-aplicveis, por trazerem em si carga de normatividade apta a produzir efeitos jurdicos, permitindo, em conseqncia, ao Judicirio exercer o controle dos atos que transgridam os valores fundantes do texto constitucional. (RE 579.951, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 20/8/2008, Informativo STF 516 grifos do original)

Nota-se que a normatividade de princpios constitucionais vem sendo reconhecida pelo STF, no sendo, portanto, assunto que se restringe apenas ao mundo acadmico. Nesse sentido, Barroso (2003, p. 161), ao conferir relevo normatividade dos princpios e suas potencialidades na interpretao constitucional, destaca que esta tem sido, paralelamente ascenso histrica dos direitos fundamentais, a marca do Direito nas ltimas dcadas. Considerando o neoconstitucionalismo e o fato de que esse movimento terico defende que a nova hermenutica constitucional deve levar em conta os direitos fundamentais, tem-se que o respeito moralidade um direito da sociedade - o que se coaduna com a idia de direito fundamental a ser protegido via ao popular (art. 5, inciso LXXIII, da Constituio de 1988). A tese em destaque corrobora o entendimento de Dworkin (2003, p. 441), de que a Constituio leva os direitos a srio26, pois somente com mecanismos26

Esse comentrio de Ronald Dworkin foi apresentado no contexto de uma crtica ao mtodo de interpretao historicista da Constituio, segundo o qual esta e as leis devem ser interpretadas segundo as intenes de seus autores (legisladores). ntegra do comentrio: (...) isso equivale a negar que a Constituio expressa princpios,

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garantidores como a ao popular e a atuao dos rgos de controle possvel tornar efetivo esse direito. A doutrina de Binenbojm (2008, p. 52-53 grifo nosso) tambm exalta a importncia dos princpios constitucionais como modo de se alcanar a concretizao e o respeito aos direitos fundamentais: (...) superando a perspectiva exclusivamente individualista, os direitos fundamentais passam a ser tambm vistos como princpios concretizadores de valores em si, a serem protegidos e fomentados, pelo direito, pelo Estado e por toda a sociedade. Retomando-se a idia de que a moralidade deve ser vista, no contexto do neoconstitucionalismo, como direito fundamental da sociedade, a aferio da presena, ou no, desse princpio nas aes do Estado pode ser enriquecida com a anlise concomitante do princpio da proporcionalidade, em cada caso concreto. Antes de estabelecer o foco da discusso quanto a esse princpio para o presente trabalho, cabe mencionar a distino e/ou identificao entre o princpio da proporcionalidade e o princpio da razoabilidade. Barroso (2003, p. 333 grifo nosso), que prefere este a aquele, tece as seguintes consideraes:Guardada a circunstncia de que suas origens reconduzem a sistemas diversos ao americano em um caso e ao alemo em outro -, razoabilidade e proporcionalidade so conceitos prximos o suficiente para serem intercambiveis. Cabe a observao, contudo, de que a trajetria do princpio da razoabilidade fluiu mais ligada ao controle dos atos normativos, ao passo que o princpio da proporcionalidade surgiu ligado ao direito administrativo e ao controle dos atos dessa natureza. Vale dizer: em suas matrizes, razoabilidade era mecanismo de controle dos atos de criao do direito, ao passo que proporcionalidade era critrio de aferio dos atos de concretizao.

Bonavides (2008) esclarece que no novo Estado de Direito, no qual devem ser resguardados direitos, inclusive, de terceira gerao (direitos difusos ou transindividuais, que visam proteo da coletividade), a proporcionalidade, enquanto princpio, deve ser vista como o modo de se verificar se houve equilbrio entre os meios utilizados e o fim alcanado em determinada ao estatal. Em caso de desequilbrio, estar-se- diante de uma desproporo, com ocorrncia de arbtrio. O mencionado autor destaca que a vinculao do princpio da proporcionalidade ao Direito Constitucional ocorre por via dos direitos fundamentais (BONAVIDES, 2008, p. 395), razo pela qual esse princpio foi considerado de utilidade para esta pesquisa, na qual apois no se pode considerar que estes parem ali onde tambm param o tempo, a imaginao e os interesses de algum governante histrico. A Constituio leva os direitos a srio; j o mesmo no se pode dizer do historicismo. (DWORKIN, 2003 p. 441 grifo nosso).

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moralidade est sendo considerada como direito fundamental da sociedade. Complementa esse entendimento o enfoque dado por Barros (2003, p. 100 grifo do original): o princpio da proporcionalidade decorre do Estado de Direito, ou do Estado Democrtico de Direito, ou da idia mesma de direitos fundamentais. O princpio da proporcionalidade, de acordo com Barroso (2009), pode servir anlise sob dois ngulos diferentes. Numa primeira possibilidade, esse princpio pode nortear o julgador (Poder Judicirio, por exemplo) nos casos em que for preciso invalidar um ato legislativo ou administrativo, quando27: a) no haja adequao entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequao); b) a medida no seja exigvel ou necessria, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedao do excesso); c) os custos superem os benefcios, ou seja, o que se perde com a medida de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). A segunda hiptese de emprego do princpio da proporcionalidade indicada por Barroso (2009, p. 305) serve para auxiliar o julgador quando da aplicao da norma, especialmente quanto quelas que trazem gravame parte ou responsvel, ao permitir que o juiz gradue o peso da norma, em determinada incidncia, de modo a no permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, fazendo assim a justia do caso concreto. Destaque-se que o princpio da proporcionalidade est sendo utilizado nesta monografia apenas na segunda hiptese indicada por Barroso (2009), para aferir se os julgados do TCU foram balizados, com relao sua fundamentao, pela devida proporo entre a irregularidade verificada e o respectivo desfecho (especialmente na gradao de multas). Alinha-se, em razo do escopo de anlise indicado no pargrafo precedente, ao entendimento que Medauar (2008, p. 129) apresenta sobre o princpio da proporcionalidade, que, nas palavras dessa autora, consisteprincipalmente, no dever de no serem impostas, aos indivduos em geral, obrigaes, restries ou sanes em medida superior quela estritamente necessria ao atendimento do interesse pblico, segundo critrio de razovel adequao dos meios aos fins.

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Barros (2003), que emprega essa diviso estrutural do princpio da proporcionalidade em trs subprincpios, observa que essa concepo amplamente reconhecida pela doutrina alem.

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2.2.3

Ato administrativo Esta subseo apresentar o conceito de ato administrativo e seus elementos (que

alguns autores chamam de requisitos), como a motivao e a finalidade. A importncia desta subseo reside no fato de que, para verificar se um ato respeitou o princpio da moralidade e outros a ele relacionados, deve-se ter claro seu conceito e saber como se exerce o controle sobre seus elementos e seu contedo. Di Pietro (2007, p. 181 grifo do original) define do seguinte modo o ato administrativo: declarao do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurdicos imediatos, com observncia da lei, sob regime jurdico de direito pblico e sujeita a controle pelo Poder Judicirio. Definio semelhante apresentada por Furtado (2007, p. 251):Ato administrativo toda declarao unilateral de vontade do Estado, ou de quem tenha recebido delegao deste, excetuadas aquelas provenientes do exerccio das funes judicial ou legislativa, regida por norma de Direito Administrativo.

Carvalho Filho (2007, p. 92) observa que, em face da ausncia de uniformidade entre os conceitos apresentados pela doutrina embora muitos deles tenham alcance mais ou menos semelhante -, a melhor forma de caracterizar o ato administrativo seria por meio da identificao de trs pontos fundamentais:Em primeiro lugar, necessrio que a vontade emane de agente da Administrao Pblica ou dotado de prerrogativas desta. Depois, seu contedo h de propiciar a produo de efeitos jurdicos com fim pblico. Por fim, deve toda essa categoria de atos ser regida basicamente pelo direito pblico.

Nota-se que a finalidade pblica do ato administrativo subjacente em seu conceito e, especialmente, em seu contedo, o que implica que os rgos de controle sempre tero esse parmetro como um dos aspectos a serem aferidos. Alm desse primeiro parmetro geral a ser avaliado, outros alm do prprio contedo - podem ser delineados a partir do conhecimento dos elementos que compem o ato administrativo, para que se tenha a exata noo de qual pode ser o foco e o campo de atuao dos rgos de controle, no obstante a faculdade que tem a prpria Administrao de corrigir seus equvocos, por meio do princpio da autotutela. Medauar (2008) apresenta cinco aspectos como elementos do ato administrativo, quais sejam, o agente competente, o objeto, a forma, o motivo e o fim, ressaltando que esse

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o elenco que predomina na doutrina ptria, na qual reina discrdia (...) quanto a certos pontos dessa matria (ibid., p. 135). De acordo com essa autora, apenas os trs primeiros elementos constam, de forma praticamente unnime, em todas as classificaes sugeridas pelos doutrinadores do ramo do Direito Administrativo. O agente competente, na acepo de Medauar (loc. cit.), o representante do poder pblico a quem o texto legal confere atribuies que o habilitam a editar determinados atos administrativos. O objeto (ou contedo, para alguns doutrinadores) o efeito prtico pretendido com a edio do ato administrativo ou a modificao por ele trazida ao ordenamento jurdico (ibid., p. 136). Em sentido amplo, a forma seria a exteriorizao da vontade ou exteriorizao da deciso, para o fim de produzir efeitos no mbito do direito (ibid., p. 136). Tendo em vista discordncias na doutrina quanto a esse elemento do ato administrativo, Medauar (loc. cit. grifo do original) acrescenta: na verdade, forma do ato administrativo engloba tanto os modos de expressar a deciso em si quanto a comunicao e as fases preparatrias, pois todos dizem respeito exteriorizao do ato, independentemente do contedo. O motivo significa as circunstncias de fato e os elementos de direito que provocam e precedem a edio do ato administrativo (ibid., p. 137), tendo sido previstas no art. 50 da Lei do Processo Administrativo algumas situaes em que esse elemento obrigatrio para a validade do ato28. Com relao ao motivo, Furtado (2007), Carvalho Filho (2007) e Medauar (2008) apresentam consideraes sobre a diferena entre motivo e motivao, alm de tecerem comentrios sobre a teoria dos motivos determinantes. A motivao , em suma, a justificativa do ato e pode ser reconhecida como a enunciao dos motivos (MEDAUAR, 2008, p. 137) ou, nas palavras de Carvalho Filho

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Lei 9.784/1999: Art. 50. Os atos administrativos devero ser motivados, com indicao dos fatos e dos fundamentos jurdicos, quando: I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanes; III - decidam processos administrativos de concurso ou seleo pblica; IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatrio; V - decidam recursos administrativos; VI - decorram de reexame de ofcio; VII - deixem de aplicar jurisprudncia firmada sobre a questo ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatrios oficiais; VIII - importem anulao, revogao, suspenso ou convalidao de ato administrativo. (grifo nosso)

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(2007, p. 104), a motivao exprime de modo expresso e textual todas as situaes de fato que levaram o agente manifestao da vontade. Como decorrncia da necessidade de motivao dos atos discricionrios29, foi desenvolvida pela doutrina a teoria dos motivos determinantes. Essa teoria, de acordo com Furtado (2007), preceitua que o ato discricionrio, uma vez motivado, vincula-se aos motivos indicados pelo administrador. Baseia-se, assim, no princpio de que o motivo do ato administrativo deve sempre guardar compatibilidade com a situao de fato que gerou a manifestao da vontade (CARVALHO FILHO, 2007, p. 107). Na atuao vinculada ou na discricionria, explica Meirelles (2001, p. 145), o agente pblico, ao praticar o ato, fica na obrigao de justificar a existncia do motivo, sem o qu o ato ser invlido ou, pelo menos, invalidvel, por ausncia de motivao. O ltimo elemento proposto na classificao de Medauar (2008) quanto aos elementos do ato administrativo o fim (ou finalidade, para muitos autores), por ela traduzido como o interesse pblico a ser alcanado, o efeito prtico, com o objetivo de obter uma conseqncia final (ibid., p. 137). No caso de desrespeito a um ou mais dos elementos apresentados, que so pressupostos necessrios para a validad