Monografia Scotus, o possível e o impossível e a Opinião de Henrique de Gand
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SULFACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIACURSO DE FILOSOFIA
A QUESTÃO SOBRE O POSSÍVEL E O IMPOSSÍVEL EM JOÃO DUNS SCOTUS E A CRÍTICA A HENRIQUE DE GAND.
Pablo Fernando Campos Pimentel
Orientador: Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich
Porto Alegre
2012
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PABLO FERNANDO CAMPOS PIMENTEL
A QUESTÃO SOBRE O POSSÍVEL E O IMPOSSÍVEL EM JOÃO DUNS SCOTUS E A CRÍTICA A HENRIQUE DE GAND.
Trabalho de Conclusão de Curso em Filosofia para a obtenção de Grau de Bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Filosofia Medieval
Orientador: Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich
Porto Alegre
2012
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PABLO FERNANDO CAMPOS PIMENTEL
A QUESTÃO SOBRE O POSSÍVEL E O IMPOSSÍVEL EM JOÃO DUNS SCOTUS E A CRÍTICA A HENRIQUE DE GAND.
Trabalho de Conclusão de Curso em Filosofia para a obtenção de Grau de Bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Filosofia Medieval
Aprovada em _28_ de _Novembro__ de 2012.
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich (Orientador) ...................................................................................................................
.....
Prof. Dr. Urbano Zilles
........................................................................................................................
Prof. Dr. Alfredo Santiago Culleton
........................................................................................................................
Porto Alegre
2012
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A meu pai que me ensinou a ser justo, humilde e sempre foi um
herói ético para mim e à minha mãe, criatura de irrepreensível
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conduta, a qual sempre zelou por minha vida e educação.
Dedico-lhes com muito amor essas linhas.
AGRADECIMENTO
Agradeço ao querido amigo e orientador Professor Doutor Roberto Hofmeister
Pich, que ao longo de minha jornada pela graduação, foi um grande amigo e
conselheiro.
Agradeço aos demais professores, que deixaram em minha formação e
pensamento suas marcas e lembranças carinhosas de estima e amizade.
Agradeço aos colegas, que na maioria das vezes passaram de colegas a
irmãos, os quais nunca deixaram de confiar em minha paixão e potencial pela
Filosofia.
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“Efetivamente, é impossível a quem quer que seja acreditar
que uma mesma coisa seja e não seja, (...) E se não é possível
que os contrários subsistam juntos no mesmo sujeito (e
acrescente-se a essa premissa as costumeiras explicações), e
se uma opinião que está em contradição com outra é o
contrário dela, é evidentemente impossível que, ao mesmo
tempo, a mesma pessoa admita verdadeiramente que a
mesma coisa exista e não exista. Quem se enganasse sobre
esse ponto teria ao mesmo tempo opiniões contraditórias.
Portanto, todos os que demonstram alguma coisa remetem-se
a essa noção última porque, por sua natureza, constitui o
principio de todos os outros axiomas.”
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Aristóteles
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 10
2 O PROBLEMA NOS TRÊS COMENTÁRIOS DE SCOTUS 16
3 A OPINIÃO DE HENRIQUE DE GAND NOS COMENTÁRIOS – “LECTURA I”
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3.1 A OPINIÃO DE HENRIQUE DE GAND NOS COMENTÁRIOS – “ORDINATIO I”
21
3.2 A OPINIÃO DE HENRIQUE DE GAND NOS COMENTÁRIOS –
“REPORTATIO PARISIENSIS EXAMINATA I” 22
4 “REPROVAÇÃO DA OPINIÃO” DE HENRIQUE DE GAND POR PARTE DE
SCOTUS – “LECTURA I” 24
4.1 “REPROVAÇÃO DA OPINIÃO” DE HENRIQUE DE GAND POR PARTE DE
SCOTUS – “ORDINATIO I” 27
4.2 “REPROVAÇÃO DA OPINIÃO” DE HENRIQUE DE GAND POR PARTE DE
SCOTUS – “REPORTATIO PARISIENSIS EXAMINATA I” 28
4.2.1 “Reprovação da opinião” de Henrique de Gand por parte de Scotus –
“Reportatio Parisiensis Examinata I” – Corolários 30
5 QUANTO ÀS OPINIÕES PRÓPRIAS E AS RAZÕES OU ARGUMENTOS
PRINCIPAIS – “LECTURA” 32
5.1 QUANTO ÀS OPINIÕES PRÓPRIAS E AS RAZÕES OU ARGUMENTOS
PRINCIPAIS – “ORDINATIO I” 33
5.2 QUANTO ÀS OPINIÕES PRÓPRIAS E AS RAZÕES OU ARGUMENTOS
PRINCIPAIS – “REPORTATIO PARISIENSIS EXAMINATA I” 34
5.2.1 Quanto à questão número 2 na distinção 43ª em “Reportatio Parisiensis
Examinata I” – “Se Deus poderia fazer coisas diferentes do que fez” 38
5.2.2 Quanto a questão número 1 na distinção 44º em “Reportatio Parisiensis
Examinata I” – “ Se Deus poderia produzir as coisas diferentemente do que
faz” 39
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6 CONCLUSÃO 42
REFERÊNCIAS 45
RESUMO
Este trabalho com a investigação a cerca do problema do possível e do impossível
tem como objetivo clarear em um primeiro momento, aquilo que intrincadamente se
encontra naquelas obras de João Duns Scotus que ficaram conhecidas como os
comentários aos livros das sentenças de Pedro Lombardo. Juntamente com a
interlocução de grande importância feita por Henrique de Gand, o qual, pertence ao
mesmo período de produção filosófica e teológica ao qual Scotus pertence. O que se
visa aqui é trabalhar conceitos da filosofia da alta escolástica pouco estudados
atualmente, como onipotência divina, intelecto ou ideias divinas, possível,
impossível. Conceitos tais que, nos remetem a um universo de discussão muito rico,
no qual se deve ter muita atenção e insistência, pois o modo dispensado a esse tipo
de investigação é um tanto quanto moroso e altamente reflexivo. O cunho histórico e
filosófico de tal estudo é de importância equiparada, pois, possui uma importância
história ao se referir ao período no qual florescia nas universidades medievais as
chamadas disputationes e outro fator histórico muito importante foi o de que nesse
século em questão, a saber, o século 13, exatamente no ano de 1277 Henrique de
Gand participava de algo muito importante, a condenação das 219 teses. Deste
modo, Scotus escreveu três versões aos Libri quatuor setentiarum de Lombardo, os
quais serviam de base de estudos teológicos para aqueles desejavam se ordenar e
crescer dentro das ordens religiosas. De modo que, as distinções sobre o possível e
o impossível encontram-se de modo minuciosamente trabalhados nesses
comentários de Scotus aos Quatro livros das sentenças.
Palavras-chave: Possível-impossível – Scotus – Henrique de Gand – potência divina
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ABSTRACT
This research work around the problem of the possible and the impossible aims to
lighten it at first, what is intricately those works of John Duns Scotus which became
known as the commentaries on books of the sentences of Peter Lombard. Together
with the interchange of great importance made by Henry of Ghent, which belongs to
the same production period philosophical and theological Scotus to which it
belongs. What is intended here is to work on concepts of philosophy of high
scholastic little studied today, omnipotence and divine intellect and divine ideas,
possible, impossible. Concepts such that refer us to a universe of very rich
discussion, in which we must be very careful and insistence, because so relieved this
type of research is somewhat lengthy and highly reflective. The imprint of historical
and philosophical importance of this study is equivalent, therefore, has an important
story to refer to the period in which flourished in medieval universities disputationes
calls and other important historical factor was that this century in question, namely
the 13th century, precisely in the year 1277 Henry of Ghent participated in something
very important, the condemnation of 219 theses. Thus, Scotus wrote three versions
of the Libri quatuor setentiarum Lombardo, which formed the basis of theological
study for those who wished to organize and grow within the religious orders. So, the
distinctions about what is possible and impossible are so meticulously crafted these
comments of Scotus the Four books of sentences.
Key-words: Possible-impossible – Scotus – Henry of Ghent – divine power.
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1 INTRODUÇÃO
Muitos poderiam inquirir-se quanto ao que significa dizer que uma coisa é
possível ou impossível. Quanto a esse questionamento, a saber, sobre o que são o
possível e o impossível, tentar-se-á discorrer do seguinte modo, distinguindo duas
formas de argumentação nas indagações de Scotus sobre essas questões. As
interpretações que se fazem notar nos escritos de João Duns Scotus1 e Henrique de
Gand2 que contemplam tanto uma argumentação lógica quanto uma argumentação
metafísica, as quais, por vezes se diferenciam e em outros momentos se
harmonizam.
Seguindo o questionamento de Scotus far-se-á fundamental talvez que se
faça a mesma indagação que esse se fez, se algo é impossível que seja feito,
pergunta-se então, deste modo, porque esse algo é impossível?
Acredita-se que, feita essa pergunta, a mesma venha a ser de grande auxilio
como ponto de partida a um questionamento mais profundo a cerca do problema a
ser tratado aqui. Sinal disso é como algumas respostas dadas à questão do
impossível elucidam e até mesmo mostram-se basilares para que se tenha um
melhor entendimento a respeito daquilo que Scotus entende por necessidade, ideias
divinas, onipotência, potência ativa e perfeições puras.
Evidenciam-se, de maneira muito clara, como já se havia dito, duas formas de
argumentação a respeito desses temas, a saber, uma argumentação
ontológico/metafísica e, todavia uma argumentação lógico/formal.
A pergunta sobre o possível e o impossível vai muito além do que aquilo que
podemos conceber em um primeiro momento. Mas o que se quer dizer com isso?
Algo muito simples. Todavia, quando Scotus trabalha com esses problemas em seus
comentários às Sentenças de Pedro Lombardo3, não está apenas visando uma
1 Franciscano que nasceu em Duns na Escócia em torno de 1265/66 e veio a falecer em Colônia no ano de 1308. Fez seus estudos em Oxford e Paris, também lecionando nestas duas localidades e provavelmente em Cambridge. Cf. DE BONI, 2005 (p.325)2 Nascido em Gand (Ghent em flamengo) Bélgica flamenga no ano de 1217. Pertenceu à comissão que arrolou as questões condenadas em 1277, pelo arcebispo e Chanceler E. Tempier. Mestre em Artes. Mestre de Teologia em 1275, em Paris. Lecionou ali, de 1276 a 1292. Falecido no ano de 1293. 3 Pedro Lombardo foi um filósofo escolástico do século XII nascido por volta de 1100 em Lumellogno, perto de Novara, no norte da Itália, e falecido em 20 de julho de 1160, ainda que existam algumas dúvidas sobre o ano exato de seu falecimento. Escreveu várias obras, dentre elas a que se tornou a mais célebre foi Libri quatuor sententiarum, ou, os Quatro Livros das Sentenças. As Sentenças são uma cuidadosa compilação de textos bíblicos e frases (sentenças) de Padres da Igreja e outros pensadores medievais que juntos compõem uma detalhada exposição da teologia cristã da época.
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resposta objetiva quanto àquilo que se percebe na natureza, como sendo possível
ou impossível, mas, sobretudo, quer chegar àquilo que em última instância Deus
pode ou não fazer.
Trazer questões de caráter teológico à discussão filosófica sempre foi algo
muito comum nesse período e nesse modo de se filosofar. Portanto, ao se abordar
temas como potência divina, levantar-se-ão perguntas e respostas que vão além
daquilo que se pode perceber na natureza.
Embora essa seja uma discussão um tanto quanto distante do nosso tempo,
acredita-se firmemente que, não poucos são aqueles que se flagram introspectivos
sobre as razões da possibilidade e impossibilidade que temos em nossas ações
perante a existência.
Este trabalho tem como objeto de estudo dois autores singulares da Alta
Escolástica na Idade Média, a saber, João Duns Scotus (1265/66 – 1308) e
Henrique de Gand (1217 – 1293). Por filosofia Escolástica entende-se aquele
modelo de pensamento filosófico que era ministrado nas escolas cristãs nesse
período da Idade Média, onde se fazia corrente a estadia na Universidade de Paris,
com fins de aperfeiçoamento e o intuito de conquistar posteriormente o grau de
mestre.
Sendo que, neste contexto, conforme Boehner (2009, p. 355):
(...) a Universidade constituía antes uma realidade espiritual do que um edifício ou complexo de edifícios, com institutos de ensino e pesquisas, dirigidos por funcionários do Estado. Do ponto de vista de sua organização externa poderíamos defini-la como a totalidade dos professores e alunos que participam do “studium”, distribuído em vários pontos de uma determinada cidade, e formando uma corporação jurídica de direito próprio (“Universitas magistrorum et scholarium”).
No entanto, pode se entender o termo escolástica de quatro modos
diferentes, a saber, um primeiro entendimento era quanto à etimologia, onde schola
deriva de Scholasticus, ou seja, pertencente à escola. Um segundo entendimento
seria aquele entendido pedagogicamente, do qual, por escolástica se entende a sua
técnica de ensino de expor temas e assuntos filosóficos e teológicos. Em terceiro,
quanto ao conteúdo doutrinal, o qual se dava pelo estudo filosófico e teológico
enquanto síntese do patrimônio comum do pensamento humano, orientado pelo
conhecimento da ciência, da filosofia e da teologia. Quanto a um quarto
entendimento sobre o que é escolástica é concernente ao caráter histórico que
engloba três períodos, a saber, a baixa escolástica que vai do século XI ao século
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XII, a Alta Escolástica com seu ponto culminante no século XIII e a Escolástica
Tardia, situada entre os séculos XIV e XV (ULLMANN, 2000).
O intuito de investigação nestes dois autores são as questões sobre o
possível e o impossível, questão esta que pressupõe duas noções que em certa
medida se faziam usuais no modo como os filósofos nesse período produziam e
desenvolviam seus textos, a saber, uma estrutura metafísica ou ontológica, que,
todavia, pressupõe a possibilidade e impossibilidade nos objetos ou nas criaturas,
uma vez que estes estão em relação com Deus.
E uma segunda noção seria aquela que podemos chamar de lógico/formal, pois, a
filosofia escolástica e seus grandes pensadores tinham como influência fundamental
o aristotelismo, desenvolvendo assim seus escritos inclinados fortemente pelas
várias formas da filosofia aristotélica, sendo uma delas o seu silogismo.
As questões sobre o possível e o impossível aparecem em Scotus naqueles
textos que ficaram conhecidos como os comentários aos Libri quatuor sententiarum
de Pedro Lombardo, ou seja, aos Quatro Livros das Sentenças. Faz-se importante
ressaltar que Scotus fez três comentários a essa obra conforme Honnefelder (2010,
p. 30):
A mais antiga versão foi apresentada por Scotus em Oxford (designada como Lectura), na qual ele, mais tarde, começou a retrabalhar (designada como Ordinatio); segue-se a ela a versão que apresentou em Paris e que se encontra na forma de uma transcrição por parte de alunos (designada como Reportatio).
Importante que se explique, no entanto, que as distinções das quais se irá
trabalhar estão respectivamente em lectura I, Ordinatio I e Reportatio parisiensis
examinata I. Desse modo, se faz necessário que se diga o porquê de ao final do
titulo de cada um desses comentários tenha o numeral romano “I” indicando
literalmente o número um. Ora, assim como, a obra de Pedro Lombardo é dividida
em quatro livros, os quais no próprio titulo já faz menção, a saber, Os quatro livros
das sentenças, os comentários de Scotus não deveriam ser diferentes, pois,
pretensamente este deveria comentar a obra completa de Lombardo e não apenas
uma parte dela ou a parte que mais lhe conviesse. De sorte que, as respectivas
distinções que serão analisadas estão contidas nas três versões anteriormente
citadas encontradas nos Livros I de cada uma dessas versões.
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Os problemas tratados por esses dois autores ímpares encontra-se em um
contexto entre os séculos XIII e XIV, onde era muito comum que os estudiosos das
ordens religiosas fossem para a Universidade de Paris a fim de complementar seus
estudos em teologia e filosofia, fazendo preleções de opiniões doutrinais dos Padres
da Igreja, que eram utilizadas como manuais e posteriormente preleções sobre livros
bíblicos, tendo por fim como grau máximo de estudos, atividades em disputas sob a
liderança de um mestre, as chamadas disputatio ou disputationes. A qual, uma das
mais famosas dessas disputationes quodlibetales que se tem notícia que Scotus
tenha participado foi no período entre 1306 – 1307 (HONNEFELDER, 2010).
Desta maneira, a atual investigação contempla o estudo de pontos centrais e
conceitos-chave na filosofia destes dois autores de grande significação para o
campo de pesquisa na filosofia da alta escolástica medieval.
Constata-se, assim, ser de suma importância investigar o que significa dizer
que uma coisa ou algo seja possível ou impossível de ser feita, e se o for, por que o
é? Por causa de Deus ou por causa da criatura?
Tratar as considerações de Scotus sobre o que para ele é dizer que algo seja
possível ou impossível, a saber, de uma perspectiva metafísica e, por outro lado e,
não menos importante, sob uma perspectiva lógica, são questões de grande
significação para a filosofia scotista, que, em última instancia nunca deixou de
investigar a Causa Primeira, que é Deus. O que Deus pode e não pode fazer, qual é
o tipo de conhecimento que Deus tem das coisas. Debatendo esses pontos
específicos com autores contemporâneos a ele, que por esse motivo, abordaram
quase os mesmos temas em suas obras. Um desses autores contemporâneos a
Scotus e também um de seus principais interlocutores, o não menos impactante
Henrique de Gand, que apresenta o mesmo tipo de profundidade ao de Scotus no
que diz respeito às estruturas lógico/metafísicas ao abordar a questão do que é dizer
o possível e o impossível em relação a Deus e às coisas.
Ao analisarem-se as distinções quadragésima segunda, quadragésima
terceira e quadragésima quarta, a saber, na Lectura I, Ordinatio I, e Reportatio
Parisiensis Examinata I, pode-se fazer um cotejamento e ao mesmo tempo perceber
um amadurecimento no pensamento de Scotus. Onde, para se entender aquilo que
Scotus concebe como “algo ser feito” possível ou impossível, entre uma distinção e
outra em comparação criteriosa entre uma versão a outra dos comentários,
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descobrem-se os vários conceitos-chave que Scotus usa para tentar elucidar este
problema.
Algo que, pode se perceber em atenta leitura passando de uma versão à
outra são as críticas que o autor faz a Henrique de Gand. A primeira, quanto a
sustentar opiniões opostas em dois textos diferentes quanto à impossibilidade, pois,
sobre a possibilidade constata-se que esse sustenta o mesmo. A outra, quando
Scotus argumenta contra a primeira via de Gand, de que Deus é a causa não-
precisa da impossibilidade da coisa factível.
Cumpre no momento, uma análise da exposição da argumentação, da forma
como esta está disposta nos textos de Scotus. No entanto, quanto ao que se refere
às distinções quadragésima segunda e quadragésima quarta, estas serão usadas
como recurso explicativo a algo que não tenha se estabelecido suficientemente bem
na quadragésima terceira distinção. Acredita-se que, para um melhor panorama
argumentativo, expor a progressão de um comentário a outro, seja de fundamental
importância, visto que se finalizará na última obra de Scotus, a saber, a sua
Reportatio Parisiensis Examinata I, comentário esse tido como o final sobre as
Sentenças do mestre Pedro Lombardo. O qual é o terceiro e último comentário que
Scotus realizou das mesmas, correspondendo assim, à leitura que este realizou
novamente em Paris, no ano acadêmico de 1302/1303, como requisito à obtenção
do grau de doutor e sucessivamente sua nomeação como magister regens, em
outras palavras, uma cátedra reservada à Ordem franciscana na Universidade de
Paris4.
Segundo o professor PICH R. H. no prefácio que escreveu à compilação de
textos sobre Scotus diz o seguinte:
(...) o conjunto de textos mencionado corresponde à “leitura” de distinções das Sentenças tal como “anotada” ou “reportada” (cf. a expressão “reportatio”) pelos discípulos e alunos e, nesse caso, também “examinada” (examinata) e aprovada pelo mestre Scotus para a publicação e divulgação. (PICH R. H. in SCOTUS, 2008, p. 14)
Por esse motivo, sempre dar-se-á maior saliência aos argumentos levantados
nessa última versão dos comentários, e isto, por motivos óbvios, por possuir
segundo muitos, o caráter maduro e revisado dessas preleções das Sentenças.
4 Cf. PICH, R. H. Prefácio a João Duns Scotus, Textos sobre Poder, Conhecimento e Contingência. In: João Duns Scotus. Textos sobre Poder, Conhecimento e Contingência. Porto Alegre - Bragança Paulista: Edipucrs - Edusf, 2008, p. 7-22.
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Outro fator que se faz necessário é o de que nos atenhemos ao fato de que, por
várias vezes, como anteriormente mencionado já, como recurso explicativo recorrer-
se-á às distinções quadragésima segunda e quadragésima quarta, ou seja, uma
distinção anterior e outra posterior, tendo em vista sempre o caráter sutil e detalhista
do qual Scotus sempre fora lembrado pela tradição filosófica e do qual fora
intitulado, o Doctor Subtil. Deste modo, crê-se mostrar um quadro teórico
argumentativo muito melhormente elaborado e explícito sobre o referido e proposto
tema.
Portanto, a titulo de esclarecimento apenas, a exposição se fará do seguinte
modo, analisando nas três verões do referido comentário, (I) o problema sobre o
qual se está a discutir, (II) as opiniões ou posições do interlocutor de Scotus, a
saber, Henrique de Gand, (III) as refutações dessas opiniões por parte de Scotus e
(IV) as opiniões próprias ou como aparecem nos comentários por vezes, a opinião
própria de Scotus. Com isso pode-se dizer que estão abarcados de forma completa
e sob um ponto de vista mais unificador a forma com a qual ao final desta analise
poderemos compreender melhor a solução ou soluções que vão se dar aos referidos
problemas.
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2 O PROBLEMA NOS TRÊS COMENTÁRIOS DE SCOTUS
É mister que se deixe claro, com respeito ao que concerne aos argumentos
metafísicos e lógicos se poderá notar que em vários momentos essas formas de
argumentação entram em ligação direta uma com a outra, ficando por vezes um
pouco difícil fazer a diferença entre uma e outra. Arrisca-se ainda a dizer que em
determinados momentos os dois argumentos até se complementam.
Desta maneira, volta-se à questão inicial, geradora de tal debate: O que
significa dizer que algo seja “impossível” de ser feito?
Acredita-se termos muito claro aqui qual é o problema sobre o qual Scotus e
seu interlocutor querem discorrer, ou seja, a origem do impossível e, em
contrapartida serão dadas algumas definições sobre o possível. Com efeito, no
tocante ao possível, isso é o que veremos neste embate, simplesmente elucidações
ou conceitos sobre o possível formados para que se possa discutir sobre o que é o
impossível. Portanto, definimos aqui, como problema central, em última análise o
impossível e, é sobre o mesmo que se vai fazer uma investigação mais profunda.
Assim, deste modo, far-se-á o de antemão já dito, ou seja, uma análise da
posição de Henrique de Gand, bem como a refutação dessa opinião da parte de
Scotus, subsequentemente a posição do próprio Scotus, a qual aparece logo na
sequência a refutação da opinião de Gand. Dito isso, se faz necessário que se dê o
titulo da quadragésima terceira distinção nos respectivos comentários de Scotus e,
começaremos por expor o titulo da quadragésima terceira distinção em Lectura I:
“Utrum impossibilitas fiendi sit primo ex impossibilitate factibilis vel ex parte Dei
facientis5”, depois em ordinatio I, “Utrum prima ratio impossibilitatis rei fiendae sit ex
parte dei vel rei factibilis6” e por fim em sua Reportatio parisiensis examinata I, onde
tem-se duas questões dentro da mesma distinção, onde a quaestio prima recebe o
seguinte nome “Utrum prima ratio impossibilitatis in rebus sit ex parte Dei vel ex
parte rei” e a quaestio secunda o seguinte “Utrum Deus posset alia quam fecit7”. as
quais o professor Roberto Hofmeister Pich traduziu em sua coletânea de textos de
Scotus primeiramente em Lectura I Distinção 43ª por “Se a impossibilidade de ser
5 Cf. Lectura I d. 43 q. un. p. 529. 6 Cf. Ordinatio I d. 43 q. un. p. 351.7 Cf. Reportatio Parisiensis examinata I d. 43 q. 1 p. 166 e q. 2 p. 186.
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feito provém primeiramente da impossibilidade do factível ou da parte de Deus que
faz8”. Depois em Ordinatio I Distinção 43ª por “Se a razão primeira da
impossibilidade de uma coisa a ser feita é da parte de Deus ou da coisa factível9” e
por fim em Reportatio Parisiensis examinata I Distinção 43ª dividida em duas
quaestio, as quais a primeira é denominada por “Se a primeira razão da
impossibilidade nas coisas é da parte de Deus ou da parte da coisa10” e a quaestio 2
por “Se Deus poderia fazer coisas diferentes do que fez11”
Muito claramente pode se perceber uma pequena diferença nos títulos entre
as três versões dos comentários. E poderia se fazer a seguinte pergunta: Tratariam
desse modo, do mesmo assunto ou problema? Considerando o problema em
questão pode se dizer que sim, no entanto, cumpre-se notar a ênfase que se dá em
algumas palavras no titulo das citadas distinções. Porém, contudo, no que concerne
à distinção quadragésima terceira de Reportatio Parisiensis examinata I de sobejo já
se evidencia a existência de duas questões em uma mesma distinção e, na primeira
questão a saliência de que a impossibilidade é primeiramente nas coisas
perguntando-se se a culpa dessa impossibilidade nas coisas seria da parte de Deus
ou da coisa.
Crê-se que, mesmo com leves diferenças de ênfases nos títulos dessas
distinções, as mesmas tratem do mesmo problema, a saber, do problema da
impossibilidade e da ligação desta com Deus. Ressaltando, no entanto, que na
quadragésima terceira distinção do último comentário, ou seja, de Reportatio
Parisiensis examinata I haverá duas questões sobre as quais se debruçar.
A estrutura dos seus comentários sempre se dá, ou, se dispõem do seguinte
modo: (i) argumentos a favor e contra a tese de que tal impossibilidade sim, proviria
primeiramente da parte de Deus, (ii) a exposição da opinião ou das posições de
Henrique de Gand, (iii) a reprovação dessa opinião ou posições por parte de Scotus,
(iv) a opinião própria de Scotus a cerca do problema em questão e (v) uma breve
posição quanto à razão principal.
8 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Tradução de R. H. Pich. (p. 162)9 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Tradução de R. H. Pich. (p. 301) 10 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Tradução de R. H. Pich. (p. 465) 11 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Tradução de R. H. Pich. (p. 477)
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Desse modo, exposto e delimitado o problema, ou seja, o de saber se a
impossibilidade de ser feito provém primeiramente da impossibilidade do factível ou
da parte de Deus que faz partimos para a analise dessa estrutura para que se possa
chegar a conclusões mais claras. Exposto, deste modo, o titulo da distintio já se
pode perceber o problema sobre o qual quer se tematizar, Scotus inicia sua arguição
com a defesa de que a impossibilidade de “algo a ser feito” provém primeiramente
de Deus que não daria à criatura capacidade ou como comumente utilizado,
potência para tal realização.
Assim, sempre teremos uma posição defendendo tal que tal impossibilidade
primeiramente é da parte de Deus e logo em seguida outra posição defendendo o
contrário, que primeiramente essa impossibilidade se dá devido a uma incapacidade
da criatura e não de Deus que não teria dado tal capacidade para que esse algo seja
possível.
No que tange à delimitação do problema e à exposição de sua estrutura
dentro da obra acredita-se que o que fora até aqui dito tenha sido suficiente para o
que foi proposto. Deve-se notar que, no entanto, os primeiros argumentos dessas
distinções nas três versões dos comentários, não serão tão salientados quanto o
serão às opiniões de Henrique de Gand e as subsequentes reprovações e opiniões
próprias feitas por Scotus ao mesmo. Pois, estas são aquelas teses iniciais que
sempre principiam (i) por defender a impossibilidade enquanto limitação do Poder
divino e (ii) contra a tese de que a impossibilidade seria proveniente primeiramente
da parte de Deus mas, sim da criatura.
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3 A OPINIÃO DE HENRIQUE DE GAND NOS COMENTÁRIOS – “LECTURA I”
Depois disso, quanto à exposição da opinião de Gand em Lectura I, em sua
primeira via, este diz que Deus é dito ter potentia activa, traduzindo-se por poder
ativo e esse poder é uma perfectio simpliciter, ou seja, uma perfeição pura, e o é,
segundo de Deo ad se, a saber, segundo Deus quanto a si mesmo e não na ordem
a criatura. Aqui se encontra claramente um argumento metafísico, pois vai tratar do
problema em questão enquanto ligado a Deus mesmo12. Pois, para este, visto que a
potência ativa pela qual Deus ser dito Omnipotente é uma perfeição pura, a mesma
sempre será na ordem quanto a si mesmo e nunca na ordem ou, quanto a outro
diferente de si, que não seja Deus. Por isso que, mais adiante, o mesmo fará a
diferenciação entre privações e imperfeições em contrapartida a perfeições. Mas,
antes disto, cabe demonstrar o esquema relacional do qual se vale Henrique, para
provar a inverdade em dizer que a impossibilidade proviria primeiramente de Deus.
E nessa linha, mostra-se necessário expor tal quadro relacional, onde (i) a potência
ativa pela qual Deus é dito potente é somente em relação ao sujeito no qual a
mesma é, a saber, quanto a Deus mesmo, (ii) a potência ativa em Deus é
considerada a potência passiva na criatura em si e em (iii) considera-se essa
potência passiva na ordem para com Deus e em (iv) segue-se a relação da potência
ativa em Deus com a criatura e, por isso mesmo não diz uma dignidade, porque
nada que é em Deus na relação com a criatura diz uma dignidade, dizendo que isso
é provado por Santo Anselmo no capítulo quinze de seu Monologion (SCOTUS,
2008).
Com isso, parece que aqui Scotus quer colocar a posição de Gand como
defendendo a tese de que aquela potência ativa que é considerada em Deus uma
perfeição pura, é sempre considerada quanto a Deus em si mesmo e nunca em uma
relação com a criatura, onde nada de perfeito e digno é dito. E isso é corroborado
pela própria exposição de Gand ainda no final de seu primeiro parágrafo quando
este diz que essa potência será uma perfeição pura em Deus absolutamente e não
na ordem à criatura. Posto isso, entra em cena um argumento dado por Henrique de
Gand no qual diz que “não se diria que “algo ser feito” é impossível porque Deus não
pode fazer, mas, ao contrário, Deus não pode fazer porque outra coisa não pode ser
12 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Traduzidos por R. H. Pich. (p. 163).
21
feita, de modo que (...)” [(SCOTUS, 2008, p. 165)]. Assim, deste modo, se nos
afigura claro que sob o aspecto metafísico da argumentação a impossibilidade de
algo provém primeiramente do factível e não de Deus que não pode no caso em
questão primeiramente pela impossibilidade exterior a si mesmo. É necessário que
aqui se pare e se reflita com bastante atenção e cuidado por um instante e possa se
perceber a sutileza no argumento exposto por Henrique de Gand, pois, o mínimo
descuido que se venha a ter se pode passar despercebidamente por algo da mais
suma importância.
Para que se entenda melhor aquilo que está sendo dito é necessário que se
entenda o argumento lentamente, pois, em se tratando do argumento
metafisicamente falando, pela argumentação feita até aqui por Gand, deve-se
admitir que a impossibilidade primeiramente é da parte da coisa, ou desse algo “ser
feito impossível”, pois, se Deus é dito Onipotente e isso, por possuir esse poder
ativo, o qual é uma perfeição pura, e essa perfeição pura é sempre com relação à
criatura na qual a mesma se dá e nunca por uma relação desta com um outro.
Dessa maneira, de fato, nunca poderá se dizer que a impossibilidade de algo está
ligada a uma não-potência da parte de Deus. Pois, a sua Onipotência é e sempre foi
com relação a si mesmo e nunca por uma relação deste com a criatura. E para que
o argumento fique de forma mais explicitamente clara destacar-se-á como está no
referido texto, SCOTUS (2008, p. 165):
(...) embora algo seja dito possível porque Deus primeiramente é potente por potência ativa, não haverá, contudo, uma ordem similar na privação e na imperfeição; donde não se diria que ‘algo ser feito’ é impossível porque Deus não pode fazer [o mesmo], mas, ao contrário, Deus não pode fazer porque outra coisa não pode ser feita, de modo que por essa imperfeição, primeiramente há uma não-potência da parte da criatura, e, em segundo lugar, segue-se uma relação de não-potência para com Deus, e em terceiro lugar uma relação negativa de Deus com a criatura em razão da qual [Deus] é dito não-potente.
Portanto, crê-se ficar bastante clara a posição de Henrique de Gand quanto
ao problema em questão, pois, colocando de modo objetivo e direto, uma coisa é
dizer que algo ser feito é impossível por que de si mesmo essa coisa é impossível e
outra coisa é dizer que é impossível porque Deus não pode. Por isso, Gand aponta
que essa impossibilidade é primeiramente na criatura, no factível, que de si não tem
capacidade para tal, para só depois através de uma relação negativa com a criatura
dar-se a não-potência em Deus. Deste modo a impossibilidade está na privação e na
22
imperfeição, e só por isso Deus não pode tal coisa, porque a impossibilidade se
encontra na privação e na imperfeição dessa criatura ou desse factível. E contra
essa natureza Deus não pode ir opostamente.
No que tange à segunda via é dito justamente o contrário, a saber, que algo é
impossível porque Deus não pode e não o contrário que Deus não pode porque é
impossível. Seguindo essa linha de estruturação, tecer-se-ão as duas criticas de
Scotus a Henrique de Gand.
3.1 A OPINIÃO DE HENRIQUE DE GAND NOS COMENTÁRIOS – “ORDINATIO
I”
Quanto ao que Henrique de Gand diz na Ordinatio, Scotus se resume a
apenas mencionar as respectivas posições de Gand em seus textos quodlibetales,
conforme SCOTUS (2008, p. 302-304):
3. Aqui, é dito por Henrique, na questão 3 do Quodlibet VI, - para o oposto disto, manifestamente, procura na questão 3, Quodlibet VIII. 4. Contra essa segunda sentença, seja se ela dita corrigindo a primeira sentença desse artigo, seja se ela é dita enquanto corrigida pela primeira, - não seria preciso, contudo, argumentar contra ele a não ser pelas suas próprias palavras, que implicam manifestamente coisas opostas.
De modo que, no que diz respeito ao que Henrique expressa sobre o assunto
em ordinatio, nos resignaremos ao que brevemente foi colocado por Scotus. Pois, se
pode constatar que diferentemente do que aparece em Lectura, aqui em ordinatio
Scotus faz suas críticas à Gand dentro mesmo do tópico das posições deste. De
fato, quando Scotus cita os textos de Gand, a saber, as quaestio 3 dos Quodlibet VI
e Quodlibet VIII, no texto recém citado aparecem notas de rodapé, onde Scotus
menciona as posições de Henrique de Gand contidas nestes dois textos do mesmo.
Nos quais, em Quodlibet VI questão 3 esse afirma de maneira bem sucinta onde
aqui irá se parafrasear, que Deus não pode porque é impossível e não o contrário,
ou seja, de que é impossível porque Deus não pode algo, GANDAVO (1987, p. 49).
No entanto, quando este fala sobre o mesmo assunto em Quodlibet VIII diz segundo
interpretação de Scotus exatamente ou manifestamente coisas opostas, ou seja, de
que algo ser feito é impossível porque Deus não pode e não o contrário.
23
3.2 A OPINIÃO DE HENRIQUE DE GAND NOS COMENTÁRIOS –
“REPORTATIO PARISIENSIS EXAMINATA I”
Contudo, quanto ao que se encontra na terceira versão dos comentários, a
saber, nas reportationes, Scotus incorpora sutilmente novos elementos dentre os
outrora mencionados. Há, porém, uma novidade aqui, juntamente com o que já
havia sido dito nessa distinctio nas versões anteriores, ou seja, aquilo que é dito de
Deus quanto a si mesmo e quanto às criaturas. No entanto, vale a resalva de que
aqui, nessa distinção parece haver uma melhor sistematização dessa opinião por
parte de Scotus para que possa melhor argumentar contra Henrique de Gand. Para
tanto, crê-se coerente referenciar o que fora dito nessa introdução por Gand através
das palavras de Scotus, conforme SCOTUS (2008, p. 466):
“(...)” aquelas [propriedades] que são ditas de Deus existem numa tríplice diferença. Algumas delas, pois dizem uma perfeição pura, como os atributos que convêm a Deus em si e não por uma relação externa. Algumas dizem uma perfeição e uma dignidade, mas não uma perfeição pura, a qual em todo e qualquer [ente] é melhor ser do que não ser, (...) e assim são aquelas [propriedades] que convêm a Deus com respeito à criatura, tal como ser senhor, criador, governador e desse tipo. Outras [ainda] são as que convêm a Deus privativamente ou negativamente, como o impossível, que priva nele a razão de potência passiva.
Dito isto, ou melhor, dizendo de forma mais explicita, os atributos de Deus são
ditos ou podem ser pensados de três formas distintas, a saber: como uma perfectio
simpliciter, uma perfeição pura, ou seja, de Deus única e exclusivamente quanto a si
mesmo, de Deus em relação às criaturas e de Deus privativa ou negativamente, a
qual em outras palavras Deus seria dito não potente perante algo.
No entanto, um pouco mais adiante nessa mesma parte, ele responde à
questão sobre “o que dizer do impossível?13”. Aqui mais uma vez, ele coloca que
quanto a essas “[propriedades] que são ditas de Deus negativamente na relação
com a criatura não tem a primeira razão da parte de Deus, mas a primeira razão de
impossibilidade é da parte da criatura”, conforme SCOTUS (2008, p. 467). E no que
diz respeito ao impossível privativamente, se faz certa hierarquização quanto a
atribuição dessa impossibilidade onde se diz que em um primeiro momento essa
impossibilidade seria passiva, num segundo momento, uma impossibilidade da
13 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Traduzidos por R. H. Pich. (p. 467).
24
criatura para com Deus e em um terceiro momento a impossibilidade ativa de Deus
com respeito à criatura.
Deve ser dito, no entanto, que essas coisas que até aqui, nessa distinção
foram colocadas, já foram ditas anteriormente, contudo, da forma como aqui foram
colocadas essas afirmações acredita-se terem sido mais bem elaboradas pelo
próprio Scotus, a fim de que pudesse arguir melhor contra as mesmas. E isso se dá,
ao fato, de que na próxima opinião de Henrique de Gand se repete a mesma coisa
do que anteriormente já havia sido dito por este, a saber, de que este se contradiz
em dois textos diferentes. Nos quais, em um desses textos diz uma coisa e, em
outro diz outra coisa completa e manifestamente oposta. A saber, que, conforme
SCOTUS (2008, p. 468):
“(...)” não é pura e simplesmente verdadeiro sobre o impossível que Deus não pode fazer isto pelo fato de que isto não pode ser feito, mas, ao contrário, [isto] não pode ser feito porque Deus não pode fazê[-lo]. Pois, assim como na [proposição] afirmativa não é dito que Deus pode fazer algo porque aquilo é possível de ser feito, mas, ao contrário, porque Deus pode fazer isto, por isso mesmo isto pode ser feito, seja subjetivamente, seja objetivamente, assim se dá também na [proposição] negativa.
Deste modo, Scotus pensa ter clareado bastante o problema do argumento de
Gand, quanto à sua contraditoriedade, expondo de maneira objetiva e clara a forma
como este defende coisas opostas em textos diferentes. Porém, cumpre ressaltar
que Scotus tende a concordar mais com a primeira opinião exposta e defendida por
Henrique de Gand, a saber, a de que Deus não pode algo porque esse algo de si é
impossível e, portanto, Deus não pode e não que é impossível justamente porque
Deus não pode para com esse algo.
Pensa-se ter ficado bastante clara a opinião de Henrique através dessa analise
pormenorizada exposta nas três versões dos comentários de Scotus. Dito isso,
passar-se-á à análise das improbatio opinionis, ou, à Reprovação das opiniões de
Henrique de Gand por parte de Scotus.
25
4 “REPROVAÇÃO DA OPINIÃO” DE HENRIQUE DE GAND POR PARTE DE
SCOTUS – “LECTURA I”
Volta-se de todo modo agora à reprovação da opinião de Henrique de Gand no
texto de “Lectura I”. Quanto às criticas que foram feitas por Scotus a Henrique de
Gand nota-se de inicio que aquele começa por criticar a opinião deste na segunda
via para só depois criticar a opinião exposta em sua primeira via. E isto, denota ao
longo dos respectivos comentários, certo tipo de critério, o qual se afigura visível no
modo como este diverge à opinião de seu interlocutor, pois, ao começar sua critica
pela opinião exposta sempre na sua última via, deixa claro querer atacar a última
opinião exposta, pois ainda está viva no texto, para depois rebater a opinião exposta
inicialmente.
Seguindo, então o curso de suas criticas, começa-se por atacar veemente a
contradição que claramente se pode perceber na opinião exposta nessa segunda
via, onde Henrique de Gand afirma justamente o contrário do que afirma em sua via
anterior. A saber, que a impossibilidade é primeiramente em Deus e só depois na
criatura. Esse posicionamento contraditório para Scotus, bem como para qualquer
estudioso atento, se faz perceber claramente, pois em um momento faz uma
afirmação dizendo que Deus não pode porque é impossível porque de si a coisa é
impossível e em outro momento afirma falando justamente o contrário, que, é
impossível porque Deus não pode para com esse factível.
E, no que diz respeito a essa segunda via, Scotus vai dizer que o dito
precedente, exposto na via anterior, é mais verdadeiro que esse segundo dito, “(...)
porque dizer que a negação e a privação são primeiramente em Deus e a partir disto
na criatura é deveras absurdo” [(SCOTUS, 2008, p. 166)]. Com isso Scotus apenas
corrobora aquilo que o próprio Henrique de Gand dizia no inicio, ou seja, que não
existe ordem similar nas privações e imperfeições e que as mesmas sempre serão
primeiramente no sujeito no qual as mesmas se dão e nunca por ação de um agente
externo14.
E, ainda, no tocante à critica feita a essa via, deve-se prestar bastante
atenção ao tipo de solução que se dá aparentemente parece colocar a esse
problema, onde, conforme SCOTUS (2008, p. 167) ele diz:
14 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Traduzidos por R. H. Pich. (p. 165).
26
(...) contra aquela [segunda] via: nada é pura e simplesmente impossível a não ser aquilo ao que repugna o existir; porém, a coisa nenhuma repugna primeiramente o existir porque não há uma relação de um com a mesma, mas a razão primeira por que a algo repugna o existir será intrínseca a partir da repugnância formal [daqueles termos] a partir dos quais é constituída: porque, pois, um daqueles [itens] formalmente repugna ao outro, por isso mesmo não podem constituir um único, mas àquele [complexo], por causa da incompossibilidade deles, repugna o existir; se, portanto, algo é impossível de ser feito, isto será da parte daquelas coisas que deveriam constituir aquilo, porque se contradizem formalmente, e não por causa de um defeito de alguma relação com o mesmo. Não deve ser dito, portanto, que, porque Deus não pode fazer, por isso mesmo é impossível que outra coisa seja feita.
Acredita-se com essa afirmação que Scotus aqui tenha introduzido pela
primeira vez em sua argumentação nessa distinção o aspecto lógico do que é dizer
o impossível. Pois, aparecem termos como, repugnância formal das partes e
incompossibilidade. Termos esses que denotam explicitamente o caráter lógico da
discussão. E isso se reveste de vital importância, pois essa forma lógica de arguição
é característica típica do silogismo aristotélico, muito utilizado pelos teólogos e
filósofos da alta escolástica. Essa é uma característica que segundo pode se
entender trazer rigor aos argumentos levantados em questão.
Portanto, nesse excerto Scotus vai entrar no mérito de que o impossível é
todo e qualquer factível que possua uma incompossibilidade, e, aqui se entende
incompossibilidade como algo que por si possível comporta uma incompatibilidade
formal entre os seus termos, ou seus extremos como o mesmo vai dizer. Pois,
pensando nessa direção pode-se notar quando se fala em repugnância formal das
partes e incompossibilidade, onde, por impossível, se entende o todo que a partir
dos seus termos ou extremos, esses termos ou extremos não podem formar esse
todo coeso por haver em sua constituição, por assim dizer, uma contradição. Dito
isso, percebe-se de maneira muito forte que para Scotus algo pura e simplesmente
impossível será em um primeiro momento aquilo ao que repugna o existir, por
comportar em sua constituição uma contradição, ficando bastante evidente nesses
termos o principio de não-contradição de Aristóteles do qual Scotus se vale para
argumentar nesse caminho. Princípio esse que segundo Aristóteles (2005, p. 145):
Nós, ao contrário, estabelecemos que é impossível que uma coisa, ao mesmo tempo, seja e não seja; e, baseados nessa impossibilidade, mostramos que esse é o mais seguro de todos os princípios. Ora, alguns consideram, por ignorância, que também esse principio deva ser demonstrado. (...) É impossível que exista demonstração de tudo (...). Se, portanto, de algumas coisas não se deve buscar uma demonstração,
27
aqueles certamente não poderiam indicar outro principio que, mais do que este, não tenha necessidade de demonstração.
Seguramente tomando esse axioma aristotélico, a saber, o princípio de não-
contradição, João Duns Scotus desenvolve com consistência sua argumentação a
cerca do impossível, o qual mais tarde o próprio Scotus insere dentro de uma de
suas notas de rodapé algo muito semelhante ao que o próprio Aristóteles dissera, a
saber, segundo o que fora dito pelo próprio Henrique de Gand em seu Quodlibet VI
quaestio 3 citado em SCOTUS (2008, p. 303):
O não poder fazer coisas contraditórias que são ao mesmo tempo é atribuído a Deus, porque é impossível que essas mesmas em si recebam a simultaneidade; e disso tampouco deve ser procurada alguma razão da parte de Deus..., porque não há razão [para isso] a não ser uma [razão] puramente privativa, a qual não pode ser encontrada da parte de Deus segundo si.
Assim, deste modo, parece que procurar razões ou motivos do por que da
impossibilidade dos contraditórios subsistirem, segundo esses autores e desde
Aristóteles, quando este diz que o princípio de não-contradição não necessita de
demonstração, mostra-se ser de total insignificância para a discussão em questão.
Pois, o que parece ter se consignado com Henrique de Gand e Scotus é que o
princípio de não-contradição colocado como um axioma irrefutável, por ser algo tão
amplamente já aceito por outros sábios de sua época, se afigura aos autores em
questão como uma lei Divina da qual ninguém pode transgredir, nem mesmo o seu
criador, e conforme Gand e Scotus, para isto não precisaríamos procurar um motivo
da parte de Deus do por que nem mesmo Ele, Deus não pode transgredir tal regra,
tal lei, supostamente instituída como sendo constituinte da ordem do universo.
Passar-se-á agora à critica feita por Scotus à primeira via de Gand, a qual
Scotus argumenta assim, que, segundo a potência ativa pela qual Gand diz que
Deus é o produtor de todo e qualquer possível no ser de existência, isso é no
mínimo equivocado, pois, para Scotus, primeiramente o ser tem ou ganha
possibilidade sendo produzida antes naquilo que Scotus chama de ser inteligível, a
saber, obtém possibilidade no intelecto divino, pois como ele diz, segundo SCOTUS
(2008, p. 168) “(...) ademais, seguir-se-ia que em Deus haveria uma relação real
com a criatura, porque precedente a toda operação do intelecto”. Quanto ao que
Scotus critica em Lectura deter-se-á ao que até foi dito.
28
No entanto, vale salientar que, pela primeira vez se tem mencionado por
Scotus algo muito importante, ou seja, a diferença que o mesmo vê entre a produção
ativa externa e a produção intelectiva intra-mental do ser por parte de Deus.
4.1 “REPROVAÇÃO DA OPINIÃO” DE HENRIQUE DE GAND POR PARTE DE
SCOTUS – “ORDINATIO I”
No que se refere à ordinatio, Scotus começa por atacar o dito exposto por
Gand quanto ao que diz respeito que o mesmo denomina em Deus como sendo a
potência ativa, conhecida também por onipotência. Referindo-se a essa potência
ativa pela qual Deus é dito ser onipotente como não sendo formalmente o intelecto,
mas como que pressupondo a ação do intelecto. Dizendo algo muito importante,
que, a saber, que “o intelecto divino será aquilo pelo que há a primeira razão da
possibilidade (...). Logo, não é aquela potência ativa pela qual Deus é chamado de
onipotente que é a razão primeira da possibilidade (...)”. De acordo com SCOTUS
(2008, p. 305).
De fato, no parágrafo seguinte temos uma definição sobre o possível que de
certo modo nos ajudará a entender, em parte, o que é o impossível. A saber, de que
“(...) o possível, na medida em que é termo ou objeto da onipotência, é aquilo ao que
não repugna o existir e que não pode a partir de si existir necessariamente”.
Conforme SCOTUS (2008, p. 305).
Aparece claramente mais uma vez o argumento lógico, no entanto, dessa vez
no que toca ao possível. Porém, estritamente relacionado ao impossível, pois, se
poderia dizer que algo impossível é aquilo que repugna de si o existir, e, ao que
repugna de si o existir poderíamos dizer baseados no dito anterior que é algo feito
ou constituído de partes formalmente incompatíveis entre seus extremos. Para que o
argumento se revista de força acredita-se podermos citar algo que se encontra na
distinção anterior, ou seja, na distinção quadragésima segunda, com o seguinte titulo
“Se o fato de Deus ser onipotente pode ser provado pela razão natural” e usar-se-á
o exemplo da ordinatio I, onde se podem ler os seguintes trechos, segundo
SCOTUS (2008, p. 291):
(...) distinguindo que ‘onipotente’ por um lado pode ser chamado um agente que pode para com todo o possível, mediata ou imediatamente, - e deste modo a potência ativa do primeiro eficiente é a onipotência, (...). Por outro lado ‘onipotente’ é tomado de modo propriamente teológico conforme é
29
chamado onipotente aquele que pode para com todo efeito e todo e qualquer possível (isto é, para com todo e qualquer que não é, de si, necessário nem inclui contradição), (...).
Com isso, mostra-se nesse momento que se usou de uma definição já
exposta em uma distinção anterior para que se pudesse corroborar uma definição
atualmente colocada. Porém, nos parágrafos seguintes Scotus explicita de forma
clara e contundente que a potência ativa que é a onipotência em Deus é aquela
potência pela qual Deus produz as coisas, no entanto, antes que as coisas sejam
produzidas, elas devem ter ser possível, e isto significa que a coisa é produzida
primeiramente no ser inteligível. Portanto, não é através da onipotência divina que a
coisa tem ser ou existência possível primeiramente, mas, por meio de outra causa
concorrente.
Adiante nessa argumentação, Scotus traz o exemplo das causas precisas,
onde a afirmação seria a causa da afirmação e a negação a causa da negação, a
qual ele nega ser correta para o caso em questão e novamente faz menção ao
princípio de não-contradição dizendo que “(...) aquela impossibilidade na criatura é
por causa da incompatibilidade formal das partes)”. Conforme SCOTUS (2008, p.
307).
4.2 “REPROVAÇÃO DA OPINIÃO” DE HENRIQUE DE GAND POR PARTE DE
SCOTUS – “REPORTATIO PARISIENSIS EXAMINATA I”
Muito semelhante, porém, à reprovação feita em ordinatio, é o modo como
Scotus começa sua reprovação em reportatio, ou, argumentando contra a primeira
opinião de Henrique no que diz respeito à potência ativa de Deus pela qual é
chamado de onipotente. E, novamente faz referência à potência ativa de Deus como
onipotência como aquela potência executiva, que produz as coisas no ser externo de
existência dizendo reiteradamente que a coisa ou o factível tem ser possível
primeiramente por meio do intelecto divino.
Portanto, assim como na ordinatio, aqui novamente é trazida a questão de a
possibilidade estar ligada primeiramente ao intelecto divino. Scotus argumenta que
antes da criatura ser produzida no ser de existência pela potência ativa, também
denominada onipotência, a criatura tem antes de tudo ser possível. E, para isso ele
30
diz o seguinte, conforme SCOTUS (2008, p. 468-469) “(...) quando a criatura existe
no intelecto divino, por um ato do intelecto, ela tem formalmente ser possível”.
Claramente pode se dizer que a causa do ser possível é o intelecto divino que
antes de qualquer outra causa ou potência executora dá ou gera a existência no ser
possível para daí sim passarmos ao ser real de existência externa. E para o caso em
questão dá-se o exemplo da pedra15. No qual basicamente Scotus diz que antes de
qualquer coisa, a pedra tem ser possível pelo ato inteligível do intelecto divino que
primeiramente intelige o ser possível para só depois em um segundo momento
passar ao ato de produção através da potência ativa à qual é para com todo e
qualquer possível de si não necessário que não inclui contradição.
No parágrafo seguinte, no entanto, é dito que a onipotência divina não é o
princípio da coisa senão segundo o ser de existência da própria coisa segundo as
palavras do próprio Scotus. E continua dizendo que, esse ser tem de ter sido
principiado ou iniciado por algo, porém, não pela onipotência, nem pela potência
ativa, mas, pelo intelecto. Algo curioso e interessante é que Scotus cita Avicena em
uma passagem de sua metafísica onde, de forma bem sucinta este diz, conforme
SCOTUS (2008, p. 470) “(...) que nada pode ser produzido por todo e qualquer
agente a não ser que em si anteriormente tenha sido possível”.
Por isso, é dito por Scotus que a coisa enquanto inteligida pelo intelecto divino
em essência recebe e tem possibilidade e, assim, o é antes de qualquer ação ou
poder ativo em Deus.
No entanto, um pouco mais adiante nessa distinção Scotus vai afirmar algo
que já o fizera nas respectivas distinções quadragésima terceira em Lectura e
ordinatio, onde este diz que no que se refere ao assunto em questão conforme
SCOTUS (2008, p. 471) que, “(...) o impossível pura e simplesmente inclui uma
contradição, porque tudo o que não inclui repugnância formal ou contradição é
possível a Deus”. E isto tudo no que se refere aos contraditórios16.
15 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Traduzidos por R. H. Pich. (p. 469), “Ele considera, pois, que uma pedra, e isto [tudo] que é feito pelo intelecto divino como [forma] exemplar, tem entidade qüididativa firmada, e por consequência é possível que ela exista externamente. Pois [é] pelo fato de que a coisa pode ser externamente que é distinguida a entidade firmada da ficção. Mas, o intelecto divino precede formalmente a onipotência – por toda e qualquer potência que a onipotência for tomada. Logo, não [é] pela onipotência que alguma coisa é primeiramente possível. (...) a pedra tem ser possível primeiramente e principiativamente por aquilo pelo que tem ser no intelecto ou no ato divino de inteligir”.
16 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Traduzidos por R. H. Pich. (p. 471) “Mas, os contraditórios têm uma repugnância formal a partir de si, e não a partir da
31
4.2.1 “Reprovação da opinião” de Henrique de Gand por parte de Scotus –
“Reportatio Parisiensis Examinata I” - Corolários
Ademais, há uma novidade que se insere aqui, a saber, a de que Scotus
introduz três corolários para contrapor a posição de Gand e salvaguardar a sua. O
qual o primeiro corolário diz respeito à teoria de Gand acerca dos quatro instantes,
quanto à potência passiva da criatura ser referida a Deus no terceiro instante, pois
como Scotus claramente nota que o próprio Henrique de Gand já havia exposto que
a relação de Deus com a criatura se dava no quarto instante. Portanto, o problema é
o que dará termo a essa relação, ou Deus daria termo a essa relação sob uma razão
absoluta, porém, Scotus diz que isso vai contra o que ele mesmo defendera em
outro lugar citando Prepositino de Cremona corrige o dito deste conforme SCOTUS
(2008, p. 472) dizendo que “(...) Deus dá termo a uma relação da criatura com ele
mesmo segundo uma relação de razão, e não segundo uma relação real”. Pode se
perceber aqui uma clara critica de Scotus à aludida teoria dos quatro instantes de
Gand, encontradas já nas distinções das versões anteriores, o qual hierarquiza as
relações de potência e impotência de Deus com a criatura.
No segundo corolário critica a contradição existente na sustentação da
opinião de Henrique, de que a potência ativa em Deus ou a sua onipotência é
anterior à potência dita passiva na criatura, pois, segundo o próprio Henrique de
Gand a relação da criatura com Deus se daria no instante o qual, por sua vez, é
anterior à relação que Deus teria com a criatura, visto que essa se dá apenas no
quarto instante.
E, no que diz respeito ao terceiro corolário temos o seguinte problema
conforme SCOTUS (2008, p. 472-473):
(...) a partir do que foi dito por ele, é que a onipotência ou a potência ativa, enquanto é um atributo, é meramente um absoluto, e não algo que diz uma relação de razão, assim como ele mesmo afirma em outro lugar. (...) Pois, segundo ele, aqui a potência ativa é, no primeiro instante, completamente relacionada consigo mesma, e tão-somente no quarto instante há uma relação nele com um objeto.
relação com alguma negação extrínseca; antes, se fosse possível que Deus não existisse, ainda assim os contraditórios contradiriam a si mesmos. Logo, a impossibilidade pura e simplesmente, na criatura, não se dá por causa de alguma negação ou de uma impossibilidade em Deus”.
32
E, para as colocações em questão acredita-se estarem suficientemente claras
as criticas postas nestes três corolários, de forma sistemática.
33
5 QUANTO ÀS OPINIÕES PRÓPRIAS E AS RAZÕES OU ARGUMENTOS
PRINCIPAIS – “LECTURA”
De maneira que se possa deixar o argumento o mais claro possível, far-se-á
uma explicitação breve de cada um desses argumentos respectivamente. No que
tange à opinião própria Scotus traz a questão da impossibilidade como que ligada às
ideias divinas17. Quando se fala em ideias divinas quer se dizer aquela potência pela
qual primeiramente o ser é possível por meio de um intelecto que o concebe. Por
esse motivo é que Scotus vai criticar duramente a concepção de Henrique de Gand
quanto a sustentar que é a onipotência ou a potência ativa de Deus que é a
responsável pela produção ou pela possibilidade em algo ser feito. Pois, para Scotus
antes de uma potência executiva é necessário que haja uma potência criativa, que
pense e apresente o ser possível para que seja feito.
Por isso, com muita justiça vai ser dito pelo mesmo que a potência de Deus
pela qual é denominado onipotente seria a causa não-precisa por que alguma coisa
é produtível e factível, no entanto, em concorrência com essa potência os termos
não podem ser contraditórios ou se repugnarem. Seguindo sua linha de raciocínio
vai ser dito, conforme SCOTUS (2008, p. 169) que “(...) porque a primeira operação
divina é a do próprio intelecto, pela qual as coisas são produzidas primeiramente no
ser inteligível, e não a potência ativa pela qual algo é produzido externamente”.
Próximo a isso no texto em questão é feita por Scotus uma hierarquização de
como o factível é produzido18, colocando novamente o foco na potência do intelecto
como criativamente iniciadora do ser possível.
No que se refere à razão principal novamente é reforçada a questão de que a
incapacidade observada no factível não é por culpa de Deus que não concedeu ou
deu tal capacidade, mas a potência divina seria a causa não-precisa de tal
17 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Traduzidos por R. H. Pich. (p. 168-169) “(...) digo que é dito que algo é impossível de ser feito não porque Deus não pode fazer aquilo ou por causa do não-poder divino, mas muito mais por causa do poder: pois aquilo que não pode ser na natureza das coisas, imagina-se como algo composto de muitas [partes mutuamente] contraditórias, as quais não fazem um único e nem podem fazer um único (assim como é a quimera e [coisas] desse tipo); Deus, porém, (...) pode produzir partes desse tipo, que incluem uma incompossibilidade formal, por isso mesmo aquele todo não pode ser feito. (...) Donde a primeira razão extrínseca por que [alguma coisa] desse tipo não pode ser feita é a potência de Deus, pela qual são produzidas as coisas primeiramente no ser inteligível; contudo a primeira razão formal é a repugnância formal das partes a partir das quais o composto é imaginado”.18 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Traduzidos por R. H. Pich. (p. 170). “Donde primeiramente as coisas são produzidas no ser conhecido, e depois são mostradas à vontade e são produzidas no ser querido, e assim no ser de existência”.
34
incapacidade. Deve se notar aqui que o termo usado é “incapacidade”, ou melhor, a
não capacidade para que algo seja feito e não propriamente o termo impossível.
5.1 QUANTO ÀS OPINIÕES PRÓPRIAS E AS RAZÕES OU ARGUMENTOS
PRINCIPAIS – “ORDINATIO I”
Têm-se aparentemente de inicio, novamente menção ao poder do intelecto
divino como principiador do ser inteligível para só depois haver o ser possível,
dizendo, então, que o intelecto divino produz esse ser no ser inteligível num primeiro
instante de natureza onde este se relaciona num segundo instante de natureza com
o ser possível, e, reforçando a ideia de Scotus que Deus é conhecido ou tido por
onipotente e não pelo intelecto divino que não seria própria ou formalmente a
potência ativa de Deus.
Perseguindo essa ideia, chegar-se-á a conclusão de que a impossibilidade
sempre será da parte da coisa e isso, por causa da incompatibilidade para que seja
feita. Volta-se nesse ponto, ao impossível lógico/formal, ligado estritamente ao
princípio de não-contradição. Trazendo mais adiante um pouco que o impossível
simpliciter, ou, pura e simplesmente inclui segundo Scotus coisas incompossíveis, e,
essa incompossibilidade se dá pelas suas razões formais e, a qual seria
principiativamente por causa do intelecto divino que concebe coisas que são
formalmente incompatíveis entre si.
Portanto, é dito por Scotus que a impossibilidade primeira seria formalmente
do ou no próprio impossível e só então principiativamente em Deus que daria
inteligibilidade a tal ser através do seu intelecto, pois o intelecto divino principiaria
algo em tal ser no qual essas partes seriam incompatíveis e segundo o mesmo, em
detrimento dessa incompatibilidade formal um todo a partir dessas partes seria pura
e simplesmente impossível. Criticando assim, deste modo, àqueles que procuram a
razão ou o motivo da impossibilidade em algum ser uno. E quanto a essas coisas
ditas incompatíveis é dito que tal razão dessa incompatibilidade seria ou é a partir
das razões formais delas, e, aqui aparece o ponto chave que já vem sendo dito
anteriormente por Scotus, incompatibilidade essa que elas têm primeiramente pelo
intelecto divino.
35
Porém, quanto ao argumento principal, e, aqui, vale ressaltar que, na versão,
a saber, em Lectura essa parte é denominada de razão principal, no entanto, em
ordinatio é chamada de argumento principal. E, é dito então que tal coisa não pode
ter capacidade para que algo seja feito e, contudo, esse motivo estaria reduzido
única e puramente à incompatibilidade formal das partes, e, em última instância ao
intelecto divino. Pode-se notar aqui no argumento principal em ordinatio que em
último caso a incapacidade para tal coisa ser feita, ou que impossível se reduz,
entretanto ao intelecto divino que dá primeiramente possibilidade a tal ser19.
5.2 QUANTO ÀS OPINIÕES PRÓPRIAS E AS RAZÕES OU ARGUMENTOS
PRINCIPAIS – “REPORTATIO PARISIENSIS EXAMINATA I”
Em reportatio é afirmado categoricamente por Scotus que a onipotência
divina, enquanto atributo absoluto em Deus é anterior à criatura segundo todo e
qualquer ser dessa. Concluindo um pouco adiante que a possibilidade e a
onipotência, ou, a potência ativa de Deus é anterior a alguma possibilidade da parte
da criatura. Porém, no que segue este diz que a primeira razão da possibilidade na
criatura não é a potência ativa ou onipotência de Deus, mas, sim o intelecto divino
pelo qual essa coisa é constituída primeiramente no ser inteligível.
No que segue pode-se notar outra vez a argumentação em torno da defesa
do principio de não-contradição, quando é dito que nenhuma afirmação é
primeiramente uma coisa impossível nos entes, pois, afinal de contas, todo e
qualquer afirmativo, que pode ser concebido, pode ser. E desta maneira, nada é
pura e simplesmente impossível a não ser que implique contradição20. Nos
parágrafos seguintes vai ser levantada a questão que do próprio impossível haja
uma razão primeira e nisso é dito que assim como também do seu oposto que é o
necessário, e para tanto é trazida novamente a autoridade de Aristóteles no Livro IV
da Metafísica onde é dito por este que “(...) (com efeito, necessário significa não
poder não ser). Portanto, não é possível que seja verdade, ao mesmo tempo, dizer
de algo que “é homem” e que “não é homem””. Conforme ARISTÓTELES (2005, p.
151).
19 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Traduzidos por R. H. Pich. (p. 313)20 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Traduzidos por R. H. Pich. (p. 474)
36
Partindo, pois, da premissa aristotélica de que necessário é aquilo que não
pode não ser, Scotus diz que é preciso que se investigue a razão primeira da
impossibilidade e da necessidade. Contudo, no parágrafo seguinte se pode
contemplar claramente a opinião e o posicionamento de Scotus frente ao problema
quando este diz que:
Quanto a isso deve ser dito que a impossibilidade, no impossível, tem de ser reduzida ao intelecto divino, [e] não que em Deus resida a primeira impossibilidade como razão e causa da impossibilidade na criatura (...) Ora, as partes do próprio incompossível são simultaneamente incompossíveis e, em si, formalmente repugnantes, tal como o branco e o negro. O primeiro ser possível que [essas partes] têm, têm[-no] pelo intelecto divino principiativamente e, por conseguinte, têm pelo intelecto divino principiativamente a sua incompossibilidade, assim como também as suas razões formais. (SCOTUS, 2008, p. 475).
Scotus faz a distinção entre o ente de ficção e o ente firmado, o qual, esse
ente de ficção conforme os exemplos dados como a ‘quimera’ e o ‘homem irracional’
só podem ser concebidos por um intelecto que erra, e enquanto concebido por um
intelecto que erra segundo ele nada é. Para Scotus esses entes de ficção e
contraditórios significam a mesma coisa, pois, ademais só podem ser pensados ou
imaginados, nunca, no entanto, como seres reais, ou melhor, entes firmados. Afirma
que tais seres fictícios ou contraditórios nem sequer teriam ideias correspondentes
em Deus, a não ser que considerássemos as suas partes contraditórias.
No entanto, é concedido por Scotus que embora este considere que o
intelecto divino seja a primeira causa da possibilidade na criatura, também concede
que esse mesmo intelecto divino seria a causa do impossível quanto às partes dele,
no que toca ao ser possível primeiramente, mas não quanto a todo o impossível ou
com respeito ao impossível todo como este diz. Pois segundo o compreendido até
então, o impossível não teria causa nem no ser e tão pouco no ser inteligível
segundo afirmação de Scotus.
Curioso é o fato de mais uma vez após a opinião própria o titulo subsequente
vir novamente levemente alterado, a saber, em lectura se lê “Quanto à razão
principal”, em ordinatio “Quanto ao argumento principal” e aqui em reportatio se lê
“quanto aos argumentos principais da primeira questão”, e aqui, pode ser levantada
a seguinte pergunta, porque primeira questão? E a resposta é muito simples, pois,
parece que Scotus viu certa necessidade em delimitar um pouco melhor nessa
última versão dos comentários o seu ponto de vista ou opinião sobre o assunto,
37
levantando uma segunda questão, a saber, de titulo “Se Deus poderia fazer coisas
diferentes do que fez21”.
Por isso, no que diz respeito aos dois argumentos principais expostos por
esse Doutor, no primeiro é exposta a opinião quanto à dizer algo sobre o possível é
no próprio possível a partir de si formalmente. Contudo, quanto ao impossível é dito
que não é o caso que porque Deus não tenha dado tal capacidade para os
incompossíveis, mas porque dá as partes do impossível que somente
simultaneamente se contradizem.
Em artigo escrito pelo professor Theo Kobusch da Universidade de Bonn na
Alemanha, artigo este que recebeu o seguinte titulo “Um novo caminho do
conhecimento filosófico de Deus: Henrique de Gand, Mestre Eckhart, Duns Scotus”
faz-se menção em seus estudos sobre os quodlibets VI e VIII de Henrique de Gand,
textos esses que serviram de pano de fundo para as interlocuções usadas por
Scotus sobre o que pensava Gand a respeito desses temas sobre o possível e o
impossível.
De forma a clarear alguns posicionamentos que Scotus vem defendendo em
suas opiniões próprias se faz necessário ressaltar algumas das conclusões a que
chega o professor Kobusch neste artigo, a saber:
O motivo interno, porém, para a possibilidade de algo reside, por um lado, na sua essência mesma; para a impossibilidade, por outro, na lei de não-contradição, que representa também o limite do poder de criação divino. (...) assim também a possibilidade de infração contra a lei de não-contradição significava a destruição da ordem das essências, sim, a suspensão de toda ordem. (KOBUSCH in. Veritas, 2008, p. 62).
Pode-se pensar aqui, no entanto, que Scotus poderia concordar com alguns
desses posicionamentos, principalmente no que se refere a não violação do princípio
de não-contradição, colocando em tal lei uma vital importância.
A razão ou motivo interno da possibilidade residir em sua essência mesma
parece dizer algo com o qual Scotus já concordara, ou seja, que o possível por
essência intrínseca é assim, sendo que, no que concerne à impossibilidade, esta
está puramente baseada na não violação da lei ou princípio de não-contradição, o
qual foi sem nenhuma hesitação atribuído como delimitador do poder de criação
21 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Traduzidos por R. H. Pich. (p. 477)
38
divino. Com isso se pode perceber uma coisa, pois, que, ir contra a lei de não-
contradição seria destruir a ordem das essências e toda ordem segundo o mesmo.
O que parece haver aqui é o fato de que essa lei ou esse princípio de não-
contradição é, não somente algo perante o qual o poder de criação divino está
submetido mas, sim, muito mais uma lei estatuída por Deus mesmo para ordenar as
essências no mundo, ou melhor, pôr ordem às mesmas, a qual nem Deus de
potência ativa ou onipotência pode transgredir para que Ele não entre em
contradição com a própria lei previamente estatuída.
E isso se configura de maneira muito clara, simplesmente pelo fato de que se
Deus em sua infinita sabedoria e poder instituísse tal lei ou um princípio do qual teria
por vez ou outra de transgredir, significaria que se houvesse a necessidade dessa
transgressão por parte de Deus seria única e exclusivamente por que Ele erra e, se
Ele erra, logo, não é bom, nem perfeito. E isso acredita-se que não possa ser
concedido, e pensa-se que nenhum desses doutores concederia tal coisa, visto
haverem tantas defesas da impossibilidade mesmo da parte de Deus para que se
destrua a ordem estabelecida pela lei de não-contradição.
Perante as distinções que são feitas quanto ao ser pensado pelo intelecto
divino como ser possível e o ser real de existência externa são feitas as seguintes
considerações, conforme KOBUSCH (in. Veritas 2008, p. 63):
Portanto, todo ente criado é, ontologicamente, composto de três determinações: da coisidade mais geral, que consiste na mera concebibilidade através de um intelecto criado, da coisidade de determinação interna, isto é, da essência, e do ser de existência exterior.
Quando vemos a palavra utilizada pelo professor Kobusch “coisidade”, por
associação podemos pensar diretamente no termo latino quiditas, traduzido em
português por quididade, que significa em terminologia mais técnica a palavra
essência, a qual, por vezes também pode ser traduzida de maneira um tanto quanto
mais informal por coisidade. A coisidade de um ser ou de um ente é aquilo pelo qual
esse ser se identifica como objeto singular irrepetível, em linguagem propriamente
filosófica, idêntico a si mesmo.
Têm-se claramente uma harmonia entre aquelas coisas que Scotus pensa
acerca do mesmo e através do estudo do professor Kobusch sobre o pensamento
de Henrique de Gand pode se traçar algumas linhas semelhantes de posições
quanto a isso. Pois, concede-se que Scotus assim como Gand aceita que uma coisa
39
é o ser possível em potência no intelecto divino e outra é o ser real extramental de
existência. Outra máxima concedida tanto por Scotus quanto por Henrique de Gand,
que o princípio ou lei de não-contradição não deve ser transgredida, e, a mesma não
pode sê-lo nem mesmo por Deus, porque ao que tudo parece indicar Deus é o autor
desse princípio, princípio esse que mais se parece com um axioma que se refere a
ordem das coisas.
5.2.1 Quanto à questão número 2 na distinção 43ª em “Reportatio Parisiensis
Examinata I” – “Se Deus poderia fazer coisas diferentes do que fez”
Parece, muito claramente, para o momento em questão que Scotus pensara
ser oportuno introduzir uma segunda questão dentro dessa distinção em reportatio e,
isso pode ser entendido da seguinte maneira, a saber, como um modo de defender e
apresentar uma justificativa de forma mais contundente e expressiva a cerca do que
se está debatendo. Ora, inquirir-se sobre a liberdade de Deus em deliberar e mesmo
escolher fazer coisas diferentes do que tenha feito é, ao menos, em um primeiro
momento perguntar-se se Deus poderia mudar de ideia quanto àquilo que
previamente estabelecera como sendo de um determinado modo.
No que se segue, quanto à seguinte pergunta Scotus no que se refere
àquelas coisas que Deus quer, faz uma diferenciação entre proposições compostas
e divisas. Pois, Deus pode querer o que quer e não querer o quer22. Portanto, no
sentido composto Deus só pode querer uma coisa entre duas escolhas, no entanto,
no que tange ao sentido diviso Deus pode querer ou não querer algo, pois como
amplamente conhecido o sentido diviso exposto aqui por Scotus pode ser entendido
aludidamente àquelas proposições que conhecemos por disjuntivas, e uma das
máximas adotadas quanto a uma proposição disjuntiva é de que toda disjunção é
verdadeira, pois, um dos lados dessa disjunção sempre diz o mundo como ele é
embora o outro lado da mesma possa estar completamente em desconexão com a
22 Cf. João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Traduzidos por R. H. Pich. (p. 478) “No sentido composto, toda e qualquer [proposição] desse tipo é falsa: ‘Deus, querendo isto, pode não querê[-lo]’, seja se aqui os extremos são tomados como significando estarem unidos num mesmo [instante de] tempo ou em [instante de tempo] diferente. No sentido diviso, toda e qualquer [proposição] desse tipo é verdadeira, seja se num mesmo [instante de] tempo ou em [instante de tempo] diferente, e ela deve ser exposta por meio de duas [proposições] categóricas, por uma primeira de existência e uma segunda de possibilidade”. Claramente pode ser percebido que quanto a esses dois tipos de proposições correspondem às proposições conjuntivas a que Scotus denomina como proposição no sentido de composição e proposições disjuntivas àquelas que este denomina como divisas.
40
realidade. Diferentemente da proposição que Scotus chama por composta, a qual se
conhece por conjunção, e da qual se pode entender que o mesmo queira dizer que
tal proposição em si inclua termos que se contradizem e por isso mesmo são falsas
tais proposições.
Para que se reforce o que se quer dizer é dito que:
(...) ele pode fazer não somente coisas diferentes que não fez, mas, antes, coisas opostas àquelas que fez, porque é preciso que cada um dos opostos seja possível a Deus, mas não simultaneamente. (...) Pois nada que não inclui coisas contraditórias é impossível a Deus. (SCOTUS, 2008, p. 479).
Tonifica-se outra vez aqui a questão de que nada que possa vir a ferir o
princípio de não-contradição seja impossível a Deus. Pode-se também perceber que
Deus tem poder de ação sempre e em qualquer ocasião que este poder não venha a
ferir o principio de não-contradição. Parece depois de dito tudo isso até então que, o
princípio de não-contradição que vem ultrapassando desde a filosofia grega antiga
até os dias atuais, seria não apenas um dos axiomas encontrados na Metafísica de
Aristóteles, mas seria um dos axiomas divinos sob os quais a criação foi pensada e
feita a partir de então.
5.2.2 Quanto a questão número 1 na 44ª distinção em “Reportatio Parisiensis
Examinata I” – “Se Deus poderia produzir as coisas diferentemente do que faz”
De todo modo, como no princípio havia sido falado que, se utilizaria de ideia
ou tópicos encontrados em duas distinções além das respectivas distinções
quadragésima terceira nos três comentários. A saber, que como em outra parte já
fora colocado uma determinada ideia encontrada na distinção quadragésima
segunda em Ordinatio I, agora, fez-se necessário conceder um argumento ou
argumentos com ideias importantes para reforçar opiniões já expostas e
fundamentadas na quadragésima quarta distinção na questão número um.
Curioso é perceber a semelhança que há entre a segunda questão na
quadragésima terceira distinção e a primeira questão na quadragésima quarta
distinção em Reportatio Parisiensis Examinata I. Donde, claramente pode se notar
que a segunda quaestio na 43ª distinctio trata sobre a possibilidade de Deus poder
fazer diferentemente aquilo que já está ou foi feito, ao passo que, a primeira
41
quaestio da 44ª distinctio se trata se no momento de instante atual seria possível
que agisse de modo diferente.
No que se refere a isso entra em questão duas potências supracitadas por
Scotus, a saber, potência ordenada e potência absoluta. Onde por potência
ordenada parece que se pode entender que Scotus tem como aquela potência que
age de acordo com uma lei previamente instituída, ao passo que, segundo o próprio
Scotus embora a potência ordenada se submeta à potência absoluta, essa não se
submete à ordenada. De todo modo, é dito também que:
Deus, porém, pode agir por todo modo que não inclui contradição. Logo, dado que muitos outros modos não incluem contradição, ele pode agir diferentemente do que segundo [uma] potência ordenada. (...) Porém, a vontade pode contingentemente querer e desquerer todo e qualquer [objeto], por isso mesmo ele pode estatuir uma outra lei, tal (...). Logo, a potência absoluta dele não excede a ordenada, porque toda e qualquer lei que fosse instituída por Deus diferentemente ou que [fosse] diferente daquela que agora vale seria ordenada. (SCOTUS, 2008, p. 486).
Portanto, verifica-se novamente a questão do não ferimento do princípio de
não-contradição. Essa questão se torna uma constante no que diz respeito a poder
fazer coisas que se contradizem formalmente. Portanto, para o assunto em questão
produzir diferentemente as coisas do que atualmente faz implica em que novamente
o faça de acordo com o princípio de não-contradição. Portanto, se Deus instituísse
uma lei nesse instante que em outro momento não valia, estaria assim, deste modo,
agindo de potência ordenada, pois assim, não estaria ferindo ou indo de encontro à
lei de não-contradição.
No entanto, é dito algo muito semelhante ao que já fora dito, a saber, sobre
distinguir sobre os tipos de proposições, onde, conforme SCOTUS (2008, p. 486-
487) se diz o seguinte:
Donde esta proposição ‘Deus pode produzir as coisas diferentemente do que segundo a ordem disposta ou que dispôs’ deve ser distinguida segundo a composição e a divisão. No sentido de composição, ela é falsa e impossível, porque não se mantêm simultaneamente que aja diferentemente do que dispôs, [e o faça] em se mantendo aquela disposição e ordenação. No sentido de divisão, ela é verdadeira, porque Deus faz por este modo e, contudo, pode [fazer] pelo modo oposto, porque assim como Deus dispôs que assim deve ser feito segundo esta ordem, assim também poderia dispor diferentemente (...).
Ademais, pode-se mais uma vez fazer perceber a distinção entre proposições
conjuntivas e disjuntivas, onde a primeira é sempre falsa, porque concebe que
coisas contraditórias sejam simultaneamente e a segunda verdadeira, porque em
42
respeitando o princípio axiomático de não-contradição, diz que ou uma coisa ou
outra, porém, Deus pode produzir coisas diferentemente do que faz, contanto que,
não vá contra esse princípio e seja no sentido de divisão, o qual, estabelece que não
nenhum problema quanto a isso contanto que a vontade divina para produzir ou não
produzir algo não se deem no mesmo instante simultaneamente.
Ainda, quanto à questão das proposições Scotus diz que “(...) digo que na
eternidade podem ser feitos [objetos] opostos divisivamente, não conjuntivamente, e
isto no mesmo instante”. Conforme SCOTUS (2008, p.489). Colocado isto par que
seja reforçada a ideia de proposições disjuntivas, como aquela máxima que diz que
toda disjunção é verdadeira, pois, um de seus lados sempre diz o mundo, embora, a
outra parte dessa disjunção seja falsa.
6 CONCLUSÃO
43
Pensa-se, antes de qualquer coisa, que possa ser de grande auxilio para a
discussão em questão que se faça duas perguntas, a fim de se estabelecer melhor a
conclusão, a saber, (I) o que significa dizer que algo é possível? E (II) o que significa
dizer que algo é impossível?
Quando se volta o olhar para as opiniões próprias de Scotus e os argumentos
expostos nas razões e argumentos principais do mesmo, pode-se notar sempre uma
coisa em comum permeando as conclusões pensadas e expostas por Scotus nos
comentários que este fez ao livro das sentenças de Pedro Lombardo, a saber, que
(I) a primeira razão da possibilidade de algo está diretamente ligada ao intelecto
divino que possibilita tal ente no ser inteligível, (II) Deus é a causa da possibilidade,
quando intelige algo através de seu intelecto que, formalmente não inclua
contradição entre os seus termos, (III) Deus é a causa não-precisa do impossível
não por causa do seu não-poder para que seja feito, mas muito mais pelo seu poder
e pelo intelecto que concebe coisas diversas que se contradizem formalmente e não
podem formar um todo e (IV) dizer que algo é impossível a Deus é dizer que esse
algo primeiramente de si e a partir de si é impossível, por uma razão muito simples e
clara, porque para Deus única e puramente algo impossível é aquilo que inclui
contradição e formalmente possui uma incompossibilidade dos seus termos.
Dizendo isso, podem ser inferidas muitas coisas, a saber, que o possível tem
sua primeira razão pelo intelecto divino que principia tal coisa no ser inteligido e
mostra à vontade que o faz possível num segundo momento pelo poder ativo que
executa e produz algo no ser de existência. O poder intelectivo de Deus é anterior à
sua onipotência ou poder ativo pelo qual produz algo externamente. Porém, contudo,
esse poder do intelecto divino pelo qual faz possível o ser primeiramente intra-
mental não é aquela potência pela qual Deus é chamado de onipotente, mas essa
potência ativa que é a onipotência pode se dizer que pressupõe a ação do intelecto
como causa concorrente.
Portanto, pode se dizer que o possível é tudo aquilo com o qual Deus pode
primeiramente pelo seu intelecto divino que principia tal ser sem que haja
repugnância formal entre seus termos, ou seja, o possível tem sua razão primeira
em Deus por meio de seu intelecto divino e num segundo momento por meio de sua
onipotência ou seu poder ativo esse ser é produzido no ser real de existência e
44
como bem dito possível é, também, aquilo que não é de si necessário e não inclui
contradição.
Deste modo, por impossível deve ser entendido todo e qualquer que inclua
repugnância formal das partes, tornando deste modo, por incompatibilidade formal
impossível que seja formado um todo a partir disso. E quanto a isso a razão primeira
de tal impossibilidade é sempre do próprio impossível que de si e a partir de si não
se relaciona com Deus, pois, o impossível é dito de Deus sempre numa relação
onde a criatura quanto a Deus é dita não-potente. E assim, Deus é tido como a
causa não-precisa do impossível por conceber no intelecto divino coisas que não
podem formar um todo, como entes de ficção, que só podem em última instancia
serem pensados e imaginados como seres intramentais e nunca como seres de
realidade extramental externa.
Consequentemente, deve ser colocado que sempre foi deixado muito claro
por Scotus que Deus de forma alguma é a primeira razão da impossibilidade no
factível, ao passo que, para o oposto disso deve ser dito que quanto às coisas
possíveis, essas o são primeiramente porque através do intelecto divino existe a não
repugnância formal entre os termos de uma proposição tal, que quanto ao todo pode
ser pensada a sua existência exterior.
Portanto, do impossível primeiramente há uma privação e uma negação da
parte do próprio impossível que nunca é dito de Deus, mas sempre e pura e
simplesmente quanto à criatura. E, por outro lado, que poderia ser o caso que pelo
poder divino do intelecto de Deus, Deus seria a causa não precisa do impossível ao
passo que o intelecto divino cria e intelige coisas que não podem formar um todo por
haver uma repugnância formal entre os seus extremos.
E, com isso, suscita-se novamente aquilo que foi dito no princípio, a saber,
que a discussão sobre o possível e o impossível implicava dois tipos de
argumentação em torno de seu debate, ou seja, uma argumentação metafísica e
outra lógico/formal. A argumentação metafísica é aquela que liga o possível e o
impossível diretamente às relações de Deus com a criatura ao passo que a
argumentação lógica é aquela sobre a qual muito se falou até agora, a saber que o
impossível bem como o possível estão estreitamente submetidos ao princípio ou lei
de não-contradição. Princípio esse que sobrevive desde os gregos antigos.
45
De todo modo, em última instancia até Deus se encontra submetido ao
princípio de não-contradição, ao passo que, seria contraditório ir opostamente contra
algo que pré-determinou que fosse de determinado modo.
46
REFERÊNCIAS
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47
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