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1 JOSEANE PREZOTTO Uma leitura da “Gramática da Linguagem Portuguesa” de Fernão de Oliveira (séc. XVI) CURITIBA 20006

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JOSEANE PREZOTTO

Uma leitura da “Gramática da Linguagem Portuguesa” de Fernão de Oliveira (séc. XVI)

CURITIBA 20006

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Proêmio e dedicatória

No proêmio de sua gramática, Fernão de Oliveira a chama de “primeira

anotação”, isto pode tanto demonstrar que suas pretensões não iam além de compor

um texto curto que tratasse de algumas questões mais urgentes, como que tinha

consciência de estar a escrever o primeiro tratado que versava sobre a língua

portuguesa, ou que o autor se reveste de modéstia para evitar alguma crítica à

brevidade e eventual pouca profundidade de suas observações. Quaisquer destas

motivações, no entanto, nos colocam em uma atitude de resguardo quanto à

recepção da obra, referir-se a ela como “anotação” parece ressaltar a intenção de

exprimir opiniões que não foram sistematizadas ou aprofundadas1; uma “primeira

anotação” pode ser fruto de uma primeira observação e ainda pode dar a entender

que o autor pretendia, em um segundo momento, compor uma outra obra que

aprofundasse estas primeiras considerações. De qualquer forma entendo que FO

sentiu que, mesmo sendo uma “primeira anotação”, se fazia necessário apresentá-la

ao público (!). Quando se dirige ao Sr. D. Fernando de Almada, dedicando-lhe a

obra e colocando-se sob sua proteção, o autor expressa a pretensão de seu tratado

acompanhar pelo mundo a “língua de tão nobre gente e terra como é Portugal”. A

preocupação de reforçar a conquista de novas terras com a imposição da língua do

conquistador aos povos que ali vivem é característica do período (!), e encontra seu

modelo na Antigüidade clássica (!). Acreditavam que, ao mesmo tempo em que

cumpre a tarefa de abrandar a selvageria destes povos, a língua subjuga-os e

fortalece o poderio do dominador. Por isso um escrito como este se torna premente

exatamente neste período em que Portugal amplia suas colônias no além-mar2. Mais

1 “A obra de Oliveira é, efectivamente, um conjunto de curiosas e judiciosas reflexões, de tipo ensaístico; em suma, uma miscelânea lingüística e cultural.” Buesco, 1975, p. 20. 2 “É o português a primeira língua européia a firmar-se entre os povos ultramarinos.” Silva Neto, 1979, p. 518.

3

adiante na dedicação o autor expõe claramente a pretensão didática3 (!)de seu

tratado:

“a notação em algumas coisas do falar português na qual ou nas quais eu não

presumo ensinar aos que mais sabem, mas notarei o seu bom costume para que outros

muitos aprendam e saibam quanto prima é a natureza dos nossos homens porque ela

por sua vontade busca e tem de seu a perfeição da arte que outras nações adquirem

com muito trabalho e nestas coisas se acabará esta primeira anotação em dizer não

tudo, mas apontar algumas partes necessárias da ortografia, acento, etimologia e

analogia da nossa linguagem em comum e particularizando nada de cada dicção,

porque isto ficará para outro tempo e obra.”

É importante atentar também para outras intenções do autor expressas

nestas poucas linhas: não pretende dar conta de todos os aspectos do “falar

português”; a língua que considera modelo é a dos “que mais sabem”4; ao ensinar a

língua transmite a natureza dos homens que a falam (note-se a preocupação em

elogiá-las ambas, natureza e língua); seu recorte restringe o trabalho a considerações

acerca de “partes necessárias da ortografia, acento, etimologia e analogia”; não irá

tratar de particularidades da dicção desta língua, mas enfocará a “linguagem em

comum” (isto chama a atenção para a consciência que Fernão de Oliveira tinha da

variação lingüística); fica claro que pretendia aprofundar a investigação em outra

obra. Assim, denominar sua gramática de “primeira anotação”, tem realmente a

função de diminuir a expectativa do leitor quanto à obra ao restringir o trabalho do

autor que se exime, dessa forma, da responsabilidade de aprofundar sua

investigação.

3 Convém lembrar que a gramática de João de Barros (1540), contudo, possui uma característica mais tipicamente escolar que esta de Fernão de Oliveira. 4 O gramático João de Barros apontava como padrão lingüístico “um modo certo e justo de falar e escrever colheiro do uso e autoridade dos barões doutos.”

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Capítulo 1

No 1º capítulo5 a preocupação de Oliveira é tecer comentários acerca da

linguagem segundo a intenção manifestada na dedicatória: “primeiro diremos que

coisa é linguagem e da nossa, como é principal entre muitas.” A primeira

observação é a de que “a linguagem é figura do entendimento”, isto é, a linguagem é

manifestação do caráter, da constituição intelectual do falante, sabem falar os que

têm entendimento, conhecimento das coisas pois “das coisas nascem as palavras, e

não das palavras as coisas”. Fernão de Oliveira embasa suas afirmações com

citações de autores antigos, Diógenes Laércio, Cícero, Quintiliano, e se vincula à

concepção moralizante do tradicional ensino retórico; a arte do bem falar distingue

os homens, porém o homem só chega a dominá-la se tiver um bom caráter e uma

educação que o faça ter o entendimento das coisas. A moral antiga aí expressa é a

que resguarda a arte retórica da crítica de que um homem com formação retórica

pode usar as palavras para dizer algo que não é, ou algo que não é correto e assim

ludibriar os ouvintes (possibilidades defendidas pela sofística grega e desprezada

pelos pensadores posteriores), por isso as coisas não nascem das palavras(!).

Dirá ainda que a linguagem é um meio através do qual as almas racionais

comunicam-se, ela provém da alma espiritual mas se conforma às leis do corpo.

Interferem na maneira de falar: as conformações físicas, “segundo a disposição da

língua corporal, assim vemos formar diversas as vozes”; o ambiente, “as condições

do céu e terra em que vivem os homens”; o costume, “muitos falam muito mal só

com mau costume, não mais”. E, já que está falando de diferenças entre línguas,

aproveita para defender o português e constatar sua primazia: “nós falamos com

grande repouso, como homens assentados6. (...) em muitas outras coisas tem a nossa

língua vantagem, por que ela é antiga, ensinada, próspera e bem conservada e

também exercitada em bons tratos e ofícios.” Defender a língua vernácula é uma 5 Este preâmbulo, em que define a linguagem, está ausente da gramática de seu sucessor João de Barros. 6 “O que não parece ser o caso atual.” Silva Neto, 1979, p. 607.

5

necessidade para os primeiros gramáticos, principalmente no caso da península

Ibérica onde alguns escritores de origem portuguesa escreviam em castelhano. O

momento é de estabelecimento de uma língua nacional, chamá-la de antiga é

conferir-lhe autoridade e valor dentre as línguas derivadas do latim, lembre-se que

Fernão de Oliveira é um homem do renascimento e neste período tudo que possa

relacionar-se com a cultura greco-romana é extremamente valorizado, daí que ser o

português uma língua antiga o aproxima mais do latim, tendo se formado há tempos

ela é contudo “bem conservada”, isto é, não se corrompeu, pelo contrário, foi

exercitada, leia-se aprimorada, “em bons tratos e ofícios”, ela é boa, portanto, para o

uso literário, inclusive melhor que outras.

Capítulo 2

Aqui o autor se ocupa de atestar a antigüidade e a nobreza de Portugal, e

procede a uma genealogia com o fim de justificar a nobreza de sua terra e povo, e,

conseqüentemente, de sua língua. Reporta-se aos testemunhos de autores antigos

para embasar suas observações, não vamos aqui reproduzi-las apenas chamamos

atenção para a etimologia que sugere para os nomes de Lisboa e Portugal. Diz que

em memória de Hércules Líbio, filho de Osíris, rei do Egipto, que veio morrer em

Portugal, seus sucessores edificaram as cidades de Libisona, Libisosa, Libunca,

Libura e Libisoca, e diz que Lisboa é destas aí a que chamaram de Libisona. De ter

havido outrora um rei de nome Luso chamaram a esta terra Lusitânia, “a qual depois

chamaram Turdugal e agora, mudando algumas letras, Portugal”, Turdugal por conta

dos Túrdulos e Galos, “duas nações de homens que vieram morar em esta terra.”

Capítulo 3

Louva então as vitórias dos Portugueses contra os Romanos, os Godos e os

Mouros, e que “em Portugal sempre houve lugares e terras próprios dos cristãos”.

Diz que Portugal se manteve íntegra enquanto os Godos corrompiam a Espanha.

“Apontei isto para que desta nossa própria e natural nobreza nos prezemos e não

6

fabulizemos ou mintamos patranhas estrangeiras e muito menos nos louvemos dos

Godos, porque eles perderam o que a virtude desta terra ensinou ganhar aos nossos.”

Capítulo 4

Os argumentos de FO neste capítulo em defesa do estudo e ensino da língua

portuguesa são muito interessantes: toma o exemplo de Grécia e Roma que por

terem conferido grande importância aos estudos liberais impuseram a todos os povos

conquistados que aprendessem suas línguas e “não somente o que entendiam

escreviam nelas, mas também trasladavam para elas todo o bom que liam em outras.

E desta feição nos obrigaram a que ainda agora trabalhemos em aprender e apurar o

seu, esquecendo-nos do nosso.” Porém aconselha aos Portugueses não esquecerem o

seu, mas, pelo contrário, tornarem ao que lhes é próprio, “porque melhor é que

ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma”; não se deve desconfiar do

valor da língua portuguesa frente às antigas “porque os homens fazem a língua, e

não a língua os homens. E é manifesto que as línguas grega e latina primeiro foram

grosseiras e os homens as puseram na perfeição que agora têm.” Cita então alguns

testemunhos antigos para levantar a hipótese de que foi nos montes Pirenéus que os

homens primeiro “souberam formar vozes e falar” assim “primeiro souberam falar

os homens da nossa terra”, com isso retoma a tópica da antiguidade da língua

portuguesa para reforçar o ter sido ela, com o tempo, aperfeiçoada pelos portugueses

e a necessidade de que, em se voltando a ela, possam ainda mais perfeccioná-la.

Deste processo faz parte a gramática, que “é arte que ensina a bem ler e falar”, assim

se propõe a discorrer sobre “quem primeiro a ensinou e onde e como” para que

possam utilizar-se dela na “antiga e nobre” língua portuguesa.

Capítulo 5

Ao descrever “quem primeiro a ensinou [a gramática] e onde e como”

Fernão de Oliveira se apóia nos testemunhos de autores antigos e dá mostras da

ampla formação humanística que possuía, do seu grande conhecimento da literatura

7

greco-latina, demonstra assim que pretende dar continuidade a uma tradição clássica

colocando-se sob sua influência e proteção, o que confere autoridade ao seu

trabalho.

Dirá então que a terra de Portugal não se ocupou tanto em letras por ter

estado muito tempo em guerra a defender-se de seus inimigos, mas “logo como teve

paz, em tempo do mui nobre rei D. Dinis, tornou aos estudos”, refere-se também ao

papel de D. João III no desenvolvimento da instrução, e, são estes estudos que os

homens de seu tempo devem avivar. Recomenda novamente que os estudiosos se

ocupem da língua de seu país para que possam ensiná-la aos povos das terras

conquistadas: “apliquemos nosso trabalho a nossa língua e gente e ficará com maior

eternidade a memória dele e não trabalhemos em língua estrangeira, mas apuremos

tanto a nossa com boas doutrinas, que a possamos ensinar a muitas outras gentes”. E

é o que fará nesta sua obra, notar “o falar dos nossos homens” e daí ajuntar

“preceitos para aprenderem os que vierem e também os ausentes.” Dá início então a

sua gramática, irá primeiro tratar de “letras, sílabas e vozes”.

Capítulo 6

Define letra como sendo “figura de voz”; comparada com a definição de

linguagem como “figura do entendimento” que aparece no 1º capítulo, é como se

dissesse que a voz se manifesta na letra, como se voz neste sentido fosse algo mais

abstrato, ou amplo, como a dicção (vocis latina) (!), que se expressa fisicamente pelo

que chama de letra. Daí dirá que as letras podem ser consoantes ou vogais, vogais as

que têm voz em si e consoantes as que não têm voz (!) (“ao menos tão perfeita como

a vogal”) a não ser junto com as vogais. Aqui parece que voz já tem sentido mais

restrito.

Convenciona chamar às figuras destas letras sinais, diferentemente dos

Gregos que as chamam de caracteres e dos Latinos que as chamam notas. Então, a

letra é figura de voz, e as figuras das letras são os sinais (o que nós hoje chamamos

letras, representação gráfica). A letra, em Fernão de Oliveira, seria algo como a

8

potestas latina (!), o som (os fones da língua), e os sinais são as figuras das letras (as

letras grafadas, o sistema ortográfico).

Para ele os sinais “hão-de ser tantos como as pronunciações”, o que

fundamenta “as vozes e a escritura” é a pronúncia. Isto é, conforme se pronuncie

uma palavra assim ela possui sua voz (um som) e deve ser representada com os

sinais necessários. Pode-se perceber como Fernão de Oliveira utiliza o conceito de

letra de forma diferente dos outros gramáticos pela crítica que faz a Antonio de

Nebrija, diz que este está errado ao afirmar que a Espanha (Portugal era uma parte

da Espanha) tem somente as letras latinas, pois considera que há muita diferença

deles aos Latinos nas letras, pois também há muita diferença nas vozes, e o que

possuem como eles são as figuras, “quase as mesmas ou imitação”. Oliveira não

percebeu que o quê Nebrija chamou de letra é o que ele próprio chama de figura de

letra ou sinal, ou, mais provavelmente, Fernão de Oliveira dá mostras de uma leitura

confusa das gramáticas anteriores, mesmo porque é comum os antigos confundirem

som e letra (!), e, ao tentar separar os dois conceitos usando a nomenclatura anterior

de forma diferenciada, chamando o ‘som’ de letra, acaba obscurecendo suas próprias

afirmações, por exemplo, a afirmação que faz logo depois de constatar que o quê

possuem em comum com os latinos são as figuras e não as letras: “não deixa de

haver falta nesta parte, porque as nossas vozes requerem que tenhamos trinta e duas

ou trinta e três letras”, ora, se ele havia diferenciado letra e figura e dito que os

portugueses não possuem as mesmas letras que os latinos, por que agora parece

reclamar que faltam aos portugueses letras e não figuras?

Bem, mas tirada a dificuldade de lidar com esta confusão de conceitos,

devemos notar a acuidade que Oliveira expressa neste capítulo quanto à mudança

lingüística: “uma mesma nação e gente de um tempo a outro muda as vozes e

também as letras”, porém não deixa de expressar uma atitude moderada e prescritiva

ao dizer que “mudam as vozes e com elas é também necessário que se mudem as

letras, mas não com tão pouco respeito como agora alguns fazem”.

9

Capítulo 7

A partir daqui diz que irá examinar “a melodia da nossa língua (...) tomando

todas as vozes e cada uma por si e vendo em elas quantos diversos movimentos faz a

boca com também diversidade do som e em que parte da boca se faz cada

movimento, porque nisto se pode discutir mais distintamente o próprio de cada

língua.”7 Porque mesmo com iguais vozes e letras, como portugueses e castelhanos,

ainda há alguma particularidade que os difere: “E no pronunciar quem não sentirá a

diferença que temos porque eles [os castelhanos] escondem-se e nós abrimos mais a

boca? (...) a eles [os castelhanos] deu a natureza afeiçoar o que querem dizer e nós

falamos com mais majestade e firmeza.”

Capítulo 8

Começa pelas vogais e as divide em grandes e pequenas8, assim os

portugueses possuem 8 vogais9 (a grande, a pequeno, e grande e e pequeno, o

grande e o pequeno, i e u) mas apenas 5 figuras, por imitarem os latinos. Diz que

muitos em lugar das grandes escrevem duas, e outros põem-lhe aspiração para

marcar a pronúncia diferente, o quê ele propõe é uma nova grafia diferenciada para

as vogais que chama grandes: α ε ω , respectivamente para a grande, e grande, o

grande. Diz que existem estas vogais grandes e pequenas “segundo o costume quis,

e não mais.”(!)

7 “Pormenorizado estudo da pronúncia, articulação e grafia dos sons portugueses, a parte talvez mais original da sua obra.” Buesco, 1975, p. 20. 8 “Tolomei [autor de Versi e regole della nuova poesia toscana, 1539] preferia o emprego das maiúsculas para a representação das vogais abertas. Essa preferência, de resto, embora não adoptada por Fernão de Oliveira, parece reflectir-se na designação de grande e pequeno, respectivamente para a vogal aberta e fechada.” Idem, p. 25. 9 “Os gramáticos italianos e franceses consideraram, de acordo com o sistema fonológico das línguas respectivas, o problema da abertura e fechamento apenas para o caso de e e de o. É, por conseguinte, de notar que Fernão de Oliveira e João de Barros (ao contrário do etimologista, em busca das origens, Duarte Nunes de Leão, em 1606) se refiram ao caso de a aberto e fechado.” Idem, p. 26.

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Capítulo 9

Neste capítulo Fernão de Oliveira reparte as letras consoantes em mudas e

semivogais, como “costumam os gramáticos”(!), “as semivogais podem estar no fim

das vozes como as vogais”, por isso são “quase vogais”, e as mudas “não podem dar

cabo às vozes”. Para ele somente são semivogais l, r, s e z. O m escrito em fim de

sílaba considera que não deveria ser escrito e sim substituído pelo sinal til, “que

nesses cabos onde a escrevemos e também no meio das dicções em cabo de muitas

sílabas soa uma letra muito branda que nem é m nem n.”

Considera letras mudas b, c, d, f, g, m, n, p, q, t e x. Mudas “porque em si

não têm voz alguma nem ofício ou lugar que lha dê.” Não considera necessárias

nenhuma das letras k, ph, e ps que imitam a grafia grega, mas recomenda que sejam

suprimidas e que as dicções gregas “quando vêm ter entre nós” se conformem à

“melodia das nossas vozes”.

Capítulo 10

Às vogais, semivogais e mudas Oliveira soma as letras ç, j, rr, ss, v, y, ch,

lh, nh, assim o total das letras da língua portuguesa fica em 32, não considera

necessário contar o til e o h, pois “a força delas é mui diminuída (...) e nem podemos

dar nome próprio que a pronunciação delas mostre.” Estranho que FO considere ch,

lh e nh consoantes aspiradas.(ver adiante (!))

Capítulo 11

Propõe-se então, “como manda Quintiliano”, examinar o “próprio” de cada

letra, a “particular pronunciação” de cada uma delas, e o comum entre elas, no que

uma se parece com a outra, pois “nisto consiste o saber ler, e mais que saber ler.”

Defende a necessidade de fixar leis e normas neste assunto, pois

“é verdade que, se não tivermos certa lei no pronunciar das letras, não pode haver

certeza de preceitos nem arte na língua, e cada dia acharemos nela mudança, não

11

somente no som da melodia, mas também nos significados das vozes, porque só

mudar uma letra, um acento ou som, e mudar uma vogal grande a pequena ou de

pequena a grande, e assim também de uma consoante dobrada em singela ou, ao

contrário, de singela em dobrada, faz ou desfaz muito no significado da língua.”

Também defende que se siga “uma certa regra de escrever”, já que uma

escrita duvidosa “porá em dúvida o efeito”.

Capítulo 12

Neste capítulo o autor trata da grafia e pronúncia das vogais. Ao expor a

grafia duma letra sempre se refere a ela como “a figura” de tal letra; sua descrição

do desenho das letras é interessante, às vezes divertida, mas não nos deteremos nela.

Nos importam as considerações acerca da pronúncia das letras:

- a pequeno: “sua pronunciação é com a boca mais aberta que das outras

vogais e toda a boca igual.”

- a grande: “a pronunciação é com a mesma forma da boca [de a pequeno],

senão quando traz mais espírito.”

- e pequeno: “sua voz não abre já tanto a boca e descobre mais os dentes.”

- e grande: “não tem outra diferença da força de e pequeno, senão quanto

enforma mais seu espírito.”

- i : “pronuncia-se com os dentes quase fechados e os beiços assim abertos

como no e e a sua língua apertada com as gengivas de baixo e o espírito

lançado com mais ímpeto.”

- o pequeno: “a boca redonda dentro e os beiços encolhidos em redondo.”

- o grande: “tem a mesma pronunciação [de o pequeno] com mais força e

espírito. E todavia estas letras vogais grandes fazem algum tanto mais

movimento na boca que as pequenas.”

- u: “aperta as queixadas e prega os beiços, não deixando entre eles mais que

só um canudo por onde sai um som escuro, o qual é a sua voz.”

12

Capítulo 13

Neste capítulo10 apresenta a pronúncia das consoantes, não se preocupa em

descrever como devem ser grafadas.

- b: “pronuncia-se entre os beiços apertados, lançando para fora o bafo com

ímpeto e quase com baba.” (!)

- c: “pronuncia-se dobrando a língua sobre os dentes queixais, fazendo um

certo lombo no meio dela diante do papo, quase chegando com esse lombo da

língua ao céu da boca e impedindo o espírito, o qual por força faça apartar a

língua e faces e quebre nos beiços com ímpeto.”(!)

- d: “deita a língua dos dentes de cima com um pouco de espírito.”(!)

- f: “fecha os dentes de cima sobre o beiço de baixo e não é tão inumana entre

nós como a Quintiliano pinta aos Latinos, mas, todavia, assopra, como ele

diz.”

- g: “é como a do c, com menos força de espírito.”

- l: “lambe as gengivas de cima com as costas da língua, achegando às bordas

dela os dentes queixais.”

- m: “muge entre os beiços apertados, apanhando para dentro.”

- n: “tine, diz Quintiliano, tocando com a ponta da língua as gengivas de cima.”

- p: “a força ou virtude do p é a mesma do que a do b, senão que traz mais

espírito.”

- q: frente a Diomedes e Quintiliano que consideraram que esta letra “não faz

mais do que pode fazer c” Oliveira considera-a importante para o português:

“nós a havemos mister na nossa língua, assim para algumas dicções que de

necessidade têm u líquido, como quase, quando, quanto, qual, e outras

10 “Este capítulo é na obra de Fernão de Oliveira um dos mais importantes. A descrição articulatória é extremamente rigorosa, precisa e expressiva e não se encontra entre os seus congêneres contemporâneos.” Buesco, 1975, p. 132.

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semelhantes, como também para quando se seguem i ou e, para tirar a dúvida

que pode haver entre c e ç.”11

- r singelo: “pronuncia-se com a língua pegada nos dentes queixais de cima, e

sai o bafo tremendo na ponta da língua.”

- rr dobrado: “a pronunciação é a mesma que a do r singelo, senão que este

dobrado arranha mais as gengivas de cima, e o singelo não treme tanto, mas

tamalavez é semelhante ao l.”

- s singelo: “diz Quintiliano, é letra mimosa, e, quando a pronunciamos,

alevantamos a ponta da língua para o céu da boca e o espírito assobia pelas

ilhargas da língua.”

- ss dobrado: “pronuncia-se como o outro, pregando mais a língua no céu da

boca.”

- t: “tem a mesma virtude do d, com mais espírito, todavia tira o t para fora.”

- x: “nós lhe chamamos cis, mas eu lhe chamaria antes xi, porque assim o

pronunciamos na escritura (sic). Pronuncia-se com as queixadas apertadas no

meio da boca, os dentes juntos, a língua ancha na boca e o espírito ferve na

humidade da língua.”

- z: “zine entre os dentes cerrados, com a língua chegada a eles e os beiços

apartados um do outro. E é nossa própria letra.”

Capítulo 14

Continua a descrever as consoantes, porém nas descritas neste capítulo

indicará também sua grafia. Talvez separe estas consoantes em um capítulo a parte e

se importe com a indicação de grafia por considerá-las potencialmente polêmicas;

vejamos:

11 “Neste ponto, a doutrina de Fernão de Oliveira, invocando a autoridade de Diomedes e de Quintiliano, é bem menos clara e explícita do que a de João de Barros. Efectivamente, a substituição de k e qu por c em todas as posições arrastaria necessariamente a grafia de ç em todas as posições em que tiver valor de fricativa (ou africada): ça, çe, çi, ço, çu. Essa é, claramente, a solução barrosiana, ambígua ainda ou indecisa na obra de Oliveira.” Buescu, 1975, p. 28. (!)

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- ç: “Esta letra c com outro c embaixo de si virado para trás, nesta forma ç, tem

a mesma pronunciação que z, senão que aperta mais a língua nos dentes.”

- j: “A sua pronunciação é semelhante à do xi, com menos força. E esta mesma

virtude damos ao g, quando se segue depois dele e ou i.”

- v: “A força do v consoante é como a do f, mas com menos espírito.”

- y: “quando vem uma vogal logo atrás outra, nós, pronunciamos entre elas

uma letra como em meio, seio, moio, joio, e outras muitas. A qual letra a mim

me parece ser y, e não i vogal, porque ela não faz sílaba por si, nem tampouco

j consoante na força que lhe nós demos, mas em outra quase semelhante

àquela, muito enxuta e sem nenhuma mistura de cuspinho. E neste lugares

poderá servir esta figura de y e senão é ociosa.”

- til: “lançada sobre as outras letras sua força, e tão branda, que a não sentimos,

senão misturadas com as outras. (...) E eu digo que é necessário, todas as

vezes que depois de vogal, em uma mesma sílaba, escrevemos m ou n. E

muito mais sobre os ditongos.”

- h: “Nós, Portugueses, não lhe damos mais que um pouco de espírito, o qual esforça mais

as vogais com que se mistura.(...) eu não vejo alguma vogal aspirada senão nestas

interjeições: uha e aha e nestoutras de riso: há-há, hé, ainda que não me parece este

bom riso português (...). Também achamos algumas poucas vogais com sinal de

aspiração na escritura, e não na voz. E me parece que se não faz mais que só para

mais certo conhecimento de quem são, como homem, o qual segue ainda a escritura

latina, haver, outro tanto. Mas hum e alghum, hi e ahi, advérbios de lugar, honra,

honrado, só de nosso costume os escrevemos, sem mais outra necessidade.”

Considerar o h sinal de aspiração que pode aparecer na escritura e não na

voz talvez tenha sido o motivo de FO denominar ch, lh, nh consoantes aspiradas. No

entanto, talvez estejamos apenas a poupar o autor que, tendo feito descrições

articulatórias tão precisas, apresente uma observação tão pouco inexata neste ponto.

De fato ele afirma, logo após tecer as considerações sobre a letra h: “Das

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consoantes, temos três aspiradas para as quais, posto que não temos próprias figuras

mais que só aspiração com elas misturada, todavia, as vozes são bem assinadas por

si e diferentes das outras não aspiradas. São estas letras: ch, lh, nh.” (!)

Apresentadas todas as letras ficou assim o “nosso a b c”: α a b c d e ε f

g h i j l m n o ω p q r rr s ss t v u z y ch lh nh. 33 letras no total12,

“todas nossas e necessárias para nossa língua”, pois agora Fernão de Oliveira

incluiu o h (“ao sinal de aspiração chamamos aha”); dessas, 8 são vogais e 24

consoantes.

Capítulo 15

Observa neste capítulo que algumas letras “se fazem líquidas”, entendendo

líquido como “brando, ou diminuído de sua força”. “Das vogais, nós fazemos u

líquido algumas vezes depois de g e q, como quando e língua.” Oliveira, como sói

fazer, dá a sua opinião pessoal(!) acerca desta letra u líquido: “se o meu sentir é

acertado, eu sinto nos tais lugares o pequeno, e não já u, e assim o escreveria, se me

atrevesse, desta maneira: língoa, qoando, porque assim me soa a mim, nas minhas

orelhas. E, se outra coisa fazem para imitar aos Latinos, não é nosso o que seguem.”

No entanto, como diz, não se atreve a mudar a grafia já acostumada do u nestas

posições, pois tem a percepção de que o costume tem sua força nos preceitos da

ortografia.

Do u escrito depois de g, quando logo vem e ou i, “para que não façamos

voz de i consoante [isto é, j]”, diz não ter “voz alguma, porque não somente é

diminuído, mas de todo desfeito.” Porém considera que o u escrito depois de q nas

mesmas condições é desnecessário e que “não o escreveria senão só onde soa, e,

ainda aí escreveria o, como já disse.”

Do uso de y, i e j reforça a distinção feita antes, y não pode ser dita nem i

vogal líquida nem j consoante líquida, porque sempre aparece entre duas vogais, não

12 Segundo João de Barros: “podemos dizer termos 23 letras em poder e 34 em figura”, in Gram., p. 296

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tendo assim a característica das líquidas que é o de ter “atrás outra consoante muda

que caia sobre” ela. Possuem esta característica as consoantes l e r, que são “as

consoantes líquidas entre nós.”

Fernão de Oliveira diz que “líquida será a letra semivogal” e, seguindo

Probo, que é a que vem depois de uma consoante muda na mesma sílaba que esta, e

que “não se pode ajuntar duas letras líquidas em uma sílaba, sendo de diversa natura,

como l e r nem r, s, porque dois ll ou dois rr se ajuntam.”

Interessante é a observação feita pelo autor sobre a oscilação do uso de r ou

l líquidos nas mesmas posições no português: “a forma e melodia da nossa língua foi

mais amiga de pôr sempre r onde agora escrevemos às vezes l e às vezes r, como

glória e flores, onde diziam grórea e frores, e também outras partes como estas.”(!)

Por fim dirá que aquele u escrito onde não se pronuncia, depois de q e g, e

outras quaisquer letras “que isto tiverem, podem-se chamar líquidas em um outro

certo modo de liquecer ou diminuir.” E que “as letras líquidas não têm outras

figuras, nomes, nem pronunciações diversas do que soíam quando não eram

líquidas, mas são as mesmas, com menos força.”

Capítulo 16

Começa este capítulo dizendo das consoantes que chama aspiradas ch, lh, e

nh que não possuem figura própria, depois trata de aspiração constatando que

nenhuma vogal do português é aspirada, “tirando algumas interjeições”. Porém, há

uma afirmação obscura na seqüência, que nos seria muito importante decifrar visto

tratar da designação de aspiradas às consoantes ditas acima, o que já comentamos

ser uma falha do autor, a afirmação é a seguinte: “Das consoantes, eu diria que sem

aspiração fazem alguma mudança, cujo sinal é aquela figura de letra h que lhe

misturamos, assim como fazemos do til nas vogais, quando também mudam sua

voz.” Hoje em dia estas consoantes são descritas pela fonética como fricativa

palatoalveolar, nasal palatal e lateral palatal, respectivamente para a produção dos

sons grafados na escrita com duas consoantes cada, ch, lh e nh. Em comum com as

17

consoantes c, l e n possuem o modo de articulação. Possivelmente Fernão de

Oliveira se deixou enganar pela grafia e pela vontade de padronizar a descrição do

som de h como uma aspiração, forçando a denominação de aspiradas para tais

consoantes. De qualquer forma considerar estes grupos gráficos de duas consoantes

cada como uma letra só (lembremos da distinção do autor entre letra e sinal ou

figura) demonstra que percebia que representavam cada uma um som, distinto do

som de c, l e n. Se lermos, contudo, a passagem que considerei obscura acima da

seguinte forma: ch, nh e lh são consoantes “sem aspiração” que no entanto têm a

pronúncia alterada em relação a c, n e l, mudança que tem como sinal escrito o

acréscimo da “figura de letra h” que é utilizada da mesma forma que o til, para

mudar a “voz” da letra; podemos entendê-la como uma tentativa de amenizar a

denominação forçada de aspiradas.

Do til diz que muda a voz “porque não é a mesma voz vila e vilã, mas o til

que lhe pusemos muda a qualidade do a, de clara voz em escura, e meteu mais pelos

narizes.” Assim o til e o h, ou aha, têm ambos a característica de os sentirmos

somente “naquele ajuntamento que fazem com as tais letras, mas não lhes podemos

só formar nome nem pronunciação próprios.”

A minha hipótese de que a nomenclatura consoantes aspiradas foi apenas

uma tentativa mal sucedida de padronização da descrição de h ganha outro reforço

no parágrafo em que Fernão de Oliveira afirma que os portugueses não possuem

letras aspiradas:

“tampouco têm os Latinos vozes aspiradas, como nós, e os Gregos poucas mais

porque as gentes da Europa falam todas com os beiços, dentes e ponta da língua, com

a qual, pondo-a em diversas partes da boca, formam diversas letras. E nós, mais que

todos, com a boca mais aberta, e as nossas vozes são mais fora da boca, (...). E, pois,

nós as letras que mais dentro formemos, que são c e g, não chamamos aspiradas,

tampouco o chamemos a essoutras que trazem menos espírito do que c. (...) Mas é

aspiração um grande espírito, grande, digo eu, em comparação do acostumado nas

letras e vozes, e esse grande espírito, arrancado do estômago, (...).”

18

Capítulo 17

Reforça a opinião de que a letra k não é necessária para os portugueses,

nem para os latinos, cita a opinião de Diomedes, Marciano Capela e Quintiliano

sobre as letras k e q no latim e se exime de estender a discussão dizendo: “e,

contudo, os Latinos perfiem consigo.” Para o português sua opinião é

“que estas sílabas ca e coa e co e cu, bem podem escusar essa letra q, como cadeira,

coando, começo e coberto. E também estoutras: ce e ci, como ceixume e cina. Senão

que aos vulgares será trabalhoso, e portanto em quando com líquida e em queixume e

quina escrevamos q, ainda que o meu parecer era que estes derradeiros, pois não soa

letra líquida, não se escrevesse senão assim: qeixume e qina, e assim outros

semelhantes. E, porém, o costume vale muito, sem o qual a escritura, porventura, ficaria

duvidosa.”

Capítulo 18

Até agora havia tratado do “próprio” de cada letra, neste capítulo começará

a esboçar o “comum” entre elas principiando pela semelhança entre u e o pequeno,

que é tanta que “quase nos confundimos, dizendo uns somir e outros sumir (...)”. E o

mesmo acontece com i e e pequeno, “como memória ou memórea”, porém no caso

destas duas a sua opinião é a de que “quando escrevemos i na penúltima, sempre

ponhamos o acento nessa penúltima, seguindo-se logo a última, sem interposição de

consoante, como aravia e se a tal penúltima, assim de vogais puras, não tiver o

acento não a escreveremos com i, senão com e, como glórea e memórea.”

“Entre as consoantes, b e p são mui semelhantes, e c com g tem muita

vizinhança, e d com t, f com v, l com r singelo, ç com z e s com ss, j e x.” Afora os

pares l /r e s /ss(!), os outros pares são os pares hodiernamente descritos pela

fonética como os pares de consoantes que possuem o mesmo modo e lugar de

articulação diferindo apenas no ser surda ou sonora, o que chama a atenção para a

acuidade da observação de Fernão de Oliveira nesta área pouco explorada pelas

gramáticas mais antigas que lhe serviram de modelo.

19

Capítulo 19

Para Oliveira, sílaba é “uma só voz, formada com letra ou letras, a qual

pode significar por si ou ser parte de dicção e assim as vogais, ainda que sejam em

ditongo, podem fazer sílaba sem outra ajuda, e as consoantes não, senão misturadas

com as vogais.”

Encontra, no português, os seguintes ditongos (tendo avisado no capítulo

anterior que não são “os mesmos nem todos os da língua latina, mas também alguns

outros e mais em número, porque as vozes da nossa língua os têm, e Quintiliano

assim manda escrever qualquer língua como soa.”): “ae, como tomae, ãe, como

pães; ao como pao; ão como pão; ãi, como mãi; ei, como tomei; éu, como céu;

como Deus, eu, como meu; io, como fugio; oe, como soe; ói, como caracóis; õe,

como põe; oi, como boi; ou, como dou; ui, como fui.”

Volta a defender o uso do til para marcar nasalização ao invés do uso de m

ou n13,

“porque se em cidadão e escrivão e outros desta voz e outras escrevemos m ou n no

meio, diria vilamo ou vilano. (...) E nós aqui vemos e sentimos com as orelhas que

soa ali um til sobre ambas as letras vogais do ditongo, com escrivão e escrivães, o

qual, com a boca e beiços mui soltos, também soa na mesma forma em todas as

sílabas em cujos cabos nós escrevemos m ou n, errando como o costume, porque as

letras mudas, de cujo o número são m e n, entre nós nunca dão fim a dicção alguma

nem sílaba. (...) E, portanto, não escreveremos ensinar com n na primeira sílaba nem

embargar com m, à imitação dos Latinos, pois nos tais lugares, entre nós, não

sentimos essas letras, mas nessas e outras muitas partes escrevamos til.”

13 “Ao percorrermos a súmula dos assuntos tratados na obra de Oliveira, confirmando o carácter ocasional e assistemático da sua constituição, deparam-se-nos duplicações nos seguintes casos: no uso do til, do m e do n (5 lugares); na ausência de aspiradas em português (2 lugares); na grafia de vocábulos estrangeiros (2 lugares); nas vogais i e u (3 lugares); nas questões etimológicas (2 lugares); na derivação (2 lugares).” Buescu, 1979, p. 22. (!)

20

Capítulo 20

Sobre as letras em que as “dicções ou suas sílabas podem acabar” constata

que “as nossas vozes acabam sempre em voz perfeita e desimpedida, o que não

consentem as letras mudas”, “das vogais, qualquer delas pode dar cabo às sílabas” e

“as letras consoantes em que as nossas dicções ou suas sílabas podem acabar, são

estas: l, r, s e z, as quais já chamámos semivogais ou quase vogais, porque nisto são

soltas como vogais e gozam de seu ofício em dar fim a dicções ou sílabas, como

vogais.”

Capítulo 21

“Antes de si todas as vogais em ditongos e fora deles recebem qualquer

letra consoante, (...) antes de letra líquida estará sempre letra muda”. E quanto à

construção das sílabas: “As mais letras que se ajuntam em uma sílaba são quatro: a

primeira muda e a segunda líquida e a terceira vogal ou ditongo e a quarta semivogal

ou til, como frasco ou franco: na primeira sílaba se contam f e r e a, s ou til.” Diz

também que pode haver sílabas de três, duas, ou uma só letra. Para esclarecer diz

“contam-se em uma mesma sílaba todas as letras que soam em uma só voz, como

em tardou: t e a e r se contam na primeira sílaba e d e o e u na segunda.”

Capítulo 22

Continuando a tratar de sílabas observa que “as nossas sílabas nunca se

começam em duas letras de diversa natura, como sperança, mas sempre lhe daremos

nos começos das vozes uma vogal que soe com a primeira letra, como esperança e

estrado, porque já dissemos que a nossa língua é mui comprida no pronunciar das

letras e sílabas.” (!) Quanto às vogais acontece o mesmo, “duas vogais de uma

mesma natureza não se ajuntam em uma sílaba, e as que fazem ditongo serão sempre

diversas.”

21

Capítulo 23

Das vogais que se encontram, estando em sílabas diferentes, diz que “bem

se podem continuar, como fazia, ia e comia”, no entanto considera mais comum que

entre duas vogais “puras” se interponha um “y consoante, como Maio, seio, saia e

aio”14, observa que os encontros em que não existe este “y consoante” interposto

geralmente possuem “estas vozes ou alguma delas, i ou u, como duas, rua e Maria,

também o pequeno, como zamboa.”

Capítulo 24

Reproduziremos este capítulo na íntegra, já que o consideramos um

exemplo tanto da independência das opiniões do autor como do estágio em que se

encontrava a fonética do português na época em que escreve:

“As dicções que trazemos de outras línguas escrevê-las-emos com as nossas letras

que nelas soam, como ditongo, filósofo e gramática, porque tudo o mais é

impedimento aos que não sabem essas línguas donde elas vieram, senão quando ainda

forem tão novas entre nós que seja necessário pronunciá-las com a melodia de seu

nascimento; mas nós trabalhemos quanto pudermos de as amansar e conformar com a

nossa: autor e reitor não as escrevamos com c antes de t, como os Latinos fazem,

porque a nossa língua não consente acabar as nossas sílabas em c nem em outra

alguma letra muda, como ac, ab e ad. E mais: pois nos tais lugares soa entre nós u ou

i, misturado em ditongo com a vogal que antes estava, assim o escrevamos.” (!)

Capítulo 25

Neste capítulo o autor fala do fenômeno da queda de vogais átonas finais

diante de outras vogais, conquanto tenha percebido o fato, sua descrição não é tão

satisfatória, reproduziremos também na íntegra:

14 “Contudo, em posição intervocálica, o gramático castelhano [Nebrija] reconhecera a utilidade do emrego de y. Ora, enquanto a opinião de João de Barros é, relativamente a esta questão, ambígua e flutuante [‘y serve no meio das dicções às vezes (...). i serve no fim das dicções sempre’], Fernão de Oliveira toma uma posição perfeitamente definida e lúcida, tendo em conta, com singular acuidade, o valor da semivogal, como segundo elemento de um ditongo.” Buesco, 79, p. 29.

22

“Quando uma dicção acaba em vogal e outra dicção logo começa também em vogal,

se são ambas de um mesmo género, misturam-se ambas e fazem uma vogal, e às

vezes grande, de seu género de que elas eram, como d’escrever por de escrever;

estav’assim por estava assim e com’os Latinos por como os Latinos. E se são de

diversos géneros, a primeira perde-se e a segunda, em que começa a segunda dicção,

fica, e muitas vezes em maior quantidade, como misturam-s’ambas por misturam-se

ambas e com’este por como este. Ainda, porém, que às vezes ficam ambas inteiras,

maiormente se são diversas, como acaba em a vogal e começa a segunda.” (!)

Capítulo 26

Diz que as consoantes que se transformam em outras são “til em n e r em

l”, isso acontece quando depois da nasalização ou do r aparece algum artigo, os

exemplos são a mudança de em o → no e de por o → polo, e de fizeram-o →

fizeram-no. Esta última forma no plural, fizeram-nos, gera ambigüidade, nos pode

ser “artigo composto ou plural deste nome eu”, a sugestão dele é que “quando for

plural de eu, escreveremos cada um por si e o cabo da primeira parte inteiro, como:

Fizeram nos bem as letras, que quer dizer: Fizeram a nós bem as letras. Ou lhe

acrescentamos a nós, dizendo: Fizeram-nos a nós. Mas isto é já quase pergunta.” (!)

Descreve que às vezes não pronunciam as vogais (!) após l ou r, “como

silba por sílaba e fizerdes por fizeredes.” Na segunda pessoa do plural dos verbos,

relata que mudaram “o des em is e ajuntamo-lo em ditongo com a vogal que ficava

antes, como fazeis por fazedes e amais por amades.” Também considera mudança de

s em l, os casos mudamos-o→ mudamo-lo e amais o vosso Deus → amai-lo vosso

Deus. E conclui: “Todos estes são costumes próprios, assim como outros que já

dissemos e particulares da nossa língua. E algum tanto parecem compostos, ainda

que não de todos afirmarei ser composição, senão que estas sílabas se mudam ou

cortam para melhor melodia”.

23

Capítulo 27

Este é o capítulo mais longo até agora, nele Fernão de Oliveira fala de

“quantidade das sílabas”, e distingue quantidade vocálica de quantidade silábica, as

vogais “podem gastar mais ou menos tempo segundo as consoantes que se seguem

adiante”, “mais tempo tem esta letra vogal a grande em gasto que em gato, e mais

tem esta letra e em presto que em perto” pois “mais tempo gastam duas consoantes

que uma, as quais também têm espírito e ajudam a soar e ter voz”, isto é, “segundo

mais ou menos consoantes de que vierem acompanhadas, assim gastarão mais ou

menos tempo. Mas elas em si sempre são de uma mesma quantidade.”

Retoma a opinião dada anteriormente de que se escreva com e pequeno

palavras como hóstea, necessáreo, e com i apenas quando aí estiver o acento da

dicção, como Maria e ouvir. E o mesmo para u pequeno (isto é, átono), que se

escreva o pequeno em palavras como argoir e continoar, e u na penúltima se aí

estiver o acento, concluiu. Porém

“não pareça a alguém que nós confundimos i pequeno com e pequeno, nem o

pequeno com u pequeno (...) onde soa mais [o e pequeno] podemos dizer que é mais

vizinho do e grande. Onde também menos soa, será isso mesmo mais vizinho do i (...)

ainda em memórea e outras semelhantes partes a penúltima parece mais pequena,

porque antes de si tem uma sílaba grande com acento. Tão pequeno fica este e nestas

partes, que muitos se enganam e escrevem em seu lugar i, o qual nós aí não

sentimos.(...) E bem vemos como em lampreia e correia e em outras partes como

estas, esta letra e pequeno, que está na penúltima, soa mais que em memórea e

necessáreo.(...) porque antes não tem outra vogal maior, como também porque depois

de si não se continua logo outra vogal, mas mete-se no meio um y consoante.” (!)

Quanto aos femininos em oa diz: “eu não os pronunciaria nesta forma,

cidadoa, capitoa, viloa, rascoa e aldeoa, mas pronunciá-los-ia assim: aldeã, vilã e

cidadã.”

24

Por fim ressalta que o acento pode cair em qualquer das três últimas sílabas,

este é o gancho para começar a tratar de acento no capítulo seguinte.

Capítulo 28

Define acento como “principal voz ou tom da dicção, o qual acaba de dar

sua forma e melodia às dicções de qualquer língua” e esclarece “digo às dicções

somente, porque a linguagem ainda no ajuntamento das dicções e no estilo e modo

de proceder tem suas particularidades ou propriedades” prometendo que irá tratar

desta matéria em outra obra maior que pretende fazer.

Preocupado em caracterizar o que é próprio do português e não julgá-lo

pelo que acontece nas línguas latina ou grega afirma: “Esta forma das dicções a que

chamamos acento, sem a qual se mal conhecem uns vocábulos dos outros, é

necessária em cada parte ou dicção e em cada uma não mais que só um acento”. (!)

Capítulo 30

As regras de acentuação (nem sempre o acento de que fala é o acento

gráfico, mas simplesmente a tônica da palavra) que enumera, aliás muito confusas,

são as seguintes:

- palavras terminadas em r, z e l são acentuadas na última sílaba, com exceção

de alcácer.

- palavras terminadas em s também são acentuadas na última sílaba, afora

Marcos, Lucas e Domingos, nomes próprios, e verbos em algumas

conjugações.

(Aliás restringe estas regras para “os nomes no singular e os verbos na

primeira pessoa do Presente do Indicativo e no Infinitivo.”)

- dicções acabadas em til (nasalização) têm o acento na última, tirando rábão,

órfão, órgão, cóvão, tábão (mosca), orégão, píntão e Fárão (nome de lugar),

e zímbão (coisa de frades) e frangão.

25

- também das terminadas em em muitas são as palavras que não levam acento

na última, como linhagem e menagem, mas alguém, desdém etc. seguem a

regra. E amam, amavam e amaram são exemplos de “pessoas dos verbos”

que não seguem a regra da nasalização.

- palavras com vogal grande (aberta) ou ditongo na última sílaba levam acento

aí, como alvará, chaminé, Peru, amei.(!)

- levam acento na penúltima sílaba as palavras que não se enquadram nas

regras anteriores e têm esta penúltima grande, ex. estudaste, estudavas.

Palavras que tiverem esta característica e acento na antepenúltima, como

último, diz Oliveira que “não serão nossos” nomes. Porém há verbos que em

“algumas partes” mesmo possuindo vogal grande na sílaba final são

acentuados na penúltima, como amas, apanhes.

- segundas pessoas do plural no presente, futuro, pretérito do indicativo e

presente do subjuntivo, assim como dizemos, estudamos, riremos e digamos

são acentuadas (tônicas) na penúltima.

- afora as citadas no item anterior, palavras com a antepenúltima grande e

penúltima e última pequenas têm o acento nesta antepenúltima.

- palavras que não apresentam nem antepenúltima nem penúltima nem última

sílaba grande, “pela maior parte têm acento na penúltima.”

- se a palavra possui as três úlimas sílabas grandes, ou a última e mais outra

grandes, o acento cai, preferencialmente na penúltima.

- “o plural dos nomes segue as regras do acento do seu singular, ainda que

mude ou acrescente as letras ou as sílabas ou a quantidade delas”

- os verbos não seguem as formas de presente do indicativo ou infinitivo “nem

nos acentos, nem na ortografia, posto que se formem delas.”

Fernão de Oliveira parece querer defender-se da pouca organização de suas

observações: “E como se tiram as exceções, quase se pode entender do que fica dito,

porque nesta pequena obra não há lugar para falar mais particularidades e não

somente nos verbos, mas também nos nomes e em outras partes há exceções, das

26

quais também assim nesta parte dos acentos, como de qualquer outra parte da

Gramática, aqui basta admoestar, o que nós assim fizemos.”

Capítulo 30

Neste capítulo começa a tratar de etimologia, para tanto principia por

definir palavra: “Dicção, vocábulo ou palavra, tudo quer dizer uma coisa. (...)

palavra é voz que significa coisa ou ato ou modo: coisa, como artigo e nome; ato,

como verbo; modo, como qualquer outra parte da oração, as quais, como significam

(...) di-lo-emos em outra parte onde falaremos das partes da oração.”15

Define etimologia como “olhar o seu [das palavras] fundamento e donde

vieram.” As palavras podem ser:

- nossas próprias: ex. castiçal, janela e panela

- alheias: ex. ditongo, acento, picote e alcance

- comuns: ex. mesa e sapato

E cada uma destas pode ser:

- apartada16 (fazer) ou junta (contrafazer)

- velha (ruão) ou nova (arcabuz) ou usada (casa)

- própria (livro, “por que lemos”) ou mudada (livro, “instrumento de música”)

- primeira (livro) ou tirada (livraria)

Capítulo 31

Define cada classificação listada no capítulo anterior:

15 “Não obstante a riqueza informativa da sua obra, parece fora de dúvida que Fernão de Oliveira, construindo um trabalho certamente original, se manteve de algum modo alheio à problemática gramatical no Renascimento, pelo menos a um sector determinado e importantíssimo dessa problemática, a qual indcidia principalmente nos seguintes pontos: as partes da Gramática; as partes do discurso; a aplicação dos esquemas formais da gramática latina às línguas modernas. Dessa problemática, Oliveira retém apenas um ponto: a ortografia. E quanto a esse é certo que quis e soube fazer doutrina.” Buescu, 79, p. 22. (!) 16 “Um dos aspectos curiosos da obra de Oliveira consiste na adopção de uma nomenclatura original, muito expressiva e notavelmente inovadora (palavras apartadas e juntas, mudadas, primeiras, tiradas), a qual, aliás, não virá a ser utilizada pelos gramáticos posteriores.” Idem, p. 21.

27

- “As nossas dicções são aquelas que nasceram entre nós ou são já tão antigas,

que não sabemos se vieram de fora.” Destas deve-se investigar “donde,

quando, porquê e como foram feitas.”

Porém adverte, “para saber todas estas coisas requer-se ler e ver muito, e

ainda assim alcançaremos pouco”, pois podem existir “patranhas” de todo tipo, “as

quais sempre são sobejas e muitas vezes falsas e pouco recebidas entre homens

sabedores que do pouco, que com muito lendo e trabalhando adquiriram, se prezam,

e não de imaginações aldeãs sem juízo.”

Também aconselha que a tarefa de definir palavras como alheias ou nossas

seja feita não pelo “que nesta parte não tenha licença senão quem com habilidade e

saber for merecedor”, pois preocupa-se com a quantidade de palavras classificadas

de alheias: “Perguntarei: então, que nos fica a nós? Ou se temos de nosso alguma

coisa? E os nossos homens, pois são mais antigos que os Latinos, porque também

não ensinariam? Porque seriam em tudo e sempre ensinados?”(!)

Capítulo 32

- “As dicções alheias são aquelas que doutras línguas trazemos à nossa por

alguma necessidade, trato, arte ou coisa alguma novamente trazida à terra.”

Mas “estas dicções alheias com necessidade e não facilmente trazidas,

chamar-lhes-emos alheias, enquanto forem muito novas, de tal feição que não

possamos negar seu nascimento. E depois, pelo tempo adiante, conformando-as

connosco, chamar-lhes-emos nossas, porque desta maneira foram as que agora

chamamos comuns”.

Capítulo 33

- “Dicções comuns chamamos aquelas que em muitas línguas servem

igualmente e o tempo em que se mudaram de uma língua para outra fica tão

longe de nós, que não podemos facilmente saber de qual para qual língua se

28

mudaram, porque assim as podiam tomar as outras línguas da nossa, como a

nossa delas.”

Neste capítulo, Fernão de Oliveira adota um tom polêmico criticando os

que encontram tantas dicções alheias e “se levantam contra nossa língua e a fazem

pobre e toda emprestada” e ainda, provavelmente, aos que praticavam o bilingüismo

literário escrevendo em castelhano ao dizer que “quem folga ouvir língua estrangeira

na sua terra não é amigo de sua gente, nem conforme à música natural dela.”(!)

Capítulo 34

- “As dicções apartadas, a que os Latinos chamam simples ou singelas, são

aquelas cujas partes não podem ser dicções inteiras, mas dividem-se somente

em sílabas e letras ou também não se podem dividir, (...) como fazer, porque

fa por si não diz nada e zer tampouco. E, posto que se possam dividir quanto

à voz, o seu primeiro e principal intento e seu significado não consentem tal

divisão”. (!)

Capítulo 35

- “As dicções juntas a que os Latinos chamam compostas” são:

- “cujas partes apartadas significam ou podem significar”

- “aquelas em que se ajuntam diversas dicções ou suas partes, fazendo uma

só dicção (...) abasta que uma qualquer das partes da composição possa

significar” (ex. refazer, desfazer)

- aquelas “cujas partes apartadas nenhuma delas por si signifique” desde

que se possa dizer que “o primeiro fundamento daquelas partes é serem

diversas e estarem cada uma por si, as quais aqui se ajuntam e fazem uma

só dicção, e contudo não sempre podemos alcançar donde vêm as partes

deste ajuntamento” (ex. des, nem, também, então, nelhures, algures e

tamalavez)

Deste assunto dirá ainda:

29

Há “partes ou vozes na nossa língua” que, “ainda que não signifiquem

apartadas, por si fazem significar as dicções com que se ajuntam mais ou menos ou

em contrário” e “têm por ofício servir sempre em ajuntamento”, são elas: re, es e des

(ex. revender, estorvar e desconcertar).

Dicções começadas em a, es e em podem ser “costume bem amiudado entre

nós” e outras vezes “ajuntamento” (ex. costume: apanhar, açoitar, abertura,

abastança e acerto, ensino, ensinar, escutar e esperar; ajuntamento: acorrer,

aparecer, aconselhar, encarregar, esguardar e espedaçar). “Porque as partes dos

primeiros [costume] não se acham apartadas e as destes derradeiros [ajuntamento]

sim”.

Os ajuntamentos são no máximo de três partes; podem causar nenhuma ou

muitas alterações das partes e letras; podem manter o significado das partes ou

tomar outro semelhante ou muito diferente. “Re, no ajuntamento, tem virtude de

acrescentar, e estoutra, des, tem virtude de desfazer ou diminuir ou fazer o contrário,

(...) esta parte com significa muitas vezes companhia”(!)

Capítulo 36

- “As dicções velhas são as que foram usadas, mas agora são esquecidas (...) e

não somente de tanto tempo, mas também antes de nós um pouco nossos pais

tinham algumas palavras que já não são agora ouvidas”

As considerações do autor são muito conformes: “Mas não é muito de

maravilhar, diz Marco Varrão, que as vozes envelheçam e as velhas alguma hora

pareçam mal porque também envelhecem os homens cujas vozes elas são.” “E mui

poucas são as coisas que duram por todas ou muitas idades em um estado, quanto

mais as falas, que sempre se conformam com os conceitos ou entenderes, juízos e

tratos dos homens.”

E no uso das dicções velhas recomenda bom senso: “essas dicções antigas

que usamos, as quais, sendo moderadas, nos haviam de afermosentar, forem sobejas,

farão muito grande dissonância nas orelhas de nossos tempos e homens.”

30

Capítulo 37

- “As dicções novas são aquelas que novamente ou de todo fingimos ou em

parte achamos.”

Fingir de todo é criar um nome novo “não tirado de nenhuma parte”, “se

achássemos uma coisa nova em nossa terra, bem lhe podíamos dar nome novo,

buscando e fingindo voz nova”; “achar dicções novas em parte e não de todo, é

quando, para fazer a voz nova que nos é necessária, nos fundamos em alguma

coisa”.

Porém aconselha cautela pois “fingir ou achar vocábulos novos é perigo,

diz Quintiliano, em tanto que, se são bons, não vos louvam por isso, e se não

prestam, zombam de vós.”

Capítulo 38

- “As dicções usadas são estas (...) que todos falam e entendem, as quais são

próprias do nosso tempo e terra.”

“Algumas destas ficaram já de muito há, tanto que lhe não sabemos seu

princípio particular, (...) algumas destas foram novas, mas pouco há; mas, por serem

muito frequentadas, não fazemos já nenhuma diferença delas a essoutras [as

usadas]”.

Neste capítulo Fernão de Oliveira dá mostras da sua clara percepção quer

da variedade lingüística social, quer das variedades regionais:

“e todas elas, ou são gerais a todos, como Deus, pão, vinho, céu e terra, ou são

particulares e esta particularidade ou se faz entre ofícios e tratos, como os cavaleiros

que têm uns vocábulos e os lavradores outros, e os cortesãos outros e os mercadores

outros. Ou também se faz em terras esta particularidade, porque os da Beira têm umas

falas e os do Alentejo outras, e os homens da Estremadura são diferentes dos de Entre

Douro e Minho, porque, assim como os tempos, assim também as terras criam

diversas condições e conceitos. E o velho, como tem o entender mais firme, com o

que mais sabe, também suas falas são de peso, e as do mancebo, mais leves.(...) em

31

qualquer língua e muito mais na nossa, saibamos que a primeira e principal virtude da

língua é ser clara e que a possam todos entender, e para ser bem entendida há de ser a

mais acostumada entre os melhores dela e os melhores da língua são os que mais

leram e viram e viveram, continuando mais entre primores sisudos e assentados, e

não amigos de muita mudança.”

Antes, no capítulo 32 já havia dito:

“os homens falam do que fazem, e portanto os aldeãos não sabem as falas da corte, e

os sapateiros não são entendidos na arte de marear, nem os lavradores de Entre Douro

e Minho entendem as novas vozes que este ano vieram de Tunes com suas gorras.”17

Capítulo 39

- “Dicções próprias chamamos àquelas que servem na sua primeira e principal

significação, como livro, que desde seu princípio e principal intento sempre

quis e agora quer dizer este papel escrito por que lemos.”(!)

- “As dicções mudadas, a que os Latinos chamam trasladadas, são as que por

necessidade ou melhoria da significação ou voz estão fora de seu próprio

significado e ou estão em lugar de outra dicção que não era tão boa como nós

queríamos para nosso intento ou estão onde não havia dicção própria”

- Dicções primeiras, chamadas pelos latinos primitivas, são “cujo nascimento

não procede de outra parte mais que da vontade livre daquele que as primeiro

pôs” (!)

17 “Na lúcida exposição que acabamos de ler encontra-se: 1- a língua comum: que todos falam e entendem, própria do nosso tempo e terra; 2- a língua padrão: a dos cortesãos, a dos “melhores”, aqueles que mais estudaram e ocupam a classe social mais bem dotada; 3- as línguas especiais; 4- as falas regionais: o beirão, o alentejano, o extremenho, o interamnense...” Silva Neto, 1979, p. 491.

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- “As dicções tiradas, a que os Latinos chamam derivadas, são cujos

nascimentos vêm de outras algumas dicções donde estas são tiradas, como

tinteiro, velhice e honrada”. No capítulo 35 havia já dito que “donde algumas

são tiradas é dificultoso saber.”

Concluindo esta parte dedicada a etimologia diz: “já dissemos até aqui da etimologia, da qual Marcos Varrão diz que, se não

alcançarmos muito dela, nem por isso seremos digno de culpa, mas antes, ao

contrário, quem souber alguma coisa será de louvar, porque assim como as coisas

apartadas e particulares trazem consigo esquecimento, assim também se alcançam

com muita diligência e trabalho, a quem não deve não ser dado muito

agradecimento.”

Capítulo 40

Aqui principia a última parte da gramática de Fernão de Oliveira, nos

próximos 10 capítulos tratará da analogia.

Sua consideração inicial é de que “assim como a diferença das dicções faz

conhecer as diversas coisas umas das outras, segundo fica dito, também assim a

semelhança das dicções nos abre caminho para que conheçamos umas coisas por

outras, segundo que têm alguma semelhança ou parecer entre si.” Isto é, podemos

reconhecer um verbo, por exemplo, pela diferença que apresenta em relação ao

nome, “porque os nomes têm sua forma distinta da dos verbos e cada parte da oração

se conhece entre as outras”, ou pela sua semelhança com os outros verbos, “porque

são em alguma coisa e voz semelhantes com as outras do seu género.” À diferença

chamam os gregos anomalia, e à semelhança, analogia. (!)

A primeira diferença apontada é que “umas [vozes] se declinam e outras

não se declinam”. Define declinação como “diversidade de vozes, tiradas de um

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primeiro e firme princípio, por respeito de diversos estados das coisas.” O princípio

no nome é o singular, e “no verbo, o Presente do Indicativo e Infinitivo.”18

Capítulo 41

Seguindo Varrão (!) diz que as declinações podem ser voluntárias ou

naturais. “Voluntárias são as que cada um faz à sua vontade, tirando uma voz da

outra, como de Portugal, português, e de França, francês, mas de Flandres,

flamengo, e de Galiza, galego.” Considera declinações voluntárias as que “não têm

certa lei de formação” e “posto que não se podem dar aqui mais limitadas regras”

“solta a liberdade de todos nesta parte”. Dá vários exemplos da dificuldade em

prever estas formações e ilustra num tom divertido e coloquial, que sói aparecer nas

suas explicações, a naturalidade disto: “porque entre os filhos de um só pai, uns são

mui feios e outros parecem melhor; e parece-se um com seu pai e outro com sua mãe

e outro com nenhum deles”, e como a lã da mesma ovelha que pode ser parte boa,

parte ruim, e como as árvores podem vingar ou secar e dar ou não bons frutos,

“outro tanto é nas vozes, porque umas não formam de si nada, e outras se podem

multiplicar; e algumas parecem a suas primitivas ou primeiras de onde descendem, e

outras não, e outras muito, e outras menos, e algumas formações têm melhor som e

música que outras e são mais usadas.”

E “toda esta coisa não somente na nossa língua é tão desvairada, mas

também nas outras”, porém o trabalho do gramático é, conforma o aconselha

Quintiliano, notar o “próprio costume” de cada língua,

“cá esta arte de Gramática em todas as suas partes e muito mais nesta da analogia, é

resquardo e anotação desse costume e uso, tomada depois que os homens souberam

18 “Seguindo a doutrina de Varrão e de outros gramáticos, Fernão de Oliveira chama declinação à variação casual dos nomes e à conjugação dos verbos. Prisciano, com efeito, afirma (VIII, 1): “Verbum est pars orationis cun temporibus et modis sine casu”; contudo, define conjugação como verborum declinatio, assim como Varrão, ao dizer que a declinação dos verbos é tripla (“declinatio facienda fuit triplex”, VII, 8). Com efeito, embora já os gramáticos latinos houvessem pressentido a diferença conjugação-declinação, só no Renascimento ela virá a ser claramente formulada. É o que se deduz do seguinte passo de Barros: “Vérbo [...] nam se declina [...] mas conjuga-se”, in Gram., p. 325.” Buesco, 1975, p. 136.

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falar, e não lei posta que os tire da boa liberdade, quando é bem regida e ordenada por

seu saber, nem é divindade mandada do céu que nos possa de novo ensinar o que já

temos e é nosso, não embargando que é mais divino quem melhor entende. E, assim,

é verdade que a arte nos pode ensinar a falar melhor, ainda que não de novo: ensina

aos que não sabiam e aos que sabiam ajuda.” (!)

Capítulo 42

Para Oliveira, naturais são ditas as declinações “mais sujeitas às regras e

leis (...) regras ou leis que digo são anotações do bom costume, as quais, porque aqui

são mais gerais e compreendem mais, chamamos-lhes naturais. E de feito parecem

ser mais próprias e consoantes à natureza da língua, pois lhe a ela mais obedecem.”

(!) Cita Varrão, “é aquela que não obedece à vontade particular de cada um, mas que

é conforme ao comum parecer de todos. E mais não se muda tão asinha, posto que o

uso do falar tenha seu movimento.” Porém constata que também aqui “padece a

Gramática suas excepções.”

Considera naturais algumas dicções tiradas, como os nomes de alguns

ofícios mecânicos, “se são nossos e são tirados, pela maior parte acabam nesta

terminação eiro, como pedreiro, carpinteiro e sapateiro.” Alguns porém não

seguem esta regra, como ferrador, boticário, surrador e outros. As oficinas e

lugares desses ofícios terminados em eiro, acabarão em ria, “pela maior parte”.

Outras regras que apresenta são: -nomes verbais femininos terminam em

ão, como lição e oração; - nomes verbais masculinos terminam em or, como

regedor e governador (“poucos têm femininos em a”); -diminutivos terminam em

inho e inha; -aumentativos em az ou ão. As exceções são: -dos nomes verbais

terminados em ão, “não de todos os verbos se podem formar, mas têm outros nomes

não tirados que servem por eles, como de amar, amor e de honrar, honra.”

Dos advérbios diz que “quando são tirados, pela maior parte ou sempre

acabam em mente (...) porém, há aí muitos que não são tirados, como antes, depois

(...) quase podemos notar que os advérbios acabados em mente significam qualidade,

e não todos os que significam qualidade acabam em mente.” (!!)

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Porém agora “vejamos particularmente dos artigos, nomes e verbos, cuja é

esta [declinação natural] mais própria.”

Capítulo 43

Note-se o recorte feito pelo autor no preâmbulo a este capítulo: “Não

dizemos ainda agora neste lugar nem livro que coisa é artigo, nem tampouco

mostramos qual ofício tem, porque aqui não falamos senão das formas ou figuras

das vozes ou dicções” (grifo nosso), portanto de artigo dirá somente que varia “a

forma de sua voz em géneros, números e casos. Em géneros, como o e a, e em

número, como os e as, e em casos, como do, ó, a, da, à, a; os, dos, ós (aos), os; as,

das às, as.” (!)

Sobre a declinação do artigo em casos especificará as diferentes grafias e

qualidade vocálica de cada um, não transmitiremos isto, mas os nomes que propõe

para os casos: “no primeiro caso, a que os Latinos chamam nominativo, nós lhe

podemos chamar prepositivo (...) no segundo caso, a que os Latinos chamam

genitivo, e nós assim lhe podemos chamar, ou possessivo (...) terceiro caso, a que

nós e os Latinos chamamos dativo (...) no derradeiro, a que os Latinos chamam

acusativo, e nós pospositivo”.

Conquanto tenha considerado do, da, dos, das como declinação no caso

dativo do artigo, perceba-se a maior lucidez expressa no trecho abaixo:

“Nesta parte queremos admoestar que não cuidem alguns, quando dizem ao, para o,

aos, para os, que tudo aquilo assim junto é só artigo de dativo, mas as primeiras

partes daqueles ajuntamentos, a em ao e para em para o, são preposições, e o artigo

que trazem depois de si não é dativo, mas é pospositivo, o qual se segue sempre

depois de preposição, e não outro caso. Isto disse, porque alguns gramáticos o

ensinam mal, dando notícia dos casos a seus principiantes.(...) são compostos ou

juntos, do, quando significa de o, como: venho do estudo, venho do paço; (...)”

36

Capítulo 44

Sobre gênero diz:

“As declinações dos géneros são muitas e menos para compreender, porque, posto

que os nomes acabados em uma letra qualquer sejam mais de um género que de

outro, não por isso se pode dar regra universal, como nestas duas letras a e o, das

quais uma é mais masculina e outra feminina. E, contudo, tem suas faltas, porque

isto, isso e aquilo são acabados em o e não são masculinos, mas de género

indeterminado, e não neutro como o dos Latinos. E eixó, mouçó, queiró e outros são

femininos. E em e pequeno também temos nomes masculinos e femininos (...) em e

grande, outro tanto (...) em i e u, além de haver mui poucos, também não são muito

nossos, (...) em ditongo (...) poucos nomes (...) e têm mais parecer masculino, (...) em

al, el, il, ol, ar, er, or mais são masculinos” etc.

“Não dissemos aqui quantos nem quais eram os géneros dos nomes, nem tampouco

que coisa é nome, como também fizemos aos artigos e faremos nos verbos, porque do

intento desta parte da Gramática que agora tratamos não é mais que só dar notícia das

vozes, e não definições ou determinadas declarações das coisas.”

Capítulo 45

Algumas regras do plural que observa são:

- regra geral: “o plural tem como sua letra própria esta letra s”;

- somente acrescentam s os que no singular acabavam com vogal ou ditongo;

- acabados em til, se não tiverem ditongo, também só acrescentam s;

- terminados em ão, “se significam ofícios ou tratos, mudam a letra derradeira

do ditongo, que é o, em e”, antes do s;

- etc.

- os acabados em l mudam essa letra l em i e acrescentam s, em il somente

mudam l em s;

- terminados em r ou s ou z acrescentam sobre seu singular es no plural;

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E conclui: “Visto como variam nos nomes seus plurais, podemos dizer que temos

dito quatro declinações: a primeira, que somente acrescenta letra, (...), e a segunda,

que acrescenta sílaba (...); a terceira muda letra (...), e a quarta também muda sílaba

(...) Alguns nomes não têm plural (...) outros não têm singular (...)”

Capítulo 46

Após explicar sucintamente como funciona a declinação de caso no grego e

latim, Fernão de Oliveira diz que “posto que este seja um grande primor de

perfeição dessas línguas, declarar na voz as miudezas das coisas, com a diversidade

de letra ou voz que dissemos, todavia a nossa língua nem por isso ficou sem outro

tão bom concerto e de menos trabalho.(...) E, contudo, nós também temos casos em

três pronomes, os quais são eu, me, mi [mim], tu, ti, se, si.”

Capítulo 47

Para o autor os verbos têm “diversas vozes” em gêneros, conjugações,

modos, tempos, números e pessoas. Considera marca de gênero a terminação da

primeira pessoa do presente do indicativo, normalmente “o pequeno”. O infinitivo

ou acaba em ar, ou em er, ou em ir, e alguns, exceção, em or.

Capítulo 48

Define conjugação como “ajuntamento de diversas vozes que, segundo boa

ordem, se ordenam, seguindo-se umas atrás das outras em os verbos.” As

conjugações dos nossos verbos são 3: verbos que fazem infinitivo em ar, infinitivo

em er e infinitivo acabado em ir, “porque esta é a diferença que têm as conjugações, entre nós mais clara e em que

melhor se conhece.(...) e cada uma delas tem seus modos, como falamos, falemos,

falai e falar. E cada modo tem seus tempos, como falo, falava, falei e falarei. E cada

temo tem seus números, como falo e falamos, falas e falais, fala e falam. E cada

número tem suas pessoas, como falo, falas, falamos, falais, falam. E também têm os

nosso verbos gerúndios (...) e particípios (...) e os nomes verbais. E, porém, alguns

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verbos não têm todos os modos, e outros faltam em tempos. (...) porque assim na

analogia dos verbos, como das outras partes, não temos regras que possam

compreender todos, senão os mais (...)”

Capítulo 49

Tendo se proposto no preâmbulo a tratar da “composição ou concerto que

as partes ou dicções da nossa língua têm entre si”, isto é, da “construição”, após

comentar em algumas linhas que o português por mais dissemelhanças e

desproporções cometa ainda assim são menos que em outras línguas e fazer

apologia da língua portuguesa, arremata dizendo que tem “começada uma obra em

que particularmente e com mais comprimento falará dela [da construição].”

Capítulo 50

Faz a defesa de sua obra, entre outras coisas diz: “porque algum tanto me

fiz nestes princípios breve, repreenderão mui asinha o que disse, e não saberão,

louvando, manifestar o que calei.”