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Mônica nóbrega

O pOntO de vista dO sistema: possibilidade de leitura da linguística

geral de Ferdinand de saussure

João pessoa - 2012

Livro produzido pelo projeto Para ler o digital: reconfiguração do livro na cibercultura - PIBIC/UFPB

Departamento de Mídias Digitais - DEMID / Núcleo de Artes Midiáticas - NAMID Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas - Gmid/PPGC/UFPB

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e um projeto do Namid - Núcelo de Artes Midiáticasdo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPB

Diretor: Henrique Magalhães

Conselho Editorial:Edgar Franco - Pós-Graduação em Cultura Visual (FAV/UFG)

Edgard Guimarães - Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA/SP)Elydio dos Santos Neto - Pós-Graduação em Educação da UMESP

Marcos Nicolau - Pós-Graduação em Comunicação da UFPBPaulo Ramos - Departamento de Letras (UNIFESP)

Roberto Elísio dos Santos - Mestrado em Comunicação da USCS/SPWellington Pereira - Pós-Graduação em Comunicação da UFPB

N754p Nóbrega, MônicaO ponto de vista do sistema: Possibilidade de uma leitura da linguí-

tica geral / Mônica Nóbrega. - João Pessoa: Marca de Fantasia, 2012.

147p.: (Série Periscópio, 21). ISBN 978-85-7999-061-81. Releitura sausseriana. 2. Sistema linguístico 3. Valor linguístico

CDU: 801

O ponto de vista do sistema: Possibilidade de uma leitura da linguítica geral de Ferdinand de Saussure

Mônica Nóbrega2012 - Série Periscópio - 21

Coordenador do ProjetoMarcos Nicolau

CapaKeila Lourenço

Editoração DigitalFabrícia Guedes

Fabrícia GuedesFilipe AlmeidaKeila LourençoMaria Alice Lemos

Marriett Albuquerque Natan PedrozaRennam Virginio

Alunos Integrantes do Projeto

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“Palavra minhaMatéria, minha criatura, palavra

Que me conduz Mudo

E que me escreve desatento, palavra”(chico buarque de Holanda)

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sUmÁRiO

pReFÁCiO .......................................................... 10

das ORiGens de Um tema: Os CaminHOs dO LivRO ....................................14

das ORiGens de Um mestRe: Os CaminHOs de saUssURe e da sUa LinGUÍtiCa .................. 22

Os estUdOs de saUssURe: pOR Onde COmeÇaR .......................................... 35

dO CLG aOs manUsCRitOs: aLGUmas COnsideRaÇÕes ................................ 41

LÍnGUa OU FaLa? a esCOLHa de Um OBJetO .................................. 53O CLG e o objeto da linguística ........................... 53Godel e a dicotomia língua e fala ........................ 62a exclusão da fala da ciência linguística e a noção de valor ............................................... 69Língua: condenada a circular .............................. 73

O sistema LinGUÍstiCO saUssURianO ........... 81identidade linguística: O ponto de partida para o sistema? ..................... 84a identidade linguística e o clg ............................... 89O signo linguístico: Um conceito entre semiologia e linguística? ........ 91a exclusão da coisa ................................................ 97Quanto à arbitrariedade do signo ............................. 98Quanto ao caráter linear do significante ................... 104o valor linguístico ................................................ 105relações sintagmáticas e associativas ..................... 117

Os anaGRamas: O textO sOB O textO ..................................... 132

paRa COnCLUiR ............................................... 136

ReFeRÊnCias ................................................... 145

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pReFÁCiO

o livro que tenho o prazer de apresentar ao leitor já integrou uma tese de doutorado de cuja banca de ava-liação fiz parte. Assim anunciado, pareço querer apenas alertar o leitor de que se trata de reflexão que, tendo sido abalizada por um grupo de especialistas, é correta, de-vendo, portanto, ser recebida com aceite por todos.

Ora, mesmo que, em linhas gerais, o sentido de mi-nhas palavras não se oponha a tal conclusão, não é a ela que quero fazer referência. Minha intenção, ao sublinhar ser este livro oriundo de uma tese, é lembrar as condições em que fora enunciada para, enfim, poder falar da impor-tância do surgimento do livro.

o trabalho de Mônica surgiu num momento do con-texto da linguística brasileira em que não era tão comum falar em Ferdinand de saussure. lembro-me da surpre-sa que causava dizer, naquele momento, que se escrevia uma tese sobre saussure. Muitos se apressavam em per-guntar “ainda há o que ser dito sobre saussure?”.

Hoje percebo que essa pergunta - quase uma inqui-rição - parece indicar que a linguística brasileira se rela-cionou com saussure de maneira bastante singular e com parâmetros nada similares aos utilizados pela linguística

européia. A verdade é que, durante os anos de introdu-ção do pensamento saussuriano nos bancos acadêmicos, entre nós, se tornou lugar comum afirmar que a linguís-tica de origem Saussuriana é responsável pelo alçamento científico da disciplina, mas também se minimizou a per-tinência desse pensamento.

Durante muito tempo, Saussure fora apresentado nos cursos de introdução à linguística de maneira para-doxal. É como se, colado ao gesto de reconhecimento da fundação, estivesse uma necessidade de abandono. O ra-ciocínio parecia ser este: Ferdinand de saussure instituiu a linguística como ciência, deu-lhe método e objeto, mas sua teoria está ultrapassada, logo seu ato fundador é um fato que pertence tão-somente à história das idéias linguísticas.

exemplos não faltam: boa parte dos livros de intro-dução à linguística utilizados em nossas universidades faz referência, especialmente à obra póstuma de Saussure, como sendo um marco que inaugura um saber científico da linguística, no entanto, há a glosa: Saussure é passado, a linguística que merece crédito é atual.

Na contramão desse senso comum, testemunha-se, na última década no Brasil, um movimento de retoma-da do pensamento saussuriano, motivado pela publicação de manuscritos e por estudos sobre a gênese das teorias linguísticas. Muito se tem dito sobre a atualidade do pen-samento saussuriano, excelentes trabalhos têm sido res-ponsáveis por uma verdadeira efervescência em torno da obra de Ferdinand de saussure.

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Não é exagero admitir que Saussure foi redesco-berto. os dogmas que se cristalizaram em torno de uma leitura ortodoxa do Curso de linguística geral foram co-locados em suspenso. Hoje em dia, reinterpretam-se as famosas dicotomias, descobrem-se novos conceitos, vis-lumbram-se outros parâmetros de cientificidade. Assim, Saussure é reconduzido à posição de fundador. Dessa vez, não pelas certezas que pode fornecer, mas pela incomple-tude que sua obra convoca.

É revigorante para a linguística reler saussure a partir da aceitação de que seu pensamento é inacabado. É entu-siasmador perceber que o Curso de linguística geral regis-tra magistralmente o percurso de um saber, mas que ele é apenas um registro possível dentre outros. É ético lembrar que Saussure era um professor que, durante os três cursos ministrados em Genebra, elaborou um pensamento, mas que, em momento algum, o considerou acabado.

a tese de Mônica nóbrega pertence a esse movi-mento. Portanto, este livro – que reproduz parcialmente sua tese - pode, e deve, ser visto como integrante de um esforço empreendido pela linguística brasileira de voltar a Saussure. Desse movimento a autora é co-fundadora. Ela faz parte do grupo que falou antes de Saussure. Este é um dos méritos deste livro: chamar a atenção para o muito que ainda não se tinha dito sobre Ferdinand de saussure.

Isso dito, cabe ainda fazer uma pequena observa-ção que, a meus olhos, é determinante do entendimento que se possa ter do livro. o enlace de Mônica com saus-

sure se faz pela via da sala de aula. Mônica recupera em saussure a voz do professor. isso está de acordo com as inquietações da autora que, desde o seu mestrado, faz da sala de aula um espaço de pesquisa.

O interessante é que, neste trabalho, o professor que está no centro da reflexão é o mesmo que fundou a pos-sibilidade de a reflexão se constituir. O vínculo, enfim, que o leitor verá é de extrema cumplicidade. Mônica alia-se a Saussure para, num só movimento, afirmar a sala de aula – a de Saussure e a de todos nós, linguistas - como um espa-ço de construção sempre inacabada, tal como é inacabado o pensamento de saussure. e acrescenta: nisso reside toda a força de um saber que sobrevive, inclusive, ao dogma.

Como se poderá ver, o livro revela a tendência da autora em se colocar de uma perspectiva teórica que pro-duz no “tudo não se diz”, para usar as palavras de Jean claude Milner. Foi isso que a fez ir à França para ampliar seus estudos de doutoramento e a fez buscar a psicaná-lise lacaniana como um subsídio da leitura empreendida.

Enfim, se a mim solicitassem sintetizar a impressão que tive ao ler o livro de Mônica, diria que ele resguarda o essencial para um leitor: ele abre caminhos.

Valdir do nascimento Flores

programa de pós graduação em letras

universidade Federal do rio grande do sul

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das ORiGens de Um tema: Os CaminHOs dO LivRO

Este livro é resultado de um dos capítulos da mi-nha tese de doutorado1, defendida em janeiro de 2002, na Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, sob orientação da professora doutora Leci Borges Barbisan, e do trabalho que venho desenvolvendo desde então, tanto na graduação quanto na pós-gradua-ção em letras da universidade Federal da paraíba.

a tese de doutorado nasceu como resposta a uma questão trazida pelos meus estudos sobre a sala de aula, tendo como base teórica a linha francesa de análise de discurso. estudos que começaram com a dissertação de mestrado2, defendida na Pontificia Universidade Católica de São Paulo, em 1993, sob orientação da professora dou-tora Maria José Rodrigues Faria Coracini, e continuaram com os trabalhos que foram desenvolvidos na graduação do Curso de Letras da UFPB de 1991 até o doutorado, em parceria com a professora Maria ester Vieira de sousa.

É dentro do contexto da linguística aplicada e da preocupação em ver a sala de aula como lugar de pesqui-1 o mesmo e o outro: a constituição dos sentidos na articulação entre linguística e psicanálise.2 professor e aluno: falas de poder.

sa que a AD, no início da década de 90, começou, de fato, a produzir estudos voltados para os sujeitos professor e aluno, principalmente no que diz respeito à relação que estabelecem entre si e com o livro-didático.

Pioreira na abordagem destas questões, Maria Jose Coracini (1995, p. 9-10) descreve os seguintes objetivos para a ad no contexto da sala de aula:

observar a sala de aula não de fora, mas de dentro, vendo--nos como participantes dessa construção para, na medida do possível, problematizar, desnudar a realidade da sala de aula, des-construí-la (não destruí-la e reconstruir um outro mode-lo que seria sempre semelhante ao precedente), de modo a perceber do interior e pelo interior as regularidades que trans-formam a aula em uma formação discursiva (com regras de funcionamento próprias, responsáveis pelo efeito de homoge-neidade), mas, também e, talvez, sobretudo, contradições e conflitos, capazes de provocar mudanças ainda que não se saiba exatamente onde se vai chegar, quais efeitos de sentido, que reações uma tal análise pode suscitar, sabendo em todo caso, que é a via aberta mais propícia à transformação do ensino.

a questão que se colocou e que não estava tão clara durante a construção da dissertação quanto ficou depois3, é que as contribuições da AD para a sala de aula, naquela época, refletiam os seus próprios limites teóricos, ou seja, não conseguindo desapegar-se das amarras das formações discursivas, próprias de suas duas primeiras fases, das re-3 Especificamente quando construi a proposta de trabalho para o doutorado.

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gras responsáveis pela homogeneidade, a AD via, na sala de aula, apenas a estrutura e não o acontecimento4, mesmo quando buscava, como está claro no objetivo pro-posto por Coracini, analisar conflitos e contradições. Obser-vávamos também que desde o início dos estudos voltados para a sala de aula, a AD teria vislumbrado a possibilida-de de um trabalho que permitisse a análise das hetero-geneidades mas, com os pés arraigados nas duas primei-ras fases, não conseguia algo mais efetivo neste sentido, produzindo muito mais estudos que apontavam as regula-ridades, o mesmo, do que aqueles que tratavam do outro, das polissemias. dizíamos mesmo que era a própria ad que, com as amarras de um materialismo histórico, nota-damente althusseriano, esbarrava no limite da reprodução dos sentidos, histórico e socialmente determinados.

Foi, portanto, a partir desta problemática que com-preendemos ser necessário trabalhar o conceito de língua na dialétca entre a estrutura e o acontecimento, entre a homogeneidade e a heterogeneidade, conforme o que nos propunha a terceira fase da AD, sem a ditadura ou, como o disse Pêcheux (1990), o narcisismo da estrutura, pretendendo, assim, cooperar para que a AD pudesse, de-finitivamente, encarar o desafio de ver a sala de aula com seus conflitos e contradições.

Seguimos os passos de Pêcheux (op.cit.), no final do livro O discurso: estrutura ou acontecimento, quando

4 Os termos são de Pêcheux, utilizados no livro Discurso: estru-tura ou acontecimento, publicado no brasil em 1990).

ele passa a apresentar o que chama um “certo número de exigências” para uma maneira nova de trabalhar que se impõe à AD. A primeira destas exigências é “dar o prima-do aos gestos de descrição das materialidades discursi-vas” e, para tanto, seria preciso o reconhecimento de um real específico da língua, como o descreve Milner (1978), em O amor da língua. Pêcheux, ao dizer que se deve es-tudar a língua, interage com os ouvintes, certo do impacto que causaria a sua afirmativa, dizendo (op. cit., p. 50):

Eu disse bem: a língua. Isto é, nem linguagem, nem fala, nem discurso, nem texto, nem interação conversacional, mas aqui-lo que é colocado pelos linguistas como a condição de existên-cia (de princípio), sob a forma da existência do simbólico, no sentido de Jakobson e de lacan.

Nosso caminho, na tese de doutorado, começou, portanto, com o objetivo de investigar esta língua que es-taria na base de um movimento da terceira fase da ad e que, conforme supúnhamos, seria um caminho teórico que poderia ajudar a responder à inquietação que acabamos de descrever na relação ad/sala de aula.

Portanto, o caminho teórico passava pela Análise de Discurso, “atravessada” pela psicanálise. Urgia conhecer Lacan (tarefa que pensava possível na época) e ver , pelo menos, o que ele falava deste real da língua.

Foi assim que cheguei ao doutorado em porto ale-gre, impulsionada por tais questões e pela leitura do texto de Marlene Teixeira (1997). Lá, tive a honra e a alegria de

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conviver durante quatro anos com um grupo de linguis-tas e psicanalistas5 que trabalhavam sob orientação da professora Leci Borges Barbisan. As influências do grupo na minha vida acadêmica foram incontáveis. nossas reu-niões de pesquisa eram um verdadeiro exercício de cons-trução de saber. Um saber que nunca estava pronto, podia sermpre ser criticado, renovado, por isso mesmo constru-ído. Todos, sem excessão, me ajudaram na construção de questões que aparecem, agora, neste livro. Entretanto, gostaria de destacar a presença marcante de dois dos co-legas: Francisco Settineri e Valdir Flores. Francisco é psi-canalista (de orientação lacaniana) e entrou no doutorado em letras no mesmo ano que eu. nossa orientadora pediu que estudássemos juntos na certeza de que um ajudaria ao outro. Para minha surpresa, é ai que começa o meu “retorno” a Saussure, marcado por uma paixão ao mestre que , desde então, cresce a cada dia.

a primeira proposta de estudo de Francisco foi a lei-tura do Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saus-sure6. Na época, como disse anteriormente, eu já era pro-fessora de linguística da uFpb há sete anos. durante este tempo, ensinava o CLG e Saussure como um marco his-tórico a ser ultrapassado. Ou seja, como muitos linguistas ainda hoje o fazem, via em Saussure e nos seus estudos a importância de ter colocado a linguística no patamar de ciência, mas, mais que isto, uma série de exclusões (do 5 Marlene Teixeira, Valdir Flores, Margareth Schaffer, Francisco settineri.6 doravante apenas clg.

sujeito, do sentido..) que fizeram da língua um sistema fechado e completamente abstrato. Portanto, a propos-ta de Francisco pareceu-me no mínimo ingênua, princi-palmente para ser cumprida em um doutorado. Mas, por uma sorte do destino, resolvi fazer o que ele queria por uma simples razão: eu estudaria com ele o que quer que ele quisesse, da linguística, contanto que ele me ajudasse com a psicanálise lacaniana. Um pacto simples, silencio-so, e que mudaria o rumo dos meus estudos.

nós não lemos apenas7 o clg. parelelamente à sua leitura, veio a descoberta de estudos que envolviam os manuscritos de Saussure e de alunos que fizeram os cur-sos de linguística geral, ministrados por ele em Genebra, além de vários estudiosos que trabalham em torno da produção que envolve a obra de Saussure. Assim, de uma forma que hoje entendo com muita clareza, foi através da psicanálise lacaniana (ou de um psicanalista de orienta-ção lacaniana) que eu tive a oportunidade de (re)ler saus-sure e seus estudos como algo que não está acabado. Surpreendia-me a cada leitura feita, como se descobrisse um novo Saussure, dialeticamente revestido por um velho e conhecido saussure.

tudo me levava a gostar cada vez mais da perso-nalidade, dos estudos, do verdadeiro enigma que sempre restará colocado em torno dos estudos do mestre saus-sure. É permanece assim até hoje, pois penso que ainda é a psicanálise lacaniana que me autoriza a continuar meus

7 e hoje eu sei que isto não seria pouco.

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estudos sobre Saussure, através da linha de pesquisa que consegui construir, junto com a minha colega Margari-da Assad, no Programa de Pós-graduação em Letras da uFpb: sujeito, linguagem e psicanálise.

uma outra contribuição direta para este livro foi a de Valdir Flores. Nas nossas discussões, no grupo de pe-quisa ao qual fiz referência mais acima, Valdir me ajudou a pensar sobre muitas coisas, questionando, sempre, mi-nhas certezas. Com ele no grupo, nunca foi fácil defender uma hipótese, por mais simples que ela me parecesse. Isto fortaceleu minhas pesquisas, pois instigou-me sem-pre a procurar um fundamento sólido para um leitor-ou-vinte dos mais exigentes. Além disso, ou como se isto não bastasse, ele fez parte da minha banca de defesa de tese, fazendo, como não poderia deixar de ser em se trantando dele, uma leitura criteriosa e questionadora e sugerindo que eu publicasse o capítulo sobre saussure. depois de um longo tempo e de muita análise (eu no divã), aqui está o capítulo, com alguns acréscimos, transformado em lirvo, publicado.

Falar de Ferdinand de Saussure e sua obra, hoje, é, pois, falar de um mestre, de um saber inacabado, de certezas que são colocadas à prova depois da publicação de manuscritos seus e de alunos dos seus cursos.

Tudo nele, desde sua vida, nascimento, parece es-tar relacionado à linguística, aos estudos empreendidos, como se sua vida se limitasse a ser o linguísta genebrino. talvez por isso os limites do dizer pareçam-me sempre

tão difíceis de serem estabelecidos quando se trata destes estudos.

não há outro objetivo neste livro senão um: o de-sejo de colaborar com aqueles que tentam mostrar que o pensamento de Saussure não está encerrado, não ter-minou, mas surge, a cada dia, a cada leitura, ao mesmo tempo como um enigma a ser desvendado e como algo muito simples, mas cuja importância a linguística ainda está longe de perceber. Mostrar outro (ou será o mesmo?) Saussure, percorrendo um caminho já iniciado por outros estudiosos, mas ainda, no que diz respeito aos estudos feitos no Brasil, caminho a ser desvendado, parece-me urgente no sentido de apontar novas discussões no seio da própria linguística e de outros saberes que, como a psicanálise lacaniana, trabalham postulados de Saussure.

Portanto, é preciso deixar claro que este livro é ape-nas um dentre outros possíveis caminhos a serem percor-ridos no vasto arcenal de leituras permitidas pelos escri-tos de saussure.

Comecemos, pois, por um pouco da vida e da bio-grafia de Saussure para, depois, apresentarmos uma dis-cussão sobre alguns dos conceitos que consideramos fun-damentais nos seus estudos sobre a linguística geral ou, mais especificamente, sobre a idéia de língua enquanto sistema de signos.

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das ORiGens de Um mestRe: Os CaminHOs de saUssURe e da sUa LinGUÍstiCa8

Ferdinand de Saussure nasceu em Genebra, na Su-íça, em 26 de novembro de 1857, em uma família muito conhecida e antiga na cidade.

o jovem saussure viveu em um meio familiar no qual a cultura intelectual era uma tradição. seus primei-ros estudos foram influenciados por seu tio Adolphe Pictet, estudioso da paleontologia linguística. Ele estudou grego, latim, alemão, inglês e francês. Apaixonou-se logo cedo pelos estudos das línguas e, em 1872, aos quinze anos, terminou um estudo sobre o sistema geral da linguagem, cujo título era: ensaio sobre as línguas.

ele enviou este estudo sobre as línguas para seu tio Pictet que lhe respondeu amavelmente, convidando-o a perseverar em seus estudos sobre a língua, mas, ao mes-mo tempo, desestimulando-o a tratar de qualquer sistema universal de linguagem. Ora, como era exatamente este o objetivo de Saussure, já que estava certo de que qualquer estudo sobre língua deveria estar pautado em um sistema universal de linguagem, ele sentiu-se extremamente de-sestimulado em seus intentos, notadamente porque este tio era como um mentor intelectual para ele.

Em Pictet, ele encontra um modelo de vida intelec-tual que fará parte da sua personalidade como estudioso. Podemos ver isto em um testemunho seu sobre Pictet, através das características que ele descreve no seu tio e que podem, hoje, ser compreendidas como também suas, próprias de sua personalidade como pesquisador. Veja-mos, pois, o testemunho de Saussure sobre seu tio, trazi-do por Tullio de Mauro (1995, p.323)8:

Em meio a trabalhos tão diversos, dos quais enumeramos ape-nas os mais consideráveis, parece que se deve desistir de pro-curar o fio secreto, a idéia comum que reúne todos os produ-tos de um mesmo pensamento. E, entretanto, se as olharmos de perto, reconheceremos sem dificuldades que todas as obras de pictet nascem no abrigo de um mesmo pensamento. Havia nele desde sempre uma curiosidade insaciável, o amor pelas explorações novas e antigas, nos limites extremos do saber humano. Pictet deteve-se diante de todos os mistérios e me-ditou sobre todos os enigmas... parece que os fatos comuns eram apenas uma base para conhecer os incomuns, os termos de uma equação que é preciso expor e, se possível, resolver... Está sempre lá, nos confins da imaginação e da ciência onde o seu pensamento amava mover-se.

Assim também foi com Saussure. Sabemos que ele empreendeu diferentes estudos como aqueles sobre as lendas germânicas, sobre os anagramas e sobre linguísti-ca geral; que embora bem diferentes parecem apresentar um elo comum. Como tudo na obra de Saussure, vale

8 Todos os trechos desta obra de Tullio de Mauro, que aparece-rão neste livro, foram traduzidos por mim.

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destacar que o elo entre os seus estudos também traz uma polêmica interessante. um pouco deste debate pode ser visto no texto: “Dois Saussures?”, de Pêcheux e Gadet (2004). Saussure também, como descreveu na persona-lidade do seu tio, amava estudar os “fatos comuns”, mas apenas como base para conhecer os incomuns. adorava mover-se “nos confins da imaginação e da ciência”. Este é um lado da sua personalidade, enquanto estudioso, que compreendo ser preciso “resgatar” urgentemente para que se passe a ver nele muito mais do que um estudio-so ingênuo e simples, que encerrou a linguística em uma “camisa de forças” que é a língua.

Também como relato da sua personalidade, é inte-ressante ver uma descrição de Saussure, feita por seus pais (apud De Mauro, 1995, p. 323), em 1872, quando eles, não o achando maduro para o ginásio, fizeram-no repetir o colegial.

Todo problema o fascinava; ele voltava a ele, aprofundava-o, não o deixava sem que tivesse formulado, para ele e para seus ami-gos, uma solução que ele anunciava com um rigor de expressão surpreendente para o adolescente que ele era na época. Depois disto, ele afirmava que a verdade poderia estar em outro lugar, quem sabe no sentido contrário ao que foi investigado.

Aos 18 anos, Saussure entra para os cursos de fí-sica e química da universidade de genebra, para cumprir tradição familiar, embora ao mesmo tempo frequente os cursos de filosofia e história da arte, além de continuar se

interessando por linguística.Em 1876, aos 19 anos, Saussure vai para Leipzig

estudar linguística, onde ficará por quatro anos (outono de 1876 até o primeiro semestre de 1880). Durante esse período, é a linguística histórico-comparada que lhe cha-ma a atenção, com ênfase nos estudos de Franz Bopp.

Em Leipzig, ele escuta de um professor a confirma-ção de uma hipótese sua, levantada ainda no colegial, sobre uma nasalis sonans original. essa descoberta causa nele efeitos opostos: decepção por ter perdido o benefício da descoberta e, ao mesmo tempo, nova confiança em sua própria capacidade.

Em dezembro de 1878, aparece em Leipzig o seu “Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européenes”.

Claudine Normand (2000) destaca que a obra, em-bora não tenha sido bem recebida, na época, na Alema-nha9, foi considerada um trabalho inovador e decisivo em termos de gramática comparada. Foi, inclusive, este tra-balho que fez a notoriedade de saussure entre seus con-temporâneos.

Tullio de Mauro (1995, p. 327) mostra-nos que o preâmbulo do Mémoire de saussure revela traços que permanecerão típicos do comportamento científico do mestre. eu ressalto um trecho que mostra sua preocupa-ção com o sistema, especialmente porque veremos mais

9 Berço dos estudos comparados, ou seja, dos estudos linguíti-cos em destaque no período em questão.

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adiante que o sistema é algo nuclear nos estudos saussu-rianos. Vejamos o trecho:

(...) Mas se, ao completar o campo assim circuns-crito, o quadro do vocalismo indo-europeu modifica-se pouco a pouco sob os nossos olhos e que nós o vere-mos agrupar-se completamente em torno do a, tomando diante dele uma nova atitude, está claro que, de fato, é o sistema das vogais no seu conjunto que entrará no foco da nossa observação, cujo nome deve ser inscrito na primeira página.

Conforme vimos com Claudine Normand (op. cit.), a crítica ao Mémoire foi positiva entre alguns, mas negativa entre os neogramáticos da época que, entretanto, pega-vam, sem citar, uma ou outra parte do trabalho e o utili-zavam. isso faz tullio de Mauro (op. cit. p.329) crer que

estas apropriações, entretanto, justamente porque são par-ciais, mostram melhor do que qualquer outra coisa como a substância da teoria e da posição de saussure permaneceram incompreendidas para os representantes oficiais da linguística da época.

o Mémoire marcou substancialmente a formação de Saussure, pois o colocou como aquele que trabalha com os dados elementares, transformando-o em um “homem dos fundamentos”, como o chamou Emile Benveniste, linguísta francês. Além disso, a obra também o colocou diante dos problemas de reconstrução de um sistema lin-

guístico não substancial, com uma realização falada não conhecida, que o levou a considerar as unidades linguísti-cas como puras entidades opositivas e relacionais, na sua vida sistêmica, e não como unidades isoladas.

Em fevereiro de 1880, aos 23 anos, Saussure de-fende sua tese sobre o emprego do genitivo absoluto no sânscrito. Houve quem achasse que esta obra fosse sem importância particular do ponto de vista conceitual ou metodológico, entretanto, Tullio de Mauro (1995) susten-ta que essa opinião é questionável. Dois argumentos são utilizados pelo autor na defesa da sua tese.

Primeiro, a escolha de Saussure, neste trabalho, pelo domínio da sintaxe, na sua compreensão, merece ser valorizada, já que ela foi negligenciada pelos compara-tistas e pelos neogramáticos e, mais tarde, por uma boa parte da linguística estrutural norte-americana.

Em segundo lugar, a literatura anterior consagrou ao genitivo absoluto notas fugidias, em uma perspecti-va comparatista, Saussure, entretanto, se propôs a de-terminar o valor da construção, reinserindo-a em um estado de língua preciso e destacando o seu caráter dis-tintivo. Ou melhor, “na atmosfera forçosamente mate-rializada da reconstrução hindo-europeia (...), Saussure fez valer seu ponto de vista novo segundo o qual o va-lor de uma entidade linguística é relacional e opositivo” (Mauro, op. cit. p.331).

No outono de 1880, Saussure se estabelece em Pa-ris. Frequenta os cursos de Michel Bréal e, a partir de fe-

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vereiro de 1881, a École des Hautes Études onde assiste aos cursos de iraniano, de sânscrito e às aulas de filologia latina de louis Havet.

Saussure afirmou-se muito rapidamente em Paris. Em 30 de outubro de 1881, Bréal cede seu curso, na Éco-le, a Saussure e ele é nomeado Mestre de Conferências em gótico e velho alto alemão. os cursos começam em 5 de novembro do mesmo ano e versam sobre o gótico, o velho-alto alemão (de 1881- 1887), a gramática compa-rada do grego e do latim (1887-1888) e sobre o lituano (depois de 1888).

A cada ano, Saussure redigia um breve relato sobre suas aulas. Neles, pode-se observar, desde os cursos de 1881, a presença da dualidade entre um ponto de vista fisiológico e um ponto de vista histórico.

Benveniste destaca (apud Mauro, 1995, p. 337) a descrição sincrônica abordada por saussure nestas aulas como supondo “uma definição diferencial dos estados de língua ou dos dialetos; implica, consequentemente, que as particularidades de uma língua estão em relação umas com as outras e não devem ser consideradas isoladamente”.

Em Paris, Saussure participa das reuniões da Socie-dade de Linguística, a partir de 4 de dezembro de 1880, assumindo cargos administrativos e fazendo comunica-ções. Nestas reuniões da Sociedade, com Bréal, Bergaig-ne e os membros estrangeiros, forma-se, na opinião de Tullio de Mauro (op. cit.), o estilo da escola saussuriana.

os dez anos parisienses são relativamente fecundos

em notas e memórias. Estas notas, mais do que mostram os seus títulos, são dominadas pelas frequentes alusões e comparações germânicas e bálticas.

apesar de saussure ter dito que estava preocupado desde muito tempo sobre a classificação lógica dos fatos de linguagem, Godel (1969) afirma que foi realmente depois que ele se fixou em Paris e depois da publicação de sua tese, portanto no outono de 1880, que ele começou a criticar ra-dicalmente as concepções admitidas até então em linguís-tica e começou a pesquisar sobre os princípios de uma ver-dadeira ciência da linguagem. Embora, como afirma Godel, tudo isto não passe de conjecturas. Afinal, não se sabe nada sobre o desenvolvimento das idéias de Saussure antes de 1891, data das notas manuscritas mais antigas.

Entretanto, Tullio de Mauro (1995) discorda de Go-del, pois acredita que a Mémoire, a tese de doutorado e os testemunhos sobre a viagem de saussure a lituânia mos-tram que este interesse é muito mais antigo. Argumenta, ainda, a favor desta tese, sobre o interesse de Saussure por Whitney ter acontecido antes dele ter ido para Paris.

Em 1891, onze anos depois, por razões que não es-tão claras, Saussure decide deixar Paris. Depoimentos fa-lam de “razões patrióticas”. nas palavras de Favre (apud Mauro, op. cit., p.342): “Ele deveria, para suceder a Mi-chel Bréal no Collège de France, fazer-se francês [aceitar a cidadania francesa10], entretanto esse estudioso perma-neceu muito genebrino e muito patriota”.

10 Acréscimo meu.

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O fato é que ele volta para Genebra e passa a lecio-nar uma disciplina sobre linguística geral, especialmente criada para ele e, assim, Paris perde a realização de algo que marcará os estudos linguísticos até os nossos dias, pois o CLG foi escrito, como sabemos, em sua grande maioria, com base nos manuscritos de alunos de Saus-sure que contêm anotações destas aulas de linguísticas geral, realizadas em Genebra.

os cursos de saussure em genebra começam no início do semestre de inverno de 1891. ele ensina a fono-logia do francês moderno, versificação francesa, língua e literatura alemã. É apenas a partir de 1907 que ele passa a dar aulas de linguística geral. Todos os anos, durante 21 anos, Saussure lecionou um curso de sânscrito. Preparava cuidadosamente os exercícios para os alunos e os corrigia. sobre os cuidados que ele tinha com os seus ensinamen-tos em Genebra, Tullio de Mauro (1995, p. 344) diz:

os raros manuscritos conservados (saussure geral-mente rasgava as notas preparadas para os seus cursos) mostram o cuidado minucioso que ele tinha com seus en-sinamentos em genebra apesar da diferença inicial ser evidente entre seus ouvintes de paris e os de genebra.

Após 1894, a produção de Saussure fica cada vez mais escassa. Meillet (apud Mauro, op. cit., p. 346) apre-senta duas razões para tal escassez: uma espécie de per-feccionismo e o interesse por temas novos, em parte es-tranhos à linguística, como as lendas germânicas. Quanto

à primeira razão apresentada por Meillet, Tullio de Mauro (op. cit., p. 351), dá outra versão, dizendo:

Saussure, esmagado pela consciência da “imensidade do tra-balho” à fazer para instaurar eficazmente a nova linguística, pareceu a seu discípulo parisiense um homem atormentado por complexos hipercríticos. Na realidade, consciente da ex-cepcional dificuldade da tarefa, para a qual ele se preparou em 1894, ele prefere projeta-la em um longínquo porvir e consi-dera-la como tarefa coletiva.

Quanto à segunda razão, apresentada por Meillet para a escassa produção de Saussure após 1894, é inte-ressante, mais uma vez, trazer o argumento de Tullio de Mauro que destaca que Meillet, diante do interesse inten-so de Saussure pelas lendas, entendeu que tal interesse contrastaria com a imagem tradicional de Saussure, ou seja, daquele que separa a linguística interna da exter-na e que apresenta a necessidade de estudar a língua nela mesma e por ela mesma. Entretanto, Tullio de Mauro mostra que desde 1894, ou seja, bem antes das aulas de linguística geral, Saussure já dissera, em carta ao próprio Meillet (apud Mauro, 1995, p.347) o que realmente lhe interessava em uma língua, ou seja: “Em última análise, é apenas o lado pitoresco de uma língua, aquilo que faz com que ela seja diferente de todas as outras como perten-cendo a um certo povo e tendo certas origens, é este lado quase etnográfico, que conserva para mim um interesse”.

ainda um comentário precisa ser feito sobre saus-

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sure ser visto como aquele que separa as condições ex-ternas e as internas da linguística. A respeito disto, é inte-ressante ler o depoimento de um aluno (de genebra) dele sobre o clg:

O ponto fraco da obra, no geral excelente, publicada por MM. Bally e Sechehaye, é deixar crer que Ferdinand de Saussu-re separou as mudanças linguísticas das condições exteriores de que elas dependem... Mas, o autor do presente prefácio ouviu, mais de uma vez, F.d.S. explicar, através das condi-ções exteriores, não apenas as mudanças linguísticas, mas a conservação de certos traços. Foi assim quando ele atribuiu o prodigioso arcadismo do lituano a longa persistência do paga-nismo nas regiões em que se falava o lituano (apud MAURO, op.cit., p.347).

Como já dissemos, os cursos de linguística geral, ministrados por Saussure em Genebra, foram muito im-portantes para a história da linguística, de uma forma ge-ral, pois foi através das anotações dos alunos sobre os cursos que o CLG pôde ser publicado e influenciar gera-ções de linguistas até os nossos dias. Portanto, voltemos aos cursos.

Foram três os cursos ministrados. o primeiro acon-teceu de 16 de janeiro de 1907 a 02 de julho de 1907. O segundo, da 1a semana de novembro de 1908 a 24 de junho de 1909. o terceiro e último curso foi realizado de 29 de outubro de 1010 a 4 de julho de 1911.

Sobre os conteúdos dos cursos, Tullio de Mauro (1995) nos traz a seguinte descrição: 1o Curso: fonolo-

gia, linguística evolutiva, mudanças fonéticas e analógi-cas, relação entre unidades percebidas pelo locutor em sincronia e raízes, sufixos e outras unidades isoladas da gramática histórica, da etimologia popular, dos problemas da reconstrução. 2o Curso: saussure persegue com rigor e decisão o problema da relação entre teoria dos signos e teoria da língua e dá definições de sistema, unidade, iden-tidade e valor linguístico. Sobre esse curso, em conversa com Ridlinger (apud MAURO, op. cit., p.354), Saussure diz da sua insatisfação pelo caráter não definitivo de suas idéias e que o curso deste ano é uma “preparação para um curso filosófico sobre a linguística”. 3o Curso: inte-gra à ordem dedutiva do segundo a riqueza analítica do primeiro curso. desenvolve no início do curso o tema “as línguas”, ou seja, a linguística externa. Esse tema é um velho postulado de saussure. tullio de Mauro mostra (op cit., p.354) que já em 1891, nas três lições de abertura aos cursos genebrinos, ele apontava para a importância do estudo das línguas. Portanto, no terceiro curso, as ca-racterísticas gerais da língua são retiradas do estudo das línguas, entretanto o estudo da faculdade da linguagem nos indivíduos é apenas esboçado.

o período em que saussure dedicará atenção mais intensa à elaboração de uma teoria geral sobre a língua é entre 1890 e 1900. Entretanto, para a linguística, o ensi-namento de saussure não chega tão fácil. segundo depoi-mento de Tullio de Mauro (1995, p. 357):

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Foi necessário meio século à linguística para compreender re-almente o que significava a arbitrariedade do signo, a noção de valor, para redescobrir a noção de economia e o caráter discreto das entidades linguísticas sobre o plano do conteúdo e da expressão, para recolocar o problema dos universais lin-guísticos e a definição explícita das exigências de uma teoria

da descrição linguística.

Talvez seja por isso também que Saussure é cha-mado por edward lopes (1997) de contemporâneo do fu-turo, pois só depois de muito tempo (futuro) da primeira publicação do CLG, estudiosos começaram a pensar (con-temporaneamente) os seus conceitos, apreendendo-os a partir de uma lógica dialética que fazia parte da atitude científica de Saussure e cuja origem Tullio de Mauro (op. cit., p. 359) tenta explicar de uma forma simples:

a necessidade de evitar as fórmulas solenes, de compreender profunda e cuidadosamente as coisas e de fazer com que fos-sem compreendidas. Essa é a origem de sua atitude dialética e problemática que surpreendia seus contemporâneos.

Hábito e necessidade que fazem dos estudos de Saussure algo ao mesmo tempo simples e profundo, ques-tionador por excelência.

No verão de 1912, Saussure é obrigado, por estar doente, a suspender seus ensinamentos. Ele morre em 22 de fevereiro de 1913.

Os estUdOs de saUssURe : pOR Onde COmeÇaR?

A dificuldade pela qual passa qualquer leitor de

saussure que tente empreender um relatório da sua lei-tura é, em primeiro lugar, por onde começar. A pergunta está colocada para todos, implícita ou explicitamente, é o que admite Michel Arrivé (1999). Aliás, tal questiona-mento já estava presente para o próprio Saussure, quan-do tentava apresentar, sob forma de obra, suas reflexões linguísticas. Segundo ele (apud ARRIVÉ, op. cit., p. 33):

seria necessário, para apresentar convenientemente o conjun-to das nossas proposições, adotar um ponto de partida fixo e definido. Mas tudo o que tendemos a estabelecer é que é falso admitir em linguística um único fato como definido em si.

Questão fundamental, portanto, é perceber que “por onde começar” (assim como “como terminar”?) sempre foi um problema para saussure principalmente por causa de um ponto de vista presente nas diferentes pesquisas que empreendeu - seja sobre as lendas germânicas, sobre os anagramas ou os estudos para os seus cursos de lin-guística geral-, e que pode ser visto na citação acima, isto é, os fatos estudados não existem em si, mas, conforme

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veremos melhor depois, a partir do momento em que en-tram em relação com outros fatos.

Inevitavelmente, parece-nos que um ponto de par-tida já está anunciado na própria necessidade de mostrar os fatos em relação uns com os outros. E este é um ponto sobre o qual estão de acordo os estudiosos de saussure. Claudine Normand (2000), por exemplo, ao apresentar as noções que considera fundamentais no CLG, diz que não seguirá a ordem segundo a qual elas aparecem no livro, pois considera que os elementos importantes nos estudos saussurianos apesar de se sustentarem, se implicarem, se responderem, apresentam uma ordem que está longe de ser linear. Portanto, embora não se tenha uma ordem linear, um começo óbvio para apresentar as noções saus-surianas, sabemos que elas estão inevitavelmente rela-cionadas e é assim que devem aparecer.

podemos ainda dizer que o fato de não se ter um começo claro, uma origem evidente para os fatos da lin-guística, longe de constituir-se em um problema parece mesmo ser o que podemos chamar de grande avanço na forma como esta ciência é vista e isto é possível exata-mente desde 1957, quando Godel colocou à disposição dos leitores manuscritos de Saussure e de seus alunos, até então desconhecidos.

A partir deste ato, o que era considerado como pon-to de partida e ponto final de um pensamento, o CLG, mudou de estatuto e passou a ser visto como uma inter-pretação possível, entre outras. Salvo evidentemente o

caráter histórico que tem esta obra e que não pode ser comparado a nenhum outro trabalho que pretenda discu-tir as idéias do mestre.

Além disso, falar sobre os estudos de Ferdinand de Saussure é falar de uma variedade fenomenal de discus-sões, de reflexões. Variedade que parece ter sempre como suporte uma idéia de língua ou de linguagem. No que se refere ao desenvolvimento deste livro, tentarei limitar mi-nhas reflexões acerca de algo que parecia fundamental nos seus estudos sobre linguística, ou seja, a questão do sistema. Mais especificamente, a ênfase no caráter sistê-mico das entidades linguísticas (que se apresenta preco-cemente para Saussure, desde a descoberta das nasalis sonans), como já vimos anteriormente.

este pode ser o ponto culminante de sua meditação teórica. Para Tullio de Mauro, esta ênfase parece ser par-te da própria personalidade de Saussure, pois foi sempre parte dos seus estudos. Segundo ele, (1995, p.359): “po-demos nos questionar se a idéia de sistema não é uma espécie de enteléquia da vida intelectual de Saussure, um princípio final, ponto culminante de sua meditação teórica ligado às origens de sua personalidade”.

Sechehaye (apud Mauro, 1969, p. 361) nos traz um interessante testemunho da ênfase que saussure deu às relações que os signos estabelecem entre si dentro do sistema:

Em mais de uma ocasião, ele quis nos iniciar na sua forma de pensar. Ele abordava, nas conversas familiares essas ques-

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tões de método, esses problemas teóricos que ele tratou mais tarde... nos cursos de linguística geral... Aconteceu também dele desenvolver diante de nós esta idéia, que o preocupou com frequência e que ele a colocou como o carro-chefe de seu pensamento em matéria de organização e funcionamento das línguas, a saber que o que importa não são os signos em si, mas as diferenças entre os signos que constituem um jogo de valores opositivos.

Portanto, a interpretação que será apresentada nes-te livro da obra de saussure parte de uma hipótese funda-mental: a de que a discussão nuclear feita por saussure é a que desenvolve a idéia de como funciona uma língua, ou seja, de como os signos se relacionam em um siste-ma. É assim que entendo que os conceitos saussurianos de língua, fala, linguagem, signo, arbitrariedade, dentre outros, só têm razão de ser se tomados na perspectiva do sistema, como conceitos que foram desenvolvidos para dar base a um outro conceito mais geral, mais amplo, o de sistema de signos. conceito base da sua linguística Geral e que pode ser resumido em uma frase: a lígua é um sistema de signos.

Partir do sistema é seguir o conselho do próprio saussure que podemos encontrar claramente nas últimas aulas do seu terceiro curso de linguística geral, conforme anotações de Constantin ( Komatsu e Harris, 1993).

saussure diz que as palavras não existem solita-riamente, mas apenas quando chamadas a participar de uma relação, ou seja, dentro de um sistema. É então que

passa a desenvolver melhor sua idéia de sistema, falando sobre os valores que são gerados a partir de duas rela-ções: sintagmáticas e paradigmáticas. Ora, como as pala-vras não existem por si, como fatos positivos, a primeira questão que está colocada para ele é que se deve partir do sistema para chegar aos termos.

Tullio de Mauro (1995, p. 359) chega a dizer que a noção de sistema talvez deva ser considerada como “um princípio final, ponto culminante de sua meditação teóri-ca”, ligado às origens da sua postura como pesquisador.

noção que não nasce pronta da cabeça de saus-sure, como afirma Engler (apud MAURO, op. cit.), mas é construída a partir de aquisições sucessivas, algumas muito precoces, já que a idéia sempre pareceu estar pre-sente para Saussure desde, por exemplo, a época de seu Mémoire.

Foi, portanto, ponto a ponto, que o sistema saussu-riano (que permanece, entretanto, uma organização final de Saussure) foi se formando, através das noções que estão colocadas, por exemplo, no CLG.

Ocorre que, segundo Tullio de Mauro (1995), esta compreensão não se deu aos ouvintes dos cursos de lin-guística geral, ministrados por Saussure, pois ele estava pelo menos um século à frente do seu tempo. Por isto mesmo, foi preciso esperar, além do CLG, o aparecimento das fontes manuscritas, para que, a partir de então, em uma outra época, o pensamento de Saussure pudesse ser visto na sua atitude dialética, sempre apresentando as

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noções não como definitivas, mas como marcas de um pensamento em constante construção. era esta a carac-terística de Saussure que, na opinião de muitos, surpre-endeu seus contemporâneos.

Portanto, se o pensamento de Saussure não foi sis-temático o bastante no sentido de precisar começos e fins para publicação de suas pesquisas, ele o foi na medida em que qualquer das suas pesquisas apresentava um mo-vimento em comum, isto é, havia sempre a preocupação com o estudo de um objeto que longe de ser simples, angustiava saussure porque completamente diferente de qualquer outro, já que apesar da aparência de homoge-neidade, estava sempre em processo de mudança, fru-to de uma de suas características principais: a de existir para circular, para ser transmitido.

Este objeto foi chamado de língua, nas aulas de lin-guística geral e nos manuscritos saussurianos sobre lin-guística geral. Foi chamado de símbolo no estudo sobre as lendas germânicas, mas o ponto de vista parece ter sido o mesmo, como já dissemos, a perspectiva segundo a qual ele está longe de ter uma origem, tem sua vida de-terminada pelo sistema e está condenado a mudar, pois, entregue ao destino de ser transmitido.

Mas, antes de partirmos do sistema, há algumas considerações sobre o CLG e as idéias de Saussure que precisam ser feitas.

dO CLG aOs manUsCRitOs: aLGUmas COnsideRaÇÕes

O CLG é uma obra no mínimo polêmica, tendo em vista, principalmente, o fato de não ter sido publicada por aquele cujas idéias diz-se estarem neste livro, mas por dois de seus alunos, Bally e Sechehaye.

O livro é escrito a partir de duas fontes: notas dos três cursos sobre linguística geral, ministrados por Saus-sure em Genebra, durante os anos de 1906 e 1911, e no-tas autográficas de Saussure.

A primeira publicação do CLG data de 1916, três anos após a morte do mestre, e teve uma aceitação bas-tante significativa, pelo menos na França. Obviamente, um tal empreendimento não poderia deixar de apresentar dificuldades. Entretanto, antes de apontá-las, é preciso reconhecer que a obra traz, sem sombra de dúvidas, no-ções e reflexões sobre as quais Saussure se deteve duran-te vários anos de sua vida.

Godel chega a dizer (apud FEHR, 2000, p. 28, nota 1) que se os editores não tivessem feito como fizeram, teriam de ter renunciado à idéia do CLG.

É preciso destacar a importância histórica, fun-damental do CLG, pois, sem dúvida, foi ele que deu a

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saussure o reconhecimento como fundador da ciência lin-guística moderna e, mais que isto, influenciou toda uma geração que viu nas suas noções a base para o movimen-to estruturalista.

A importância do CLG é tal que, conforme destaca Tullio de Mauro (1995), a partir de 1930 há poucos traba-lhos em linguística que não comecem por uma referência ao CLG. Obviamente, esta referência é diferente nos dife-rentes países. Destacaremos, para exemplificar, França e estados unidos.

A França é o país no qual a influência de Saussure foi a mais reconhecida. Entretanto, isto não quer dizer, conforme sublinha Tullio de Mauro (1995), que houve ali uma plena compreensão das posições teóricas de saus-sure. Mounin (MAURO, op. cit.), por exemplo, cita Meillet para dizer que ele jamais compreendeu a fundo a noção saussuriana de sistema, o mesmo acontecendo aos seus outros discípulos.

Nos Estados Unidos, a aceitação de Saussure, atra-vés do CLG, não foi das mais significativas. Ele chegou a ser considerado, por exemplo, por Ogden e Richards (MAU-RO, op. cit.) como um ingênuo, inutilmente complicado, incapaz de descrever o funcionamento da linguagem.

Foi o surgimento das fontes manuscritas que deu outra vida às discussões sobre as noções saussurianas e sua linguística. O CLG passa, como dissemos, de obra única para uma entre outras interpretações, salvo seu va-lor histórico inestimável, muito bem descrito por Claudine

Normand (2000), que especifica o sentido de histórico que deve ser dado ao CLG, ou seja, deve-se tratá-lo, assim como Descartes, Spinoza ou Freud, como uma obra que não cessa de ser lida porque ao mesmo tempo em que fala do seu tempo, supera-o. Objeto que suscita paixão ou, pelo menos, interesse suficiente para que se trabalhe intensamente na esperança de conhecê-lo por completo, mesmo sem que realmente se tenha a certeza de conse-guir tal intento.

a importância do clg foi reconhecida inclusive por Godel, após o estudo dos manuscritos. Segundo ele (apud FEHR, op. cit., p. 19)11:

suas razões são de uma pertinência incontestável e um estudo prolongado dos cadernos de alunos e das notas pessoais convenceram-me de que, na época, a decisão tomada pelos editores do Curso, não sem hesitações e escrúpulos, com toda a sua dificuldade, foi a mais sábia possível.

Tullio de Mauro (1969), por sua vez, acredita que saussure e suas intenções permanecem um enigma e que o clg não foi publicado para responder às interroga-ções que ficaram com a sua morte. Entretanto, ressalta que, se ainda hoje se propusesse a tarefa de condensar em uma única obra as fontes manuscritas, dificilmente o faria melhor que os editores do Curso. É também ele quem ressalta que um pouco do “enigma” deixado por

11 as traduções são minhas.

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Saussure começa a ser desvendado com a publicação, feita por Godel, de notas de alunos, relativas aos cur-sos de linguística geral ministrados por Saussure, de manuscritos saussurianos inéditos e de outras fontes manuscritas, além da análise feita por Godel das fontes manuscritas do clg.

O fato de os alunos tentarem publicar as idéias do mestre trouxe problemas de uma certa forma óbvios, le-vando-se em conta as circunstâncias da publicação. era preciso, antes de tudo, dar uma sequência lógica às re-flexões expostas nos três cursos de linguística geral. Os editores, como talvez qualquer outro que tivesse o mes-mo objetivo, formaram, então, o livro, colocando os as-suntos na ordem que achavam seria a mais clara. não foi seguida, por exemplo, a ordem dos cursos, talvez porque os editores julgaram não expressar, esta ordem, a clare-za e o fechamento que queriam dar às idéias do mestre. Além disso, acrescentaram comentários e esclarecimen-tos seus, aos pontos que consideravam obscuros.

É por isto que podemos dizer que o CLG, obra indis-pensável para a linguística, apesar de todas as vantagens, carrega pelo menos uma falha perversa, mas, talvez, con-traditoriamente, indispensável à construção de qualquer obra: apresenta um pensamento que estava em anda-mento como obra já acabada. nas palavras de tullio de Mauro (1969, p.118),

em uma versão única, que se pretende privada de lacunas, de incoerências, é inevitável que um pensamento, vivo e em mo-

vimento, que se sabia ainda incompleto e que estava aberto a novas soluções, fosse forçado, endurecido, mumificado.

É com o aparecimento das fontes manuscritas e seus estudos que podemos perceber este movimento sempre constante de dúvida em saussure. É que o apa-recimento dos textos manuscritos faz com que possamos ter um contraponto entre obra (CLG) e textos inacabados, entre autor e homem. Segundo R. L. Wagner (apud FEHR, 2000, p. 41):

Um livro revela um autor e o autor sempre procura, mais ou menos, construir uma boa imagem de si. Um “rascunho”, as notas permitem entrever um homem, o que, no caso presente, é bem melhor. As fontes do Curso contêm o raro preço de colo-car, ao mesmo tempo, luzes sob um pesquisador que pensava por si e sob um professor que – por conta da prudência que era requerida pela qualidade do seu auditório – esquematizou, por três vezes, as formas que se adaptavam o menos imper-feitamente possível aos estados sucessivos de sua doutrina.

Foi bem depois da publicação do clg que surgiram as primeiras dúvidas sobre a homogeneidade das suas teses. o impulso foi dado por um artigo de benveniste sobre o arbi-trário do signo, no qual é discutida uma possível contradição no CLG. Lucidi (apud MAURO, 1995), em artigo publicado em 1950, alerta para o fato de a interpretação de Benvenis-te poder estar fundada em um equívoco, ou melhor, que ele teria tomado a expressão “na realidade” como plenamente significativa e não como o pleonasmo que ela é.

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Havia, então, a necessidade da análise dos ma-nuscritos.

A partir de 1957, Robert Godel começa a publicação de notas de alunos, relativas aos cursos de linguística geral de Saussure, de manuscritos saussurianos inéditos e de outras fontes manuscritas, além de uma análise das fontes manuscritas do clg. a descoberta e análise dos manuscri-tos permite, pois, que se tenha o que o CLG nega aos seus leitores, mesmo os mais atentos, isto é, a compreensão de um pensamento vivo, dialético, ou, ainda, a clareza de que, como afirma Edward Lopes (1997, p. 52), Saussure não nos deixou uma ciência plenamente madura mas,

idéias – quer dizer, clarões de luz, sementes para germinar, (...) um modelo, quer dizer, o esboço de um sistema axiomáti-co que serve de quadro geral para definir um conjunto de pro-cedimentos de análises e de descrição capazes de satisfazer aos axiomas de partida.

Além disso, conforme destaca Amaker (1975), o aparecimento das fontes manuscritas faz com que se compreenda que o ensino saussuriano certamente não terminou sua missão.

As dicotomias saussurianas, segundo LOPES (1997, p. 143), foram lidas como excludentes, como antinomias. Assim, “ficou em moda interpretar a sincronia, digamos, como excluinte da diacronia, a langue como excluinte da parole, e assim por diante (...)”. Assim o fizeram linguistas brilhantes como benveniste e Jakobson. com as análises

dos manuscritos, como já dissemos, ficou fácil observar que as dicotomias saussurianas, antes de serem vistas como unidades que estão separadas, nas quais uma de cada par deve ser parte das preocupações da linguística, enquanto a outra é colocada para fora da ciência da lin-guagem, como parece que podemos ler no CLG, devem ser analisadas dentro de uma lógica dialética na qual, por exemplo, a língua não pode existir senão pela sua con-traparte que é a fala. Segundo o argumento, bastante consistente, de Edward Lopes, as dicotomias deveriam ser lidas segundo uma lógica, presente no próprio CLG, em que é a diferença que faz a identidade, ou melhor, diferen-ça e identidade convivem, juntas, na construção do objeto da linguística.

Além disso, aceitar o CLG como uma referência his-tórica não impede que, sem que se trate de ultrajá-lo, nem muito menos à memória de Saussure, possamos, como defende Godel (apud FEHR, 2000), ver o pensamento de Saussure não mais de forma categórica, mas, até onde for possível, na sua construção, com suas dúvidas e he-sitações que, longe de serem um obstáculo, mostram os pontos mais frágeis e ao mesmo tempo mais importantes para a linguística.

Foi o aparecimento das fontes, portanto, que reve-lando muito mais do homem do que do autor, permitiu que se visse em saussure um pensamento cuja coerência não está na linearidade ou nas certezas, mas muito mais nas hesitações e nas dúvidas.

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Meillet (apud. FEHR, 2000, p. 27), aluno, confiden-te de Saussure e seu sucessor, em seu elogio fúnebre ao mestre, fala sobre as incertezas que caracterizavam o pensamento do mestre:

Aliás, ele parecia não dar jamais ao seu curso o caráter de uma verdade absoluta; preparava cuidadosamente tudo o que tinha a dizer, mas só dava às suas idéias um aspecto definitivo ao falar; e ele deixava em suspenso sua forma no momento em que se exprimia; o auditório ficava perplexo diante desse pensamento em formação, que ainda estava em criação dian-te dele e que, no momento em que se formulava, da maneira mais rigorosa e impressionante, deixava a espera uma fórmula ainda mais precisa e surpreendente.

Claudine Normand vai ainda mais além ao dizer que no clg ou nos manuscritos deve-se sempre esperar uma reconstituição, uma interpretação. Portanto, “Se alguém procura a última palavra de uma teoria e a verdade de um pensamento, é melhor renunciar a Saussure” (Normand, 2000, p.157).

se os manuscritos ajudaram a mostrar outros sentidos para a obra de Saussure, ao mesmo tempo, como vimos acima, a “descoberta” de Saussure não mais como autor, mas como homem ou talvez como um gênio cujas concepções estavam um século, pelo me-nos, à frente do seu tempo, determina outra dificuldade marcante para quem tenta entender mais do que está no clg sobre seus estudos: encontramo-nos diante de um mito, de um “mestre”.

Dificuldade, repito, porque ao deparar-se com um mito, o estudioso pode ter atitudes diversas, entre elas a de considerar que ele deve permanecer como tal e que para que isto aconteça, é preciso sempre acreditar que seu pensamento, como repete a maioria dos seus estudio-sos, deve continuar inacabado. Que o “crime” maior a ser cometido é o que foi feito pelos editores do CLG, ou seja, o de fechar um pensamento sempre em construção, ou, em termos saussurianos, sempre pronto a ser modificado porque, assim como a língua, condenado a ser transmiti-do e, portanto, transformado.

impedimento atroz para quem precisa sistematizar pensamentos, uma exigência acadêmica que, sem som-bra de dúvidas foi encarada pelos editores do clg. Mesmo naquela época, em que os manuscritos ainda não eram públicos e que, portanto, a única pressão seria a exerci-da pelos seus alunos confessadamente (como podemos ver através dos depoimentos citados por Tullio de Mauro) “enfeitiçados” pela genialidade do mestre. entre outras coisas porque sequer conseguiram compreender seu pen-samento. Não é o que nos diz Tullio de Mauro (1995) de um dos alunos mais próximos de saussure: Meillet?

Ora, se Meillet, com quem Saussure se correspon-dia com uma frequência significativa para quem não era muito adepto à entrega das suas produções ao conheci-mento dos outros, confiando, inclusive seus estudos para ouvir sua opinião, não conseguiu entender mais profunda-mente o pensamento saussuriano, podemos concluir que

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os outros tenham passado muito mais distante disto. Toda esta construção do mito, do encantamento que

Saussure parece nos transmitir, termina por ser uma carga muito pesada para quem deseja trabalhar com suas idéias.

Claudine Normand (2000), que nos parece das pou-cas que consegue sobreviver à mitificação de Saussure, ou de suas idéias, diz que a publicação das fontes manus-critas produziu uma clivagem nos estudos saussurianos, dividindo-os em dois grupos: o daqueles que, antes dos estudos dos manuscritos, faziam a leitura e as críticas ao CLG, como obra primordial, fundadora de uma ciência e o grupo dos que, depois dos manuscritos, passam a dar maior valor aos estudos saussurianos sobre as lendas germânicas e sobre a poesia latina – os Anagramas – e a chamar o clg de “vulgata”.

Normand, então, faz uma verdadeira denúncia disto que para nós faz parte da mitificação de Saussure, di-zendo do exagero dos que, a partir da descoberta dos manuscritos, chegam a acusar (cita Simon Bouquet) os editores de terem, deliberadamente, deformado, traves-tido e até mesmo censurado o pensamento saussuriano, formando, assim, para os leitores atuais, uma idéia do clg como uma leitura falsa de saussure. ao mesmo tem-po, então, teríamos um texto ideal, inexistente enquanto materialidade, que exprimiria o pensamento verdadeiro. É assim que ela diz que Saussure permanece, pelo menos na tradição da linguística francesa, como uma passagem esquecida, já que os leitores atuais nem conseguem ler a

edição crítica de engler nem o clg. Para sairmos desta encruzilhada, é que começamos

por tentar descrevê-la, tentando exorcizar o mito saussu-riano que nos atrai para a adoração do mestre que deve permanecer na sua genialidade, atração que nos leva ao abismo da incapacidade para falar, ou porque tudo já foi dito ou porque nada mais se pode dizer sem que assim se proceda a um fechamento das idéias de Saussure. Cumpre-nos, portanto, a tarefa de compreender a obra de saussure como fruto de um pensamento que ao mes-mo tempo em que se revela claramente através do CLG e dos manuscritos, parece-nos sempre fugidio, fulgaz, su-jeito a novas interpretações, talvez como qualquer outro pensamento, mas, no caso de Saussure, com o agravante de não termos, com a sua “assinatura”, uma obra que nos desse a ilusão da totalidade.

É só assim que começamos a conseguir dizer duas palavras que sejam sobre a linguística saussuriana, partin-do da aceitação do CLG como um livro que contém idéias de Saussure, embora atravessadas pelo ponto de vista de Bally e Sechehaye, aceitando que este atravessamento faz parte de todos os estudos que envolvam Saussure, pois o “seu pensamento”, “autêntico”, foi negado pela única pes-soa que poderia entregá-lo: Ferdinand de saussure.

Apresentamos, então, este livro, como já dissemos, com a tarefa de colocar na mesa de discussão a temati-zação de um objeto que, longe de ser homogêneo, é, nas palavras de Simon Bouquet (2000, p. 71), “misterioso e

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irremediavelmente fugaz”, a partir de pontos de vista como o do CLG, de Simon Bouquet, Tullio de Mauro, entre outros.

Voltemos, portanto, depois destas considerações sobre o CLG, à discussão do pensamento que estamos trazendo como nuclear nos estudos saussurianos, ou seja, a idéia de língua como um sistema de signos. Para tanto, construiremos uma discussão que apresentará conceitos já bastante discutidos da obra de Saussure, como o de sig-no linguístico, a escolha da língua como objeto da línguís-tica e a suposta exclusão da fala, a questão da identidade linguística, mas de uma forma renovada, pois estaremos tentando relaciona-los à idéia de sistema; além do fato de tomarmos como referência para as nossas discussões não apenas o CLG, mas reflexões de estudiosos de Saussure como Tullio de Mauro, Godel, Simon Bouquet e Fehr.

LÍnGUa OU FaLa? a esCOLHa de Um OBJetO

O CLG e o objeto da linguística12

O capítulo do CLG, intitulado “Objeto da linguística”, começa com uma questão fundamental para a linguísti-ca: Qual seria o seu objeto, ao mesmo tempo concreto e integral? Segue-se, imediatamente após a colocação desta questão, a apresentação de duas dificuldades. Em primeiro lugar, argumenta-se que o objeto da linguística não é dado previamente, pelo contrário, ele é criado de acordo com o ponto de vista adotado para observá-lo. em segundo lugar, considera-se que seja qual for o ponto de vista adotado, “o fenômeno linguístico apresenta perpetu-amente duas faces que se correspondem e das quais uma não vale senão pela outra” (SAUSSURE, 1996, p. 15).

essas duas faces do fenômeno linguístico são apre-sentadas, no CLG, através das famosas dicotomias saus-surianas. Destacaremos apenas uma delas (língua/fala), essencial para a discussão do objeto da linguística que es-

12 As referências ao CLG serão feitas à edição brasileira, en-quanto que as referências às notas de tullio de Mauro serão feitas à edição francesa, no nome do autor das notas, como um capítulo da obra.

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tamos empreendendo neste livro e para a idéia de língua enquanto sistema de signos.

seja qual for o lado pelo qual se aborde a ques-tão linguística, ela nunca poderá ser considerada integral. Chegamos, então, ao que está considerado no CLG como um dilema: se analisarmos o objeto de apenas um dos seus lados deixaremos de ver as dualidades se, por ou-tro lado, o observarmos sob vários dos seus aspectos ao mesmo tempo, pode parecer confuso e heteróclito. Ver as várias faces da linguagem seria abrir as portas para ou-tras ciências que, diz o texto, “separamos claramente da linguística, mas que, por culpa de um método incorreto, poderiam reivindicar a linguagem como um de seus obje-tos.” (SAUSSURE, 1996, p. 15)

Tullio de Mauro (1995, p. 417 – nota 51), entre-tanto, comenta que esta afirmação demonstra uma pre-ocupação que não era de saussure mas dos editores: a de fechar as portas da linguística para as outras ciências. lembra que saussure considera a linguística como par-te da semiologia e esta última como parte da psicologia social. Além disso, diz que Saussure, como linguista his-tórico e teórico da linguagem que era, estava vivamen-te interessado pelas ciências vizinhas. a preocupação de Saussure, nesse sentido, seria, então, “determinar se há um objetivo específico à pesquisa linguística, e qual é este objetivo; e não o de fechar as portas às trocas com outras disciplinas” (MAURO, idem, ibidem).

Uma solução para as dificuldades apontadas seria,

segundo aponta o CLG (SAUSSURE, op. cit., p. 16), “colo-car-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da linguagem”.

A partir deste momento, o CLG passa a trazer as de-finições de língua e fala, separando-as entre o que é produ-to social, um conjunto de convenções – a língua -, e o que é ato individual de vontade e inteligência – a fala. Podemos resumir as diferenças através do seguinte quadro:

LÍnGUa FaLa

social Mais ou menos acessório e acidental

produto que o indivíduo re-gistra passivamente

ato individual de vontade e inteligência

objeto de natureza concreta objeto concreto

não pode ser criada ou modi-ficada pelo indivíduo

-

Produto de uma espécie de contrato social

-

natureza homogênea - siste-ma de signos

-

Colocadas as diferenças, acreditamos ser preciso ob-servar que a escolha da língua para objeto de estudo da linguísitica traz algumas considerações importantes que, se não forem feitas, parecerá ao leitor do CLG uma escolha perfeitamente arbitrária, deixando o mesmo sem qualquer idéia de qual seja a base de sustentação para tal escolha,

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ou ainda, de onde provém a escolha pelo lado da língua.a primeira e talvez mais importante seja a compre-

endemos de que o fato de Saussure escolher, diante do impasse da heterogeneidade da linguagem, “colocar-se primeiramente no terreno da língua” não significa toma-la com exclusividade, mas como ponto de partida, como mo-delo, tendo como perspectiva algo maior do que a língua (a linguagem) e maior do que a linguística (a semiolo-gia). Depois, ainda sobre esta escolha da língua, devemos observar que ela se dá em relação à linguagem (tomando a língua como norma para todas as outras manifestações da linguagem) e não à fala.

Além disso, a facilidade com que o problema é re-solvido, apontando a língua como solução, parece não condizer com a profundidade das questões colocadas no início do capítulo. Ou melhor, se os editores consideravam que o objeto da linguística possui, sempre, dois lados e que eles são indissociáveis, ou, ainda, “duas faces que se correspondem e que não valem senão pela outra” (saus-sure, 1996, p. 15), como poderiam escolher a língua, des-cartando a fala?

Uma outra questão, a ser colocada, refere-se ao fato de o CLG propor, como já dissemos, resolver o problema do objeto da linguística, deixando de tratar da linguagem e passando a tratar de língua. Dizendo que esta é parte daquela, mas não se confunde com ela. É neste momento que Tullio de Mauro nos lembra que até o início do se-gundo curso, Saussure não tinha esta idéia da separação

entre língua e linguagem. em uma nota que remonta a 1891, ele (Saussure) escreveu que “língua e linguagem não são senão uma mesma coisa; uma é a generalização da outra” (apud. MAURO, 1995, p. 417 - nota 53). Por-tanto, o que aparece como simples e acabado no CLG não está assim marcado nos manuscritos.

Tullio de Mauro (op. cit., p. 419 - nota 63) traz uma citação dos manuscritos que, para ele, esclarece bem a diferença entre língua e fala:

a língua é um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o uso da faculdade da lingua-gem pelos indivíduos. A faculdade da linguagem é um fato dis-tinto da língua, mas que não pode ser exercida sem ela. Pela fala designa-se o ato do indivíduo que realiza esta faculdade através da convenção social que é a língua.

Portanto, vemos aparecer, além da dicotomia lín-gua/fala, um outro elemento que seria a faculdade da lin-guagem. Segundo a citação, a fala estaria ligada ao ato do indivíduo que “realiza” a faculdade de linguagem.

É importante, também, para a discussão da separa-ção (excludente) entre língua e fala, trazer a explicação sobre o caráter social da língua. segundo o clg (saussu-re, 1996, p. 21),

Se pudéssemos abarcar a totalidade das imagens verbais ar-mazenadas em todos os indivíduos, atingiríamos o liame social que constitui a língua. trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma

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comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmen-te em cada cérebro ou, mais exatamente; nos cérebros dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum, e só na massa ela existe de modo completo.

Ora, podemos dizer que esta explicação longe de co-locar a fala fora do objeto da linguística, distingue-a como essencial à existência da própria língua, já que confere ao caráter social desta última a singularidade de ter sido constituída “pela prática da fala”. Essa explicação, portan-to, coloca a separação entre língua e fala mais próxima da preocupação mostrada no início do capítulo do clg.

Sobre a distinção entre língua e fala, Tullio de Mauro faz um longo comentário, na nota 65 (MAURO, 1995, p. 420-422). Destacaremos alguns pontos da nota.

Para Tullio de Mauro, a diferença entre língua e fala é dialética e a língua não existe se não for para governar a fala. Concorda com Hjelmslev, quando ele diz ser esta diferença a tese primordial do CLG. Entretanto, destaca que isto se dá apenas no sentido cronológico do surgi-mento da diferença. No sentido lógico, entretanto, escla-rece que embora em 1911 a distinção seja para saussure a “primeira verdade” de seu sistema de linguística geral, durante o terceiro curso ele apresenta o arbitrário do sig-no como “primeiro princípio”, o que não chega a ser uma contradição, segundo Tullio de Mauro, contanto que se compreenda a fundo a noção de arbitrário do signo.

para compreendermos a noção de arbitrário do sig-no é necessário, então, partir do exame da fala no seu

aspecto concreto. Só assim é que poderemos entender como em um ato de fala, tomado como individual e ir-repetível, podemos considerar duas fonias diferentes, de significações diferentes, como sendo a mesma palavra. Segundo Tullio de Mauro (1995, p. 420), há apenas uma solução:

tomando como base de identificação não a realidade fônico--acústica das fonias ou a realidade psicológica das significa-ções (que permanecem, no plano acústico e no plano psico-lógico, irremediavelmente diferentes), mas o que valem suas fonias e suas significações, seu valor.

Tullio de Mauro defende que, se sua análise está cor-

reta, o CLG deveria começar pelo capítulo da identidade diacrônica e sincrônica na qual se poderia ver o reconheci-mento do caráter arbitrário do signo e o caráter formal da língua. Depois, então, viria “a distinção metodológica en-tre a consideração de um fenômeno linguístico enquanto representando um certo valor (língua) ou enquanto ma-nifestação fônico-acústica ou psicológica (fala)” (MAURO, idem, p. 421).

Ele destaca, ainda, que a colocação, no CLG, das noções de arbitrário do signo e da diferença entre língua e fala foi, de certa forma, gratuita, sem um contexto que as explicasse, o que fez com que fossem mal compreen-didas e combatidas. Ele (idem, p. 422) afirma que todo este comentário (a longa nota) seria para fornecer um contraponto

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dos que apresentaram e apresentam o pensamento de saussure como um conjunto de teses que se sucedem sem nenhuma ligação lógica interna: mas uma tal apre-sentação é quase inevitável se se toma por base a vul-gata do CLG, na qual as ligações recíprocas entre as di-ferentes teses, ligações a cuja determinação Saussure consagrou sua vida, são prejudicadas pelo deslocamento das diferentes partes conforme feito pelos editores.

A preocupação que o CLG apresenta, logo no início do capítulo sobre o objeto da linguística, com relação a mostrar a concretude de tal objeto, pode ser traduzida, segundo Tullio de Mauro (1995, p. 426 - nota 70), por uma necessidade da época (ligada ao positivismo/idea-lismo kantiano) que acenava para a abstração como algo negativo. Saussure, portanto,

se inscreve nas origens deste movimento. E, por esta razão, privado de referências epistemológicas válidas e de uma ter-minologia adequada, ele é obrigado, por um lado, a reconhe-cer e sublinhar o caráter não concreto, formal e, portanto, abstrato, das entidades linguísticas. Por outro lado, preso em uma terminologia e em uma epistemologia nas quais abstrato não significa senão “marginal” (Peirce), “irreal”, “falso”, ele é obrigado a declarar que as entidades da língua “não são ape-nas abstratas”, na medida em que operam efetivamente.

Entendemos que este contexto, apresentado por Tullio de Mauro, além de explicar a necessidade da procu-ra por um objeto concreto para a linguística, coloca-nos diante de uma outra questão, ou seja, escolhendo a língua

e excluindo a fala do objeto da linguística, Saussure não estaria construindo um objeto por demais abstrato, o que seria contrário à sua preocupação?

para ajudar a construir a discussão ainda sobre esta relação língua-fala, consideramos importante, também, trazer as considerações do capítulo do CLG (SAUSSURE, 1996, p. 29-32) cujo título é: Elementos internos e ele-mentos externos da língua.

tullio de Mauro comenta que o título escolhido pelos editores para o capítulo não foi muito feliz pois as fontes indicam que o título da lição que lhe dá origem é “divi-são interior dos elementos da linguística” sendo, portanto, melhor que tivessem substituído língua por linguística. co-mentário que nos traz mais um indício de que a escolha do objeto língua tal como aparece no CLG (vale repetir, como excludente da fala) é dos editores e não de Saussure.

Logo no início, o texto do CLG diz que a definição de língua exige que se elimine dela tudo que seja estranho ao seu organismo. Tullio de Mauro (1995, p. 428) traz, na nota 83, a nota manuscrita de Riedlinger, fonte do primeiro parágrafo do capítulo, que mostra que Saussure colocava a linguística externa como parte importante da linguística e não a excluía, como aparece na redação dos editores. a nota de riedlinger diz:

tem-se feito objeções a este termo a este emprego do termo organismo: a língua não pode ser comparada a um ser vivo, é a todo momento do produto dele que ela depende! Pode-se, entretanto, empregar esta palavra sem dizer que a língua é

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um ser a parte, que existe fora do espírito, independente. [se se prefere assim], pode-se no lugar de falar de organismo, fa-lar de sistema. Isso vale mais e volta a mesma coisa. Então – [definição] – linguística externa = tudo que concerne à língua sem estar dentro do seu sistema. pode-se falar de linguística externa? Se há algum escrúpulo, pode-se dizer: estudo inter-no e externo da linguística. o que consiste à face externa: his-tória e descrição externa. Dessa forma, consistindo de coisas importantes. A palavra linguística evoca, sobretudo, a idéia desse conjunto.

É importante destacar, desta citação, a noção de to-talidade que saussure demonstrava ter acerca da linguís-tica o que nos faz, mais uma vez, questionar a idéia de exclusão que está na base da distinção língua/fala, no CLG.

Passaremos, agora, na sequência da nossa discus-são, a apresentar a análise da dicotomia língua e fala, feita por Robert Godel (1969), com base nos estudos das fontes manuscritas.

Godel e a dicotomia língua/fala

Segundo Godel (1969), bem antes dos cursos de linguística geral as preocupações de saussure já estavam centradas no fato social, isto é, na língua ou na lingua-gem, enquanto propriedade de toda comunidade humana. era apenas por esta via que saussure reconhecia que a linguagem poderia ser abordada pela ciência.

Dessa forma, nas notas anteriores aos cursos, lin-guagem, língua e fala são utilizadas conforme o uso co-

mum, ou seja, linguagem designando língua em geral. No início do segundo curso, os dois termos estão, ainda, em co-ocorrência.

Nas notas, não há uma significação terminológica precisa para fala. Foram encontradas duas referências nas conferências feitas por Saussure, em 1891. Também não há, ainda, a separação entre língua e fala que será esta-belecida nos três cursos de linguística geral e formará a base para o clg.

Entretanto, já havia, antes dos cursos, a preo-cupação, para Saussure, em separar o que era social e o que era particular, individual, ou ainda atos par-ticulares de manifestações daquilo que é social. Pois, diferente de Whitney, que não via diferenças entre a linguagem e as outras instituições sociais, Saussure funda sua concepção de língua a partir de uma análise abstrata do fenômeno da linguagem, tentando libertar a instituição social dos atos individuais de sua mani-festação ou, ainda, tentando compreendê-la por suas características internas.

godel apresenta a separação língua/fala não como um dado claro, absoluto, nos estudos saussurianos, mas como uma dificuldade. Ele diz (op. cit., p. 153):

Vimos que ele [Saussure] tenderia a separar radicalmente da língua, fato psíquico e social, o fato fisiológico e individual que ele chama, de bom grado, execução, meio de produção do sig-no. a oposição da língua e da faculdade de linguagem não se prestaria senão à condição de dar a esta última o sentido fisio-

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lógico ou psíquico-fisiológico que sugere o texto de número 6 e que supõe, ainda, a passagem do curso III que acabamos de examinar. (...) Opor, por outro lado, a faculdade e sua realiza-ção, a fala, não simplifica o problema: ora, a fala é, também, o discurso, que não é apenas execução do signo; mas desde que sejam considerados os diversos elementos, arrisca-se invadir o domínio da língua.

percebemos que a ênfase da distinção entre língua e fala é essencialmente baseada na questão do social e do individual. Para Saussure, parece estar claro que nenhum fenômeno pode ser considerado linguístico se for produto individual, não sendo importante, portanto, se é parte da língua ou da fala. Nos escritos do primeiro curso, como veremos adiante, por exemplo, ele chegou a considerar a fala como social. Obviamente, a fala, como produto da língua não pode ser considerada como estando fora da lin-guística, o que pode não significar, como vem sendo feito com relação a esta separação feita por Saussure, que se possa considerar a língua como uma abstração completa, sem a fala, o que formaria, para a linguística, como disse Edward Lopes (1997), um objeto completamente “inatin-gível”, absurdo. Parece que é este o objeto que tem sido dito como sendo o escolhido por saussure.

a preocupação em separar um fato individual de um social é antiga em Saussure. Godel encontra uma nota acerca disto, mesmo antes do primeiro curso, na qual Saussure (apud GODEL, 1969, p. 148) diz:

a natureza nos dá o homem organizado para a linguagem ar-ticulada, mas sem linguagem articulada. A linguagem é um fato social. O indivíduo, organizado para falar, não chegará a utilizar seu aparelho senão através da comunidade que o cerca – ou melhor, ele não tem a necessidade de utilizá-lo senão nas suas relações com ela.

Godel comenta que, para Saussure, a capacidade de linguagem não depende dos órgãos da voz, mas da capacidade de entender e empregar os signos, “de for-mar associações independentes das relações naturais das coisas” (GODEL, 1969, p. 148). Portanto, Saussure separa a capacidade da linguagem da aptidão para pro-ferir sons. godel ainda diz que se cada indivíduo impro-visasse os signos individualmente, sem nenhum caráter social, segundo as necessidades do momento, não have-ria razão para existir uma ciência da linguagem, diferen-te da psicologia. Podemos dizer, então, que “natural ou adquirida, a faculdade de linguagem não é senão para o linguista a condição necessária para a instituição e a via de uma língua” (GODEL, op.cit., p.148 – grifo do autor). Assim, língua e faculdade de linguagem são estreitamen-te solidárias.

Vejamos, então, como aparece, nos cursos de lin-guística geral, ministrados por Saussure, a relação língua/fala. No primeiro curso, saussure mostra que há uma re-lação de constante interdependência entre língua e fala. Segundo ele (apud GODEL, op. cit., p. 145),

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se é verdade que temos, sempre, necessidade do tesouro da língua, para falar, reciprocamente, tudo que entra na língua, foi, a princípio, experimentado na fala, um número de vezes suficientes para que resulte em um impressão durável; a lín-gua não é senão a consagração do que teria sido evocado através da fala.

outro trecho ainda mais claro: Se tudo o que se produz de novo é criado por ocasião do dis-curso, quer dizer, ao mesmo tempo, que é do lado social da linguagem que tudo se passa. Por outro lado, será suficiente tomar a soma dos tesouros individuais de língua, para ter a língua. Tudo o que se considera, de fato, na esfera interior do indivíduo é sempre social, pois nada teria penetrado se não fosse, a princípio, consagrado pelo uso coletivo na esfera ex-terior da fala (GODEL, 1969, p. 145-146).

No terceiro curso, no início da lição de 28 de abril, Saussure crê resolver a dificuldade, dando à fala uma defini-ção mais explícita e mais analítica. Por meio de um esquema, ele dirá que a fala é a parte ativa e individual da linguagem, enquanto a língua é sua parte passiva, que reside na coleti-vidade. Godel diz não ser, a este respeito, conveniente insis-tir muito sobre a diferença entre operação consciente e in-consciente. “Entenda-se, então, passivo no sentido de não criativo; neste sentido, a compreensão é passiva” (GODEL, 1969, p. 154 – grifos do autor). Ou seja, no sentido de que só há mudança e criação possível na fala e não na língua, já que esta última está na condição de tesouro coletivo.

sobre este aspecto da fala como lugar das mudan-ças possíveis, Godel mostra que há, no CLG, o reconheci-mento dessa concepção de fala, mostrada por Saussure, quando, em uma passagem do segundo capítulo, está dito que as mudanças acontecem na fala não na língua, mas que só se considera para o estudo linguístico a parte da linguagem que já é fruto de uma coletividade, ou melhor, a mudança quando já assimilada pela coletividade.

Mesmo reconhecendo que saussure tenha feito a separação entre língua e fala, Godel (op. cit., p.155) en-fatiza a relação de interdependência entre esses dois ele-mentos, dizendo que “foi reconhecido, no entanto, que entre a instituição e o ato individual a relação é bilateral: a fala não é senão ‘o uso individual do código da língua’, mas o depósito armazenado no cérebro provém, a seu turno, da fala”. Para defender o seu ponto de vista, recor-re ao próprio Saussure (apud GODEL, op. cit., p. 155), no trecho em que diz que:

1º) não há nada na língua que não tenha entrado (direta ou indiretamente) através da fala percebida (D/ ... pela soma das falas percebidas, S). Reciprocamente, não há fala possível se-não graças à elaboração do produto que se chama língua, e que forneceu ao indivíduo os elementos com os quais ele pode compor sua fala (d/ não há fala possível senão graças à lín-gua). 2º) É papel da inteligência coletiva elaborar e fixar este produto (DS). Tudo o que é língua é implicitamente coletivo (S). Dizer que uma palavra “entra na língua”, é dizer que ela teve a aprovação coletiva (D). Mas, não há fala coletiva. Os

atos de fala são individuais e momentâneos.

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Godel (idem) lembrará, também, que, para ser cosi-derada como sistema, a língua precisa ser vista tanto em seu aspecto coletivo quanto nas suas variedades individuais.

Conclui, então, dizendo que o que se pode criticar em Saussure é o fato de não ter tirado todas as conse-quências da última noção de fala (aquela através da qual se dão as mudanças, parte da linguagem ligada à língua de forma radical) e de não ter, assim, separado da língua apenas a noção de fala enquanto execução fonatória.

Resumindo, podemos ver com Godel que desde sempre estava colocada para saussure a preocupação que aparece, sob forma de pergunta, no início do capítulo do CLG, ou seja, qual seria o objeto da linguística. Com relação à separação língua/ fala, parece-nos que surge, primeiro, a necessidade de pensar um objeto que tenha um caráter coletivo e não individual. esta necessidade parece ter sido levada a cabo por Saussure, pensando uma possível diferença entre língua e fala. Diferença que, como vimos, nunca esteve completamente resolvida para o mestre genebrino. Entretanto, pareceu a Godel que as anotações do último curso levam a crer em uma relação dialética, inseparável, entre língua e fala, na possibilidade da fala enquanto lugar de mudanças e, se há algum tipo de exclusão no objeto da linguística, seria a da fala en-quanto pura execução fonatória.

Além disso, gostaríamos de destacar que língua e fala formam a base do sistema saussuriano, como vere-mos melhor mais adiante, porque são representantes de

duas idéias fundamentais. Uma que mostra a possibilida-de de uma certa continuidade, porque “tesouro colocado no cérebro dos falantes”, a língua, e uma outra que liga-da impreterivelmente àquela traz toda a possibilidade de mudança do sistema, fazendo-o funcionar em um equilí-brio entre o estável e a mudança.

a exclusão da fala da ciência linguística e a noção de valor

bouquet (2000), em texto no qual trabalha a noção de valor semântico, baseado nas quatro últimas lições de Saussure, em 1911, sente a necessidade de fazer alguns comentários acerca da separação entre língua e fala, já que mostra que o valor semântico coordena dois fatos complexos, um valor in absentia ( que corresponde, se-gundo ele, à teoria do valor e à do arbitrário do signo lin-guístico) e um valor in praesentia (que associa o arbi-trário da língua ao valor do fato sintagmático). este duplo caráter do valor é mostrado por Saussure, na lição de 30 de junho de 1911, como formado por relações irredutíveis e, ambas, operantes. Nesta mesma lição, Saussure, se-gundo Bouquet, apresenta as duas noções de valor assi-miladas à oposição língua/ fala, da seguinte forma:

relações de valor in absentia línguarelações de valor in praesentia fala

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Desta relação, surge um questionamento, funda-mental para a idéia de valor semântico, desenvolvida por Bouquet, e para a nossa discussão, que pode ser assim formulado: se a fala está fora dos estudos linguísticos, como ficaria o valor in praesentia, ou o estudo das rela-ções sintagmáticas? Estariam, eles, também, fora do ob-jeto de estudo da linguística?

Bouquet defende que estudar o valor, no conjunto dos escritos saussurianos, separando as suas duas faces, é acabar com a teoria do valor. Assim também pensará da separação entre língua e fala, ou melhor, da exclusão da fala do objeto da linguística.

Vejamos como ele discute, especificamente, a dis-tinção língua/ fala.

Começa sua discussão lembrando que, nos manus-critos, sempre que tal separação é colocada por Saussure, há, ao mesmo tempo, um cuidado em mostrar que essa é uma separação problemática. Mostra-nos isto através de um trecho de notas das últimas aulas de saussure (apud Bouquet, idem, p. 274)

Mas restrição: podemos separar a esse ponto os fatos de fala dos fatos de língua? Assim, uma série gramatical está na língua – tudo é bem fixado num estado, dado na língua. Mas há sempre esse elemento individual que é a combinação deixada à escolha de cada um para exprimir seu pensamento em uma frase. essa combinação está na fala, não na língua, pois é uma execução. Essa parte – o uso individual do código da língua – levanta uma ques-tão. É só na sintaxe, em suma, que se apresentará uma

certa flutuação entre o que é dado, fixado na língua, e o que é deixado à iniciativa individual. A delimitação é difícil de fazer. É preciso confessar que aqui no domínio da sintaxe, fato social e fato individual, execução e asso-ciação fixa se misturam um pouco, chegam a se misturar mais ou menos. Confessamos que é unicamente sobre esta fronteira que poderemos criticar uma separação en-tre língua e fala. (grifos do autor)

Podemos perceber, neste trecho, entre outras coi-sas, tanto a relação entre as relações sintagmáticas e a fala, conforme mostramos acima, quanto a inquietação de saussure no que se refere à separação entre língua e fala.

bouquet considera o problema tomando como ponto de partida a ambiguidade terminológica. Há, em Saussure, pelo menos duas acepções do termo fala: 1) fato fonológico, ligado à execução de um ato de lingua-gem, e 2) fato lógico-gramatical, ligado à execução de um ato de linguagem como compondo uma pluralidade de signos. Neste caso, o conceito é correlativo ao de língua, um fato social.

Como vimos com Godel, mais acima, se há algo a ser excluído dos estudos linguísticos, seria não a fala como fato social (conceito presente nas reflexões de Saussure), mas a noção de fala enquanto, exclusivamente, um fato fonológico. Bouquet, embora não o diga, parece também concordar com esta tese, já que passa a falar apenas do segundo conceito de fala por ele apresentado, aquele da fala como correlato da língua.

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Ele analisa, nos estudos de Saussure, esse segun-do conceito de fala em dois momentos. em um primei-ro momento, uma noção metafísica de “língua” é criada, fundada sob o “signo” fonológico. Neste caso, a face se-mântica da linguagem estaria relacionada a uma teoria dos termos, independente de uma teoria das posições, ou seja, sintática. Em um segundo momento, o conceito me-tafísico de “língua” reage sob a noção metafísica clássica de linguagem que remete a uma sintaxe ou a uma teoria posicional e à articulação desta com uma teoria da natu-reza das proposições (lógica, em termos tradicionais).

Foi para fixar este segundo momento que, segun-do Bouquet (2000), Saussure introduziu o conceito de fala, como oposto e correlativo ao de língua, como re-cobrindo uma realidade léxico-gramatical. É assim que sintaxe e léxico, para Bouquet (op. cit., p. 276), na te-oria saussuriana, “são não apenas indissoluvelmente li-gados mas são ainda os planos gerativos simultâneos do fato semântico de uma língua”. Assim, também, é que se pode ver na sua reflexão que a língua não po-deria estar reduzida a um tesouro de signos (que ele relaciona ao léxico), pois a linguística estática requer, segundo definição dada por um dos alunos de Saussu-re (Riedlinger), a inclusão de uma teoria das partes do discurso, a saber, uma teoria sintagmática, ou, ainda, a fala. Portanto, Bouquet critica a separação língua e fala e baseia sua crítica em três argumentos, os quais resu-miremos a seguir.

Em primeiro lugar, as entidades abstratas, coloca-das por Saussure como entidades da língua, não podem ser descritas, segundo ele, senão no estudo da fala. Se-gundo argumento: há um princípio de organização ho-mogêneo tanto para as unidades que formam a palavra quanto para a relação entre as palavras em uma frase. Por fim, o autor argumenta que há relações sintagmáticas in absentia, o que significa dizer que há sintagmas ligados in absentia aos itens lexicais. É assim que, por exemplo, a uma palavra como ensinamento pode ser, naturalmen-te, associado um sintagma do tipo: o ensinamento é a transmissão de conhecimento a um aluno. nas pala-vras de Bouquet (op. cit., p. 280):

assim como um item lexical é ligado a todos os outros itens lexicais de uma língua, ele está também em relação, de diver-sas maneiras, com todos os sintagmas virtuais em que pode entrar – ou seja, com toda a fala em que pode entrar.

um argumento decisivo quanto ao objeto de estudo da linguística, a língua, pode ser construído a partir dos estudos de Fehr (2000), levando em conta seu caráter semiológico.

Língua: condenada a circular

Fehr não trabalha com a diferença língua/fala, di-retamente, mas faz um estudo das colocações de Saus-sure sobre linguagem/línguas/língua, passando pelas no-

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Page 37: Mônica nóbrega - insite.pro.br · que quero fazer referência. ... científico da disciplina, ... tora Maria José Rodrigues Faria Coracini, e continuaram

tas preparatórias para a aula inaugural de Genebra, pelos cursos de linguística geral e pelo CLG, para compreender, entre outras coisas, de onde vem a noção de língua do CLG e, portanto, entender melhor o objeto de estudo da linguística.

Nas notas introdutórias da lição inaugural, como vimos acima com Godel (parte 5.2), nenhum problema é colocado por Saussure na distinção entre linguagem e língua. Elas designam, para ele, “uma só e mesma coisa”, sendo que uma pertenceria ao geral (linguagem) e a outra ao específico, particular (a língua).

saussure apresenta linguagem e língua como sendo uma a contrapartida da outra. tanto que ele diz que o es-tudo de uma exige o estudo da outra. Quando se trata de linguagem, deve-se ter a perspectiva mais geral, isto é, a de um “estudo geral da linguagem”, enquanto à língua estão relacionadas as “manifestações próprias às línguas particulares”.

entretanto o equilíbrio entre os dois aspectos pa-rece ser quebrado quando ele mostra que o estudo dos casos particulares é o caminho para chegar ao caso mais geral, dando, assim, uma certa preeminência à língua. Segundo ele (apud Fehr, 2000, p. 53): “os mais elementa-res fenômenos de linguagem não serão claramente perce-bidos, classificados e compreendidos, se não recorrermos em primeira e última instância ao estudo das línguas”.

É preciso ver que colocar o estudo das línguas em um certo grau de superioridade com relação ao estudo da

linguagem não significa deixar este último em um lugar secundário ou insignificante. O que acontece, como mos-tra Fehr (op. cit.), é que Saussure segue, nessas notas preparatórias, em um constante vai e vem entre língua e linguagem. ele diz que se o estudo das línguas perder de vista o problema geral da linguagem, permanecerá estéril e desprovido de método. Disto surge o problema de saber como se deve fazer para deduzir do “problema geral da linguagem” os princípios necessários para o “estudo das línguas existentes”, se o primeiro não pode ser abordado a não ser através do segundo.

No seu terceiro curso de linguística geral, Saussure traz uma resposta, na compreensão de Fehr, surpreendente.

começa colocando para a linguística como ponto de partida, primeira constatação, a pluralidade de línguas ou, como ele também a denomina, a diversidade geográfica. Ou seja, em cada lugar se fala de forma diferente e isto é acessível ao conhecimento do falante. Não lhe escapa, como lembra Saussure, como a questão, por exemplo, da variação no tempo.

Depois disto, ele usa língua para designar “o proble-ma geral da linguagem”, no lugar de linguagem.

A primeira coisa a ser observada é que o conceito de língua, como generalização, foi derivado por Saussure da pluralidade de línguas, coisa que está no seu terceiro curso, mas que foi esquecida pelo CLG, fazendo com que disséssemos, no início desta discussão, que a escolha pela língua aparece como perfeitamente arbitrária, sem qual-

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quer explicação lógica. É o que veremos Fehr explicando logo em seguida.

É surpreendente, na visão de Fehr, se pensarmos nas anotações para a lição inaugural de genebra e nas anotações do terceiro curso, a forma como língua e lin-guagem são colocadas, no CLG, isto é, como opostas uma à outra. É que, segundo ele (2000), e conforme já assinalamos, a forma como o conceito de língua é intro-duzido no CLG tem um caráter arbitrário, porque padece da falta de uma perspectiva epistemológica. perspectiva que está presente no terceiro curso de linguística geral de Saussure, a partir do momento em que ele deriva o conceito de língua daquilo que, neste curso, é chamado de “uma primeira constatação nos fatos de linguagem” ou ainda como o “fato decisivo da linguística”, a saber, a pluralidade das línguas concretas ou também sua di-versidade geográfica.

Portanto, qual seria a origem do conceito de língua, no CLG, já que ele não está derivado, em contradição com o que se viu nos trabalhos de Saussure, anteriormente citados por Fehr, da pluralidade de línguas?

A tese defendida por Fehr é a de que o conceito de língua no CLG responde a uma idéia muito importante para Saussure, a de sistema. Idéia que já era anterior aos cursos ou ao CLG, como podemos observar, por exemplo, nas notas destinadas ao livro que projetava sobre linguís-tica geral e que datavam de 1894. Em uma delas, vemos Saussure dizer que (apud FEHR, op. cit., p. 68, nota 3):

“a língua representa um sistema interiormente ordenado em todas as suas partes”.

Nos estudos sobre os anagramas, Saussure mos-tra que é também de sistema que se trata. Segundo ele: (apud starobinski, 1974, p.23):

em um sistema onde nenhuma palavra poderia ser mu-dada sem dificultar, a maior parte do tempo, muitas combinações no que se refere ao anagrama, em um tal sistema não se pode falar dos anagramas como de um jogo acessório da versificação, eles se tornam a base, quer o versificador queira ou não.

A complicação que se coloca não é a da língua ser vista como sistema, já que tal idéia acompanha Saussu-re desde cedo, na sua trajetória. A questão que surge é quando tentamos pensar a noção de língua enquanto sis-tema e lembramos da sua derivação de uma diversidade de línguas. Ou melhor, como entender a língua como “um todo em si” se ela só se apresenta a nós, como mostra Saussure, na diversidade das línguas?

o clg determina duas coisas para que se possa atingir a compreensão de língua enquanto sistema fecha-do, ou seja: 1) pensar qual seria “a ordem própria da lín-gua” e 2) colocar à parte o que não constitui esta ordem e que seria, então, do âmbito da “linguística externa”.

Como vimos acima, é principalmente através das coisas que ficam “a parte”, na “linguística externa”, entre elas a capacidade das línguas de serem diferentes, ou o

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que está sendo chamado de condições geográficas, e a exclusão da fala, que o CLG consegue atingir seu objetivo de pensar a língua como um sistema fechado. Entretanto, já vimos que uma dessas exclusões, a da fala, não é defi-nitiva no pensamento de Saussure. Veremos, agora, que as condições geográficas, além de terem sido considera-das como importantes para Saussure, fazem parte de um processo ainda maior que é o da constante transformação por que passam as línguas no tempo.

O fato de as línguas serem diferentes é, para Saus-sure, apenas um aspecto de um fenômeno bem mais ge-ral. É assim que ele explica (apud FeHr, 2000, p. 77), por exemplo, que o fato de um u tornar-se u em um certo momento, em um certo lugar, específicos, não pode ser explicado, mas “a mudança, abstração feita de sua di-reção especial e de suas manifestações particulares, em uma palavra a instabilidade da língua, provém apenas do tempo. A diversidade geográfica é, então, um aspecto se-cundário do fenômeno geral”.

A diversidade geográfica é, portanto, um índice do fenômeno geral que seria a mudança das línguas no tempo, a instabilidade própria às línguas. eis um ponto fundamen-tal para Saussure, ou seja, a compreensão de que a língua tem um movimento no tempo que é absoluto, que existe “imperturbavelmente, naturalmente, e acima de qualquer circunstância” (saussure, apud FeHr, op. cit., p. 78).

Mais uma vez, a crítica que recai sobre o CLG é a do fechamento. A escolha por um sistema fechado, sem

que esta posição fosse colocada em nenhum momento em questão, como aconteceu com Saussure, fez com que os editores tivessem que colocar para fora da linguística tudo o que não pertencesse a este sistema. Exclusão, entre outras, da fala e da idéia de língua enquanto sistema in-serido em um movimento constante de mudança. a crítica mais radical com relação a esta escolha (pelo fechamen-to) dos editores é feita por Jakobson (apud, FeHr, op. cit., p. 81, nota 2):

Lá onde Saussure fez um sinal de interrogação, os redatores colocaram um ponto. a questão tornou-se um dogma (...). eu estou certo de que todas essas questões, todas essas contra-dições que podemos encontrar no curso de Saussure, todas as hesitações que ele ousa apresentar aos seus alunos, se as tivéssemos guardado, o livro não teria tido toda a influência que teve (...), nós o vemos como o quande questionador que sempre via os dois aspectos de cada problema (...). É muito curioso estudar seus manuscritos onde temos, no caderno, na página direita uma tese, na página esquerda uma antítese e no qual não há síntese. É, permitam-me dizer, nesta atitude que eu vejo a grandeza de saussure. era o indagador.

Portanto, mais uma vez o CLG em questão e nova-mente, para sermos bem saussurianos, os dois lados da mesma discussão, a escolha pelo fechamento criou dog-mas e, ao mesmo tempo, permitiu que as idéias de Saus-sure assim expostas tivessem tanta influência. Ocorre que Fehr (2000) chama a atenção para o fato de a originalida-de do pensamento saussuriano residir não no sistema fe-

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chado, que os editores estavam preocupados em passar, mas em pensar um sistema que incluísse o movimento. Mais que isto, ele acredita que o vigor intelectual de Saus-sure caracteriza-se precisamente em trabalhar a tensão entre sistema e movimento e, assim, em tentar desenvol-ver um sistema que, longe de excluir o movimento, tem nele seu elemento primodial.

É preciso, então, compreender que a escolha da lín-gua como objeto de estudo para a linguística implica mui-to mais do que a delimitação de um campo de trabalho. Se pensarmos nas questões colocadas até aqui, ou seja, que a separação entre língua e fala não era tão definitiva para saussure quanto o clg faz crer; que a escolha da língua foi feita dentro de um quadro que traz como fun-damental a questão da diversidade das línguas, da sua modificação; enfim, que falar em língua significa falar de um sistema que está longe de ser fechado, podemos dizer que é preciso pensar o objeto de estudo da linguística, a língua, não mais no seu fechamento, mas dentro de um sistema que permite um movimento contínuo entre esta-bilidade e mudança.

O sistema LinGUÍstiCO

Sistema é, sem sombra de dúvidas, um conceito que pode ser considerado nuclear nos estudos de saussure e isto está bastante claro quando percebemos que qualquer que seja o objeto a ser tratado (as lendas germânicas, os anagramas ou as palavras da língua, por exemplo), o ponto de vista a partir do qual saussure fará seus estudos é exatamente o do sistema. Podemos dizer que em todos os estudos aos quais se dedicou, a consideração que lhe parece fundamental é a que está colocada no início deste livro, isto é, a compreensão de que nenhum fato existe em si mesmo, mas apenas quando analisado em relação aos outros fatos, dentro de um sistema.

É esta a mesma opinião que encontramos em tullio de Mauro (1995, p. 359) que sugere que a idéia de siste-ma seja vista como “uma espécie de enteléquia13 da vida intelectual de Saussure, um princípio final, ponto culmi-nante de sua meditação teórica, ligado às origens do seu talento”.

13 Em Aristóteles, significa o estado de perfeição, de completa realização do ser (por oposição ao ser inacabado, incompleto). a plenitude de uma transformação ou de uma criação (dicioná-rio robert).

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Para a linguagem, por exemplo, eis a “lei final”, con-forme saussure (apud FeHr, 2000, p. 139):

A lei final da linguagem é <se ousamos dizer> que não há nada, jamais, que possa residir em um termo (...). É a evidência absoluta, mesmo a priori, que não houve jamais um só fragmento de língua que pudesse estar fundado em outra coisa, como princípio último, senão em sua não-coincidência, ou no grau de sua não-coinci-dência com o resto.

Portanto, é “absolutamente evidente” que as gran-dezas linguísticas devem ser descritas não isoladamente, mas na relação que mantêm umas com as outras dentro de um sistema.

A idéia de sistema gera toda uma série de concei-tos que a constituem, os quais passaremos a discutir. Em primeiro lugar, traremos questões relacionadas à iden-tidade de um termo, extremamente relevante, já que vemos que o presente de um termo (sua positividade), o fato de ele existir, não depende dele mesmo, mas dos outros termos que estão ao seu redor, que o determinam e que podem mudar a todo instante. Depois, passaremos a analisar o conceito talvez mais discutido na linguística saussuriana, o signo linguístico e, finalmente, traremos a discussão de como o sistema gera valores, produz senti-dos, através das duas relações que as palavras estabele-cem entre si na língua: relações sintagmáticas e relações associativas.

tal proposta de estudo do sistema linguístico saussu-riano traz, em si, uma interpretação deste sistema porque propõe que se veja no pensamento de saussure a apresen-tação de uma série de conceitos, entre eles o signo linguís-tico, como integrantes deste conceito maior, nuclear, que é o de sistema. Podemos dizer que a própria idéia de língua enquanto fato social e sua separação de um outro elemen-to, individual (a fala), pode ser deslocada se passarmos a compreendê-la como elemento deste sistema.

Mas, há, ainda, uma outra característica do siste-ma saussuriano, que vimos rapidamente desenhada na discussão do conceito de língua para o CLG, que é fun-damental para a leitura que apresentamos neste livro e que fará parte constitutiva da discussão dos conceitos, na construção do sistema, ou seja, a análise de que tipo de sistema se trata, em Saussure: de um sistema fechado ou de um outro, que admitiria a permanência, mas, também, a mudança?

Para citar apenas um autor, por enquanto, sobre esta questão, vemos Normand (2000) mostrar que na apresentação corrente do saussurianismo, o termo siste-ma foi tomado como estrutura, supondo a combinatória de um número finito de elementos que funcionavam de maneira isolada e independente. Assim, estrutura sus-citou, rapidamente, um repertório fixo de unidades as quais bastaria classificar. Além disso, o uso constante, por Saussure, do termo estático no lugar de sincrônico consagrou o dogma de um sistema fechado.

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Para a autora, esta abstração formal ignora a “vida” da língua, tanto na sua história quanto no seu funciona-mento cotidiano de troca.

Passemos, então, à discussão dos elementos do sis-tema e de suas características.

identidade linguística: O ponto de partida para o sistema?

Está claro, para Tullio de Mauro (1969), depois do trabalho de Godel, o ponto de partida das reflexões de Saussure, isto é, descobrir o que faz com que uma língua seja como tal reconhecida, surgindo, então, o problema da identidade linguística.

A questão da identidade, sendo ponto de partida das reflexões de Saussure, pode ser considerada também como aquela que possibilita pensar a língua não como formada por palavras, isoladamente, mas como um sistema. Por isto, es-tamos compreendendo a discussão sobre identidade como o ponto de partida para falar em sistema linguístico.

antes de saussure (e tullio de Mauro (1969) asse-gura que depois também), dois eram os caminhos pelos quais se tentava resolver o problema da identidade lin-guística: a via formalista (que saussure reconhecia como a preferida pelos linguistas) e a conteudística (mais cara aos filósofos).

os formalistas acreditam que “a identidade de uma forma linguística é garantida pela identidade ou seme-

lhança do material acústico de que ela é feita” (Mauro, op. cit., p. 123). Esta posição, comenta o autor, é fraca, tendo em vista que o material linguístico nunca é idêntico sob o plano puramente acústico.

Os conteudistas, por sua vez, dizem que

é verdade que de um ponto de vista acústico uma palavra não é jamais idêntica a si mesma, nem em sincronia nem, muito menos, em diacronia. Entretanto, ela é e permanece a mesma porque denota sempre a mesma coisa ou exprime sempre o mesmo conceito, e, finalmente, qualquer que seja a definição do significado, porque tem sempre o mesmo significado (Mau-ro, op. cit., p. 124).

Destes ponto de vista, o que faz a identidade de uma forma é sua ligação semântica com a coisa designada. Esta tese é central em Aristóteles, que baseia nela a objeção aos que não acreditavam no princípio da identidade.

Saussure tentará uma nova solução, diferente das duas anteriores. Dirá que o signo não é nem puramente sig-nificante nem puramente significado mas a união dos dois.

Mas, a questão da identidade não estava colocada para saussure apenas quanto aos signos da língua. ela se apresentou, de forma semelhante, nos seus estudos sobre as lendas germânicas.

Nestas pesquisas, Saussure procurava mostrar que havia um elo direto, historicamente atestado, entre as crônicas do reino de Lyon e as canções de Nibelungen. Sua primeira grande dificuldade foi com relação ao crité-

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rio para estabelecer a identidade entre um personagem da história e um da lenda. ele duvidava inclusive que se pudesse falar de identidade entre personagens.

Para Fehr (2000, p. 90), o que sustenta as dúvidas de saussure quanto a esta questão de identidade de per-sonagens é o fato de não existir apenas uma, mas sim vá-rias versões das canções de Nibelungen e, ainda, que as versões diferem entrem si ao ponto de não se poder dizer, de uma versão à outra, quem responde por qual nome.

Por isto, antes de comparar canção e crônica, Saus-sure necessitava verificar questões específicas, ligadas às diferenças entre as canções. Entre elas, uma das mais im-portantes era a da variação das lendas. era preciso pensar o que faz com que haja uma modificação constante nas len-das e saussure encontra resposta na sua transmissão oral.

Para Saussure, o fato de as lendas serem transmi-tidas oralmente favorecia sua mudança constante, remo-delando e determinando de tal forma seu conteúdo que ficava quase impossível deduzir, sem reservas, a partir de sua matéria, um evento histórico.

É assim que mesmo sabendo que a lenda possa ter tido um ponto de partida em um evento histórico, a questão da sua transmissão oral faz com que saussure pense que é impossível que um sentido primeiro seja, como tal, transmitido através dos séculos. Assim, por mais que o contador queira, ele não consegue transmitir exatamente o que aconteceu em um certo evento. para Saussure, a matéria das lendas, tal como é transmitida,

não pode ser reconhecida como uma reconstituição fiel de um evento histórico.

Portanto, é preciso entender que a transmissão oral de um fato, na lenda, não pode ser compreendida como a propagação de um conteúdo já existente, mas como “um fator de transformação que opera uma simbolização des-provida de intensão expressa” (FeHr, 2000, p. 94).

E é assim que Saussure descreve a formação do símbolo na lenda:

Um autor histórico, épico, nativo <ou mesmo histórico> reconta a batalha de dois exércitos e, entre outros, o combate dos chefes. Breve, é apenas uma questão dos chefes. a e b então a morte <o duelo> do chefe A e do chefe b torna-se (inevitavelmente) simbólico porque <o combate singular> representa o resultado da bata-lha, talvez a conquista de vastas terras, <e uma desor-dem política e geográfica> mas uma intenção de símbolo <não> existiu <em nenhum momento>, <durante esse tempo> (apud FEHR, op. cit., p. 94).

Portanto, quando alguém conta algum fato da len-da, já não se trata do fato em si, “dos chefes A e B”, mas de símbolos, sem que se tenha, entretanto, a “intenção de símbolo”.

para explicar a sua questão sobre a identidade de um símbolo da lenda, Saussure compara-o com a runa. ele observa que algumas características da letra mudam com o tempo (por exemplo, no caso da runa γ ela passa da oitava posição no alfabeto, para a décima) e Saussure

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se pergunta (apud FeHr, op. cit., p. 95) onde está, então, sua identidade. Ao que responde: “todo símbolo, uma vez lançado em circulação – ora, nenhum símbolo existe a não ser porque é lançado em circulação – encontra-se, nesse mesmo instante, em uma incapacidade absoluta de dizer em que consistirá sua identidade no instante seguinte”. Portanto, para Saussure, o símbolo não existe a não ser quando é “lançado em circulação” e quando isto acontece uma outra questão se coloca: não se pode dizer qual será sua identidade no instante seguinte. Ao mesmo tempo, se saussure prevê a incapacidade absoluta de saber a identi-dade do símbolo em um “instante seguinte”, podemos di-zer que há uma identidade em algum momento, anterior a este “instante seguinte”.

Fehr (2000) chega à conclusão de que estes proble-mas, que faziam parte das preocupações de Saussure no estudo sobre as lendas, ultrapassaram o quadro inicial-mente delimitado por ele e levantaram questões interes-santes também para a linguística.

É o próprio saussure quem aponta a relação entre os símbolos da lenda e as palavras da língua, no início da nota em que fala da circulação do símbolo (apud FeHr, op. cit., p. 96), dizendo que eles estão submissos às mes-mas leis que todas as outras séries de símbolos, entre elas as palavras da língua.

O que significa dizer que podemos pensar que assim como os símbolos da lenda, as palavras da língua tam-bém circulam incessantemente, sem que se possa prever,

como vimos para o símbolo, qual será sua identidade no momento seguinte. Além disso, também podemos dizer que não há origem, ou sentido literal, para as palavras da língua porque elas não existem em si, apenas quando colocadas em circulação o que, neste caso, significa dizer: apenas quando passam a fazer parte de um sistema.

passemos a ver melhor esta questão da identidade ligada aos signos da língua, já que ela mostra bem como saussure compreende o sistema linguístico.

a identidade linguística e o clg

No capítulo sobre identidade sincrônica, no CLG, a primeira questão colocada é a de que pode haver identi-dade sem que haja a correspondência entre ‘porções fô-nicas’ e conceitos. Saussure diz que a palavra “Senho-res!”, por exemplo, sendo proferida repetidas vezes em uma mesma conferência, apresenta diferenças fônicas e de conceitos cada vez que é repetida. Mas, mesmo assim, continua-se com o sentimento de que há, entre essas vá-rias realizações da palavra “Senhores”, uma identidade. Então, se a identidade não está relacionada apenas a por-ções fônicas ou a conceitos, de forma isolada, continua a pergunta: o que faz a identidade linguística?

Na tentativa de responder a tal pergunta, Saussure diz que todo o mecanismo linguístico gira em torno não apenas de identidades mas, também, de diferenças, sendo uma a contraparte da outra. Para explicar esse mecanismo,

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ele compara a identidade linguística à de dois expressos que saem todos os dias, de Genebra para Paris às 8h45min. da noite e à de uma rua que foi arrasada e depois reconstru-ída, mas que continua sendo identificada como a mesma rua. A respeito da rua, ele diz que “a entidade que constitui não é puramente material; funda-se em certas condições a que é estranha sua matéria ocasional, por exemplo sua situação relativamente às outras” (saussurre, 1996, p. 126). Portanto, a rua pode ser destruída e reconstruída e continuar sendo considerada a mesma rua.

Com relação ao expresso, diz que o processo é se-melhante, “o que faz o expresso é a hora de sua partida, seu itinerário e em geral todas as circunstâncias que o dis-tinguem de outros expressos” (saussure, 1996, p. 126).

Assim sendo, “sempre que se realizem as mesmas condições, obtêm-se as mesmas entidades” (Saussurre, op. cit., p. 126). Lembra ainda que não são entidades abstratas, pois só podem ser concebidas na sua realização material.

Portanto, identidade e diferença caminham juntas, já que o que faz com que um elemento possa ser identifi-cado como semelhante a outros é a sua diferença em rela-ção a tantos outros. ele insiste que a identidade não está presente nem na materialidade nem no sentido, mas nas relações que são estabelecidas na língua. diz que será na análise dessas relações que se poderá chegar bem perto da “verdadeira natureza das unidades linguísticas” (saus-sure, op cit., p. 127).

Podemos resumir o que foi visto até aqui sobre a identidade e sua relação com os sistemas, dizendo que a idéia que Saussure desenvolve de sistema, tanto para a lenda quanto para a língua, caminha sempre entre identi-dades e diferenças, entre mudança e algum tipo de identi-dade, mesmo que esta possa ser imprevista “no momento seguinte”. Portanto, mais longínqua ainda parece estar a idéia de um sistema fechado. Ao mesmo tempo, aparece a necessidade de compreender melhor a questão do signo, este elemento da língua que, como os símbolos da lenda, não existem senão quando colocados em relação com ou-tros signos, dentro de um sistema.

O signo linguístico: Um conceito entre semiologia e linguística?

Para falar em signo, enquanto elemento semiológi-co, é preciso ver, antes, o que seria a proposta de semio-logia saussuriana. a primeira referência à noção saussuriana de semio-logia está em um trecho do livro de Adrien Naville, profes-sor da Universidade de Genebra, como Saussure, sobre a classificação das ciências, no qual o autor tenta circunscre-ver o objeto e o campo da sociologia. citaremos apenas a parte em que aparece a citação da semiologia saussuriana:

M. Ferdinand de saussure insiste sobre a importância de uma ciência muito geral que ele chama de semiologia e cujo objeto seriam as leis da criação e da transformação dos signos e seus

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sentidos. A semiologia é uma parte essencial da sociologia. Como o mais importante dos sistemas de signos é a linguagem convencional dos homens, a ciência semiológica mais avan-çada é a linguística ou ciência das leis da vida da linguagem (apud FeHr, 2000, p. 105).

“leis de transformação dos signos e de seus senti-dos”, é isto que caracteriza o objeto da semiologia saussu-riana, segundo Naville, e é a linguística a ciência semiológica mais avançada, tendo em vista que o mais importante dos sistemas de signos é a linguagem convencional humana.

Também no CLG, a questão da semiologia será co-locada como “ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social” e que diria “em que consistem os signos, que leis os regem”. (SAUSSURE, 1996, p. 24). A linguística, por sua vez, será também considerada como parte da se-miologia, mas sempre parte diferenciada, mais importante do que as outras, porque a língua é um sistema comple-tamente diferente dos outros, comparável “à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas de polidez, aos sinais militares etc. etc. Ela é apenas o prin-cipal desses sistemas” (SAUSSURE, 1996, p. 24).

No CLG, Saussure deixa para o linguista a tarefa de “definir o que faz da língua um sistema especial no con-junto dos fatos semiológicos” (SAUSSURE, op. cit., p. 24).

para amacker (1975) o que distingue a língua en-quanto sistema de signos de outros elementos semiológi-cos é o arbitrário radical, que a caracteriza, e o caráter linear do significante.

Entretanto, antes de vermos estas características que diferenciam a língua de outros sistemas semiológicos, vamos acompanhar uma outra, pouco conhecida, que lhe foi apontada como fundamental por saussure e que Fehr (2000) desenvolve na sua obra.

a questão começa a se desenhar quando saussure diz que em todas as outras ciências o objeto é perceptí-vel pelos sentidos e que o mesmo não acontece com a linguística, pois o som, enquanto elemento material não pertence à língua. ele só passará a pertencer à língua quando for “portador de uma idéia”. Ou seja, o som conta para a língua quando passa a funcionar como signo. nas palavras de saussure (apud FeHr, op. cit., p. 105):

Todas as coisas, cuja existência nós admitimos, estão funda-das com base em uma substância, material ou imaterial, mas SIMPLES. A língua é a única (de um ponto de vista mais geral, o signo) que se encontra na posição singular de estar fun-dada em uma combinação, a menos que se renuncie à sua existência.

Entretanto, não é por ser uma combinação entre significante e significado que o signo vocal pode ser con-siderado “o caso mais complexo de todos os casos par-ticulares comuns”. É outra a questão que faz com que o estudo da linguagem, segundo Saussure, abra um hori-zonte completamente novo para a teoria dos signos, a saber, o conhecimento que “o signo apenas começa a ser conhecido, quando percebemos que ele é uma coisa não

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apenas transmissível, mas naturalmente destinado a ser transmitido” (saussure, apud FeHr, 2000, p. 117).

Ora, que o signo tenha sido tratado como combina-ção, isto é bem conhecido em todos os estudos sobre este elemento, pelo menos os que tomam como base o CLG. Mas, o conceito de transmissão enquanto constitutivo do signo é algo bem novo e que não aparece em lugar algum do CLG. Para Fehr (op. cit.) este conceito é o que faz com que o signo tenha sido tratado de modo particularmente linguístico por saussure.

Resta, então, pensar como se dá a união entre a necessária transmissão e o conceito de signo.

em um esboço que saussure fez para um livro sobre linguística geral, de 1894, ele tenta explicar a mudança de uma sequência de sons vocais que passou de alka a ôk. ele se pergunta qual seria o elo entre uma sequência e a outra e a resposta surpreende porque ele coloca em seu lugar uma outra questão, ou seja, que “seria necessário questionar-se onde está o elo entre alka e alka e, nes-te momento, compreenderemos que não há, em nenhum lugar, <como fato primordial> uma coisa que seja alka14” (saussure, apud. FeHr, 2000, p. 119 - ênfases do autor).

se não há “uma coisa que seja alka”, podemos dizer que o elo entre alka e ôk não pode estar na sequência de sons vocais que eles representam, mas apenas quando estes sons são tomados a partir de sua função de signo, 14 il faudra se demander où est le lien entre alka e alka <lui-même> et, à ce moment, nous comprendrons qu’il n’y a nulle part <comme fait primordial> une chose qui soit alka.

enquanto significante e significado (termos que Saussure ainda não usava nessa época, mas que sabemos serão usados para denominar as “duas faces do signo linguís-tico”). Entretanto, há um problema nesta constatação, apontado pelo próprio Saussure, que está relacionado à impossibilidade de se falar em um elo entre alka e alka, como se pudesse existir uma alka original à qual as ou-tras sequências de sons pudessem ser comparadas. de forma que, se Saussure diz que não há esta alka original, deve-se, então, falar de versões de alka. segundo Fehr (op. cit., p.120): “Não existe <alka original>, invariável, fixa nela mesma e, portanto, não existiria também cópias desse <original>, mas inúmeras versões de alka, mate-rialmente distintas e separadas uma da outra” (ênfases do autor).

Portanto, vemos que a definição do signo enquanto elemento que existe apenas porque colocado em circulação traz de volta a questão da identidade e está diretamente relacionado às conclusões sobre o símbolo na lenda. se-gundo Fehr (op. cit., p. 121) “Os signos – como os símbolos das lendas – não existem em si para, depois, reaparecerem em uma transmissão; sua existência é sua circulação”.

Portanto, a importância da noção de signo para o objeto da linguista não está reduzida às combinações en-tre articulações e idéias (ou significantes e significados) mas, mais importante que isto, deve-se ao fato de que es-tava presente para saussure como “diferencial” dentro da sua compreensão de signo, nas palavras de Fehr (2000,

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p. 121), a necessidade de ver “as <combinações> inca-pazes de existir de outra forma a não ser em um processo de transmissão, cuja dinâmica é fonte de variações que se impõem a elas de maneira insuperável” (grifo do autor). Este é o traço decisivo que distingue a semiologia saus-suriana das outras teorias tradicionais do signo, como a semiótica, por exemplo. É também este traço que permite que Saussure dê à linguística, através da semiologia, um lugar entre as ciências, como ele havia pretendido.

Assim, ao argumento da questão da identidade, acrescenta-se outro, decisivo para a construção da idéia de sistema: se os signos estão condenados a serem transmitidos, não se pode negar que sua dinâmica, como vimos Fehr afirmar, esteja baseada na variação. Portan-to, o interesse de Saussure não é pelo signo fora do tem-po, mas em constante variação, porque condenado a ser transmitido. e aqui temos um dado importante para a idéia de tempo em Saussure. É que, segundo Fehr (op. cit.), seu interesse pelo tempo não é de ordem históri-ca, mas está relacionado especificamente ao processo de transmissão do signo.

Entretanto, o processo de transmissão, próprio às línguas, tem um elemento muito importante a ser acres-centado, que fica claro em uma passagem das pesquisas sobre os anagramas, ou seja, a constatação de Saussu-re de que não se trata de uma transmissão consciente. segundo ele (apud. FeHr, op. cit., p. 123, nota 3), “o resultado também é perturbador para sua significação in-

do-européia. Não se trata mais aqui, de fato, de alguma coisa que seja inconscientemente transmitida como a lín-gua ou, no próprio verso, o ritmo e a forma aparente”.

toda a questão nova do signo e sua investigação pode assim ser resumida: os signos são, por natureza, condenados à transmissão, isto porque existir, para eles, significa, inevitavelmente, circular.

Vejamos, então, as outras características do signo lin-guístico que fazem da língua um sistema especial, sempre dentro da nossa perspectiva de entendermos melhor a no-ção de sistema em Saussure, já que signo, como vimos, só existe para saussure enquanto elemento de um sistema.

a exclusão da coisa

Para Fehr (2000), o que é transmitido através da fala ou o que saussure diz que “passa de boca em boca” não é o objeto externo, mas precisamente os signos. É, então, para poder pensar as alterações a que está sujeito o signo, no seu processo de transmissão, que Saussure o desvincula do objeto dado anteriormente, fora da língua. Portanto, uma das significações, para a teoria dos signos, da alteração da língua no tempo, é a de poder deslocar o olhar da relação entre objeto e signo, para a relação entre os signos.

Embora isto não signifique dizer que a relação en-tre signo e objeto não seja pertinente, mas apenas que ela não dá conta de um elemento singular: a questão da transmissão dos signos e suas consequentes alterações.

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Além disso, podemos ver que a crítica que Saussure faz à idéia tradicional de signo enquanto nomenclatura, ou enquanto “uma lista de termos que corresponde a outras tantas coisas” (SAUSSURE, 1996, p. 79), fazendo ver que o signo linguístico não remete a algo que está no exterior do sistema (que seria o objeto), mas que a sua referência é interna, constitui-se em um ponto importante, diferen-cial, para a compreensão do sistema linguístico. Se o sig-no estivesse “colado” a um objeto, haveria entre os dois um laço racional e, portanto, susceptível de ser desfeito individualmente. diferente do que se tem na constituição do signo, na relação entre significado e significante, que é arbitrária. Questão que, veremos, é fundamental para a noção de valor linguístico.

Quanto à arbitrariedade do signo

Se os signos não têm base exterior dada, se não se pode reduzi-los a uma relação natural, em que eles são fundados? Conforme está colocado no CLG, o que rege a relação entre significante e significado é uma convenção, um arranjo social, sem que se possa explicar “racional-mente” como tal ligação se dá.

saussure explica bem esta fundação arbitrária para o signo no seu segundo curso de linguística ge-ral. segundo as anotações de riedlinger (apud. FeHr, 2000, p. 133), ele diz, entre outras coisas que “se há um domínio no qual a legislação aparece como lei a qual

nos submetemos e não como lei que fazemos, eis quan-do se trata da língua”.

Portanto, se há um contrato, uma convenção, em se tratando de língua, não significa dizer que as leis de tal contrato sejam feitas por alguém, mas, sim, que a elas estão submetidos os falantes da língua.

Assim, dizer que o elo entre significante e signifi-cado é arbitrário é, em primeiro lugar, sair da referência externa que era dada para as palavras da língua e, defi-nitivamente, como acredita Normand (1990), colocar a ênfase no sistema. Depois, mostrar que se há leis que re-gem a relação dentro de um signo e, consequentemente, as relações no sistema linguístico, elas não foram feitas por alguém, mas pertencem à coletividade. Dessa forma, a noção de arbitrariedade coloca para o exterior um tipo de sujeito falante, aquele que teria consciência e domínio de tudo o que diz, já que a questão da ligação forma e sentido está fora da sua compreensão, ou melhor, a se-paração entre forma e sentido é impossível para o sujeito falante, visto que sua consciência está restrita ao signo enquanto totalidade.

Enfim, o signo é arbitrário porque nada de fora o explica, ele não tem explicação e não pode ser compre-endido senão dentro do sistema da língua que tem sua ordem própria.

Há ainda um outro caráter fundamental, presente na noção de arbitrariedade do signo, para que se pen-se um sistema linguístico que gera valores. ele aparece

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nas anotações de riedlinger (apud FeHr, 2000, p. 133), quando saussure diz que “o interessante no signo a ser estudado são os aspectos através dos quais ele escapa a nossa vontade. É lá que está a esfera verdadeira, pois não podemos mais reduzi-la”. Ora, é quando pensamos na arbitrariedade, na formação social da língua que podemos dizer, como Saussure o fez, que ela escapa ao sujeito fa-lante, pois escapa à sua vontade. Vontade de transformá--la e até mesmo de produzir um sentido único.

A noção de arbitrariedade também reforça a idéia de que não há “origem” para os termos da língua porque o contrato primitivo se confunde com o que se passa todos os dias na língua, melhor dizendo, o momento do “acordo” não é distinto dos outros e, ainda mais importante, ao se deixar deter pela questão da origem, deste momento pri-meiro em que os acordos foram feitos, deixa-se de pensar o essencial que, para Saussure seria: 1) que um sistema de signos, como o da língua, é recebido passivamente pe-las sucessivas gerações; 2) que em todo caso um sistema de signos terá por característica ser transmitido em condi-ções bastante diferentes daquelas que o constituíram; 3) que o sistema ao se transmitir se altera tanto do lado do significante quanto do significado.

no esboço destinado a um artigo em homenagem a Whitney, Saussure (apud FeHr, 2000, p. 131) apresenta a questão da arbitrariedade defendendo duas teses: 1) a arbitrariedade do signo faz a língua diferente de qualquer outra instituição; 2) por conta da arbitrariedade do signo,

a língua escapa a toda regra “corrigível ou dirigível pelo espírito humano”.

resumindo: a noção de arbitrariedade do signo apresenta características importantes para a constituição do sistema linguístico, quais sejam:

1) O signo não tem uma referência externa, portan-to só pode ser compreendido dentro de um sistema ;

2) A língua escapa ao sujeito falante, pois não é ele quem determina suas relações, ele apenas as recebe, como tesouro resultado de uma coletividade;

3) não se pode explicar uma origem para os signos porque todo o seu funcionamento, sua vida, acontece na relação com os outros signos em um sistema. para que isto aconteça, é fundamental que o “contrato” entre signi-ficante e significado não tenha sido obra individual, cons-ciente, baseado em alguma racionalidade.

a segunda característica liga a arbitrariedade do signo a uma característica colocada para a língua: seu caráter social.

Por isto, Normand (2000, p. 65) afirma que “ar-bitrário e social são duas maneiras de designar a mes-ma propriedade fundamental da língua, a existência de uma ordem interna que nada determina fora do estado momentâneo de seus termos”. Vale a pena refletirmos um pouco mais sobre esta relação entre arbitrário e social porque é nela que reside, na opinião de Fehr

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(2000) e Normand (op. cit.), o equilíbrio do sistema linguístico.

A interpretação sociológica de Saussure, feita por Meillet, desde 1916, não privilegia senão a natureza so-cial da linguagem, “reduzindo o arbitrário à convenção e negligenciando tudo o que concerne ao valor, portanto à semiologia” (norMand, op. cit., p.127).

É certo que a caracterização da língua como social persiste em todo o curso, mas ela é de uma outra espécie da que é estabelecida por Meillet e Whitney.

Meillet, preocupado com as causas das mudanças linguísticas, se propôs a estudar as variações correlati-vas da sociedade e da língua, enquanto Saussure retirou da linguistica interna qualquer possibilidade de considera-ções sobre a língua e algo exterior a ela.

não se trata de negar o papel da sociedade no cam-po linguístico, muito pelo contrário, trata-se de

situá-la em um nível mais fundamental: a sociedade é condição de existência da língua e o movimento constitui o princípio de uma e da outra, os signos só existem na e através da massa social que os coloca em circulação nas trocas de falas; assim se faz a transmissão da língua que não é recebida de outra forma senão por herança (nor-MaMd, 2000, p.128). Os signos que constituem a língua são, por nature-

za, já que são sentido e forma material ao mesmo tempo, colocados para o uso social que os modifica.

A modificação do signo por sujeitos que não são dela conscientes nem a podem operar de forma consciente é a prova rigorosa da noção de arbitrário. Ou seja, é porque os signos dependem, na sua existência e seu destino, da sociedade que eles podem mudar.

Assim, podemos dizer que os signos são indissocia-velmente arbitrários e sociais.

Esta ligação entre arbitrário e social é bem presente no CLG, mas passou muito tempo sem ser enfatizada, na opinião de Normand (op. cit.), devido à ênfase estrutura-lista no caráter estático da língua. Foi necessário o estudo de manuscritos inéditos, principalmente os cadernos so-bre as lendas germânicas, para que fosse dada a impor-tância devida a tal ligação.

É assim que podemos ver na relação entre signos da língua e símbolos da lenda a idéia de uma constante transformação, mas também o caráter constitutivamente social que permite que pensemos que os signos, como os símbolos, não devem variar incessantemente. Portanto, ponto de equilíbrio para o sistema linguístico, marcado por duas idéias: sua constante modificação, pelo fato de estar condenado a ser transmitido e a noção de social, diretamente ligada, como vimos, à de arbitrário.

saussure aponta para esta questão do equilíbrio nos seus estudos sobre a lenda germânica (apud. FeHr, 2000, p. 102):

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- A lenda compõe-se de uma série de símbolos <em um sen-tido a precisar>. “- Estes símbolos, sem dúvida, estão submissos às mesmas variações e às mesmas leis que todas as outras séries de sím-bolos, por exemplo, os símbolos que são as palavras da língua.“- todos eles fazem parte da semiologia.“- Não há nenhum método que leve a supor que o sím-bolo deva permanecer fixo, nem que ele deva variar in-definidamente, ele deve, provavelmente, variar dentro de certos limites.“- A identidade de um símbolo não pode ser fixada des-de o instante em que ele é símbolo, isto é, colocado na massa social que a cada instante determina o seu valor. (grifos do autor)

Sobre as mudanças, Saussure também fala (apud norMand, 2000) de algo que ele considera fantástico no sistema linguístico: é que as mudanças diacrônicas podem, uma vez ou outra, “atrapalhar”, “desfazer” uma sequência que parecia lógica e organizada no sistema, não importa, o sistema sempre será “refeito” de forma a continuar funcionando perfeitamente, arrumado segundo uma lógica qualquer, imposta, obviamente, pelo social.

Quanto ao caráter linear do significante

Uma outra característica do signo que será também fundamental para compreender o sistema linguístico é co-locada, no capítulo sobre a natureza do signo linguístico, do CLG, apenas para o significante. Entretanto, no capítu-

lo sobre as relações associativas e sintagmáticas, do CLG, vemos Saussure passar a falar, sem qualquer explicação, em caráter linear da língua.

Arrivé (1999, p.50) explica que isto acontece porque “a linearidade atravessa os limites dos signos: o encadea-mento dos signos é tão linear quanto o dos significantes. Sendo a língua um sistema de signos, torna-se possível falar da linearidade da língua”. (grifo do autor)

Entretanto, para tratarmos do sistema, importante é saber que o caráter linear da língua é o que dá a base para pensarmos as relações que são estabelecidas dentro de um sintagma, como veremos melhor mais adiante.

Portanto, a idéia de signo, em Saussure, abre um leque de “leis” ou características que preparam ou consti-tuem uma noção mais geral, como estamos insistindo, que é a de sistema linguístico. Podemos dizer, conforme Amaker (1975) que o pensamento teórico de saussure articula-se segundo dois pontos de vista. O primeiro, semiológico, é o da língua enquanto sistema de signos e o segundo, pro-priamente linguístico, da língua enquanto sistema de va-lor. Nos dois, como vimos, há sistema. Passemos, então, à abordagem da língua enquanto sistema de valor.

O valor linguístico

A teoria linguística saussuriana, assegura-nos Nor-mand (2000), é uma tentativa de pensar a significação fora do quadro das semânticas clássicas, a partir da especifici-

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dade (identidade) das unidades “flutuantes”, isto é, a partir da compreensão de que não há identidade possível para o signo fora do sistema. Portanto, toda a questão do sentido para saussure está dentro do sistema e não há um a priori possível nem para a palavra nem para o sentido.

se a semântica de saussure não foi bem aceita ou sequer compreendida não é por ele não ter tratado dela, mas porque os termos que usou, a sua perspectiva de sentido é toda outra, diferente daquela dos filósofos da sua época.

A noção de arbitrariedade do signo é exemplo fun-damental desta diferença do caminho saussuriano do sen-tido, pois quando ele diz que os signos não têm relação com aquilo que eles designam, ele faz uma diferença radi-cal em relação ao pensamento filosófico sobre linguagem, afinal, importava para os filósofos a relação entre lingua-gem e objeto, ou seja, a relação de referência externa.

Fora do uso e de suas variações, não há nenhuma garantia da significação dos signos. Ou, segundo Normand (2000, p. 147):

sem que uma teoria semântica específica seja desenvolvida, o sentido, como já vimos, é onipresente em seus desenvolvi-mentos porque é através desta propriedade primeira que são definidas as unidades linguísticas: elas não são reais a não ser que sejam significativas para os locutores.

Uma observação: as palavras sentido e significação

se alternam sem que se possa constatar, nem no CLG nem

nas notas, uma diferença entre as duas. Há apenas uma definição de Saussure, feita de forma negativa mas defi-nitiva: o valor não é a significação.

o melhor caminho para compreendermos a noção de semântica em Saussure é através do estudo do valor linguístico, segundo nos assegura Normand (op. cit.).

A noção de valor linguístico, desenvolvida mais es-pecificamente já no final do terceiro, e último, curso de linguística geral de Saussure, não provoca guerra ou con-trovérsia, como assinala Normand, entre os estudiosos. A tendência maior é neglicenciá-la ou subestimá-la na sua relação com os outros conceitos. Entretanto, ela sublinha que “este termo adotado, como assinalam todos os cader-nos dos auditores, com tudo o que tem de claro e obscuro, resume e reúne todo o conteúdo de arbitrário, social e sistema e constitui o pivô da semiologia” (norMand, op. cit., p. 148). Tal é a importância desta noção.

A questão dos valores linguísticos é, antes de tudo, a compreensão de um mecanismo próprio às línguas, no qual um elemento só pode ser reconhecido, estudado, se percebido em sua relação com os outros dentro de uma mesma língua. Dessa forma, valor reúne características do sistema linguístico, colocadas anteriormente para a lín-gua enquanto sistema de signos.

A relação, por exemplo, entre arbitrariedade do sig-no e valor linguístico é fundamental. Para Fehr (2000), os signos linguísticos sendo, por princípio, arbitrários e, por isto mesmo, não tendo outra sustentação senão a do

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valor que têm em um sistema de uma língua, não são jamais suscetíveis de uma determinação absoluta. a sua determinação dependerá sempre da relação com os ou-tros signos. Assim sendo, como tem sido repetido, eles não podem formar um sistema fechado, pois “um signo, formado por uma combinação de valores fônicos e signifi-cativos, mostrar-se-á em princípio instável e sujeito à mudança” (FeHr, op. cit., p. 139. Grifos do autor).

A própria existência do signo, a relação entre sig-nificante e significado, só pode ser explicada dentro da idéia de valor linguístico. Para Saussure, se há alguma identidade no signo, alguma positividade, ela é arbitrária e sem qualquer noção de anterioridade, ou seja, as idéias não preexistem aos sons assim como nem idéia nem som preexistem fora do sistema. o pensamento não passa de uma massa amorfa e é a língua que o organiza.

o famoso esquema das massas amorfas serve para explicar essa relação dentro do signo. Fora da língua, Saussure acredita que existam apenas uma série de sons e uma série de idéias, nebulosas, ainda sem qualquer ca-racterística linguística, sem que se possa considerá-las elementos da língua. Quando estes elementos entram em relação com os outros, Saussure afirma existir um corte nas massas nebulosas e, a partir deste corte, uma exis-tência linguística, porque sistêmica.

A língua é vista, então, como um conjunto onde há sempre subdivisões sendo feitas na massa das idéias e dos sons, ao mesmo tempo. Nas palavras de Saussure

(1996, p.130): “como uma série de subdivisões contíguas marcadas simultaneamente sobre o plano indefinido das idéias confusas e sobre o plano não menos indeterminado dos sons”.

assim como não se pode cortar uma folha de papel sem cortar, ao mesmo tempo, seus dois lados (frente e ver-so), Saussure diz que não se pode isolar o som do pensa-mento e vice-versa. Isto é, depois do corte feito nas massas amorfas do pensamento e do som, resta o signo e é apenas assim que ele é reconhecido pelos falantes da língua.

A pergunta que surge, ao falarmos dos cortes ou das subdivisões na massa amorfa dos sons e das idéias, é inevitável: quem faz o corte?

descartamos a possibilidade de ser o indivíduo já que ele, sozinho, nada constrói ou muda em uma língua. Resta a idéia de língua enquanto coletividade, social. Ou seja, é a coletividade quem cria os valores, procedendo a cortes nas massas dos sons e das idéias e, assim, fazendo com que se forme um todo, o signo, dentro de um sistema.

Mais que isto, o corte é arbitrário, não deixando ne-nhum vínculo lógico entre os sons ou as idéias, isto é, não só os dois elementos (som/idéia – significante/significa-do) são, isoladamente, amorfos como a ligação entre eles é perfeitamente arbitrária. Se assim não o fosse, a noção de valor, segundo Saussure, perderia algo de seu caráter, pois conteria algo que vem de fora.

Tullio de Mauro chama a atenção (1995, p. 464 - nota 228,) para a redação do final do parágrafo do CLG

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no qual se lê: “Mas, de fato, os valores continuam a ser inteiramente relativos, e eis porque o vínculo entre a idéia e o som é radicalmente arbitrário.” Ele dirá que este é um exemplo de redação infeliz do puro pensamento saussu-riano, pois há, nela, uma inversão de consequências de tal forma que fica entendido que o caráter arbitrário do signo advém da relatividade do valor. Mas é o contrário o que está presente nas fontes manuscritas. o caráter arbitrário vem primeiro, é ele que determina a relatividade do valor. ele cita um trecho de engler que não deixa dúvidas:

Se não fosse o arbitrário não haveria relatividade na idéia de valor, existiria um elemento absoluto. Sem ele os valores se-riam, em uma certa medida, absolutos. Mas visto que esta união é perfeitamente arbitrária os valores serão perfeitamen-te relativos (apud Mauro, op. cit., p. 464).

Portanto, a coletividade estabelece os valores, de forma arbitrária e é por isto que eles são sempre relati-vos, nunca absolutos.

sendo o corte que determina a formação de valores coletivo e arbitrário, ou melhor, não havendo determina-ção consciente de uma coletividade que, reunida, resol-vesse fazer tais ou tais cortes, o sistema linguístico pare-ce dar conta de uma certa estabilidade. Idéia que, assim como o valor, é relativa, pois o sistema linguístico contém, como estamos insistindo, constância e mudança ao mes-mo tempo. Vejamos um pouco mais sobre esta questão.

Uma leitura cuidadosa, do CLG e das anotações de

Constantin ( Komatsu e Harris, 1993), mostra-nos que Saussure, nas últimas aulas do seu terceiro curso, nas quais expôs sua idéia de valor linguístico, embora tenha reconhecido que na língua existem dois tipos de relações (associativas e sintagmáticas) e que cada uma delas é ge-radora de uma certa ordem de valor, fala detalhadamente da relação associativa, deixando um pouco à margem a discussão sobre as relações sintagmáticas.

este ponto parece-nos extremamente importante porque nele a idéia de sistema fechado parece ser re-forçada. É que podemos dizer que ao privilegiar, de uma certa forma, as relações associativas, pode parecer que saussure tenha dado destaque ao que está “do lado da língua”, das relações estabelecidas pela coletividade, que são dadas como herança aos sujeitos falantes.

Onde fica, então, a característa da língua de ser des-tinada à transmissão e, assim, estar sujeita à variação?

Pensamos que ela está, ao mesmo tempo, na asso-ciação e no sintagma.

Nas relações associativas, porque este tipo de rela-ção, embora contenha uma certa idéia de estabilidade, por fazer parte da língua, por não estar sujeita às interferências individuais do sujeito falante, contém, ao mesmo tempo, a possibilidade de valores diversos, pela sua natureza ilimi-tada. Assim, é exatamente por fugir ao controle do sujeito falante que o paradigma permite que a língua seja consti-tutivamente heterogênea, possibilidade de relações que não podem estar retristas nem pelo espaço nem pelo tempo.

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Ao mesmo tempo, como dissemos, a possibilida-de de variação para a língua também está no sintagma porque é neste tipo de relação que o sujeito falante está presente, estabelecendo oposições entre os elementos da língua em uma cadeia linear. como o falante tem um vas-to leque de possibilidades, ele pode estabeler relações as mais diversas, permitindo a mudança.

Quando falamos em valor linguístico, dissemos logo no início, lembramos, necessariamente, de significação ou sentido. está claro para os estudiosos de saussure (entre eles normand e bouquet) que a noção de valor em saus-sure é uma noção que trata da constituição do sentido na língua. Assim sendo, o sistema linguístico saussuria-no é um sistema que produz sentidos e a noção de valor apresenta-se como um elemento que permite entender de que forma estes sentidos são produzidos. Entretanto, saussure mostra-se preocupado em explicar que não se deve confundir o que ele chama geralmente de significa-ção (valor interno do signo, ou a parte do sentido interna ao signo) com valor. O valor é relacional, depende das duas relações e distingue-se, assim, da face significante do signo linguístico, o outro lado da “folha de papel”, à qual ele deu o nome de significado.

Assim como não se pode isolar o conceito do som, no signo linguístico, não se pode, também, considerar o valor apenas no seu aspecto conceitual ou, por ou-tro lado, apenas no seu aspecto material. Sendo assim, Saussure (1996, p. 134) procura deixar claro que valor

e significação são coisas bem diferentes, pois o valor de uma palavra

não estará fixado enquanto nos limitarmos a comprovar que pode ser ‘trocada’ por este ou aquele conceito, isto é, que tem esta ou aquela significação; falta ainda compará-la com os valores semelhantes, com as palavras que se lhe podem opor.

Diz que as palavras podem até ter a mesma signi-ficação, mas não terão o mesmo valor linguístico. Assim, apresenta o valor como regido por um princípio parado-xal, pois ele é sempre constituído:

1º por uma coisa dessemelhante, suscetível de ser tro-cada por outra cujo valor resta determinar; 2º por coisas semelhantes que se podem comparar com aquela cujo valor está em causa.. (Saussure, 1996, p. 134)

Vemos claramente um avanço na idéia de relações linguísticas, pois depois de verificar que os elementos lin-guísticos não podem ser compreendidos senão nas rela-ções que mantêm uns com os outros. Saussure, especi-ficando melhor sua noção de valor, diz que há nela um princípio paradoxal, isto é, duas relações diferentes mas que estão, ambas, presentes, na noção de valor: uma que indica semelhanças e outra diferenças. Confirmando que estas relações são indissociáveis, Saussure dirá (op. cit., p. 135) que o valor de qualquer termo depende do que está fora e ao redor dele. Este “fora”, obviamente, não

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pode ser confundido com um fora da língua, idéia que Saussure faz questão de rejeitar quando reflete sobre a natureza do signo linguístico. Na verdade, trata-se, como veremos mais adiante, de outros elementos da língua que poderiam substituir um certo elemento presente na ca-deia sintagmática. Parece-nos, portanto, uma ausência na presença.

Portanto, ao tentar separar significação de valor, compreendemos que saussure procura deixar claro que o valor linguístico não pode ser considerado levando-se em conta apenas uma das relações. É preciso ver as duas, em funcionamento, para que se possa compreender o valor.

Saussure insiste na idéia de que no sistema não se tratam de idéias dadas previamente, mas de valores que dele emanam. Os valores são puramente diferenciais, “definidos não positivamente por seu conteúdo, mas ne-gativamente por suas relações com os outros termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os ou-tros não são.” (saussure, 1996, p. 136)

da mesma forma que defende que o valor não pode ser considerado apenas no seu aspecto conceitual, Saus-sure diz que o mesmo se dá com o seu aspecto material que não pode ser obervado separadamente, pois “o que importa na palavra não é o som em si, mas as diferenças fônicas que permitem distinguir essa palavra de todas as outras, pois são elas que levam à significação” (saus-sure, op. cit., p. 137). Portanto, para ele está claro que, quer se trate de conceito ou do aspecto material da lín-

gua, “jamais um fragmento de língua poderá basear-se, em última análise, noutra coisa que não seja sua não--coincidência com o resto” (saussure, op cit., p. 137). Sendo assim, qualquer elemento da língua deve ser con-siderado como entidade opositiva, relativa e negativa.

Afirmar que na língua só existem diferenças, sem termos positivos, equivaleria a dizer que “quer se conside-re o significado, quer o significante, a língua não comporta nem idéias nem sons preexistentes ao sistema linguístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas resultantes deste sistema” (saussure, op. cit., p. 139).

Entretanto, Saussure alerta para o fato de que dizer que na língua tudo é negativo só é verdade se se tomar o significante e o significado em separado, já que o signo, em sua totalidade, é uma coisa positiva. Tullio de Mauro diz que esta passagem é de grande importância teórica, pois dizer que o signo é uma realidade positiva é dizer que ele é uma entidade concreta. Mais que isso, segundo o autor (MAURO, 1995, p. 466-467 - nota 242), “subsiste entre os signos uma relação de oposição que saussure tende a conceber como diferente da relação de diferença”.

Ainda, “conquanto o significado e o significante se-jam considerados, cada qual à parte, puramente dife-renciais e negativos, sua combinação é um fato positivo” (saussure, 1996, p. 140).

Portanto, a comparação dos elementos internos de um signo pode se dar em termos de diferenças, mas a que se faz entre os signos só pode ser chamada de opositiva.

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Ou, ainda, “na língua, como em todo sistema semiológi-co, o que distingue um signo é tudo o que o constitui. A diferença é o que faz a característica, como faz o valor e a unidade” (saussure, op. cit., p. 140-141).

percebemos que o sistema linguístico saussuriano e sua idéia de valor contém um “equilíbrio” desconcertante entre a mudança e a estabilidade. todo o funcionamen-to que podemos compreender deste sistema, baseado na idéia de valor, é perturbador pela insistência da convivên-cia dialética entre algo que se modifica constantemente e algo que continua.

Parece-nos poder dizer, inclusive, que o valor lin-guístico não é apenas o que os estudiosos chamam de pensamento último de Saussure, núcleo de suas reflexões, mas, também, um pouco o resumo de toda a capacidade de Saussure, já vista aqui, de trabalhar com os elementos em uma constante dialética.

É isto que se dá na noção de positividade. saussu-re está sempre tentando defender uma certa positividade para o signo ao mesmo tempo em que reconhece que na língua tudo se passa através de diferenças.

Insistimos, a noção de valor talvez tenha seu ponto mais luminoso na possibilidade de se ver, através dela, toda a dialética que funda o pensamento saussuriano e que não pode ser compreendida, com clareza, quando se trabalha suas noções de forma separada, fora do sistema.

Continuando com a sua idéia de que tudo na língua se baseia em relações, Saussure se pergunta como estas

relações funcionam. É assim que chega às relações asso-ciativas e sintagmáticas.

Relações sintagmáticas e associativas

Saussure começa sua reflexão sobre as relações que se estabelecem na língua, afirmando que as diferen-ças e relações entre termos linguísticos se desenvolvem em duas esferas distintas, cada uma das quais é geradora de uma certa ordem de valores.

um primeiro tipo de relações são aquelas em que

os termos estabelecem entre si em virtude de seu encade-amento, relações baseadas no caráter linear da língua, que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mes-mo tempo. estes se alinham um após outro na cadeia da fala (saussure, op. cit., p. 142).

São, portanto, relações opositivas as que os termos estabelecem entre si na cadeia sintagmática. relações que têm como base o princípio da linearidade colocado, como vimos, para o significante.

o outro tipo de relações que os termos estabele-cem entre si na língua são as relações associativas ou paradigmáticas. saussure dá a seguinte explicação: “fora do discurso, as palavras que oferecem algo de comum se associam na memória e assim se formam grupos dentro dos quais imperam relações muito diversas” (saussure, op. cit., p. 143).

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Diferenciando as duas relações, ele diz que a rela-ção sintagmática existe in praesentia; repousa em dois ou mais termos igualmente presentes numa série efetiva. Ao contrário, a relação associativa une termos in absentia numa série mnemônica virtual.

É fundamental, para a leitura da teoria saussuriana que fazermos neste livro, a idéia da relação associativa “unir” termos na ausência, pois, se assim o é, entende-mos que podemos dizer que o termo que permanece, res-ta, na cadeia sintagmática, não apaga os outros termos da relação associativa, já que estes estão a ele unidos em uma espécie de “memória”, de “tesouro da língua”?15 o que parece acontecer com frequência nas leituras que são feitas de Saussure é o esquecimento da relação asso-ciativa e a insistência em considerar o sistema linguístico apenas no que diz respeito às relações que acontecem na cadeia sintagmática. O que significa, entre outras coisas, perder de vista que a “presença” que se observa nestas relações, como foi dito, guarda, sempre, algo da “ausên-cia” da relação associativa. Então, perde-se, na verdade, a concepção de sistema pensada por saussure já que nele as duas relações são inseparáveis.

esclarecendo melhor como seriam as relações as-sociativas, Saussure (op. cit.) diz que elas são variadas e podem se dar tanto com relação ao sentido e à forma, juntos, como apenas com a forma ou com o sentido sepa-radamente. dá o exemplo de ensino, ensinamento e ensi-

15 os termos entre aspas são usados por saussure.

nemos, cuja associação se dá pela forma (o radical que é comum nas três palavras); por outro lado, palavras como ensino, instrução, aprendizagem, educação teriam uma associação ligada aos seus significados. Seja como for, “uma palavra qualquer pode sempre evocar tudo quanto seja suscetível de ser-lhe associado de uma maneira ou de outra” (saussure, 1996, p. 146).

É importante observar que embora a relação asso-ciativa pareça apresentar-se ilimitada, já que as associa-ções que suscitam uma palavra, segundo o próprio Saus-sure, “não se apresentam nem em número nem numa ordem determinada” ( op. cit.,p. 146), esta falta de limi-tes só se dá se esta relação for pensada separadamente. se compreendida como parte das relações que se esta-belecem no sistema linguístico, entendemos que haverá, sempre, o limite imposto pelas relações sintagmáticas. O que nos mostra, mais uma vez, o perigo de se ver ape-nas uma das relações independente da outra. parece-nos que durante suas reflexões, desde a natureza do signo linguístico, passando pela idéia de identidade, de valor e chegando às relações sintagmáticas, podemos perceber saussure tentando mostrar que as duas relações aconte-cem, na língua, ao mesmo tempo, de forma inseparável. E isto seria exatamente o que faz com que uma língua seja como tal reconhecida.

Importante também é observar que, ao fazer re-ferência às relações associativas, Saussure diz que elas se dão “fora da língua”. Se voltarmos à idéia de arbitra-

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riedade, entenderemos que este fora não se dá, como já enfatizamos, com relação a um referente externo à língua (como talvez a expressão deixe resvalar), mas a um ele-mento que, mesmo estando fora da cadeia sintagmáti-ca, está marcado na memória de um outro elemento nela presente, ou seja, um elemento que pertence ao siste-ma da língua e só pode ser considerado como “fora” se relacionado às relações sintagmáticas. o que nos leva a crer que considerar as duas relações como inseparáveis pode, inclusive, esclarecer melhor questões que ficaram, segundo a opinião de alguns estudiosos16, confusas nas reflexões de Saussure.

Fehr (2000) faz considerações importantes sobre este lugar no qual estariam inscritas as relações associativas.

são várias as explicações que podemos encontrar para este lugar, no CLG, entre elas: na memória, incons-ciente ao espírito, no cérebro, “parte desse tesouro inte-rior que constitui a língua de cada indivíduo” (SAUSSURE, 1996, p. 143), no sub-consciente e, segundo anotação de Riedlinger: “em uma consciência latente”. Parece claro, na compreensão de Fehr, que o que faz o elo entre todas es-tas variações é que elas ligam as relações associativas ao sujeito falante, o que marca definitivamente a presença do sujeito falante nos estudos saussurianos.

16 Michel Arrivé é um dos que questiona a noção de arbitrarie-dade, dizendo que ela não está ainda suficientemente demons-trada e, por isso, deve ter um caráter secundário na obra de Saussure, apenas como um princípio que serve para introduzir um outro: o de valor linguístico.

Como se daria, então, a relação entre a idéia das re-lações associativas como sistema cuja produção de valor, como vimos acima, implica um corte arbitrário e social, com a idéia de Fehr de que neste tipo de relação haveria a presença do sujeito falante?

parece-nos que com esta relação poderemos pensar em um perfil do sujeito falante saussuriano. Senão, veja-mos. o paradigma implica na presença de um sujeito falante em cuja “consciência”, como em uma espécie de virtuali-dade, os valores possíveis estariam guardados. É preciso, então, pensar que tipo de sujeito falante é este. Dentro do que temos visto das noções de Saussure, principalmente da idéia de que a língua é social e que, portanto, há uma es-pécie de valor que é gerado dentro do seu sistema, especi-ficamente a partir das relações associativas, podemos dizer que, se o sujeito está presente nas relações associativas, ele o está de forma passiva, condenado a significar dentro dos acordos sociais, pré-estabelecidos, os quais ele herda.

É no sintagma que podemos ver a presença de um sujeito falante, aparentemente exercendo sua individuali-dade, fazendo as escolhas possíveis, mas organizando-as conforme sua “vontade”.

Entretanto, é na união das duas relações que se tem um sujeito de fala que, assim como o sistema linguís-tico, caminha entre a homogeneidade de um sentido que produz e que permite que ele fale, e a heterogeneidade dos sentidos que sempre lhe escapam porque frutos de uma coletividade, “criações” arbitrárias.

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A relação entre língua e sujeito de fala é, portan-to, bastante dialética porque podemos dizer que ele a constitui, já que é através dele que ela é transmitida e, ao mesmo tempo, é constituído por ela, pois sempre es-capa ao seu controle, dando-lhe possibilidades infinitas de significação.

sabendo que a relação associativa funciona na au-sência e que seu modo de agrupamento dá-se sem que se tenha número nem ordem definida de elementos, Fehr defende que estas caracteríticas estão longe de preenche-rem os requisitos para participarem de uma linguística da língua, conforme aparece no CLG, com um sistema fecha-do. Para ele, pelo contrário, a presença das relações asso-ciativas é exatamente o que permite pensar as mudanças, as variações.

lembremos que Fehr (2000) mostra que para saus-sure a língua existe, enquanto sistema de signos, porque circula, porque é transmitida de boca em boca e, assim, modificada continuamente. Ora, esta capacidade de mo-dificação está relacionada ao sistema latente das relações associativas que, segundo ele (FEHR, op. cit., p. 157), “não são jamais plenamente circunscritas nem idênticas e estão condenadas a variar”.

Entretanto, já que nem o número nem a ordem dos elementos da cadeia associativa são estabelecidos ante-riormente, o mecanismo da língua faz “funcionar” um ou-tro elemento que dará, então, uma certa determinação a este sistema: o sujeito falante. É ele quem, na opinião de

Fehr, determina caso a caso as combinações associativas, limitando-as. E esta determinação, sabemos, acontece através das relações sintagmáticas.

Pode-se dizer que as relações associativas, pelas ca-racterísticas que apresentam podem não ter sido conside-radas importantes para a linguística, entretanto, Saussure sempre destacou sua importância. Vejamos, por exemplo, uma passagem das anotações de Riedlinger, citada por Fehr (op. cit., p. 154), na qual ele fala das duas relações, mas enfatiza que é a relação associativa que é fundamen-tal para o mecanismo da língua:

nesta massa de elementos da qual dispomos virtual mas efe-tivamente, neste tesouro, fazemos as associações: cada ele-mento faz-nos pensar em outro: tudo o que é semelhante e diferente, de alguma forma, apresenta-se ao redor de cada palavra, de outra forma o mecanismo da língua seria impos-sível.

Há, na idéia das relações associativas, uma ques-tão que saussure já havia formulado desde a lição para a aula inaugural de genebra que era a de saber se os fatos linguísticos são resultado de atos de nossa vontade. Fehr mostra que tal preocupação também aparece no acom-panhamento atento que saussure faz de um caso de uma médium, estudado pelo psicólogo Flournoy.

A questão colocada, por Flournoy, para Saussure, era a de saber se a língua que a médium falava, em tran-se, era sânscrito. Saussure fez vários estudos da fala da

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senhora e, em uma de suas conclusões, mostrou que não havia indícios claros de que ela falava sânscrito, mas que ele podia perceber, na sua fala, uma espécie de memó-ria linguística de várias línguas, difícil de ser explicada já que a senhora não conhecia outras línguas. de qualquer forma, fica claro, também nestes estudos, que há, para Saussure uma “memória latente” – denominada relação associativa, nas aulas de linguística -, que sustenta toda uma possibilidade significativa, para as línguas, e que ela não pode ser acessada a não ser pelo sujeito falante que, no entanto, não o faz conscientemente.

Voltemos um pouco ao CLG, para vermos que lá há, também, a necessidade de mostrar que as duas rela-ções estão ambas presentes no sistema linguístico. saus-sure mostra (1996, p. 150) isto através da análise das palavras: desfazer e quadruplex. ele toma desfazer, por exemplo, para mostrar que ela pode ser representada em uma faixa horizontal e decomposta em duas unidades: des / fazer, que suscitam séries associativas do tipo:

des - FaZer

descolar fazer deslocar refazer descoser contrafazer etc etc.

Estas séries, segundo Saussure (1996), “flutuam em derredor” de desfazer possibilitando que ela seja decom-posta em unidades, ou melhor, possibilitando que possam acontecer as relações sintagmáticas. Portanto, “desfazer não seria analisável se outras formas contendo des ou fazer desaparecessem da língua; não seria mais que uma unidade simples e suas partes não poderiam opor-se uma à outra” (saussure, op. cit., p. 150. Grifos do autor). lembramos que saussure diz que esta análise se apli-ca não apenas à palavra (como o exemplo pode indicar), mas a frases de todos os tipos.

É importante observar que a associação está presen-te no sintagma e que uma estrutura linguística não pode prescindir da análise das relações associativas que apon-tam sempre para uma ausência, de certa forma, presente no discurso. É claro que esta ausência guarda sempre algo de inapreensível, pois, como foi dito anteriormente, as re-lações associativas são ilimitadas. Entretanto, é necessá-rio insistir que alguns limites são estabelecidos na cadeia sintagmática e que são estes limites que poderão permitir a apreensão, embora sempre parcial, da falta. Mais uma vez, lembramos o que reivindica Pêcheux (1990) para a ad enquanto disciplina interpretativa: a presença de um real que não pode ser apreendido como um todo, mas que existe produzindo efeitos.

saussure diz que temos uma “memória” com todos os tipos de sintagmas e que quando precisamos empre-gá-los fazemos intervir grupos associativos para fixar-

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mos nossas escolhas. Trata-se, ao mesmo tempo, de um procedimento de fixação e de escolha, em uma opera-ção que “consiste em eliminar mentalmente tudo quanto não conduza à diferenciação requerida no ponto requeri-do” (saussure, 1996, p. 151), na qual os agrupamen-tos associativos e os tipos sintagmáticos estão ambos em jogo. Dessa forma, um elemento, ao ser escolhido den-tre outros, na memória linguística, passa pela restrição dos grupos associativos, como o diz Saussure e também pela restrição da cadeia sintagmática onde estará em re-lação opositiva com outros elementos da língua. Portanto, os elementos linguísticos são escolhidos ao cabo de uma operação mental dupla: uma de oposição sintagmática e outra de substituição paradigmática.

Vejamos um pouco mais sobre o funcionamento dos dois tipos de relações, no sistema linguístico, que forma o que saussure chama mecanismo da língua.

se sausssure diz que cada relação gera um tipo diferente de valor e se, para ele, as duas devem existir para que o mecanismo da língua seja completo, é preciso pensar que é possível também falarmos de um valor ge-rado na intersecção das duas relações. No CLG, a ênfa-se na interdependência entre as relações está colocada. Vejamos, como exemplo, o trecho abaixo no qual elas são descritas como em um funcionamento simultâneo. Saussure diz (1996, p. 149) que

entre os agrupamentos sintáticos assim constituídos, existe um vínculo de interdependência; eles se condicionam recipro-

camente. Com efeito, a coordenação no espaço contribui para criar coordenações associativas, e estas, por sua vez, são ne-cessárias para a análise das partes do sintagma.

Há, ainda, no CLG a comparação entre os dois me-canismos da língua e uma coluna enquanto parte de um edifício (Saussure, 1996, p. 143) que merece ser citada, no mesmo sentido de deixar clara a necessidade de estarem as duas relações (associativas e sintagmáticas) presentes na análise de uma estrutura linguística. Segundo ele,

a coluna se acha, de um lado, numa certa relação com a arqui-trave que a sustém; essa disposição de duas unidades igualmen-te presentes no espaço faz pensar na relação sintagmática; de outro lado, se a coluna é de ordem dórica, ela evoca a compa-ração mental com outras ordens (jônica, coríntia etc.), que são elementos não presentes no espaço: a relação é associativa.

Portanto, o mecanismo linguístico, sendo constitu-ído pelas duas relações, determina que a identidade das suas unidades depende do sistema, ou seja, das relações associativas e sintagmáticas. Entretanto, embora resolvi-da esta questão da identidade, dentro do sistema, não há clareza quanto ao seu funcionamento, opinião que com-partilhamos com Amacker (1975, p. 139). Segundo ele,

Saussure não indica, em nenhum lugar, que eu saiba, qual a relação lógica entre essas esferas, a não ser que elas são perfeitamente distintas; é que ele as considera, na realidade, como simultaneamente ativas e, assim, em relação de condi-cionamento recíproco (grifos do autor).

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levando em consideração o mecanismo linguís-tico, podemos dizer que a significação se produz, ao que tudo indica, nas relações que aparecem em dois eixos diferentes: o eixo associativo (das relações as-sociativas) e o eixo da combinação (das relações sin-tagmáticas). É claro que apenas as combinações são diretamente observáveis, mas é também claro que elas supõem combinações que poderíamos dizer “invisíveis”, ou, como disse Saussure, in absentia.

Claudine Normand (2000), por exemplo, acredita que a análise sincrônica exige que se leve em considera-ção, de forma igualitária, os dois eixos, mas, que a análise das relações associativas é geralmente desprezada, fru-to do pensamento positivista da época de Saussure, que achava que se deveria levar em conta apenas os elemen-tos concretos, formais.

pensamento positivista que ganhou vasto sucesso nas análises linguísticas, em nome de Saussure, ironica-mente, já que o vimos, por diversas vezes, ressaltar a importância das relações associativas para o mecanismo linguístico. ele chega mesmo a dizer que o conteúdo de uma palavra só é determinado pelo que está fora dela:

uma palavra pode ser trocada por algo dessemelhante: uma idéia; além disso, pode ser comparada com algo da mesma natureza: uma outra palavra. Seu valor não estará fixado, en-quanto nos limitarmos a comprovar que pode ser ‘trocada’ por este ou aquele conceito, isto é, que tem esta ou aquela signi-ficação; falta ainda compará-la com os valores semelhantes,

com as palavras que se podem opor. Seu conteúdo só é verda-deiramente determinado pelo concurso do que existe fora dela (Saussure, 1996, p. 134).

É importante, então, compreender que o mecanis-mo da língua requer que se trabalhe não apenas com as sequências lineares que formam os sintagmas, com as entidades concretas, mas, também, com os termos que flutuam em torno dos elementos da cadeia sintagmática, ou seja, os termos da cadeia associativa. É só assim que podemos reconhecer o essencial da teoria linguística: a idéia de sistema.

Além disso, a existência das relações associativas é o que garante que o sistema linguístico não seja fechado, homogêneo, porque contém sempre algo que escapa à linearidade e que está presente, de forma virtual, na pro-dução da língua.

reconhecendo que o mecanismo linguístico depen-de da existência das duas relações, Saussure apontava como tarefa, para o linguista, a de trabalhar a palavra nas duas esferas. É o que fica claro no trecho abaixo:

o que uma palavra tem ao seu redor será discutido pelo linguis-ta tanto na esfera sintagmática quanto na esfera associativa. O que há ao redor dela sintagmaticamente é o que vem antes ou depois, é o contexto, ao mesmo tempo, o que está ao redor dela associativamente, isto não está em nenhum contexto, vem da consciência (engler, apud norMand, 2000, p. 154).

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o linguista que vai estudar o mecanismo da língua conta com o seu conhecimento dela e é isto que serve de base ao seu trabalho. Portanto, há um critério na cons-ciência de cada um. Ou, ainda, a língua está na consci-ência de cada um, como uma memória da qual não se tem um conhecimento enquanto totalidade, não se pode descrevê-la como um todo, mas quando se está “diante dela”, sabe-se como utilizá-la. É por isso que, para Ama-cker (1975), por exemplo, o primeiro tempo de um estudo sobre o mecanismo linguístico recai sobre este conheci-mento implícito que todo linguista tem de sua língua. no segundo tempo, o linguista deverá partir das delimitações do sintagma para, através delas, observar como os dois sistemas interagem.

Gostaríamos, finalmente, de trazer um pouco mais de Saussure e da sua noção de sistema, resgatando algu-mas das reflexões feitas por ele quando dos estudos sobre os anagramas. Tal resgate não se fará, como podemos observar em alguns estudos, de modo a trazer um “ou-tro” Saussure, mas, ao contrário, o “mesmo” que temos procurado mostrar neste livro, ou seja, aquele que, ao se preocupar com a procura de uma identidade linguística, chega à noção de sistema linguístico e a um esboço das relações que se dão em tal sistema. Preferimos, então, encarar os estudos sobre os anagramas como o faz staro-binski (1974, p. 9), ao se perguntar:

se as dificuldades encontradas na exploração da longa diacronia da lenda, e curta diacronia da composição ana-

gramática, não contribuíram, como reação, para incitar saussure mais resolutamente ao estudo dos aspectos sincrônicos da língua.

O Curso de Linguística Geral, exposto entre 1907 e 1911, é em boa parte posterior à pesquisa sobre os ana-gramas. Vale dizer que nosso objetivo não é demonstrar esta continuidade, na qual acreditamos, do pensamento saussuriano, dos anagramas até o Curso, mas mostrar que, nas várias pesquisas que empreendeu, a questão das relações que se estabelecem dentro de um sistema linguístico estava presente para Saussure e que, nessas relações, a figura de um ausente sempre presente tam-bém era dominante.

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Os anaGRamas: O textO sOB O textO

Nos estudos anagramáticos, novamente aparece a idéia de uma certa “memória latente”, que possibili-taria o acontecimento dos poemas e que estaria neles presente, como acredita Starobinski (1974), como um texto sob o texto ou, ainda, como um pré-texto, no sen-tido lato do termo.

Esta função de memória é a mesma pensada para as relações associativas, pois vimos que elas existem, no sin-tagma, não como um vazio absoluto, uma falta que nunca poderá vir a ser, mas como um texto presente (mesmo na ausência) no outro texto. Por sua vez, o sintagma é per-feitamente compreensível como uma presença plena de ausência (relações associativas).

O trecho abaixo é um dos muitos nos quais Saussure trabalha com a análise anagramática. Nele é interessante observar a presença das noções de identidade e sistema, vistas anteriormente.

Um T-inicial (tela) ou um T-final (habet) não vale absoluta-mente nada se permanece isolado: ele adquire valor unica-mente em razão da inicial-final que o segue, ou o precede, com a qual ele pode formar um dífono como –A-T ou como

T-A- como –R-T ou como T-R. Fora deste complemento seu valor é nulo (starobinski, op. cit., p. 35).

Sobre os anagramas, duas considerações de Staro-binski são particularmente importantes para a nossa dis-cussão. A primeira é a que diz que

o mecanismo alegado por Saussure não é nada mais que uma relação de identidade entre a sequência dos fonemas do su-posto hipograma e alguns dos fonemas dispersos no verso in-tegral. Trata-se, simplesmente, de uma duplicidade, de uma repetição, de uma aparição do mesmo sob a figura do outro (starobinski, op. cit., p. 43).

A segunda consideração que, de certa forma, com-pleta e amplia a primeira é a de que, “desenvolvido em toda a sua amplitude, o anagrama torna-se um discurso sob o discurso”( starobinski, 1974, p. 55).

Uma imagem interessante é proposta pelo autor (op. cit., p. 106-107) a respeito da pesquisa de Saussure:

uma sucessão assindética de nomes e de paradigmas corria sob o discurso poético, como os pilares de uma ponte susten-tam a cobertura que sobre eles repousa. Esta comparação, para ser exata, deve ainda postular que os pilares e a cober-tura são formados da mesma matéria.

Vale lembrar que essa metáfora da ponte é bem semelhante à da coluna, analisada enquanto parte de um edifício, que Saussure usa, como vimos anteriormente,

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para explicar a relação de interdependência entre as re-lações sintagmáticas e associativas, o que nos faz suge-rir mais uma vez a continuidade de seu pensamento e, mais importante talvez, a presença constante do “outro” no “mesmo” que entendemos marcar a sua compreensão de sistema linguístico.

Para Starobinski (op. cit.), há duas conclusões im-plícitas nos estudos de saussure sobre os anagramas. em primeiro lugar, as palavras se originam de outras palavras antecedentes. Depois, elas não são diretamente escolhi-das pela consciência formadora.

Portanto, o que existe, imediatamente atrás do ver-so, não é o indivíduo criador, mas a palavra indutora. O que nos parece conduzir à idéia de arbitrariedade do sig-no na sua mais simples versão, ou seja, a de que o signo não depende de um árbitro, de um indivíduo criador, pois sua identidade está marcada dentro do sistema, na sua relação com os outros signos. Lembremos, ainda, a carac-terística social da língua, que indica que o corte que cons-titue as identidades é “feito” pela comunidade linguística.

Quanto ao que poderia ser considerado como erro de Saussure, nesses estudos, Starobinski (1974, p. 108) diz que:

teria sido o de ter colocado, tão nitidamente, a alternativa entre “efeito do acaso” e “procedimento consciente”. por que não dispensar, no caso, tanto o acaso como a consciência? Por que não se veria, no anagrama, um aspecto do ‘processus’ da palavra – processo nem puramente fortuito nem plenamente

consciente? Por que não existiria uma interação, uma pali-lalia geradoras que projetariam e redobrariam, no discurso, os materiais de uma primeira palavra, ao mesmo tempo não pronunciada e não calada? Por não ser uma regra consciente, o anagrama pode, contudo, ser considerado como uma regu-laridade (ou uma lei) em que o arbitrário da palavra-tema é confiado à necessidade de um processo.

compreendemos que este possível “erro” foi devi-damente superado por Saussure, se pensarmos em uma certa continuidade do seu pensamento, nas reflexões que deram origem aos diversos cursos de linguística por ele proferidos e na publicação do clg pelos seus alunos.

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paRa COnCLUiR

O CLG, ao mesmo tempo em que permite que as idéias de Saussure sobre a linguística sejam divulgadas, coloca-as sob uma “camisa de força”, ao impingir-lhes um limite, uma conclusão, uma idéia de fechamento que não lhes eram próprias, já que não eram, dessa forma, vis-tas pelo próprio saussure. É neste contexto que surge a idéia, bastante divulgada pela linguística, de que há, para esta ciência, um objeto homogêneo, fechado, que exclui qualquer contato com teorias que tratem da fala ou do discurso.

na leitura dos postulados de saussure que apre-sentamos neste livro, procuramos mostrar que a noção de sistema linguístico é a que aglomera as outras noções saussurianas. Ela é como um núcleo para o qual conver-gem as outras noções. É só assim, partindo do sistema, que poderemos tanto entender melhor a noção saussuria-na quanto perceber o funcionamento de um sistema que está longe de ser fechado ou de limitar-se às relações que acontecem na linearidade.

o sistema linguístico saussuriano responde a um questionamento que não estava presente apenas nas con-siderações do mestre sobre linguística, mas aparecia, cla-

ramente, nos seus estudos sobre as lendas germânicas e nos estudos dos anagramas, a questão da identidade.

Como vimos, para Saussure estava claro que ne-nhum termo tem identidade em si, ele só existe quando passa a fazer parte de um sistema. por mais que esta colocação seja paradoxal, conforme opinião de Amacker (1975), é ela que está na base da idéia de sistema e, mais ainda, na base da visão de Saussure sobre os problemas relacionados à língua.

A própria identidade do objeto da linguística, a lín-gua, é difícil de ser aceita fora da sua relação com a fala e com a linguagem. como tudo no pensamento saussuriano deve ser pensado de forma relacional, assim também o é para a língua. ela só existe porque relacionada à fala sem a qual seria pura abstração.

Descartando a fala, descartamos toda a possibili-dade de realização do sistema, possivelmente, também, todo o lado do sistema ligado às relações sintagmáticas e, dessa forma, deixamos de fora o que Saussure considera imprescindível: a compreensão do conjunto.

Além disso, vimos, com base nos estudos de Fehr (2000), que a origem do uso do termo língua, como ge-neralização, vem da diversidade geográfica das línguas. Característica que é constitutiva da língua. Ou seja, é bá-sica a compreensão de que se falam línguas diferentes em lugares diferentes. E, se a noção de língua é daí derivada, então, podemos dizer que é próprio da natureza da língua ser heterogênea e isto decorre de uma outra caracterís-

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tica sua, a de ser condenada a ser transmitida. É que saussure considera que as línguas só existem porque são transmitidas e que, assim o sendo, estão condenadas, da mesma forma, como dissemos, a mudar.

Necessariamente, seguindo este raciocínio, o sujeito falante, que também parece excluído, é parte intergrante da idéia de língua e também não pode ser descartado dos estudos da linguística. Ocorre que o sujeito falante, como todos os outros elementos, para Saussure, é parte de um sistema e é só assim que ele interessa à linguística.

Há, portanto, uma relação entre língua e sujeito fa-lante que é tematizada de uma maneira bem específica por Saussure. Nas palavras de Fehr (2000, p. 140): “As línguas não aparecem mais como o domínio no qual os sujeitos falantes encontram, em sua qualidade de serem racionais, o modo de expressão mais adequado ao pensa-mento que eles querem significar”.

Se esta relação entre sujeito falante e língua é mui-tas vezes descartada dos estudos linguísticos, não se pode deixar de fazer referência a ela quando se trata de des-crever línguas a partir do processo de sua transmissão. Afinal, se as línguas são transmitidas por aqueles que as falam, há, sem dúvida, um elo necessário entre sujeito falante e língua. Por outro lado, devemos pensar que se a língua não existe sem o sujeito falante, ele sem a língua ou sem a linguagem não seria sujeito, ou, nas palavras de Saussure (2004, p. 128):

O que é claro, como se repetiu mil vezes, é que o homem sem a linguagem seria, talvez, o homem, mas não um ser que se comparasse, mesmo que aproximadamente, ao homem que nós conhecemos e que nós somos (grifo do autor).

Portanto, o sujeito, ao falar, toma seu lugar em uma tradição que, por sua vez, o determina e está além dele. De outra forma, existe uma totalidade na língua que está além da compreensão do sujeito falante e que o impede de transformar qualquer coisa que seja. É este limite que, imposto ao sujeito, faz com que a língua seja sempre, constitutivamente, heterogênea.

a questão da herança da língua pode ser compre-endida através do fato de ela estar sempre em circulação. É nesta circulação que o sujeito se insere em algo que já está lá, antes dele, e que continuará, incessantemente, de geração em geração.

É assim que a língua, por estar condenada a circu-lar, por conter sempre valores relativos, permite que o sujeito falante a tome de maneiras sempre novas, sem que ela jamais possa ter sentidos cristalizados.

Podemos dizer que o sujeito de fala, como a própria língua, pode ser visto dentro da questão mais geral sobre identidade, pois se ele não tem como provar que perma-nece o mesmo e se o homem não é o que é senão pela linguagem, como parte de uma comunidade (através da circulação dos signos), então podemos dizer, como Fehr (2000, p. 146) que:

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a identidade dos sujeitos que falam uma língua não pode ser determinada nem dada apenas pelo fato de eles serem os <in-divíduos orgânicos>. A identidade dos sujeitos falantes revela--se, também, em uma grande medida, pela precariedade se-gundo a qual eles se encontram expostos ao <turbilhão dos signos> (grifos do autor).

parece-nos que talvez mais importante do que falar de exclusões de conceitos, feitos por Saussure, como a fala ou o sujeito, devemos compreendê-los, como pro-curamos fazer durante este livro, como elementos que fazem parte do seu sistema. Portanto, língua enquanto sistema não pode prescindir nem da fala nem do sujeito.

É a idéia de signo linguístico que forma a base para a compreensão do sistema saussuriano. Em primeiro lugar, quando saussure descarta qualquer relação dos elementos da língua com uma referência exterior, através da noção de arbitrariedade do signo, ele forma a base para um sistema que não pode ser relacionado a nada que esteja fora dele, a um objeto real, por exemplo, e não é criado intencional-mente por um indivíduo, muito pelo contrário, é construído a partir de relações internas, entre significante e significa-do, cuja razão de ser foge completamente à compreensão deste sujeito. Em sendo assim, ponto importante, o sujeito nada pode mudar, sozinho, no sistema e, ainda, os valores nunca são definitivos, sempre relativos.

A idéia de arbitrariedade do signo, ou da língua, como também utilizou Saussure, enquanto base para o desenvolvimento da idéia de valor linguístico, de sistema

linguístico, toma outro lugar na teoria saussuriana. Deixa de ser tomada como um fim em si e, assim, de fazer par-te de longas discussões na tentativa de exemplificá-la, de comprová-la. Além disso, ajuda a entender uma questão fundamental: a relatividade dos valores.

A outra característica do signo, a linearidade do sig-nificante, com todas as dificuldades que possa apresentar, entre elas a de tratar, aparentemente, de um traço ape-nas do significante, em uma coisa é bastante clara, isto é, serve como base para a definição do tipo de relação que os termos desenvolvem entre si dentro da cadeia sintag-mática.

Vemos que a idéia de signo, em Saussure, se qui-sermos “partir do sistema”, no sentido de considerá-lo como ponto nuclear das suas reflexões, não pode consti-tuir uma linguística a parte, linguística da palavra isolada, mas apenas a base para a construção do seu sistema lin-guístico.

É realmente nas últimas aulas de seus cursos de linguística geral que saussure falará de forma sistemá-tica sobre o sistema linguístico. Nelas, ele desenvolverá principalmente a idéia de que tudo gira em torno de duas relações (sintagmáticas e associativas) e que cada uma delas é geradora de uma certa ordem de valor.

Vimos que saussure apresenta a língua como um sistema no qual as relações acontecem in praesentia, na cadeia sintagmática, de forma linear, através da oposição entre os seus elementos e, in absentia, na cadeia associa-

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tiva, através de suas semelhanças. Esta ausência, marca da cadeia associativa, está presente no elemento colo-cado na cadeia sintagmática como uma espécie de “me-mória”. Vimos, ainda, que essas relações não acontecem separadamente mas que uma depende da outra. assim é que o processo de seleção, que se passa na cadeia as-sociativa, só pode acontecer com base nas relações opo-sitivas que se dão na cadeia sintagmática. Observamos, também, que a reflexão sobre as relações que se dão em um sistema linguístico nasce com o questionamento que Saussure faz acerca da identidade linguística, o que o leva à conclusão de que tudo na língua se dá segundo relações de identidades e diferenças, sendo uma a contraparte da outra. Neste momento, chega à idéia de valor linguístico e ao detalhamento dessas relações. Vê-se, portanto, clara-mente, nos estudos saussurianos, uma linha de reflexão que vai desde a questão da identidade até as relações que acontecem em um sistema linguístico.

Com a apresentação de algumas reflexões feitas por Saussure durante seus estudos acerca dos anagramas, pudemos observar que aparece a mesma idéia, embora ainda muito embrionária, de um sistema que é regido por relações de diferenças e identidades.

Pareceu-nos, portanto, que também nestes estudos podemos encontrar questionamentos de saussure acerca dos conceitos aqui trabalhados.

A leitura que apresentamos neste livro, dos concei-tos saussurianos, tem como ponto de partida a compre-

ensão de que a idéia de língua como sistema de signos é nuclear para o mestre genebrino e, assim, seus conceitos devem ser vistos como noções que preparam para a cons-trução de outra, maior, a de sistema linguístico.

Como parte de um sistema, os conceitos saussuria-nos mostram como o movimento da língua, para Saussu-re, estava sempre ancorado na constância e na mudan-ça, na homogeneidade e na heterogeneidade. Movimento dialético de sentidos sempre prestes a serem outros.

Pensamos que as releituras de Saussure, e o nosso livro pretende ser parte deste movimento, apontam um caminho de reencontro da linguística com o seu mestre, com uma revisão e aprofundamento de seus conceitos. Com um Saussure que não é o mesmo de muitas das lei-turas feitas por linguistas - que reduzem suas reflexões ora ao estudo do signo de forma isolada ora ao trabalho com o sintagma como única realidade possível para a língua, descartando as relações associativas – mas que, também, talvez não chegue a ser outro senão aquele cujas refle-xões serviram de base para o movimento estruturalista na França, influenciando toda uma geração e fazendo com que a linguística fosse reconhecida como ciência-piloto.

outro aspecto importante desse possível reencon-tro da linguística com o mestre genebrino é que ele deve se dar não com o fechamento das portas de uma ciên-cia que só consegue olhar para si ou que acha que tudo pode resolver sozinha. Se assim o for, ter-se-á, mais uma vez, caído no erro histórico do marxismo apontado por

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Pêcheux (1990), aquele de ter fechado suas portas e evi-tado contrair relações com outras ciências.

a grande questão que nos parece estar sendo co-locada é que, para ver o sistema linguístico como o mes-mo e o outro, conforme estamos propondo neste livro, é preciso, antes de tudo, entender o projeto saussuriano de uma semiologia, através das questões colocadas por Fehr (2000), ou seria, como ele diz, saber que estamos trabalhando nos limites entre a linguística e a semiologia saussurianas. parece-nos que foi sempre dentro deste es-paço que Saussure trabalhou. Procurando “as leis gerais”, o que estaria dentro do projeto de sua semiologia e que o teria feito trabalhar com as lendas, com os anagramas, com a observação das sessões espíritas que tiveram como resultado os textos publicados por Flournoy. E, ao mes-mo tempo, nos seus cursos de linguística geral, pensando como essas leis seriam aplicadas à linguística, ao sistema da língua.

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A AutorA

possui graduação em letras pela universidade Fede-ral da Paraíba (1988), mestrado em Lingüística Aplicada pela pontifícia universidade católica de são paulo (1993) e doutorado em letras pela pontifícia universidade cató-lica do rio grande do sul (2002). É professora do curso de graduação e pós-graduação em letras da universida-de Federal da paraíba. tem experiência na área de lin-güística, com ênfase na interface lingüística e psicanálise, atuando principalmente nos seguintes temas: psicanálise lacaniana, lingüística saussuriana, produção de sentidos, sistema, discurso e sujeito.

C a p a s u m á r i o e L i v r e a u t o r R e f e r ê n c i a s

O pOntO de vista dO sistema - mônica nóbrega 147