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    Artigo

    PRACS: Revista Eletrnica de Humanidades do Curso de Cincias Sociais da UNIFAP

    http://periodicos.unifap.br/index.php/pracs ISSN 1984-4352 Macap, v.7 n. 1, p. 61-81, jan.-jun. 2014

    Repensar a democracia

    Mauricio Mogilka1

    1 Professor Adjunto de Didtica da Faculdade de Educao da Universidade Federal da Bahia. Doutor em Educao pelaFE/UFBA. Atua na extenso universitria, com assessoria e formao em projetos, organizaes e movimentos sociais. E-mailpara contato: [email protected]

    RESUMO: Com o fim da guerra fria e a derrocada dos regimessocialistas burocratizados, a partir do fim da dcada de oitenta, ademocracia liberal e representativa tpica das sociedades capitalistasse mostrou aparentemente como a nica alternativa possvel deorganizao poltica. Isto desorientou grande quantidade de

    pensadores sociais e movimentos de organizao coletiva, produzindoum vcuo de utopias e um realismo bastante conservador. Se o

    socialismo burocratizado no modelo sovitico no mais a utopia e ademocracia representativa tem se mostrado um modelo confirmadordas desigualdades sociais, este artigo se pergunta se h condies dealgum modelo de democracia ainda desempenhar um papel norteadorde mudanas estruturais a partir das sociedades capitalistas. Se

    pergunta, tambm, se esta utopia seria a democracia participativa, ecomo seria este regime. Questiona, por ltimo, o papel da educao eda subjetividade na construo desta sociedade. Este artigo pretenderealizar uma discusso sobre o tema a partir de reflexes prprias etambm inspirado nas teorias latino-americanas da libertao. Destaforma, este texto pretende contribuir no esforo coletivo para asuperao do impasse em que a reflexo e as prticas de luta social seencontram no momento. Trata-se, portanto, de um estudo poltico,nascido da militncia social do autor, de leituras tericas e do desejode construir uma referncia aberta, que possa apoiar as lutas sociais

    por um mundo melhor.Palavras-chave: educao libertadora; movimentos sociais; socialismodemocrtico; democracia participativa.

    ABSTRACT: Rethinking the democracy. When the cold war is overand the finish of bureaucratic and formal political sistems of thesovietcs countries, in the end of 80, the liberal democracy of the cap-italism societes was shown like the one alternative of political organi-zation. This situation to bewilded the social thinkers and socialmovements producing an empty of utopia and a conservative realism.If the bureaucratic socialism in the sovietic paradigm isnt more theutopia, and the representative democracy keep the social structure, thisarticle makes the question: there is condition of the some model ofdemocracy yet to discharge the role of bewilder of the social changesin the capitalism societes? This utopia is the participatory democracy?How is the sistem? Whach is the role of the education and the subjec-

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    tivity in the building of this societ? This article goals to realize adiscution about this subject, whith reflections of the author and in theideas of the latino americans theories of liberation. In this way, thistext goals to contribute to the social effort toward the superation of theimpasse of the social struggles think and practices. Thus, this is a po-

    litical text, was born of the social work of the author, the theoreticallectures and the desire to build an open reference, that may support tosocial fights for a better world.Keywords: liberator education; socials movements; democratic socialism;

    participatory democracy.

    Podemos ter tudo: o que comer, beber, vestir, um teto. Mas se no temos liberdade e

    dignidade, e se no somos independentes, nada disso tem valor.

    Comandante Massoud, lder da Aliana do Norte, Afeganisto.

    Mister Fowles, precisamos assumir uma posio, se pretendemos permanecer humanos.

    Grahan Greene, O americano tranqilo.

    1 Ato e subjetividade: as bases para uma utopia exuberante

    Com a queda dos regimes burocratizados do leste europeu, a partir do fim da dcadade oitenta, os movimentos e projetos de mudana social caram em estado de grande

    perplexidade, pela perda de sua principal referncia poltica. Algumas anlises,fartamente divulgadas pela mdia, pareciam indicar o triunfo definitivo do sistemacapitalista e a morte de qualquer alternativa.

    Contudo, em histria social nada definitivo. Em alguns anos os movimentos

    sociais e a intelectualidade mais engajada socialmente se reorganizaram e recuperarama vitalidade da luta social. Prova desta vitalidade so o movimento social em Chiapas,no sul do Mxico, o MST, na sua luta pela reforma agrria, e os movimentos sociaisdos moradores de rua no meio urbano, para citar apenas alguns exemplos da AmricaLatina.

    Isto tem comprovado que as lutas sociais no morreram, embora muitas vezes elastm carecido de uma utopia, um projeto orientador, mesmo que no fechado etotalizante. Este artigo discute exatamente uma destas alternativas, que alis no nova, a idia da democracia participativa, e as suas possibilidades em solo latino-americano. Ou seja, este texto abandona radicalmente qualquer soluo totalitria

    como fonte presumida de felicidade social e realizao humana.Por outro lado, no flerta em absoluto com a democracia burguesa. Apesar desta serconsiderada a conquista poltica mais representativa e triunfante da modernidade, elavem mostrando, nos seus duzentos anos de existncia, srias contradies para umregime de poder que se pretende para todos. A democracia representativa, nocapitalismo, tem sido uma forma das elites legitimarem os seus interesses como sefossem interesses de todos, e aprovados por todos.

    Logo, por democracia participativa no se entender aqui a democracia burguesaem nenhuma de suas formas: a social-democracia europeia, a democracia

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    representativa terceiro-mundista, nem to pouco a esquisita democracia norte-americana, onde sequer o presidente eleito diretamente, mas por colgio eleitoral etal proposta elitista se coloca com modelo para o mundo. Assim, por democracia

    participativa pode-se entender aqui uma maneira, possibilidade ou utopia que possaorientar as lutas sociais para fora dos marcos da democracia representativa,

    exclusivista e formal que vivemos hoje na sociedades capitalistas.Pode tal ideia ou utopia realmente servir de norte para a superao das

    desigualdades sociais? Ser ela uma alternativa realmente combativa aos caminhos dosocialismo burocrtico e autoritrio? E se for, pode ser potencializada a partir de umcontexto capitalista? At que ponto tal proposio utpica poderia ser radicalizada, seafastando das ideologias reformistas propostas pelo prprio sistema capitalista? No

    podemos esquecer que uma das estratgias do poder dominante, quando acuado pelaslutas coletivas ou por conjunturas desfavorveis ao seu predomnio, justamente fazerconcesses parciais, ou mesmo tomar a dianteira e se tornar proponente dos processosde mudana social que assim ficam sob seu controle.

    Os processos de luta social, especialmente quando bem sucedidos, correm esterisco, e isto tem frequentemente acontecido. No caso latino-americano, e maisespecificamente brasileiro, isto bem visvel. Poder este projeto aberto que ademocracia participativa funcionar como esteio, ncora e bssola na busca por umasociedade mais justa? Poder nos permitir participar da luta sem cair nas armadilhasdo reformismo, que beneficia um poder que quer a todo custo se perpetuar? Poderesta utopia servir de estrela polar da constelao democrtica? Este justamente o

    problema que este texto pretende investigar. importante esclarecer que este conceito democracia participativa na forma

    como ser tomado aqui, uma crtica democracia representativa, como j ficou claro,

    e no uma tentativa de melhorar a representatividade. No se trata apenas, portanto, demelhorar o controle das coletividades sobre os representantes, embora este aumento decontrole seja uma etapa possvel no processo de ampliar a participao direta. Porconsequncia, o conceito de poder democrtico, aqui trabalhado, aquele exercidodiretamente pela classe trabalhadora, incluindo seus dois setores: povo e classe mdia.

    O que defendido aqui o alcance da justia social a partir da radicalizao dosprocessos participativos. Ou seja, a democracia participativa direta, ocompartilhamento mais amplo possvel da autoridade pblica, e no apenas umamelhoria dos processos de representao. Isto s possvel de ser alcanado se ademocracia direta se torna um modo social de vida, e no apenas um regime poltico,como aprendemos com Dewey. Da a importncia dos processos educativos e dacultura para permitir s subjetividades vivenciarem transformaes profundas, no

    prprio processo de luta.Muitos autores j analisaram as contradies e impasses da democracia

    representativa, como o italiano Norberto Bobbio. Este autor, embora desenvolva umareflexo sobre a democracia que merece ser conhecida, aposta mais na melhoria,ampliao e aperfeioamento da representatividade. Portanto, a alma da crtica

    bobbiana democracia no o fato dela ser representativa, mas qualidade desta

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    representao, se afastando, neste aspecto, das propostas fundamentalmenteparticipativas defendidas neste artigo.

    Assim, o conceito de participao democrtica direta essencial DP1; no o ,evidentemente, nas propostas histricas de socialismo burocrtico, algumas das quaischegaram patologia do totalitarismo e mesmo do terror de estado, como o caso da

    unio sovitica estalinista e o regime do khmer vermelho no Camboja. Mas estaparticipao no apenas uma questo de ao, tambm uma questo desubjetividade. As propostas de DP precisam enfrentar profundamente este aspecto. ADP para surgir e persistir precisa estimular o desenvolvimento de subjetividadescapazes de lutar pela sua existncia, e no apenas usufrurem passivamente aquilo queo sistema lhes permite em um dado momento, que o conceito mais difundido decidadania atualmente.

    Para alcanar este objetivo, necessrio criar experincias de modificao dassubjetividades, de tal maneira que estas tenham as condies para desenvolver ascapacidades psicossociais necessrias convivncia em sociedades diferentes da

    sociedade capitalista. A participao direta no poder, a luta social, a habilidade deorganizao coletiva e a capacidade de convivncia fraterna e solidria dentro daclasse social so competncias sociais imprescindveis neste processo de radicalizao

    para forma dos marcos da democracia burguesa. Contudo, para desenvolver estascapacidades psicossociais com os diferentes grupos da classe trabalhadora, osmediadores que trabalham com o povo precisam antes t-las desenvolvidas em simesmos, ou desenvolv-las junto com ele.

    Alm disto, tais capacidades psicossociais constituem elementos fundamentais paraa coeso, o fortalecimento e a estruturao interna dos movimentos sociais. Nenhumaassociao de bairro ou movimento comunitrio consegue levar adiante as suas lutas e

    metas, se no conseguir dialogar e negociar internamente. Se porventura conseguir seorganizar mesmo sem ter desenvolvido estas capacidades, por exemplo, atravs dasubmisso vontade de lderes ou grupos de poder dentro do movimento, estarreproduzindo em si o mesmo o sistema que busca combater.

    A concepo de DP que est sendo defendida neste estudo envolve a reconstruoda subjetividade, pois s sujeitos e grupos participativos e solidrios so capazes desustentar projetos desta natureza. A omisso do cidado diante das contradies sociais um dos principais sustentculos das estruturas polticas conservadoras: seja nasformaes sociais capitalistas, seja no socialismo burocrtico. Logo, a participaoativa no poder fundamental para o desenvolvimento de uma vida efetivamentedemocrtica.

    Poderamos definir a participao democrtica como tudo aquilo que torna umapessoa melhor companheira no sentido poltico. Entre outras qualidades, a capacidadede julgar sensatamente os governantes e as medidas polticas, exercer controle sobre avida pblica e participar na elaborao das leis. Contudo, existe o perigo decompreendermos a participao poltica, e a formao para esta participao, de formamuito limitada. Ou seja, se pensarmos que esta participao se constituiu apenas por

    1A partir deste ponto do texto, a democracia participativa ser representado pela sigla DP.

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    atos manifestos, por aes pblicas, sem conscincia do significado do ato, por parteda pessoa (Dewey, 1979). Isto acontece quando avaliamos a cidadania apenas por atose produtos exteriores tangveis (participar de uma assembleia ou de uma passeata, porexemplo), e no pela realizao de uma experincia qualitativamente valiosa. Destaforma, negligenciamos os aspectos subjetivos da participao, que envolvem

    compreenso ampla, significado do ato e sentimento de identificao com o bemcomum. Quem atua no trabalho de base, no Brasil (creio que tambm em outroslugares) sabe como frequentemente incorremos neste julgamento superficial da

    participao poltica.Ou seja, participao e responsabilidade coletiva, e a formao para este exerccio,

    um fenmeno interior e exterior simultaneamente. Envolve ato e sensibilidade. Spode ser desenvolvida em uma abordagem psicossocial, que contemple a formaointerna do sujeito e a sua capacidade de atuao externa. Participao significa acapacidade para compartilhar do dar e receber da experincia comum. Por isto,abrange tudo aquilo que torna a experincia de uma pessoa mais valiosa para as outras,

    e tudo o que capacita algum a participar mais ricamente das experincias valiosas dosdemais. Portanto, indiretamente, admirar obras de arte ou enriquecer-se culturalmente,

    junto com nossos semelhantes, so de fundamental importncia para a expanso daslutas sociais, contribuindo para que os nossos atos polticos superem um cartermecnico, normativo ou puramente externo.

    Na promoo e na conquista de uma vida baseada em valores solidrios e de justiasocial, a educao e a luta social so instrumentos importantes, trabalhados de formaarticulada e no em oposio: um no pode excluir o outro. Assim, uma educaolibertadora, tanto na rea escolar como na rea comunitria, funciona reforando aslutas sociais, e no como alternativa a estas lutas. Isto possvel porque quando

    tomamos o conceito de processos educativosde forma bem ampla, envolvendo todasas situaes sociais de formao e desenvolvimento humano, e no somente a escolar.E mesmo quando fora do mbito escolar, quando entendemos educao no apenascomo a aprendizagem de conhecimentos, mas como toda experincia social quemodifique valores, atitudes, interesses e conceitos das pessoas.

    Esta concepo de processos educativos se baseia na ideia segundo a qual aeducao escolar ou aquela realizada em qualquer outra situao social deve ser um

    processo vital, fortemente integrado com a vida social, sem perder a sua capacidade demodificar esta vida. Ela no deve ser rgida, formal e imune s questes da vidacotidiana. Ao contrrio, deve ajudar as pessoas a entender e atuar de forma conscientesobre os problemas prticos e sociais, com o auxilio da cincia e da cultura elaborada.

    Os processos educativos e culturais so fundamentais nas concepes participativasde democracia, como esta que est sendo defendida aqui, pois neste caso tal conceitono significa apenas um regime poltico, mas uma forma de vida social que dependeestreitamente da educao e da cultura como atividade formadora de novassubjetividades. A educao e a cultura no podem escapar s ideias e valoresdominantes, pois elas so processos sociais. Como tal, mesmo sendo compreendidasaqui de forma interacionista e dialtica, no-determinista, elas sempre esto ligadas

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    aos valores e estruturas econmicas que organizam a sociedade. Contudo, elas podemtambm modificar estas estruturas, pois so feitas por pessoas, e as pessoasquestionam.

    A ordem existente em um momento o resultado de um jogo de forasextremamente dinmico; se ela se mantm, o faz atravs de uma luta contnua. Da

    mesma forma, as foras sociais que lutam pela transformao social esto atuandotodo o tempo, aumentando ou diminuindo o seu poder em funo de vrios fatores,como o nmero de pessoas e grupos que as apiam. Os educadores dizemfrequentemente que so obrigados a se conformar com as condies existentes, aoinvs de fazer o que prefeririam. Este argumento poderia ser verdadeiro se ascondies sociais fossem fixas. Mas elas so instveis, desenvolvem-se em vriasdirees. Isto leva o educador a ser obrigado a fazer constantemente escolhas, no quetange relao do trabalho pedaggico com a sociedade. O grande problema quefrequentemente esta escolha feita de forma inconsciente e no de forma explcita eassumida (Dewey, 2001).

    O trabalho educativo e cultural no pode ser, sozinho, o construtor de novas ordenssociais. No entanto ele pode participar nas mudanas estruturais medida que for sealinhando com os diversos movimentos sociais engajados nesta meta. Se escolha doseducadores for pelo alinhamento com as foras e movimentos que lutam pelo controlesocial do capitalismo, isto , o controle e a posse coletiva do estado e do podereconmico, eles tero cotidianamente oportunidades de exercer esta escolha eminmeros atos e processos. A atitude ativa e militante para transformar os processoseducativos em meios de lanar as bases intelectuais e ticas de novas ordens sociais algo a se construir todos os dias. No possvel termos um plano pronto e pr-definidode como ser a luta, pois os caminhos da mudana so construdos na prpria ao

    coletiva.Os modelos de educao conservadora tem estreita relao com as condies sociais

    de vida, a separao entre classes sociais e a segmentao entre trabalho manual etrabalho intelectual. A natureza fortemente utilitarista da educao fundamental, osexerccios mecnicos e sem sentido para o jovem, a submisso a normas deobedincia, descaracterizando a autonomia pessoal e coletiva, contribuem para formaruma subjetividade adaptada ao trabalho servil e s regras sociais j existentes. Se ns,que trabalhamos tambm com educao popular, observarmos com bastante ateno,veremos que esta anlise aplica em muitos casos aos processos educativos no-escolares.

    Como j ficou claro nas pginas anteriores, a importncia da subjetividade e daeducao crucial para propostas de democracia participativa. Por isto fundamentalfazermos em nosso trabalho social as associaes entre este trabalho e as estruturasscio-polticas, sendo crticos sem ser deterministas. Assim, contribumos para realizaras articulaes citadas sem incorrer em perspectivas reducionistas, que estabeleamuma hierarquia entre educao e estruturas polticas. O trabalho social, assimconcebido, se caracteriza pela capacidade de ser crtico e fazer uma anlise poltica daeducao, sem dissolver as questes subjetivas e culturais que constituem a prpria

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    estrutura das prticas educativas. Desta forma, h aqui uma superao das limitaesdas teorias deterministas sobre a relao educao e poltica, mas sem retornar parauma anlise colada ao liberalismo conservador, que projeta a liberdade do sujeito parauma esfera metafsica.

    Este tipo de abordagem, de carter psicossocial, recebe algumas crticas, segundo as

    quais estaramos negligenciando os aspectos mais estruturais da sociedade, embenefcio de uma nfase sobre os aspectos psicolgicos e singulares da experincia.Negligenciaramos, tambm, as relaes de interproduo entre estas duas dimensesda vida social, ou seja, a articulao micro-macrossocial. Sero vlidas tais crticas?

    A articulao entre as dimenses estruturais e singulares da vida social difcil emqualquer teoria e em qualquer campo de conhecimento, devido forma de operar daracionalidade ocidental, tributria da razo instrumental que tudo divide, tudofragmenta, tudo parcela. Se examinarmos a maneira que as teorias estruturalistas ematerialistas ortodoxas encontraram para explicar a vida social, veremos que estasteorias no resolveram o problema: ao subordinar o singular e o subjetivo ao estrutural

    mergulhamos no determinismo. Isto dificulta, no plano terico, a gerao de soluespara a vida social que no sejam autoritrias.

    Quando Marx, por exemplo, apesar de sua genialidade e inquestionvelcompromisso com a classe trabalhadora, afirma na Ideologia Alem que no so asideias que determinam o mundo, mas as condies concretas que determinam aconscincia, ele escapa ao idealismo hegeliano e cai em um materialismo que nega adialtica entre subjetividade e estrutura (embora este vis seja parcialmente corrigidoem outros textos como os Manuscritos econmico-filosficos, que foram escritos em1844 e s publicados postumamente em 1932).

    Esta no a soluo que propomos aqui para o problema da relao entre trabalho

    social e democracia participativa, ou entre subjetividade e estrutura. Enfatizamos epreservamos a parcela de subjetividade existente em cada e em todas as estruturassociais. Contudo, o problema persiste, pois apenas garantindo a existncia da dimensosingular e subjetiva das estruturas ainda no estamos encaminhados, pois a sociedadeno se resume a elas. Como o podemos lidar com estas relaes? Como podemosadmitir a subjetividade e efetivamente considerar a importncia e a fora das estruturassociais?

    A fora do social sobre o indivduo bastante clara. Embora consciente dosaspectos subjetivos da experincia humana, precisamos continuamente coloc-la nascondies sociais onde ela se movimenta. As condies sociais so imprescindveis

    para entender qualquer elemento singular, porque ele nunca est isolado, no poderiaexistir suspenso no ar: est em contnua interaocom as condies, em um processode construo mtua e interminvel. Somente em situaes autoritrias que estarelao de mtua influncia se v comprometida.

    Eu gostaria de dar um exemplo: na metfora do senhor e do escravo, de Hegel,percebemos que o senhor quer determinar o escravo, de acordo com seus interesses: sassim pode explorar o seu trabalho. Contudo, mesmo desta forma, a interao aindaocorre. A contnua vigilncia do senhor, ou do senhor sobre os capatazes que vigiam o

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    escravo, j mostra que ele no imune interao com o escravo: tambm o senhorno livre, embora esteja em situao material mais conveniente. impossvelinfluenciar sem ser influenciado. Mas em uma relao autoritria, a interao se d detal forma que a liberdade de atuao de ambos os elementos fica comprometida, ela sed de forma distorcida, de maneira que o desenvolvimento de ambos retardado ou

    paralisado.As nossas atitudes fundamentais perante o mundo so influenciadas pelo alcance e

    qualidade das atividades de que participamos. Os dualismos como sujeito-objeto,teoria-prtica, refletem a diviso da sociedade entre aqueles que pensam e comandame aqueles que executam as aes (ou diviso social do trabalho, em uma linguagemmarxiana). Neste caso, a prtica perde o seu carter de integrar o ser humano consigomesmo e com a realidade, pois se transforma em mero movimento produtivo, semreflexo e sensibilidade (em linguagem marxiana, prxis).

    O potencial da atividade humana para a mudana das condies sociais depende daintegrao entre atividade, reflexo e desejo. Nas sociedades capitalistas, a diviso

    social entre trabalho manual e trabalho intelectual provoca uma situao na qual otrabalhador, de uma forma geral, age sem o recurso da reflexo e da afetividade. Asdecises principais referentes ao curso do seu trabalho e os seus fins esto fora do seudomnio; ele est ao menos em parte alienado, como nos mostrou Marx. Isto faz comque o trabalho se torne, com frequncia, algo externo ao seus desejos, algo que lhe indiferente, com o qual ele no se identifica e no se engaja integralmente. O trabalho mecnico, e isto brutaliza a sensibilidade e torna espessa a conscincia. Por nohaver nenhuma recompensa espiritual, nem enriquecimento intelectual ou afetivo, otrabalho no representa um interesse direto para a pessoa.

    Tal estado de coisas persistir enquanto a sociedade for organizada com fundamento

    na diviso em classes trabalhadoras e no trabalhadoras, isto , na diviso social dotrabalho. Nas condies sociais geradas por este tipo de organizao social, a maioriados seres humanos ainda no goza de liberdade econmica, e por consequncia estreduzida a uma condio servil. Este fenmeno amplia a desintegrao entre o sujeitoe a realidade, pois a as atividades profissionais so escolhidas pelo acaso do mercadoe pela necessidade imediata de sobrevivncia. Estas atividades acabam norepresentando a expresso das capacidades e desejos pessoais, que em interao comas necessidades sociais e os recursos do contexto, se tornariam fonte de realizao da

    pessoa na sociedade, e reforariam o carter integrador do trabalho, como nos mostraMarx to bem em vrias obras, inclusive em O capital.

    A consequncia da alienao da atividade intelectual e da cultura elaborada,concentrada em uma classe social e separada da prtica, acabou tornando a vidaintelectual organizada uma forma de domnio sobre o outro. Desta forma a cincia e acultura elaborada acabam produzindo um saber desumano, em vez de contribuir naluta para submeter a organizao social aos fins humanos. A cincia deve serapropriada por todas as pessoas, de forma a ajud-las a compreender como atecnologia, a produo e distribuio dos bens econmicos e as relaes sociaisexistentes contribuem para a produo da sua prpria experincia de vida.

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    Mas a apropriao da cincia por parte da populao tambm fundamental paraprovocar uma compreenso das foras sociais existentes, pois estas foras sociaisdevem ser comandadas e dirigidas pela coletividade, e no por uma elite. A cincia e atecnologia contriburam para a produo das injustas condies sociais existentes, porconsequncia do monoplio que dela tm os grupos privilegiados. Mas isto no as

    descaracteriza como instrumentos que, ao serem socialmente apropriados, contribuempara polticas que podero produzir ordens sociais mais justas.

    2 Uma utopia libertria, humanizante e descolonizadora

    Na perspectiva humanista de DP acima esboada, os processos de libertaopopular consistentes no podem vir de libertadores ou heris, evidentemente. Comodisse o dramaturgo Bertold Brecht, triste do povo que precisa de heris. O prprio

    povo precisa libertar a si mesmo, ser protagonista de sua libertao: esta umacondio para que se estabelea uma sociedade efetivamente diferente das propostas

    que j foram tentadas. Isto fundamental, e no exclui o estudo das experinciassocialistas e dos avanos mais radicais das foras e governos progressistas gestados a

    partir da prpria democracia burguesa, como o caso chileno do governo SalvadorAllende e o governo Joo Goulart no Brasil. No momento atual, fundamental oentendimento das importantes experincias que ocorrem na Bolvia com o governoEvo Morales, na Venezuela com o chavismo, no Equador com o governo RafaelCorrea e em El Salvador.2

    Este protagonismo popular , portanto, condio para que a nova ordem socialpossa se instaurar e permanecer no tempo, enfrentando os desafios dinamicamente,sem que o poder popular perca o controle do processo revolucionrio. Mas para isto

    necessrio que a classe trabalhadora tenha as condies de desenvolver as capacidadesreflexivas, estticas, associativas e prticas necessrias s estratgias de libertao e

    posterior manuteno do poder popular. a que entram em cena, jogando um papel importante, os intelectuais e artistas

    engajados, os militantes, educadores, os religiosos progressistas. No para seremvanguardas revolucionrias ou libertadores do povo, mas para se colocarem lado alado com ele, contribuindo para desconstruir as prticas e estruturas de opresso.Primeiramente com a parcela mais mobilizada da populao e posteriormentecontribuindo para ampliar esta parcela. Estes agentes so fundamentais libertao,compartilhando com o povo as qualidades e capacidades que esto j incorporadas naestrutura de suas subjetividades, e que foram histrica e intencionalmente negadas

    2Estes quatro governos apresentam em alto grau os trs critrios que considero essenciais para se entender umgoverno como progressista: 1. Sofre combate e tentativas de desestabilizao por parte das elites econmicas epolticas tradicionais; 2. Atende demandas populares de forma no apenas assistencialista, modificandogradualmente as estruturas de distribuio dos bens econmicos e culturais (o chavismo, em 14 anos, colocou aVenezuela com os menores ndices de desigualdade social na Amrica Latina, segundo dados da ONU de 2012);3. Se legitima atravs de amplos processos de participao popular (eleies, plebiscitos, manifestaes de rua) emantm intensa e continua ligao orgnica com a populao.

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    maior parcela da classe trabalhadora.3Tais qualidades no so essenciais para que ostrabalhadores produzam, e so politicamente perigosas para o sistema. Da suaconcentrao nas elites e na classe mdia, e ainda assim, de forma parcial.

    Logo, as relaes entre subjetividade e poltica so crticas para as propostas de DP.Estas propostas envolvem no apenas uma crena na possibilidade de auto-governo da

    classe trabalhadora, mas tambm uma especial ateno aos processos de formao dasubjetividade, entendida como o principal suporte da DP. Ou seja, acredita-se no poderda subjetividade, ao menos parcialmente, constituir e re-construir a vida poltica. Istosignifica abandonar as posies deterministas na reflexo poltica, embora nosignifique um otimismo ingnuo.

    enorme a importncia da subjetividade para a constituio das estruturas de poder,portanto enorme a magnitude dos elementos simblicos e culturais que atuam naformao poltica do sujeito. Dispondo apenas da fora fsica ou militar impossvels elites estabelecer domnio sobre uma coletividade, principalmente por longos

    perodos. O poder poltico coercitivo no natural, mas social. Ou seja, este poder no

    pode prescindir de uma organizao social que estimule uma formao moral, umaorganizao espiritual e tica que consiga criar e fortalecer em cada subjetividade aomisso, a transferncia do poder para uma autoridade e a obedincia como dever

    justo e legtimo.Ou seja, invivel a qualquer grupo poltico estabelecer controle prolongado sobre

    grandes coletividades, se este controle se basear apenas na coero fsica e econmica.Por isto, para manter o domnio sobre o aparato poltico institucional, os gruposdominadores precisam mostrar este domnio como algo legtimo, obtendo apoioexplcito ou pelo menos consentimento da maioria. Isto s possvel se h um

    profundo, sistemtico e prolongado trabalho sobre as subjetividades. Para tal tarefa, a

    educao e a cultura so os principais instrumentos: elas operam onde a coero fsicaou econmica foi ineficaz ou invivel. Contudo, estes instrumentos se assemelham afacas de dois gumes: dependendo de quem os opera, podem tanto estimular oconformismo como a libertao. justamente por isto que to importantecompreendermos a base subjetiva do poder, e por consequncia, a face subjetiva dos

    processos de libertao popular. Nenhum poder se mantm sem estar presente naprpria constituio das subjetividades.

    O carter no-inato do poder coercitivo confirmados por diferentes fontes. Umadelas, qual podemos recorrer aqui, a antropologia. Baseada em ricas e exaustivasinvestigaes etnogrficas, fruto de anos de convivncia com as chamadascomunidades primitivas, a antropologia poltica, ao menos em algumas de suasvertentes, nos permite hoje sustentar com uma certa segurana a desnaturalizao dasrelaes de coero e autonomizao do poder.

    3Considero aqui neste artigo que a chamada classe mdia, no capitalismo terceiro-mundista da Amrica Latina, heterognea; pertence em sua maior parte classe trabalhadora, mas no o povo; por povo ou popular entendoa parcela mais mal remunerada da classe trabalhadora, e qual foi negada o acesso a bens e direitos, concretos esubjetivos, que a classe mdia teve acesso, ao menos parcial.

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    Estes trabalhos, como os estudos do antroplogo francs Pierre Clastres, queconviveu durante anos com comunidades indgenas na Amrica do Sul, nos mostramcomo estas so sociedades sem estado, mas no sem poder: este exercido por toda acoletividade, que s o delega em ocasies especiais por alguma causa que o justifique,como o lder guerreiro, investido deste poder pelas suas capacidades de coordenar e

    liderar os esforos de guerra, ofensivos ou defensivos. Ou ento, o poder pode serdelegado por causa de alguma funo especfica, alguma habilidade especial. Tal ocaso dos sacerdotes ou xams, devido a suas capacidades espirituais muitodesenvolvidas, teis comunidade.

    Mas de forma alguma estas sociedades deixam o chefe ir alm dos limites tcnicos,de tal maneira que a superioridade tcnica se converta em autoridade poltica. O chefeest a servio da comunidade, e esta o lugar do poder. Em tal organizao social etica, impossvel para o chefe alterar esta relao para o seu proveito, colocando acoletividade a seu servio. A sociedade primitiva nunca ir tolerar que seu chefe setransforme em dspota. No caso, por exemplo, do lder guerreiro, este poder alm de

    limitado transitrio. Uma vez terminado o combate, seja qual for o resultado, o chefeguerreiro volta a ser um chefe sem poder, e o prestgio decorrente da vitria no setransforma em autoridade permanente (Clastres, 1990).

    Contudo, o chefe pode ceder ao impulso embriagante da vitria e do prestgio. Istoo faz querer organizar novas expedies guerreiras, pois no h guerreiro sem guerras.Enquanto o seu desejo de guerra corresponder vontade geral da tribo, enquanto avontade do lder no ultrapassar a da comunidade, as relaes habituais entre estasduas vontades permanecero inalteradas. Mas s vezes o lder tenta impor a suavontade ao grupo, tenta ir alm do estreito limite determinado sua funo,substituindo o interesse coletivo pelo seu interesse pessoal. Desta forma, tenta colocar

    a tribo a seu servio, e no mais ele estar a servio da tribo. Contudo, isto nuncafunciona, ele destitudo e perde completamente a sua autoridade (Clastres, 1990).

    Este carter inerentemente autonomista do ser humano pode ser percebidoexplicitamente nas sociedades primitivas e mesmo na sociedade de classes (nascrianas, por exemplo). Ele aparece de forma luminosa no relato de um lder guerreirolatino-americano:

    Os abipones, por um costume recebido dos seus ancestrais, fazem tudode acordo com sua vontade e no de acordo com a de seu cacique.Cabe a mim dirigi-los, mas eu no poderia prejudicar nenhum dos

    meus sem prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou afora com meus companheiros, logo eles me dariam as costas. Prefiroser amado e no temido por eles. (Relato do chefe guerreiro Alaykin,nao Abipone, chaco argentino; citado por Clastres, 1990, p. 185).

    Em sociedades deste tipo, o aparecimento do estado, isto , do poder coercitivo econcentrado, impossvel. Isto de d pela recusa em delegar poder alm dominimamente necessrio, pela constante vigilncia sobre aqueles que exercemqualquer atividade concentradora de poder, e pela desobedincia a qualquer ordem ou

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    deciso que no seja percebida como necessria sobrevivncia ou bem-estar dacoletividade. Estas sociedades tm uma percepo dos perigos do poder concentrado, eisto aparece no seu imaginrio. Por exemplo, nos mitos e narrativas dos ndios chulupi,do sul do Chaco paraguaio, as figuras que representam poder, como o xam e o jaguar,aparecem ridicularizadas, grotescas e despertam o riso dos ndios quando so recitadas

    pelos mais velhos.Na vida real, tanto o poderoso jaguar, que mata os ndios, como o xam, que

    sacerdote e mdico simultaneamente, no despertam riso, mas medo ou respeito. Nasnarrativas mticas, a sua posio aparece invertida. Este riso uma catarse queevidencia, ao mesmo tempo, a descrena que os chulupi tm do poder concentrado,como o medo daquilo que poderoso. Eles fazem ao nvel do mito aquilo que no

    podem fazer ao nvel do real. Alm de distensionar a relao simblica com estespoderes, os mitos tm funo pedaggica. No caso do mito do xam, por exemplo, estefaz tudo que no deve fazer quando em funo de cura, como faltar sua atividade,comer e caar, seduzir as jovens da tribo. Ele se aproveita de seu prestgio em proveito

    prprio. Por isto, o mito no o perdoa: ele representado de forma ridcula (Clastres,1990).

    A autonomizao do poder poltico em relao coletividade o fundamento detodas as sociedades divididas em classes sociais e com estado. Isto ocorre tanto nasditaduras modernas quanto na democracia burguesa, e mesmo no socialismo

    burocrtico, o que no significa que o exerccio poltico nestas trs formas de poderseja o mesmo. Somente atravs da autonomizao do poder poltico possvel o livretrnsito da ideologia dominante e o exerccio do poder para um grupo ou classe

    particular, em prejuzo da coletividade maior. Por isto, o poder representativo umproblema para a DP.

    Precisamos fazer uma critica severa do liberalismo conservador, e mostrar comoesta filosofia reforou e legitimou a autonomizao do poder poltico em relao coletividade. Esta concepo, base dos sistemas ideolgicos da sociedade capitalista,desconsidera as condies sociais e trabalha com uma noo idealista e individualistade liberdade. Isto torna a discusso sobre a liberdade efetiva uma questo formal,dificultando a compreenso do cidado comum sobre a gnese dos mecanismos dedistribuio e posse do poder.

    A liberdade no apenas uma ideia, um princpio abstrato, mas poder, poder efetivopara fazer as coisas, isto , ao. No existe, portanto, a liberdade no sentido geral,amplo, mas como uma forma especfica e ativa de viver. Para o liberalismoconservador, esta forma abstrata de definir liberdade, como tambm definir oindivduo, repousa na sua tendncia a operar com conceitos absolutos. Quando assimse procede, perde-se a relatividade histrica e social de cada experincia. Esta filosofiaconceitua o indivduo como algo dado e completo em si mesmo, e a liberdade comouma posse j realizada pelo indivduo, e no algo conquistado socialmente. Estasidias particulares so consideradas como se fossem verdades absolutas e eternas, paraqualquer tempo e lugar, tentando produzir uma compreenso a-histrica.

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    Este tipo de entendimento nominal da liberdade acaba por produzir aquele que umdos mais poderosos valores do capitalismo, o individualismo. Identificando liberdadecomo a irrestrio individual, a liberdade individual para agir, esta concepo acaba

    por comprometer, de forma implcita, a liberdade dos demais. A ao realizada deforma alheia s necessidades da coletividade uma liberdade no-democrtica, pois a

    liberdade s pode ser considerada socialmente. O fracasso da democracia liberal,enquanto regime que supostamente busca o bem comum, deve-se ao fato que aidentificao da liberdade com o mximo de ao individual, sem que esta sofracontrole da coletividade e do estado, resulta na impossibilidade da liberdade (paratodos), bem como na impossibilidade da igualdade (Dewey, 1952).

    Isto bem claro na rea econmica, onde a falta de controles sociais acabasubmetendo a atividade econmica a interesses particulares, retirando a economia daesfera das necessidades da maioria. Alm disto, esta submisso da economia acaba

    produzindo a desigualdade social, que torna a liberdade invivel. A democracia radicals encontra uma chance de sua viabilidade se estabelecer-se um controle social,

    exercido pela coletividade, sobre as foras sociais, principalmente sobre as foraseconmicas. Para isto necessria uma mudana radical nas instituies econmicas ena ordem poltica. Assim, uma nova ordem social poder levar liberao de todos osindivduos associados no grande empreendimento de construir uma vida social que

    promova a liberdade humana (1952).Mas como criar esta nova ordem social? Se discordamos aqui neste texto do

    liberalismo laissez-faire, tambm no aderimos ao uso, puro e simples, da violncia,principalmente quando este uso dirigido por um partido ou qualquer instituioacima do controle coletivo. Algum uso da fora pela coletividade necessria paradesestabilizar ordens conservadoras como a capitalista. Mas como conseguir que tal

    uso da fora no produza novas opresses? Como ficamos ento? Como sair desteimpasse? Como avanar em uma questo como esta, que no s terica, ao contrrio, inerentemente poltica?

    Ns, que trabalhamos diretamente com processos de mobilizao popular eorganizao comunitria, sabemos que a est um dos maiores impasses para asmudanas estruturais da sociedade, se consideramos que esta pode ser promovida pelaao humana, e no apenas pelo movimento de re-acomodao das grandes estruturas,sejam elas econmicas, polticas ou culturais.

    Eu penso que da integrao entre o uso da fora, da reflexo inteligente e dosinteresses coletivos que surge a potncia capaz de mudar estruturas, e no dasubmisso de uma outra. Pensar a realidade, e pensar de forma aberta e ampla, certamente um fator necessrio mudana social, em conjunto com outros fatores. Istons vemos claramente nos movimentos sociais brasileiros. Mas a reflexo no tem o

    poder orientador que lhe atribuda com freqncia. Mudanas estruturais nasociedade no so uma questo de racionalidade, mas opes ticas e o desejo por umaforma diferente de viver em sociedade. Os fatores mais fortes para as mudanas ou

    permanncias, alm, obviamente, das condies polticas concretas, so os valores einteresses em jogo: com que interesses se identifica uma coletividade? O que mais

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    importante no seu esquema de valores? O quanto ela deseja a liberdade, ou condiesde vida melhor, ou a segurana de uma situao j conhecida?

    A alternativa revolucionria no em si mesma algo a ser desconsiderado nareflexo poltica sobre as mudanas estruturais. O seu problema maior, me parece, noreside no uso da fora, mas no fato que a maioria dos processos revolucionrios

    resultam em formas de poder que no so controladas pela classe trabalhadora, maspor grupos partidrios burocrticos especficos. Isto consequncia de uma estratgiaanterior, geralmente pensada por estes grupos, chamados de vanguardasrevolucionrias por Lnin.

    Nesta estratgia poltica anterior no h um intenso compartilhamento do poder comos trabalhadores, e nem o suficiente investimento no desenvolvimento das suassubjetividades. Isto significa que h poucas mudanas subjetivas da populao, paraque ela se capacite para o domnio eficaz das estruturas de poder que lhes chegam smos com a queda da burguesia. Com isto, ela rapidamente perde o controle sobreestas estruturas, para grupos mais geis e acostumados a este controle. No caso do

    socialismo burocrtico, os integrantes do partido e fraes da burguesia que foramcooptadas e possuam os saberes tcnico-cientficos necessrios gesto do estado edos meios de produo.

    Os processos de mudana social, especialmente no caso da DP, so complexos etalvez sua maior dificuldade provm do fato que estes processos dependem, para suaefetivao plena, de transformaes nas estruturas sociais e na subjetividade,simultaneamente. As estruturas transformadas, alm de modificarem diretamente avida concreta dos sujeitos, fornecem as poderosas condies de formao de novassubjetividades. Por outro lado a subjetividade que j pde viver algum grau detransformao, em alguma experincia social libertadora, e integrou em sua

    personalidade a autonomia e a rejeio opresso, que fornece, coletivamente, osuporte para o avano na construo da DP.

    Sob um exame cuidadoso, a histria nos mostra como os processos detransformao social que no se realizam simultaneamente nas dimenses social(externa) e subjetiva (interna) tendem a perder a sua radicalidade, pois assubjetividades no se transformaram para dar sustentao e continuidade ao processo.Devido a isto, os resultados sociais destes movimentos acabaram sendo incorporados

    por novas elites, em benefcio prprio, produzindo novas formas de manipulao eexcluso. A Revoluo Francesa no sculo XVIII e a Revoluo Russa em 1917, comseus desdobramentos, mostram isto com clareza.

    Da advm a importncia de que as subjetividades se desenvolvam, inclusive naprpria luta poltica (nem toda luta poltica educativa, isto , desenvolve asubjetividade). Este enriquecimento da subjetividade precisa do auxlio de todosaqueles que podem oferecer meios culturais aos quais a populao, injustamente, noteve acesso, como os intelectuais engajados, artistas, educadores e lideranas, como foidefendido acima. As vantagens das lutas sociais assim enriquecidas, aumentando odomnio gradual das estruturas de poder pela classe trabalhadora, permite

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    simultaneamente o desenvolvimento de novos valores e a capacitao para o uso dopoder.

    Esta estratgia, note-se, um processo de luta social e no de acomodao eapaziguamento do conflito de classes. Ela possibilita, no prprio processo de luta, odesenvolvimento das subjetividades e dos valores baseados na justia social. Ela

    tambm oferece melhores condies para reforar o nimo e a motivao advindos dasconquistas sucessivas, que estimulam a populao a novos enfrentamentos e ganhos,fator subjetivo importantssimo na construo da DP e dos movimentos sociais de umaforma geral. Em sntese, estas estratgias, no prprio processo de conquista dasestruturas e dos bens necessrios uma vida digna para a classe trabalhadora, ofereceas condies para as mudanas subjetivas.

    Mas afinal o que pode ser, no caso latino-americano, a DP? Primeiramente ela uma forma de vida social, e no apenas uma forma de governo. Envolve, portanto, aexperimentao de novas relaes sociais, novos valores e a reconstruo da cultura.Uma outra caracterstica importante que se trata de uma forma de poder, e no a

    ausncia de poder. um poder coletivo, e voltado para o interesse da coletividade. Elaest centrada no apenas na igualdade de oportunidades (como a democracia vigente),mas na igualdade de condies para que todos possam desfrutar dos bens essenciais vida humana. Esta proposta de vida social fortemente participativa, optando porformas de participao mais diretas e menos representativas, bvio. Ela est baseadano controle progressivo do estado e do poder econmico pela classe trabalhadora.

    Trata-se de um modelo de justia social, mas no padronizador. No umsocialismo de estado, mas da sociedade. Isto ocorre porque esta proposta integra umavida fortemente comunitria com a valorizao da diversidade e o desenvolvimento

    pessoal. Ao se desenvolver, cada pessoa poder contribuir mais ricamente para a

    experincia coletiva. Ou seja, o desenvolvimento da individualidade (no doindividualismo) vital para a DP. Por isto ela no padronizadora.4 Alm dadiversidade, ele se baseia em valores cooperativos e solidrios, em oposio aoindividualismo, competio e ao consumismo. E, evidente, em oposio alienao poltica.

    Mas aprofundando no plano metodolgico as reflexes anteriores, como promover,na luta social, a construo de tal modo de vida? Ora, a DP s pode ocorrer atravs daao e do desenvolvimento subjetivo coletivo. Mudanas tecnolgicas, novosgovernos, reorganizao das grandes estruturas mundiais, novas racionalidades, tudoisto pode, em certas circunstncias, promover melhorias sociais. Mas a histria temmostrado que as grandes conquistas sociais derivam da conscientizao e das lutas daclasse trabalhadora.

    A DP depende da conquista dos bens monopolizados pelas elites: a culturaelaborada, as riquezas materiais e o poder poltico. Depende, tambm, da superao da

    4As discusses sobre justia social e mesmo sobre o socialismo precisam agregar duas qualidades: a democraciaparticipativa e o humanismo. Sem elas, o socialismo se torna prisioneiro da opresso e da burocracia partidria.Humanismo e socialismo precisam se completar. O humanismo precisa do socialismo para se radicalizar; osocialismo precisa do humanismo para se humanizar.

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    moral vigente. Por isto que ele envolve, no prprio processo de luta social, areconstruo da cultura. Mas esta reconstruo, na minha interpretao, consequncia de um envolvimento integral da subjetividade, e no apenas do

    pensamento reflexivo, como j afirmado. Justia social e autonomia, so escolhaspolticas, ticas e existenciais, no so uma questo de racionalidade apenas. A

    experincia coletiva uma importante situao para favorecer esta escolha consciente,embora no a determine. Sem dvida a reflexo crtica importante para o sucesso daao coletiva; mas ela instrumental e no decisria.

    Mas o aprofundamento desta discusso poder colocar o seguinte questionamento:no se estar acreditando excessivamente na ao coletiva? No seria isto

    pragmatismo, e pragmatismo no mau sentido da palavra, isto , praticismo? Eu mesmotenho acompanhado, nos movimentos populares, algumas aes que fracassaram

    principalmente pela falta de uma reflexo mais cuidadosa, de uma estratgia deenfrentamento adequada e de uma definio de objetivos clara. Alm disto, temos deadmitir, muitas vezes temos movimentos sociais e suas reivindicaes no so

    democrticas nem libertadoras. Aquela parcela da populao se identifica com osistema vigente e no com a alternativa que se prope, ou ento se identifica com oopressor e no se identifica como oprimida. Por exemplo, os processos de mobilizaoa favor de um golpe militar e contra as reformas de base do governo Joo Goulart, noBrasil do incio da dcada de sessenta; o movimento parcialmente popular, contra osgovernos progressistas de Evo Morales na Bolvia e Hugo Chaves na Venezuela; e ofundamentalismo islmico ultra-ortodoxo no Ir: todos so movimentos com forte

    participao popular.Logo, nem toda ao coletiva leva a resultados socialmente justos. Ela precisa

    possuir certas qualidades. Uma delas que se trata de uma ao criativa, poitica, que

    depende da liberao das energias vitais do grupo. Outra qualidade importante queesta uma ao integrada conscincia e reflexo crtica. Jamais mero ativismo. tambm uma ao fundamentada em valores coletivistas e solidrios. Caso contrrio,

    pode conduzir a novas formas de excluso. Este um ponto crtico da construo depropostas de DP. Ela depende da organizao comunitria. As relaes afetivas dentroda comunidade geram identidade coletiva; elas tambm sustentam e encorajam a luta.Mas nem sempre o comunitrio amplamente solidrio. Temos, mesmo no Brasil,grupos religiosos e tnicos extremamente fechados, que evitam o intercmbio e a

    participao nos grandes problemas que afetam a sociedade, e no permitem amplaparticipao de outras pessoas.

    3 Consideraes finais

    Analisando o contexto histrico brasileiro e latino-americano, na tentativa de pensaras possibilidades de elaborao de propostas de DP em nossa realidade, creio quealgumas contribuies podem finalizar este texto. Todas estas contribuies vemmarcadas pelo meu vis poltico, cuja inteno principal contribuir para atransformao profunda da realidade social a partir de uma perspectiva humanista.

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    Se analisarmos o cenrio poltico atual, veremos que os partidos PSTU, PSOL, PCBe PCO ocupam o lugar poltico que foi ocupado na dcada de oitenta por PT e PC doB, quando estes eram partidos progressistas, guardadas as devidas propores detamanho e expresso poltica. Estes quatro partidos, vinte anos depois, apresentamqualidades e limitaes semelhantes ao PT e PC do B no passado. Uma destas

    limitaes ainda presente na prtica poltica da esquerda partidria, no obstante o seucompromisso com as causas populares, uma excessiva identificao com o contedo

    programtico interno do partido.Esta caracterstica dificulta a formao de frentes populares, que levem ao poder

    governos progressistas, fenmeno importante para a construo da DP. Pois as frentespopulares so praticamente a nica forma de enfrentamento (no campo polticoinstitucional) das foras progressistas com os partidos conservadores, dado o seuenraizamento na estrutura poltica e os seus poderosos financiamentos.

    A construo da DP tem o seu foco inicial e principal no trabalho de base com apopulao, e no nas atividades dos partidos. Inclusive porque a estrutura poltica

    institucionalizada no capitalismo viciada: preciso mudar o poder, no basta chegarao poder, como defende o Exrcito Zapatista de Libertao Nacional (alis, uma dasmais belas e ricas experincias atuais de DP) 5.

    No obstante, em um cenrio de economia capitalista e predomnio ainda do poderburgus, os partidos que tm um real compromisso com a dignidade da vida humanaexpressa nas causas populares, so necessrios temporariamente, para defender eimplantar reformas de base possveis no atual contexto da luta de classes. Mas os

    partidos progressistas devem ser um dos instrumentos de luta da classe trabalhadora, eno a classe trabalhadora um instrumento dos partidos.

    Estas limitaes resultam em parte da persistncia ainda da proposta leninista de

    construo do socialismo, sem revises profundas, e da experincia sovitica comomodelo, mesmo que parcial, de setores da esquerda partidria. Parte da juventudedestes partidos se trata por camarada, esquecendo nossa identidade: ns no somosrussos, somos latino-americanos.

    Estas caractersticas dificultam o dilogo com a populao, e a DP precisa serconstrudo neste dilogo; no pode ser um projeto fechado, mas um projeto aberto,

    pois caso contrrio nega a sua prpria natureza humanizadora e radicalmenteparticipativa. Precisa ser suficientemente projeto, para no evitar o enfrentamento

    5Outro movimento que um notvel exemplo de processos democrtico-participativos foram as manifestaes

    no Brasil em junho de 2013 contra a realizao da Copa das Confederaes. Embora houvesse ali movimentoscom outro carter, como o vandalismo (que no tem organizao participativa) ou os black blocks (que temiderio poltico rgido e pr-determinado), um dos movimentos que iniciaram estas manifestaes foi o MPL(Movimento Passe Livre). Este movimento conseguiu dar s manifestaes um carter democrtico-participativo. Isto porque o MPL, principalmente em cidades como Salvador e So Paulo, tem uma organizaobasista desta natureza: no h cpula no movimento; tudo decidido em assemblias; qualquer pessoa temdireito a voz e voto; os lideres so mais coordenadores, no se colocam na posio de vanguardas e no temnenhum privilgio no processo de tomada de decises; h apoio e integrao com outros movimentos sociais; hum trabalho de base constante, estimulando a autonomia de cada pessoa, com carter no-dirigista; h umaatitude continua de evitar a verticalizao do movimento; no h anulao das divergncias ou das diferenasdentro do movimento ou com outros movimentos, ao contrario isto tomado como elemento potencialmenteenriquecedor das lutas.

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    com as graves desigualdades mantidas pelo capitalismo, um sistema que funcionacontra a vida; mas precisa tambm ser suficientemente aberto, para ser construdo

    junto com a populao, e no se constituir em uma agenda programtica fechada, aqual o povo convidado a aceitar e adotar. Logo, a construo da DP exige que sesupere as duas maiores limitaes que parte da esquerda latino-americana ainda

    apresenta: a dificuldade para o dilogo aberto e sincero com a populao, e aindisposio para construo conjunta do projeto poltico.

    Quando o projeto poltico est pr-definido pela teoria doutrinria, o trabalho demediadores e militantes se centra em persuadir ou convencer o povo a aceit-lo: a istotem se chamado de conscientizao. Na perspectiva de DP aqui defendida, aconscientizao um processo bem mais complexo, que se constitui em uma anlise

    profunda da realidade e de suas contradies e causalidades, e em uma construo doprojeto poltico. As duas fases so realizadas conjuntamente pelos mediadores e pelopovo, e em ambas no possvel definir com exatido o que surgir. Este carterpoitico e imprevisvel da DP no pode ser anulado, sem sacrificar a sua essncia

    humanizadora. Por isto os mediadores, sempre junto com o povo, tero de seposicionar sobre o que surgir, a partir de critrios ticos e humanos.

    O caminho de superao destas contradies passa pela gestao de propostas dejustia social latino-americanas, utopias tropicais e terceiro-mundistas, ligadas nossarealidade e s nossas identidades culturais. Neste processo precisamos realizar aantropofagia terica e ideolgica, para no perdermos as importantes contribuiesestrangeiras para a construo da justia social, mas tambm no ficarmos presosrigidamente a modelos fechados. No h nenhum problema em utilizarmos Marx, ouEngels, ou Dewey, ou Bakunim, que so todos autores estrangeiros, desde que elessejam reinterpretados e associados s teorias e realidades latino-americanas.

    No h como construir propostas de DP sem uma anlise radical do capitalismo,que no pode prescindir do uso de alguns conceitos-chaves do materialismo dialtico,como classe social, diviso social do trabalho, luta de classes, conscincia de classe,foras produtivas, meios de produo, exrcito industrial de reserva, mais-valia,controle social (dominao e hegemonia). Por este trabalho titnico de anlise daestrutura profunda do capitalismo, Marx merece todo crdito, gratido ereconhecimento.

    Sem dvida, o materialismo dialtico a mais profunda e consistente anlise dasociedade capitalista; contudo, ele mais eficaz na anlise do que na proposio daalternativa. No obstante o seu valor insubstituvel para se conhecer e desconstruir as

    bases da ordem burguesa, o socialismo no monoplio do materialismo dialtico. Asreflexes anarquistas e humanistas radicais tambm tm um grande papel adesempenhar na construo de socialismos humanizantes, onde o poder sejacompartilhado por todos e no exercido por uma elite burocrtica partidria.

    Nem Marx nem Engels elaboraram as estratgias especficas e o mtodo deconstruo do socialismo: como todos sabem isto foi elaborado por Lnin, e depoisrevisado em parte por Mao Ts-Tung, Ernesto Che Guevara e outros. Mas este mtodono sofreu uma reviso profunda, estrutural, mesmo por Che Guevara, crtico

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    http://periodicos.unifap.br/index.php/pracs ISSN 1984-4352 Macap, v.7 n. 1, p. 61-81, jan.-jun. 2014

    inteligente do modelo sovitico e um dos seres humanos mais completos, dignos esolidrios que a modernidade produziu. No contexto mais terico, o mtodo deconstruo do socialismo foi repensado por outros autores e pensadores polticos,como Lukcs, Hobsbawm, Anderson e Lwy. Contudo, o mtodo leninista ainda a

    principal referncia de muitos partidos e organizaes de esquerda latino-americanas.

    O totalitarismo stalinista e o imperialismo sovitico esto entre as experinciaspolticas mais terrveis do sculo 20, comparveis em alguns pontos expansodesumanizadora e brutal que o imperialismo norte-americano promove no terceiromundo. Contudo, muitas pessoas argumentam que o stalinismo foi uma fuga de rota,um desvio, um acidente ou erro de trajetria do projeto leninista de socialismo. Eu no

    penso assim: embora a unio sovitica provavelmente fosse diferente sob o comandodo grupo leninista se ele tivesse sobrevivido ao extermnio stalinista, no teria deixadode ser burocrtica e, na verdade, muito pouco sovitica (ou seja, os sovietes no teriamsido o lugar do poder).

    Isto se deve ao fato de que o prprio projeto leninista autoritrio: o partido o

    centro de todas as decises, e no, de fato, a classe trabalhadora. um projetocentralizador, apesar da boa vontade de Lnin com as causas operrias mas DP nose constri sem o compartilhamento do poder. Precisamente por isto, a construo de

    propostas de DP exigem a reviso do mtodo leninista, principalmente em trscontradies bsicas deste pensamento revolucionrio: 1. A idia de que o partidoexpressa as necessidades e vontades da classe trabalhadora; 2. O conceito devanguarda revolucionria; 3. O partido como o lugar do poder.

    Parece muito coerente a ideia defendida por Engels no seu texto de 1892, Dosocialismo utpico ao socialismo cientfico, isto , que somente a partir do socialismoos trabalhadores comeam a traar a sua histria com plena conscincia do que fazem;

    contudo, tambm me parece coerente que dificilmente esta conscincia histrica sedesenvolver com a tutela do partido sobre a classe trabalhadora. A conscincia setorna plena entre pessoas livres e iguais, que se submetem apenas vontade coletiva eaos direitos bsicos do ser humano: a submisso a qualquer outro poder corrompe aconscincia.

    Por isto tudo a DP uma proposta de justia social humanista: ela depende de altoinvestimento no desenvolvimento das subjetividades; as propostas de educao

    progressistas, entre as quais a educao libertadora, desempenham a um importantepapel. A DP faz convergir a justia social do socialismo com as propostasradicalmente democrticas de vida social, mas no uma social-democracia, pois a

    base econmica desta ainda capitalista. A DP, por outro lado, necessita dasocializao dos grandes meios de produo, pois a propriedade privada, nesta escala,sempre produzir desigualdade social. Logo a DP, na plenitude de sua realizao, incompatvel com a desigualdade social, e portanto, com o capitalismo, pois este inerentemente produtor de desigualdade.

    O uso da fora legtimo, quando direitos coletivos so desrespeitados. No caso docapitalismo, especialmente do capitalismo no terceiro mundo, o desrespeito vida e dignidade estrutural ao sistema, e no casual, episdico, momentneo ou conjuntural.

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    Por isto o uso da fora uma das estratgias legtimas na construo da DP, emqualquer de suas fases, desde que ocorra com ampla participao popular. Ocapitalismo um sistema violento e no parece que possa ser superado apenas pelosmeios pacficos e institucionais. Vrias formas de contestao e de desobedincia civilem larga escala so vlidas portanto.

    Contudo aqui vale a ressalva de que o protagonismo neste processo necessariamentedeve ser da populao. O uso das vrias formas de luta e contestao no pode serdecidido e conduzido por pequena parcela da populao ou de ativistas, pois a sereproduz a diviso entre agentes e espectadores, entre sujeitos e objetos, que levarmais tarde separao entre dominadores e dominados.

    A DP, enquanto regime poltico, um sistema sem partido; nele, o poder da classetrabalhadora se localizaria e se exerceria em trs lugares principais: 1. Assembleiaslocais, o mais importante frum de debate e discusso coletiva; tm o poder dedestituir qualquer gestor, em associao com outras assembleias locais, bem como

    barrar qualquer deciso estatal que no esteja em sintonia com as deliberaes das

    assembleias locais das regies afetadas por aquela poltica pblica; 2. Assembleiasregionais, que discutem e compatibilizam decises e sugestes das vrias assembleiaslocais sobre determinado tema ou poltica publica; 3. Conselhos de representantes dostrabalhadores das vrias regies; estes conselhos, sempre plurais em sua composio,so os prprios gestores pblicos (gestores coletivos) e exercem a gesto em sistemade rodzio, sempre intimamente ligados s assembleias locais e regionais, e sempresujeitos ao constante controle destas; podem se destitudos em caso de desrespeito sdecises de base.

    Ao finalizar este texto poltico, eu gostaria de reforar uma das ideias sustentadorasdesta utopia: o poder poltico justo e legtimo, que coloque todos os seres humanos no

    centro, aquele exercido por todos estes mesmos seres humanos, e no por delegaoou representao. Somente este tipo de poder pode manter sociedades que funcionam

    para todos, em todas as suas capacidades de experimentar e dignificar a vida. Assim avida humana poder explodir em toda sua potencialidade csmica.

    Referncias bibliogrficas

    CLASTRES, Pierre.A sociedade contra o estado. Pesquisas de antropologia poltica.Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.DEWEY, John.El hombre y sus problemas. Buenos Aires: Editorial Paids, 1952.DEWEY, John. Democracia e educao - Introduo filosofia da educao. SoPaulo: Nacional, 1979.DEWEY, John. Pode a educao participar na reconstruo social? Currculos sem

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    Artigo recebido em 24 de abril de 2014.

    Aprovado em 29 de outubro de 2014.