MÓDULO 01 - TEXTO 2 - ToLSTOI, Leon (1862) Da Instrucao Popular

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TOLSTOI, Leon. (1862) “Da instrução popular”. In: Obras Pedagógicas. Moscou: Edições Progresso, 1988 pp. 38-56 DA INSTRUÇÃO POPULAR (Janeiro de 1862) A instrução popular foi sempre e em todo o lugar e continua a ser para mim um fenômeno incompreensível. O povo quer instrução e cada indivíduo aspira inconscientemente à instrução. A classe de pessoas mais instruída – a sociedade, o governo – tenta transmitir os seus conhecimentos e instruir a classe menos instruída do povo. Semelhante coincidência de necessidades deveria satisfazer tanto a classe instrutora como a classe instruenda. Mas dá-se o contrário. O povo resiste constantemente aos esforços que a sociedade ou o governo, como representantes da camada mais instruída, fazem para a sua instrução e, na maioria das vezes, não dão resultado. Sem falar das escolas da Antiguidade: da Índia, do Egito, da Grécia Antiga e mesmo de Roma, cuja organização conhecemos tão mal como a opinião que o povo tinha desses estabelecimentos, este fenômeno surpreende-nos nas escolas europeias desde a época de Lutero até aos nossos dias. A Alemanha, criadora da escola, em quase 200 anos de luta, não conseguiu ainda submeter a resistência do povo à escola. Não obstante os Fredericos terem nomeado para professores distintos soldados inválidos, não obstante o rigor da lei que vigora há 200 anos, não obstante a preparação de professores do perfil mais moderno nos seminários, não obstante todo o sentido de respeito do alemão pela lei, a coação da escola continua hoje a oprimir com toda a força o povo; os governos alemães não se decidem a revogar a lei da obrigatoriedade da escola. A Alemanha só se pode orgulhar da instrução do povo expressa nas estatísticas. O povo, na sua maioria, só leva da escola o ódio a essa mesma escola. A França, não obstante a passagem da instrução das mãos do rei para o diretório e das mãos do diretório para as mãos do clero, pouco fez no campo da instrução popular, assim como a Alemanha, ou ainda menos, afirmam os historiadores da instrução que julgam pelos relatórios oficiais. Na França, estadistas sérios propõem ainda agora, como único meio de vencer a resistência do povo, a imposição da lei da coerção. Na Inglaterra livre, onde não veio à cabeça de ninguém impor semelhante lei – pela qual muitos manifestam simpatia –

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Trata sobre a educação popular

Transcript of MÓDULO 01 - TEXTO 2 - ToLSTOI, Leon (1862) Da Instrucao Popular

  • TOLSTOI, Leon. (1862) Da instruo popular.

    In: Obras Pedaggicas. Moscou: Edies Progresso, 1988 pp. 38-56

    DA INSTRUO POPULAR

    (Janeiro de 1862)

    A instruo popular foi sempre e em todo o lugar e continua a ser para mim um

    fenmeno incompreensvel. O povo quer instruo e cada indivduo aspira

    inconscientemente instruo. A classe de pessoas mais instruda a sociedade, o

    governo tenta transmitir os seus conhecimentos e instruir a classe menos instruda

    do povo. Semelhante coincidncia de necessidades deveria satisfazer tanto a classe

    instrutora como a classe instruenda. Mas d-se o contrrio. O povo resiste

    constantemente aos esforos que a sociedade ou o governo, como representantes da

    camada mais instruda, fazem para a sua instruo e, na maioria das vezes, no do

    resultado. Sem falar das escolas da Antiguidade: da ndia, do Egito, da Grcia Antiga

    e mesmo de Roma, cuja organizao conhecemos to mal como a opinio que o povo

    tinha desses estabelecimentos, este fenmeno surpreende-nos nas escolas europeias

    desde a poca de Lutero at aos nossos dias.

    A Alemanha, criadora da escola, em quase 200 anos de luta, no conseguiu

    ainda submeter a resistncia do povo escola. No obstante os Fredericos terem

    nomeado para professores distintos soldados invlidos, no obstante o rigor da lei que

    vigora h 200 anos, no obstante a preparao de professores do perfil mais moderno

    nos seminrios, no obstante todo o sentido de respeito do alemo pela lei, a coao

    da escola continua hoje a oprimir com toda a fora o povo; os governos alemes no

    se decidem a revogar a lei da obrigatoriedade da escola. A Alemanha s se pode

    orgulhar da instruo do povo expressa nas estatsticas. O povo, na sua maioria, s

    leva da escola o dio a essa mesma escola. A Frana, no obstante a passagem da

    instruo das mos do rei para o diretrio e das mos do diretrio para as mos do

    clero, pouco fez no campo da instruo popular, assim como a Alemanha, ou ainda

    menos, afirmam os historiadores da instruo que julgam pelos relatrios oficiais. Na

    Frana, estadistas srios propem ainda agora, como nico meio de vencer a

    resistncia do povo, a imposio da lei da coero. Na Inglaterra livre, onde no veio

    cabea de ningum impor semelhante lei pela qual muitos manifestam simpatia

  • no foi o governo, mas a sociedade que lutou e luta hoje, com todos os meios

    possveis, contra a resistncia, mais forte do que em qualquer outro lugar, do povo

    escola. Parte das escolas so criadas pelo governo, outra parte por sociedades

    privadas. A enorme difuso e atividade dessas sociedades religiosas, filantrpicas e de

    instruo na Inglaterra mostra melhor do que tudo a fora da resistncia que a parte do

    povo que instrui enfrenta. Mesmo o novo Estado, os Estados Unidos da Amrica, no

    superou essa dificuldade e teve que tornar a instruo semi-obrigatria. Que dizer

    ento da nossa ptria, onde a maioria do povo se irrita contra a ideia da escola, onde

    as pessoas mais instrudas sonham com a imposio da lei alem de obrigatoriedade

    da escola e onde todas as escolas, mesmo destinadas ao estado superior, s existem

    sob o signo do engodo de algum cargo e das vantagens que da advm. At agora as

    crianas tm sido obrigadas quase fora a ir para a escola e os pais so obrigados,

    atravs da lei ou de sutilezas, a mandar as crianas para a escola; mas o prprio povo

    estuda em quase todo lugar e considera que aprender um bem.

    Que isto? A necessidade de aprender vive em cada pessoa; o povo ama e

    procura aprender como ama e busca o ar para respirar. O governo e a sociedade

    querem muito instruir o povo e, no obstante toda a coero, sutileza e tenacidade dos

    governos e das sociedades, o povo manifesta permanentemente o seu

    descontentamento face instruo que lhe proposta e apenas lentamente se rende

    fora.

    Aqui, tal como em qualquer outro confronto, seria necessrio resolver a questo

    do que legal: a resistncia ou a prpria ao; ser preciso quebrar a resistncia ou

    mudar a ao?

    At agora, pelo que se pode constatar da histria, a questo foi sempre resolvida

    a favor do governo e da sociedade que instrui. A resistncia foi declarada ilegal, era

    considerada o princpio do mal inerente humanidade, e a sociedade, no desistindo

    do seu modo de agir, ou seja, no desistindo da forma e do contedo da instruo,

    utilizou a fora e a sutileza para destruir a resistncia do povo. Este ltimo, passo a

    passo, contra a sua vontade, submeteu-se at hoje a esta ao.

    Talvez a sociedade instrutora tivesse algumas razes para concluir que a

    instruo que possua era, em certa medida, um bem para um determinado povo e

    numa determinada poca histrica.

    Que razes so estas? Que razes tem a escola atual para ensinar uma coisa e

    no outra, para ensinar de uma maneira e no de outra?

  • A humanidade sempre tentou dar e dava respostas mais ou menos satisfatrias a

    estas perguntas, mas, atualmente, esta resposta mais indispensvel do que nunca.

    Um mandarim chins, que nunca tenha sado de Pequim, pode obrigar as crianas a

    decorar as mximas de Confcio e pode met-las nas suas cabeas custa de pancada.

    Podia se fazer a mesma coisa na Idade Mdia, mas onde encontrar hoje a fora da f

    na indubitabilidade do nosso conhecimento que nos poderia dar o direito de instruir o

    povo fora? Tomemos uma escola medieval antes ou depois de Lutero, tomemos

    toda a literatura cientfica da Idade Mdia, que fora da f e do conhecimento firme e

    incontestvel do que era verdadeiro e do que era falso havia nessas pessoas! Era-lhes

    fcil saber que a lngua grega era a nica condio necessria da instruo porque

    nessa lngua escrevia Aristteles e ningum duvidava do seus ensinamentos mesmo

    alguns sculos depois. Como podiam os monges no exigir o estudo da Sagrada

    Escritura que se baseava em fundamentos inabalveis? Lutero no teve dificuldade

    em exigir o estudo obrigatrio da lngua hebraica porque sabia com toda a firmeza

    que Deus revelou a verdade aos homens nessa lngua. Claro que quando o sentido

    crtico da humanidade ainda no tinha despertado, a escola devia ser dogmtica; que

    era natural que os alunos decorassem as verdades inspiradas por Deus e por

    Aristteles e as belezas poticas de Virglio e Ccero. Ningum, mesmo alguns

    sculos depois, podia imaginar verdade mais verdadeira ou beleza mais bela. Mas

    qual a situao da escola da nossa poca que continua assente nos mesmos

    princpios dogmticos quando, paralelamente aula de decorao da verdade sobre a

    imortalidade da alma, se tenta dar a entender ao aluno que os nervos, iguais no

    homem e na r, so a essncia do que outrora se chamava alma; quando, depois de lhe

    contarem a histria de Jochua, filho de Nun, sem qualquer tipo de explicaes, ele

    venha a saber que o Sol nunca girou em torno da Terra; quando, depois de lhe

    explicar as belezas de Virglio, ele considera as belezas de Alexandre Dumas, que lhe

    foram vendidas por cinco cntimos, muito maiores; quando a nica crena do

    professor consiste em que no h nada verdadeiro, que tudo o que existe racional,

    que o progresso um bem e o atraso um mal; quando ningum sabe em que consiste

    esta f universal no progresso?

    Depois de tudo isto, comparem a escola dogmtica da Idade Mdia, onde as

    verdades eram incontestveis, e a nossa escola, onde ningum sabe o que a verdade

    e para onde obrigam o aluno a ir fora, para onde obrigam os pais a mandarem os

    seus filhos. Mais, a escola medieval no tinha dificuldade em saber o que ensinar, o

  • que ensinar antes e o que ensinar depois e como ensinar, porque havia apenas um

    mtodo e toda a cincia se concentrava na Bblia, nos livros de Agostinho e de

    Aristteles. Dada a infinita variedade de mtodos de ensino propostos de todos os

    lados, dada a grande quantidade de cincias e de suas subdivises que se formaram na

    nossa poca, temos de escolher um dos mtodos propostos, um ramo das cincias e, o

    mais difcil, escolher a sequncia mais racional e justa do ensino dessas cincias. Isso

    tambm no suficiente. Alm disso, a procura destas razes , na nossa poca, mais

    difcil do que na escola medieval, visto que ento, a instruo era monoplio de uma

    s classe que se preparava para viver em determinadas condies; na nossa poca,

    quando todo o povo declara o seu direito instruo torna-se ainda mais difcil e

    indispensvel saber o que preciso para todas essas classes heterogneas.

    Quais so estas interrogaes? Pergunte a um pedagogo qualquer por que que

    ele ensina assim e isso mesmo e no isto, por que que antes e no depois. Se ele

    compreender, responder: porque conhece a verdade, inspirada por Deus, e considera

    ser seu dever transmiti-la gerao jovem, educ-la em princpios que so

    indubitavelmente verdadeiros; mas no responder sobre as disciplinas de instruo

    laica. Outro pedagogo dir que as bases da sua escola so as leis eternas da razo

    expostas por Fichte, Kant e Hegel; um terceiro basear o seu direito de coero do

    aluno no fato de ter sido sempre assim, de todas as escolas terem sido coercitivas e de,

    no obstante isso, os resultados dessas escolas serem a verdadeira instruo; outro,

    finalmente, rene todas estas razes e diz que a escola deve ser o que , pois assim foi

    feita pela religio, pela filosofia e a experincia, e que tudo o que histrico

    racional. Todos estes argumentos, que incluem outros argumentos possveis, parece-

    me, podem ser divididos em religiosos, filosficos, experimentais e histricos.

    A instruo que tem a religio como base, ou seja, a inspirao divina, de cuja

    verdade e legitimidade ningum pode duvidar, deve ser incontestavelmente inculcada

    no povo e s neste caso a coero legtima. Mas, na nossa poca, quando a instruo

    religiosa constitui apenas uma pequena parte da instruo, a questo de saber se a

    escola tem razes para obrigar a gerao jovem a estudar continua, de certa maneira,

    por resolver do ponto de vista religioso.

    A resposta talvez possa ser encontrada na filosofia. Ter a filosofia razes to

    fortes como a religio? Quais so elas? Quem, como e quando manifestou essas

    razes? Ns no as conhecemos. Todos os filsofos descobrem leis do bem e do mal;

    ao descobrirem essas leis, eles, ao abordarem a pedagogia (no podiam deixar de a

  • abordar), obrigam a formar o gnero humano segundo essas leis. Mas cada uma destas

    teorias, entre outras teorias, incompleta e constitui apenas um novo elo na noo de

    bem e de mal, contida na humanidade.

    Todo pensador manifesta apenas aquilo de que tem conscincia a sua poca e,

    por isso, a instruo da gerao jovem, no sentido desta tomada de conscincia,

    totalmente desnecessria. Esta tomada de conscincia j inerente gerao viva.

    Todas as teorias pedaggico-filosficas tm por objetivo a tarefa de formar

    pessoas virtuosas. O conceito de virtuosos continua a ser o mesmo ou desenvolve-se

    infinitamente e, no obstante todas as teorias, o declnio e o florescimento da virtude

    no dependem da instruo. Ou os virtuosos chins, grego, romano e francs do nosso

    tempo so do mesmo modo virtuosos ou esto todos, do mesmo modo, longe da

    virtude. As teorias filosficas da pedagogia resolvem o problema de como educar o

    homem mais perfeito segundo uma determinada teoria tica, criada numa ou noutra

    poca e reconhecida como incontestvel. Plato no duvidava das verdades da sua

    tica e, com base nela, construiu a sua educao que, por sua vez, o fundamento do

    seu Estado. Schleiermacher afirma que a tica ainda uma cincia incompleta e que,

    por conseguinte, a educao e a instruo devem ter por objetivo a preparao de

    pessoas capazes de entrar nas condies que encontram na vida e, ao mesmo tempo,

    capazes de trabalhar com fora no seu aperfeioamento. A instruo em geral, diz

    Schleiermacher, tem por fim entregar um membro pronto ao Estado, igreja, vida

    social e ao conhecimento. S a tica, embora sendo cincia incompleta, d resposta

    pergunta: com que membro destes quatro elementos deve ser educado o homem? Tal

    como Plato, todos os pedagogos-filsofos procuram na tica a tarefa e o objetivo da

    instruo, reconhecendo uns que ela conhecida, outros, que eternamente elaborada

    na conscincia da humanidade; mas nenhuma teoria d resposta positiva pergunta: o

    qu e como ensinar o povo? Um diz uma coisa, outro diz outra e, quanto mais se

    avana, mais contraditrias se tornam as suas ideias. Ao mesmo tempo, aparecem

    diferentes teorias contraditrias. A tendncia teolgica luta com a escolstica, a

    escolstica com a clssica, a clssica com a real, e, atualmente, todas estas tendncias

    existem e ningum sabe o que a mentira e o que a verdade. Todos esto

    descontentes com o que existe, mas no sabem o que de novo preciso e

    indispensvel.

    Se analisarem o rumo histrico da filosofia da pedagogia, encontraro nela no

    o critrio da instruo, mas, pelo contrrio, uma ideia comum que se encontra

  • inconscientemente na base de todos os pedagogos, no obstante as frequentes

    divergncias entre si, ideia essa que nos convenceu da falta deste critrio. Todos, de

    Plato a Kant, desejam uma coisa: libertar a escola dos ns histricos que pendem

    sobre ela, querem adivinhar as necessidades do homem e, com base nestas

    necessidades, adivinhadas com maior ou menor exatido, construir a sua nova escola.

    Lutero obrigava a estudar as Sagradas Escrituras pelo original, e no pelos

    comentrios dos santos padres. Bacon obrigava a estudar a natureza na prpria

    natureza, e no pelos livros de Aristteles. Rousseau quer estudar a vida na prpria

    vida, como ele a compreende, e no nas experincias do passado. Cada passo em

    frente da filosofia da pedagogia consiste em libertar a escola da ideia de ensinar s

    jovens geraes o que as geraes velhas consideravam cincia e em enveredar pela

    ideia de ensinar o que necessrio s geraes jovens. Esta ideia comum e ao mesmo

    tempo contraditria est patente em toda a histria da pedagogia. comum porque

    todos exigem mais liberdade para a escola, contraditria porque cada um prescreve as

    leis baseadas na sua teoria e, deste modo, limita a liberdade.

    A experincia das escolas do passado e do presente?... Mas como pode esta

    experincia provar-nos a justeza do mtodo existente de instruo coercitiva? No

    podemos saber se h outro mtodo mais legtimo visto que at agora no existiram

    ainda escolas livres. verdade que no degrau mais alto da instruo (universidades,

    aulas pblicas) ela tenta tornar-se cada vez mais livre. Mas isto no passa de uma

    suposio. Talvez a instruo nos degraus mais baixos deva ser sempre coercitiva e a

    experincia nos tenha mostrado que semelhantes escolas so boas? Olhemos pois para

    essas escolas, deixando de parte os grficos estatsticos na Alemanha, e tentemos ver

    a escola e a sua influncia real no povo. A realidade pareceu-me ser a seguinte: o pai

    manda a filha ou o filho para a escola contra a vontade, amaldioando o

    estabelecimento que o priva do trabalho do seu filho e contando os dias que faltam

    para o seu filho se tornar schulfrei, livre da escola (esta expresso prova como o povo

    olha para a escola). A criana vai para a escola convencida de que o poder do pai, que

    ela conhece, no aprova o poder do governo, ao qual se submete ao ingressar na

    escola. O que ela ouve dos seus camaradas mais velhos, que j saram desse

    estabelecimento, no aumenta o seu desejo de entrar na escola. As escolas parecem-

    lhe estabelecimentos de tortura para as crianas, onde lhes privam da principal alegria

    e necessidade da infncia: a liberdade de movimentos, onde Gehorsam (obedincia) e

    Ruhe (calma) so as principais condies, onde preciso uma autorizao especial

  • para sair uma hora, onde cada falta castigada com a rgua ou a vara, embora

    esteja oficialmente afixada a eliminao dos castigos corporais com rgua, ou com a

    continuao da situao mais cruel para a criana: o estudo. A criana v com toda a

    justia na escola um estabelecimento onde lhe ensinam o que ningum compreende,

    onde, na grande maioria dos casos, a obrigam a falar no no seu patois, Mundart

    natal, mas numa lngua estranha, onde o professor, muito frequentemente, v nos seus

    alunos inimigos inveterados que, por maldade sua e por maldade dos pais, no querem

    estudar o que ele prprio estudou e onde os alunos, pelo contrrio, olham para o

    professor como para um inimigo que, apenas por maldade prpria, os obriga a estudar

    coisas to difceis. So obrigados a passar seis anos e seis horas por dia em

    semelhante instituio. Vemos os resultados disso nos fatos reais, e no nas

    estatsticas. Na Alemanha, 9/10 da populao escolar levam da escola o hbito

    mecnico de ler e escrever e um dio to grande aos caminhos da cincia por eles

    experimentados que, depois, nunca mais pegam num livro. Mostrem os que no esto

    de acordo comigo um livro que o povo leia; at os calendrios e os jornais populares

    so excees raras. O fato de no haver literatura popular e, principalmente, de ser

    necessrio mandar cada gerao nova fora para a escola, tal como dantes, uma

    prova irrefutvel de que no h instruo entre o povo. Mais, a escola provoca o dio

    instruo, habitua hipocrisia e ao engano, que advm da situao anti-natural em

    que os alunos so colocados, e barafunda e confuso dos conceitos a que chamam

    saber ler e escrever. Nas minhas viagens pela Frana, Alemanha e Sua, propus, nas

    escolas primrias e a pessoas que j tinham terminado a escola, a seguinte pergunta a

    fim de saber informaes dos alunos, as suas opinies sobre a escola e o seu

    desenvolvimento moral: qual a principal cidade da Prssia e da Baviera? Nas

    escolas, s vezes, respondiam-me com tiradas decoradas dos livros, mas os ex-alunos

    nunca. S consegui receber resposta de cor. Na matemtica no encontrei uma regra

    geral: umas vezes respondiam bem, outras vezes, muito mal. Depois pedi aos alunos

    que escrevessem uma composio sobre o que tinham feito no domingo anterior, e as

    raparigas e os rapazes, sem exceo, escreveram a mesma coisa: no domingo,

    utilizaram todos os momentos possveis para rezar a deus, mas no brincaram. Isto

    um exemplo da influncia moral da escola. Quando perguntei aos adultos por que no

    estudam depois da escola, no leem, todos responderam que j tinham sido

    confirmados, passado a quarentena da escola e recebido o diploma de uma certa

    instruo, sabem ler e escrever.

  • Alm dessa influncia embrutecedora da escola, para a qual os alemes criaram

    um termo muito exato verdummen (embrutecer), que consiste na deformao

    prolongada das capacidades intelectuais, h outra influncia, ainda mais perniciosa,

    que consiste em que a criana, durante as muitas horas de aulas dirias, embrutecida

    pela vida escolar, afastada, durante o tempo mais rico do ponto de vista etrio, das

    condies necessrias ao desenvolvimento, que lhe so concedidas pela prpria

    natureza. Ouve-se e l-se muitas vezes a opinio de que as condies em casa, a

    rudeza dos pais, os trabalhos agrcolas, os jogos na aldeia etc. so os principais

    obstculos que dificultam a instruo escolar. Certamente que tudo isso dificulta a

    instruo escolar que os pedagogos subentendem, mas j tempo de nos

    convencermos de que estas condies so as bases principais de toda a instruo, de

    que no so inimigos e obstculos da escola, mas os seus primeiros e principais

    impulsionadores. Jamais a criana aprenderia a diferena das linhas que constituem a

    diferena das letras, os nmeros, a capacidade de exprimir as suas ideias sem essas

    condies domsticas. Por que motivo essa rude vida domstica pde ensinar

    criana coisas to difceis e, de sbito, essa mesma vida domstica no s se torna

    imprpria para ensinar criana coisas to simples como a leitura, a escrita etc., como

    tambm prejudicial para esse ensino? A melhor prova a comparao do filho de um

    campons que nunca estudou com o filho de um nobre que estudou com preceptor

    desde os cinco anos. O primeiro mais inteligente e tem mais conhecimentos. Mais

    ainda, o interesse em saber e as perguntas s quais a escola deve responder s so

    originadas por essas condies domsticas. Todo o ensino deve ser apenas uma

    resposta pergunta colocada pela vida. Mas a escola no s no coloca perguntas,

    como tampouco responde s pergunta que a vida coloca. Ela responde constantemente

    s mesmas perguntas, colocadas h alguns sculos atrs pela humanidade, e no pela

    idade infantil, quando elas ainda no interessam nada criana. Estas questes so:

    como foi criado o mundo? Quem foi o primeiro homem? O que havia 2000 anos

    atrs? Que terra a sia? Qual a forma da Terra? Como multiplicar cem por mil e o

    que vir depois da morte etc. Mas a criana no recebe resposta s perguntas que

    parecem vir da vida, tanto mais que, segundo a organizao policial da escola, ela no

    tem direito de abrir a boca para pedir para ir ao banheiro, deve fazer sinais a fim de

    no perturbar o silncio e de no incomodar o professor. A escola assim instituda,

    pois o objetivo da escola oficial, criada de cima, consiste, na maioria dos casos, no

    em instruir o povo, mas em instrui-lo segundo o nosso mtodo, em que haja escola e

  • muitas escolas. No h professores? Fazer professores. E ainda continua a sentir-

    se a sua falta? Fazer com que um professor possa ensinar 500 crianas, mecanizar a

    instruo, o mtodo de Lancaster, os mais velhos ensinam os mais novos. Por isso, as

    escolas institudas a partir de cima e coercitivamente no so um pastor para o

    rebanho, mas um rebanho para o pastor. A escola no instituda para que s crianas

    seja cmodo estudar, mas para que aos professores seja cmodo ensinar. Ao professor

    incomodam os rudos, o movimento e a alegria das crianas, que so para elas uma

    condio indispensvel de estudo; por isso, nas escolas construdas como cadeias,

    proibido fazer perguntas, falar e mover-se. Em vez de se convencerem de que para

    agir sobre um objeto qualquer preciso estud-lo (na educao, este objeto a criana

    livre), eles querem ensinar como sabem, como querem e, quando sucede um fracasso,

    pretendem mudar no o mtodo de ensino, mas a prpria natureza da criana. Deste

    conceito surgiram e surgem agora (Pestalozzi) sistemas com os quais se pode

    mecanizar a instruo desejo eterno da pedagogia de organizar as coisas de tal

    forma que o mtodo seja o mesmo, independente do professor e do aluno. Basta olhar

    para uma criana em casa, na rua ou na escola e vero ou um ser feliz, cheio de

    curiosidade, com um sorriso nos olhos e nos lbios, que procura ensinamentos em

    tudo como uma alegria, que manifesta clara e frequentemente as suas ideias com a sua

    lngua; ou vero um ser martirizado, angustiado, com uma expresso de cansao,

    medo e tdio, que repete com os lbios palavras estranhas numa lngua estranha, um

    ser cuja alma, tal como o caracol, se escondeu na sua casca. Basta olhar para estes

    dois estados de esprito para decidir qual dos dois o mais til para o

    desenvolvimento da criana. O estranho estado psicolgico a que chamo estado

    escolar da alma, que todos ns, infelizmente, conhecemos bem, consiste em que todas

    as capacidades superiores imaginao, criatividade, compreenso cedem o seu

    lugar a outras capacidades, semi-animais: a pronunciao de palavras

    independentemente da imaginao, a contagem de nmeros seguida: 1, 2, 3, 4, 5, a

    compreenso das palavras sem admitir que a imaginao coloque nelas outras

    imagens; numa palavra, a faculdade de reprimir em si as capacidades supremas a fim

    de desenvolver apenas as que coincidem com o estado escolar: o medo, a tenso da

    memria e a ateno. Todo aluno um disparate na escola enquanto no entrar na

    roda do estado semi-animal. Logo que a criana chega a este estado, perde toda a

    independncia, logo que se comeam a manifestar diferentes sintomas da doena

    hipocrisia, mentira, desespero etc., ela deixa de ser um disparate na escola, entra na

  • roda e o professor comea a ficar contente com ela. Ento aparecem tambm

    fenmenos que no so ocasionais, mas que se repetem constantemente, por exemplo:

    a criana mais tonta considerada o melhor aluno e a mais inteligente passa a ser o

    pior aluno. Parece-me que este fato bastante significativo para que se pense nele e se

    tente explic-lo. Parece-me que este fato uma prova evidente da falsidade das razes

    da escola coercitiva. Mais ainda, alm deste prejuzo, que consiste no afastamento das

    crianas da instruo inconsciente recebida em casa, no trabalho, na rua, estas escolas

    so prejudiciais fisicamente, ao corpo, indivisvel da alma na primeira idade; este

    prejuzo particularmente importante em relao monotonia da educao escolar,

    mesmo se ela for boa. O agricultor no pode viver sem as condies de trabalho, a

    vida no campo, as conversas dos mais velhos etc., sem tudo que o rodeia; o mesmo

    acontece com o arteso e o citadino em geral. No foi por acaso, mas racionalmente

    que a natureza rodeou o agricultor de condies agrcolas, o citadino de condies

    citadinas. Estas condies so altamente instrutivas e s nelas se podem instruir; a

    escola coloca o afastamento destas condies como primeira condio da instruo. A

    escola acha isto insuficiente. Alm de afastar as crianas da vida durante seis horas

    por dia, nos melhores anos da vida, ela quer retirar as crianas com trs anos de idade

    da influncia da me. Foram inventados Kleinkinderbewahranstalt, infantschools,

    salles dasile (orfanatos para crianas pequenas, escolas infantis, creches). S falta

    inventar uma mquina a vapor que substitua a me lactante. Todos esto de acordo

    que as escolas so imperfeitas (eu, pelo meu lado, estou convencido de que so

    prejudiciais). Todos esto de acordo que so precisos muitos e muitos melhoramentos.

    Todos esto de acordo que esses melhoramentos devem basear-se numa maior

    comodidade para os alunos. Todos esto de acordo que s possvel saber quais so

    essas comodidades se se estudar as necessidades da idade escolar em geral e as

    necessidades de cada estrato social em particular. Que est a ser feito para realizar

    esse estudo difcil e complexo? Durante alguns sculos que uma escola criada

    imagem e semelhana de uma outra que, por sua vez, semelhante uma outra

    anterior e, em cada uma destas escolas, condio indispensvel a disciplina que

    probe s crianas de falar, fazer perguntas, escolher este ou aquele objeto de estudo,

    numa palavra, so tomadas todas as medidas para privar o professor da possibilidade

    de tirar concluses sobre as necessidades dos alunos. A organizao coercitiva da

    escola exclui toda a possibilidade de progresso. No entanto, quando pensamos nos

    muitos sculos que perdemos a responder s crianas perguntas que elas no

  • pensavam fazer, como avanaram as geraes atuais em relao antiga forma de

    instruo que lhes metida na cabea, no compreendemos como que as escolas

    ainda se aguentam. Parece-nos que a escola deve ser uma arma da instruo e, ao

    mesmo tempo, uma experincia com a gerao jovem que d constantemente novos

    resultados. S quando a experincia for a base da escola, s quando cada escola for,

    por assim dizer, um laboratrio pedaggico, s ento a escola no se atrasar em

    relao ao progresso universal e a experincia estar em condies de lanar bases

    firmes para a cincia da instruo.

    Mas pode a histria responder nossa pergunta v: em que se baseia o direito

    de obrigar os pais e os alunos a instrurem-se? Ela dir que as escolas existentes se

    formaram por via histrica e atravs dela devem continuar a formar-se e a mudar-se

    conforme as exigncias da sociedade e do tempo; quanto mais vivemos, mais as

    escolas melhoram. A isto respondo: primeiro, que as concluses exclusivamente

    filosficas so to unilaterais e falsas como as concluses exclusivamente histricas.

    A conscincia da humanidade o principal elemento da histria e, por isso, se a

    humanidade tomar conscincia da incapacidade das suas escolas, o fato dessa tomada

    de conscincia ser j um fato histrico onde se deve basear a organizao da escola.

    Segundo, quanto mais vivemos, mais as escolas no melhoram mas pioram, pioram

    em comparao com o nvel de instruo alcanado pela sociedade. A escola uma

    das partes orgnicas do Estado que no pode ser analisada e avaliada separadamente,

    pois o seu valor reside apenas em estar em conformidade maior ou menor com as

    outras partes do Estado. A escola s boa quando tem conscincia das leis

    fundamentais segundo as quais vive o povo. Uma escola maravilhosa para a aldeia

    russa da regio das estepes, que satisfaz todas as necessidades dos seus alunos, ser

    bastante m para o parisiense, a melhor escola do sculo XVII ser a pior escola na

    nossa poca; e, pelo contrrio, a pior escola da Idade Mdia era, no seu tempo, melhor

    do que a melhor escola da nossa poca, pois correspondia melhor ao seu tempo e

    estava ao mesmo nvel da instruo geral, ou at talvez a um nvel mais alto, enquanto

    que a nossa escola est atrs dele. Se a tarefa da escola, admitindo a definio mais

    geral, consiste em transmitir o que foi elaborado e criado pelo povo e em responder s

    perguntas que a vida coloca ao homem, no h dvida de que, na escola medieval, as

    lendas eram mais limitadas e as perguntas que surgiam na vida eram mais fceis de

    resolver e esta tarefa da escola era melhor satisfeita. Era mais fcil transmitir as

    lendas da Grcia e de Roma atravs de fontes insuficientes e no estudadas, os

  • dogmas religiosos, a gramtica e a parte ento conhecida da matemtica do que todas

    as lendas por ns vividas at agora, que lanaram para trs as lendas dos povos

    antigos e todos os conhecimentos das cincias sociais necessrias na nossa poca

    como respostas aos fenmenos quotidianos da vida. Entretanto, o mtodo de

    transmisso continua a ser o mesmo.

    Terceiro, ao argumento histrico de que as escolas existiam e por isso eram

    boas, respondo com argumentos histricos. H um ano atrs, quando estive em

    Marselha, visitei todos os seus estabelecimentos de ensino destinados ao povo

    trabalhador. O nmero de estudantes entre a populao to grande que, salvo raras

    excees, todas as crianas frequentam a escola durante trs, quatro e seis anos. Os

    programas da escola consistem em estudar de cor o catecismo, a histria sagrada e

    universal, quatro operaes de aritmtica, ortografia francesa e contabilidade. Como

    que a contabilidade se pode tornar objeto da instruo? No pude entender e nenhum

    professor me pde explicar. A nica explicao que dei a mim mesmo, depois de ver

    como os alunos trabalham com os livros de contabilidade aps o termo do curso, foi

    que no sabem sequer trs operaes de aritmtica, mas estudaram de cor contas com

    nmeros e, por conseguinte, tambm devem saber de cor fazer lanamentos contbeis.

    (Parece que no preciso provar que a contabilidade que ensinada na Alemanha e

    Inglaterra uma cincia que exige quatro horas de explicao para todo aluno que

    sabe as quatro operaes de aritmtica). Nestas escolas, nenhum rapaz soube resolver

    o problema mais simples de somar e subtrair. Por outro lado, faziam operaes com

    nmeros abstratos, multiplicando milhares com agilidade e rapidez. Responderam

    bem de cor s perguntas gerais sobre a Histria da Frana, mas, quando fiz uma

    pergunta mais concreta, responderam-me que Henrique IV foi assassinado por Jlio

    Csar. O mesmo acontece na geografia e histria sagrada, na ortografia e na leitura.

    Mais de metade do sexo feminino s sabe ler por livros decorados. Seis anos de

    escola no permitem escrever palavras sem erros. Sei que os fatos por mim citados

    so to incrveis que muitos podem duvidar da sua veracidade; mas poderia escrever

    livros inteiros sobre a ignorncia que vi nas escolas da Frana, Sua, e Alemanha. A

    propsito, quem se interessa por isto que tente estudar a escola no pelas estatsticas

    dos exames pblicos, mas pelas visitas e conversas frequentes com professores e

    alunos nas escolas e fora delas. Vi em Marselha mais uma escola laica e uma

    monstica para adultos. Dos 250 000 habitantes, menos de 1000, entre eles apenas

    200 homens, frequentam estas escolas. O ensino o mesmo: leitura mecnica que

  • aprendem passado um ou mais anos, contabilidade sem conhecimentos de aritmtica,

    sermes espirituais etc. Depois de ter estado na escola laica, ouvi sermes nas igrejas,

    vi creches onde crianas de quatro anos, ao som de apito, como soldados, andam

    volta de um banco, depois, voz de comando levantam as mos e, com vozes

    inseguras e estranhas, entoam hinos laudativos a deus e aos seus benfeitores. Fiquei

    convencido de que os estabelecimentos de ensino da cidade de Marselha so muito

    maus. Se algum por milagre visse todos esses estabelecimentos, sem ver o povo na

    rua, nas oficinas, no caf, em casa, que ideia faria do povo educado deste modo?

    Talvez pensasse que este povo ignorante, grosseiro, hipcrita, cheio de supersties

    e quase selvagem. Mas basta entrar em contato, falar com algum do povo simples

    para ver que, ao contrrio, o povo francs quase aquilo que pensa ser:

    compreensivo, inteligente, comunicativo, livre-pensador e realmente civilizado.

    Olhem para um trabalhador de 30 anos da cidade, ele j escreve uma carta sem os

    erros que cometia na escola, s vezes at corretamente; percebe de poltica e, por

    conseguinte, de histria contempornea e geografia; sabe alguma coisa de histria

    atravs dos romances; tem alguns conhecimentos de cincias naturais. Muito

    frequentemente, desenha e emprega frmulas no seu artesanato. Onde aprendeu tudo

    isso?

    Encontrei involuntariamente a resposta a esta pergunta em Marselha, quando,

    depois de visitar as escolas, passeei pelas ruas, tabernas, cafs chantants, museus,

    oficinas, cais e livrarias. O mesmo rapaz que me respondeu que Henrique IV foi

    assassinado por Jlio Csar, conhecia muito bem a histria dos Quatro Mosqueteiros e

    o Conde de Monte Cristo. Em Marselha, encontrei 28 edies ilustradas baratas, de 5

    a 10 cntimos. So vendidos 30 000 exemplares para 50 000 habitantes e, por

    conseguinte, se 10 pessoas lerem e ouvirem um livro, todos os habitantes os leem.

    Alm disso h os museus, bibliotecas pblicas e teatros. Cafs, dois grandes cafs

    chantants, abertos a toda a gente, onde o consumo obrigatrio de 50 cntimos, so

    frequentados diariamente por cerca de 25 000 pessoas, sem contar com os pequenos

    cafs que atendem o mesmo nmero de pessoas. Em cada um desses cafs so

    apresentadas pequenas comdias, peas em um ato e declamados poemas. Eis como,

    segundo os clculos mais modestos, um quinto da populao, diariamente, aprende

    oralmente como aprendiam os gregos e os romanos nos seus anfiteatros. Esta

    instruo boa ou m? Isso outra questo; mas eis a instruo inconsciente, muito

    mais forte do que a coercitiva, eis a escola inconsciente que mina a escola coercitiva e

  • reduz quase a nada o seu contedo. Fica apenas uma forma desptica quase

    desprovida de contedo. Afirmo: quase, excluindo o saber mecnico de juntar letras

    e formar palavras, o nico conhecimento adquirido em 5 ou 6 anos de estudo. Alm

    disso, devo assinalar que a arte mecnica de ler e escrever, frequentemente, num

    perodo muito mais curto, aprendida fora da escola, que, muitas vezes, da escola no

    se leva sequer este saber e perde-se-o, pois no encontra aplicao na vida; e que,

    onde h a lei da obrigatoriedade escolar, no h necessidade de ensinar a escrever, ler

    e contar a segunda gerao, porque a me e o pai pareciam estar em condies de

    fazer isso mais facilmente em casa do que na escola. O que vi em Marselha, vi em

    todos os outros pases: o povo recebe a maior parte da instruo no na escola, mas na

    vida. Onde a vida instrutiva, como em Londres, Paris e nas grandes cidades, o povo

    instrudo; onde a vida no instrutiva, como nas aldeias, o povo no instrudo, no

    obstante as escolas serem totalmente iguais em ambos os lugares. Os conhecimentos

    adquiridos na cidade como que ficam, os conhecimentos adquiridos nas aldeias

    perdem-se. A orientao e o esprito da instruo do povo, tanto nas cidades como nas

    aldeias, so totalmente independentes e, muitas vezes, contrrios ao esprito que se

    pretende introduzir nas escolas populares. A instruo segue um caminho

    independente do da escola.

    O argumento histrico contra o argumento histrico consiste em que, ao

    analisarmos a histria da instruo, no nos convencemos de que as escolas se

    desenvolvem em conformidade com o desenvolvimento dos povos, mas convencemo-

    nos de que caem e se tornam uma formalidade oca em conformidade com o

    desenvolvimento dos povos; quanto mais um povo avanou na instruo geral, mais a

    instruo passou da escola para a vida e reduziu a nada o contedo da escola. Sem

    falar de todos os outros meios de instruo desenvolvimento dos contatos

    comerciais, das vias de comunicao, do alto grau de liberdade do indivduo e da sua

    participao na administrao, sem falar das reunies, museus, conferncias pblicas

    etc., vale a pena olhar para a imprensa e o seu desenvolvimento a fim de compreender

    a diferena existente entre as escolas do passado e do presente. A instruo

    inconsciente, na vida, e a instruo consciente, na escola, andaram e andam sempre

    lado a lado, completando-se mutuamente; mas, sem a imprensa, a vida podia dar

    muito menos instruo do que a escola. A cincia pertencia aos eleitos que possuam

    os meios de instruo. E vejam qual a cota atual da instruo na vida quando no h

    um homem que no tenha livros, quando os livros so vendidos a preos baixssimos,

  • quando as bibliotecas pblicas esto abertas a todos; quando a criana que vai para a

    escola, alm dos seus cadernos, leva escondido um barato romance ilustrado; quando

    dois abecedrios custam 3 kopeques e o campons das estepes compra o abecedrio,

    pede a um soldado que passa que lhe mostre e ensine toda essa cincia, que este,

    durante muitos anos aprendeu com o sacristo; quando o aluno abandona a escola

    secundria, prepara-se sozinho, pelos livros, e faz bem os exames de ingresso na

    universidade; quando os jovens deixam a universidade e, em vez de se prepararem

    pelas notas do professor, trabalham diretamente com as fontes; quando, falando

    sinceramente, toda a instruo sria se adquire apenas na vida e no na escola.

    Considero que o ltimo argumento, o mais importante, consiste, finalmente, em

    que aos alemes fcil, baseando-se em 200 anos de existncia da escola, defend-la

    historicamente, mas com que razes podemos ns defender a escola popular que no

    temos? Que direito histrico temos de dizer que as nossas escolas devem ser como as

    europeias? Ainda no possumos a histria da instruo popular. Ao analisar a histria

    universal da instruo popular, no s nos convencemos de que nos impossvel

    organizar seminrios para professores segundo o modelo alemo, reformar o mtodo

    fontico alemo, as infantschools inglesas, os liceus franceses e as escolas

    especializadas e, com estes meios, alcanar a Europa, mas convencemo-nos tambm

    de que ns, os russos, vivemos em condies extremamente felizes no que diz

    respeito instruo popular, de que a nossa escola no deve sair, tal como na Europa

    medieval, das condies do civismo, no deve servir certos fins governamentais ou

    religiosos, no deve formar-se na escurido da falta de controle por parte da opinio

    pblica e da falta de instruo prtica, no deve, com novas dificuldades e dores,

    atravessar e sair do crculo vicioso onde as escolas europeias estiveram durante muito

    tempo. Este crculo vicioso consiste em que a escola devia fazer avanar a instruo

    inconsciente e vice-versa. Os povos europeus venceram essa dificuldade, mas

    perderam muito na luta. Estejamos pois reconhecidos pelo trabalho que devemos

    utilizar e, por isso, no nos podemos esquecer de que somos chamados a realizar o

    trabalho novo neste campo. Na base do que a humanidade acumulou e do fato de a

    nossa atividade ainda no ter iniciado, podemos e devemos dar grande sentido ao

    nosso trabalho. Para adotar os mtodos das escolas estrangeiras devemos distinguir o

    que neles est baseado nas leis eternas da razo do que nasceu em virtude das

    condies histricas. No h uma lei racional universal, um critrio que justifique a

    violncia das escolas contra o povo e, por conseguinte, toda cpia da escola europeia

  • no que diz respeito coero da escola no ser para o nosso povo um passo em

    frente, mas um recuo, uma traio sua vocao. Compreende-se por que razo na

    Frana se formou uma escola disciplinada com predominncia das cincias exatas:

    matemtica, geometria e desenho, por que razo na Alemanha se formou a escola

    rigorosa de educao com predominncia do canto e da anlise; compreende-se por

    que razo na Inglaterra se desenvolveu um nmero infinito de sociedades que criam

    escolas filantrpicas para o proletariado com a sua orientao estritamente moral e, ao

    mesmo tempo, prtica; mas no sabemos e jamais saberemos que escola se deve

    constituir na Rssia se no a deixarmos formar-se livremente e a tempo, ou seja, em

    conformidade com a poca histrica em que se deve desenvolver, em conformidade

    com a sua histria e muito mais com a histria universal. Se vemos que a instruo

    popular na Europa no vai pelo caminho certo, ns, fazendo nada pela nossa instruo

    popular, fazemos mais do que se introduzssemos nela tudo o que cada um pensa que

    bom.

    Deste modo, o povo pouco culto quer instruir-se, a classe mais culta quer

    instruir o povo, mas o povo s fora se submete instruo. Ao procurar na

    filosofia, na experincia e na histria as razes que dessem classe que instrui direito

    a isso, no encontramos nada, pelo contrrio, vimos que as ideias da humanidade

    esto sempre voltadas para a libertao do povo contra a violncia na questo da

    instruo. Ao procurar o critrio da pedagogia, ou seja, o conhecimento do que e

    como ensinar, no encontramos nada, alm de opinies e afirmaes muito

    discrepantes, mas, pelo contrrio, vimos que quanto mais progredia a humanidade,

    mais impossvel se tornava este critrio; ao procurar este critrio na histria da

    instruo, convencemo-nos no s que para ns, os russos, as escolas historicamente

    formadas no podem ser modelos, mas de que estas escolas se atrasam cada vez mais

    em relao ao nvel geral de instruo e de que, por esse motivo, o seu carter

    coercitivo se torna cada vez mais ilegal e, finalmente, de que, na Europa, a instruo,

    como a gua filtrada, escolheu outra via, ultrapassou a escola e derramou-se nos

    instrumentos vitais da instruo.

    Que devemos fazer ns, os russos, no momento atual? Chegar a um acordo e

    tomarmos como base o ponto de vista ingls, francs, alemo ou norte-americano,

    sobre a instruo ou algum dos seus mtodos? Ou, depois de mergulhar na filosofia e

    na psicologia, descobrir o que exatamente necessrio para desenvolver a alma

    humana e fazer das jovens geraes as melhores pessoas segundo os nossos

  • conceitos? Ou utilizar a experincia da histria no no sentido de copiar as formas

    que a histria elaborou, mas no sentido de compreender as leis que a humanidade

    elaborou com sofrimentos e dizer direta e francamente que no sabemos e no

    podemos saber do que precisam as futuras geraes, mas que nos sentimos no dever e

    queremos estudar essas necessidades, no queremos acusar de ignorante o povo que

    no aceita a nossa instruo, mas iremos acusar-nos a ns prprios de ignorantes e

    orgulhosos se tentarmos instruir o povo nossa maneira. Deixemos de olhar para a

    resistncia do povo nossa instruo como para um elemento inimigo da pedagogia,

    e, pelo contrrio, vejamos nela uma expresso da vontade do povo, pela qual se deve

    dirigir a nossa atividade. Reconheamos, finalmente, a lei da histria da pedagogia e

    da histria de toda a instruo que nos diz claramente que para o professor saber o

    que bom ou mau, o aluno deve ter todo o poder de manifestar a sua insatisfao ou,

    pelo menos, de afastar-se da instruo que, segundo o seu instinto, no o satisfaz, que

    o critrio da pedagogia s um: a liberdade.

    Ns escolhemos esta ltima via na nossa atividade pedaggica.

    A base da nossa atividade a convico de que no s no sabemos, como

    tambm no podemos saber em que deve consistir a instruo do povo, de que no s

    no existe nenhuma cincia da instruo e da educao: a pedagogia, mas que o seu

    primeiro fundamento ainda no foi lanado, de que a definio de pedagogia e dos

    seus objetivos , no sentido filosfico, impossvel, intil e prejudicial.

    No sabemos como deve ser a instruo e a educao, no reconhecemos toda a

    filosofia da pedagogia, porque no reconhecemos ao homem a possibilidade de

    conhecer o que ele tem necessidade de saber. A instruo e a educao so fatos

    histricos de ao de umas pessoas sobre outras, pois a tarefa da cincia da instruo,

    parece-nos, apenas a procura das leis da ao de umas pessoas sobre outras. No s

    no reconhecemos nossa gerao o conhecimento e no s no reconhecemos o

    direito de saber o que preciso para aperfeioar o homem, mas estamos convencidos

    de que se a humanidade tivesse esse conhecimento, no poderia transmitir ou no

    transmitir gerao jovem. Estamos convencidos de que a conscincia do bem e do

    mal, independentemente da vontade do homem, est em toda a humanidade e

    desenvolve-se inconscientemente com a histria, de que to impossvel meter o

    nosso conhecimento na cabea da gerao jovem com a instruo como priv-la do

    nosso conhecimento e do nvel do supremo conhecimento, ao qual o passo seguinte da

    histria o eleva. O nosso conhecimento imaginrio das leis do bem e do mal e

  • influncia, com base nisso, na nova gerao , na maioria dos casos, a resistncia ao

    desenvolvimento da nova conscincia ainda no elaborada pela nossa gerao e que

    se elabora na gerao jovem, um obstculo e no uma ajuda instruo.

    Estamos convencidos de que a instruo histria e por isso no tem objetivo

    final. A instruo no sentido mais geral, incluindo a educao, pensamos, a

    atividade do homem que tem como base a necessidade de igualdade e a lei invarivel

    do avano da instruo. A me ensina a criana a falar apenas para se

    compreenderem, a me, instintivamente, tenta descer at sua maneira de ver as

    coisas, sua lngua, mas a lei do avano da instruo no permite que ela desa at

    ele, mas obriga-o a elevar-se at ao conhecimento dela. A mesma relao existe entre

    o escritor e o leitor, entre a escola e o aluno, entre o governo, as sociedades e o povo.

    A atividade do que instrui e a do instruendo tm um s objetivo. A tarefa da cincia

    da instruo apenas o estudo das condies de coincidncia destas duas tendncias

    para um objetivo comum, a indicao das condies que dificultam esta coincidncia.

    Devido a este fato, a cincia da instruo torna-se para ns, por um lado, mais fcil,

    no apresentando mais perguntas: qual o objetivo final da instruo, para que

    devemos preparar a gerao jovem etc.; por outro lado, infinitamente mais difcil.

    Precisamos estudar todas as condies que contriburam para a coincidncia dos

    anseios do que instrui e do instruendo; precisamos definir o que a liberdade cuja

    ausncia dificulta a coincidncia de ambos os anseios e que deve ser para ns o

    critrio de toda a cincia da instruo; precisamos avanar, passo a passo, de um

    nmero infinito de fatos para a resoluo das questes da cincia da instruo.

    Sabemos que os nossos argumentos convencero muito poucos. Sabemos

    que as nossas convices fundamentais em que o nico mtodo da instruo a

    experincia e que o nico critrio a liberdade soam para uns como um excesso

    de vulgaridade, para outros, como abstraes pouco claras, para terceiros, um

    sonho e uma irrealidade. No ousaramos perturbar a calma dos pedagogos

    tericos e manifestar convices to opostas a toda a sociedade se nos

    limitssemos aos raciocnios deste artigo, mas sentimos a possibilidade, passo a

    passo e fato a fato, de provar a utilidade e a legitimidade das nossas convices e

    s a este objetivo dedicamos a nossa edio.