Modos de Habitar e Arquitectura1

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Modos de Habitar e Arquitectura1 As Respostas Francesas Cidades - Comunidades e Territórios Dez. 2001, n.0 3, pp. 41-52 ]ean-Michel Léger * Resumo: Apesar de certas monstruosidades, a renovação da arquitectura em França, ao nível da habitação foi mais intensa nas décadas de 70 e 80 do século XX, o que deu origem a brilhantes realizações e permitiu a aproximação de arquitectos e sociólogos nos campos da concepção, inovação e uso. A evolução das formas de habitar é objecto de um debate permanente: as transformações demográficas e societais têm implicações na estrutura e mobilidade do parque habitacional. Os modos de consumo e os gostos culturais cruzam-se com as variáveis da composição do grupo doméstico para fazer emergir uma procura da diversidade arquitectónica, inclusive no sector das moradias. Palavras-chave: França; modos de habitar; arquitectura; experimentação; avaliação. O olhar das ciências humanas sobre o habitat centra-se preferencialmente sobre a política e a economia do alojamento, as mobi- lidades residenciais, a história dos costumes e das formas de habitm; esquecendo que os espaços são habitáveis ou inabitá veis através das mãos dos arquitectos que, com os encomendadores e as empresas partilham a responsabilidade do acto de construir. Os arquitectos trabalham a matéria- -prima da habitação através de saberes e de "saberes-fazer" que constituem compromissos entre a arte e a técnica e segundo uma história ligada quer à teoria arquitectónica quer às artes plásticas e aos modos de vida (Pinson, 2000). Este último objecto justificaria por si só que os sociólogos fossem convidados para o banquete, se não tivessem já sido convidados, pelo menos "S'occuper de l'homme, et non du capitalisme ou du communisme; du bonheur de l'homme, et non du dividende des sociétés". Le Corbusier, La Ville dieuse, 1935 em França, para a festa da experimentação, preferencialmente mais face a face com os arqui- tectos, do que ao seu lado. A sua missão de avaliadores das operações de realojamento "pós- -ocupação" (Preiser et al., 1988) atribuiu-lhes um papel de censores pouco apreciado pelos arquitectos. Mas porquê modernizar em arquitectura? Que modernização? A do habitat, a do habitante, a do corpo profissional de Ponts et Chaussées2? O ajustamento entre as formas de habitar e a arquitectura continua a ser uma questão central. A arquitectura deve traduzir o uso, traduzi-lo apesar do risco de o trair (Raymond, 1996)? Deve antecipar as tendências, sob pena de produzir uma arquitectura de antecipação mais entendida pelos editores de arquitectura do que pelos uti- lizadores? * Sociólogo, investigador do TPRAUS-CNRS {Institui parisien de recherche: architecture, urbanistique et société), Paris. Contacto: jean- -michel.leger@paris-belleville.archi.fr 1 Texto traduzido do francês por Tsabel Guerra e Alexandra Castro. 2 Famosa Escola de engenharia francesa que forma os altos funcionários do Estado, encarregados do ordenamento do território, dos transportes e da habitação (N. das T.). 41

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Modos de Habitar e Arquitectura1 As Respostas Francesas

Cidades - Comunidades e Territórios Dez. 2001, n.0 3, pp. 41-52

]ean-Michel Léger *

Resumo: Apesar de certas monstruosidades, a renovação da arquitectura em França, ao nível da habitação foi mais intensa nas décadas de 70 e 80 do século XX, o que deu origem a brilhantes realizações e permitiu a aproximação de arquitectos e sociólogos nos campos da concepção, inovação e uso. A evolução das formas de habitar é objecto de um debate permanente: as transformações demográficas e societais têm implicações na estrutura e mobilidade do parque habitacional. Os modos de consumo e os gostos culturais cruzam-se com as variáveis da composição do grupo doméstico para fazer emergir uma procura da diversidade arquitectónica, inclusive no sector das moradias.

Palavras-chave: França; modos de habitar; arquitectura; experimentação; avaliação.

O olhar das ciências humanas sobre o habitat centra-se preferencialmente sobre a política e a economia do alojamento, as mobi­lidades residenciais, a história dos costumes e das formas de habitm; esquecendo que os espaços são habitáveis ou inabitá veis através das mãos dos arquitectos que, com os encomendadores e as empresas partilham a responsabilidade do acto de construir. Os arquitectos trabalham a matéria­-prima da habitação através de saberes e de "saberes-fazer" que constituem compromissos entre a arte e a técnica e segundo uma história ligada quer à teoria arquitectónica quer às artes plásticas e aos modos de vida (Pinson, 2000).

Este último objecto justificaria por si só que os sociólogos fossem convidados para o banquete, se não tivessem já sido convidados, pelo menos

"S'occuper de l'homme, et non du capitalisme ou du communisme;

du bonheur de l'homme, et non du dividende des sociétés".

Le Corbusier, La Ville radieuse, 1935

em França, para a f esta da experimentação, preferencialmente mais face a face com os arqui­tectos, do que ao seu lado. A sua missão de avaliadores das operações de realojamento "pós­-ocupação" (Preiser et al., 1988) atribuiu-lhes um papel de censores pouco apreciado pelos arquitectos.

Mas porquê modernizar em arquitectura? Que modernização? A do habitat, a do habitante, a do corpo profissional de Ponts et Chaussées2?

O ajustamento entre as formas de habitar e a arquitectura continua a ser uma questão central. A arquitectura deve traduzir o uso, traduzi-lo apesar do risco de o trair (Raymond, 1996)? Deve antecipar as tendências, sob pena de produzir uma arquitectura de antecipação mais entendida pelos editores de arquitectura do que pelos uti­lizadores?

* Sociólogo, investigador do TPRAUS-CNRS {Institui parisien de recherche: architecture, urbanistique et société), Paris. Contacto: jean­[email protected] i. fr

1 Texto traduzido do francês por Tsabel Guerra e Alexandra Castro. 2 Famosa Escola de engenharia francesa que forma os altos funcionários do Estado, encarregados do ordenamento do território, dos transportes e

da habitação (N. das T.).

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A observação ao vivo pelos sociólogos,voyeurs, em nome de uma boa causa das formasde habitar em alojamentos experimentais tempouco efeito de retorno sobre os arquitectosexperimentadores que se mostram pouco preocu-pados com os efeitos das suas propostas sobre osusos (Eleb, 1997; Léger, 1990). Veja-se, porexemplo, que a observação, do tipo "Big Brother"na televisão, de um grupo de jovens enjauladosnuma pequena casa, ocupa mais a atençãopública do que o impacte da avaliação de certasconcepções arquitectónicas sobre as populaçõestrabalhadoras. Os arquitectos desembaraçam-sedas preocupações reenviando aos avaliadores osseus próprios problemas de objectivos e dedefinições, sob o pretexto da ilisibilidade, dadispersão e do desacordo sobre os resultados daspesquisas. Isto não significa que os arquitectosnão procurem aprofundar, corrigir e aperfeiçoaro seu objecto de experimentação, mas que otrabalho de validação se efectua através dasua própria experiência, no esforço que fazemda sua aceitação pelo cliente e execução pelodono da obra. Estamos muito longe da abordagemexperimental herdada das Luzes, o que não seriamais do que um debate entre especialistas se nãotivesse implicação na vida quotidiana dos ha-bitantes.

Os Habitantes, Indivíduos Colectivos

O arquitecto face às formas de habitar

Colocando em evidência a oposição entrecompetência/execução, N. Chomsky (1965)preparava a sua formidável teoria do usoconstruída por P. Bourdieu em Esquisse d'unethéorie de la pratique (1972). Ele inspirava aindaH. Raymond, para quem a noção de competência(linguística) convinha particularmente parailustrar as formas de expressão do habitante, namedida em que é pela prática e pela palavra queo habitante enuncia a relação de sistema entreespaço e sociedade. A competência é, assim, umsaber dizer, um saber ser e um saber-fazer. Mas aafirmação da competência é também para H.Raymond uma tomada de posição ética, querdizer política, contra uma tecno-estrutura e con-tra os intelectuais que concebiam o habitantecomo alienado, incapaz e incompetente (Ray-mond, 1984).

Desde os anos 80, que o emprego da palavra"uso" se foi impondo progressivamente paradesignar as práticas. É uma forma de confundir

teoria e prática, competência e execução, o queimpede de considerar os usos por aquilo que são:costumes sem conteúdo rural, hábitos sem con-teúdo moral, em síntese, normas sociais, produtosda acção e das instituições. A disputa não éjesuítica no que diz respeito ao alojamento,porque os arquitectos e os sociólogos (e estesentre eles) ainda hoje debatem a natureza dastransformações das formas de habitar. Pertenceaos sociólogos, tradutores dos modos de habitar,mais reputados pela sua prudência do que peloseu faro, efectuar uma escolha por entre os factosque vêm a lume. Tomando como referência o anode 1945, que é a antecâmara de um período demodernização dos costumes, realmente evidentesa partir dos anos 50, a evolução das formas dehabitar relevam de três conjuntos fundamentais:vida publica/vida privada, pais/filhos, ho-mens/mulheres.

Vida pública/vida privada

A noção de "cocooning", tradução agradávelde "recentragem na vida doméstica" utilizadapelos sociólogos, é um simples aumento do tempopassado em casa, face à diminuição do tempo detrabalho e ao crescimento das despesas com oequipamento doméstico, onde a televisão e osseus acessórios ocupam um espaço central.

A vida doméstica é uma fatia da vidaprivada, que suscita a gulodice dos sociólogosque fizeram dela um verdadeiro objecto so-ciológico. É mais interessante interrogar aclivagem entre público e privado pelo segundotermo do que pelo primeiro, apesar do risco dedeslizamento do público/privado para o colec-tivo/individual. A convicção de que é "a partir daintimidade que os actores contribuem para amudança social" (Juan, 1991: 16) é uma inversãoque J. Remy e F. de Singly prosseguem através docasal até ao nível do indivíduo (Remy, 1995; deSingly, 2000). Os sociólogos não têm, no entanto,conseguido colocar a questão da evolução dossentimentos e da identidade individual de formaantropológica e histórica.

De resto, os historiadores, sublinham queesses sentimentos são sempre mais fortes doque se acredita e que cada século conhece o seu(re)nascimento do sujeito (Ariès e Duby, 1987).Estão por outro lado bem estudadas as formas desociabilidade segundo os tipos de urbanização e adiversidade dos grupos sociais. Contra a opiniãoreconhecida, Y. Grafmeyer (1995) observou queos quadros técnicos, fortes em laços fracos têm,

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no entanto, com os seus vizinhos contactos muitonumerosos e ricos. Este equilíbrio não se encon-tra nos operários, para os quais o alojamento éainda hoje um espaço de intimidade familiaronde se recebe pouco os vizinhos e os amigos.O fechamento popular na casa individual,reforma forçada por um habitat colectivo nãoescolhido – diferentemente do que se passa comos quadros – inscreve-se numa tradição de socia-bilidade que não impede as relações devizinhança nos novos bairros de moradias.

Pais/filhos

No início dos anos 50, a relação de umacriança por quarto não constituía a norma univer-sal que é hoje. Hoje, todas as famílias desejamreduzir as normas de ocupação dos quartos eseparar o mais cedo possível rapazes e raparigas,mesmo que estes não o peçam – pelo menos ospais mostram, assim, as suas crenças relativa-mente à sexualidade infantil. Em seguida, surge oretardar da decoabitação juvenil, bem conhecidados jornalistas e dos demógrafos que constataram,mais entusiasmados do que desapontados, que osseus filhos e filhas pediam o prolongamento noalojamento parental. De facto, desde 1975, pare-cia que a decoabitação dos jovens era,simultaneamente, mais precoce, e mais tardia doque anteriormente (Bonvalet e Merlin, 1988),seguindo um duplo percurso: para alguns deemancipação, para outros de manutenção nodomicílio parental. Situação surpreendente numasociedade que prega a autonomia das criançasdesde a idade da razão, para depois as guardarem casa até aos vinte cinco anos e mais.

Qual é o impacte no alojamento de cem milcrianças partilhando verdadeiramente a sua vidaentre duas casas, na sequência de um divórcio e,eventualmente, de uma recomposição familiar?A prática de alternância implica que estascrianças vivam uma semana ou um fim-de-se-mana na casa de um dos pais, que quer ter umquarto para as acolher. É, precisamente, atravésdeste estatuto do quarto de criança que se entrano espaço das relações familiares, onde a noçãode necessidade precisa de renovação. Contraria-mente àquilo em que se acreditou, cada um dosdois membros de casal separado têm necessidadede um grande apartamento para alojar ascrianças, mesmo que seja temporariamente.

Como é que a habitação social pode admi-nistrar a geometria variável das famíliasrecompostas e as necessidades flutuantes do alo-

jamento das crianças? No sector privado, aquestão resolve-se pela capacidade financeiradas famílias para pagar um quarto suplementar;nos bairros sociais, é a mesma coisa quando osgestores não respeitam minuciosamenteos critérios de atribuição, o que favorece osarrendatários mais abastados. Apesar do impactedestas questões no parque habitacional, que temclaras incidências sobre os que os concebem, nãoé seguro que os arquitectos estejam a intervir naarbitragem dos conflitos conjugais.

Homens/mulheres

A espectacular progressão do trabalho femi-nino, em França, não deve fazer esquecer que oestatuto da mulher no lar apenas foi dominanteentre os anos 20 e 60. A rapidez desta progressãoem duas gerações, associada a outras conquistasno domínio da sexualidade, da procriação e, maisrecentemente, da representação política, andamais depressa do que as mentalidades: novospais, novos donos de casa? A recomposição dospapéis masculinos e femininos pressupõe umatradução no espaço?

Devemos reportar-nos ao mundo privado dosoperários, descrito por O. Schwartz (1990) àevolução da história operária, em partetransponível para a situação de precarização decertas camadas médias. O. Schwartz constata que,durante um primeiro período histórico (até 1945),a forte vida colectiva do grupo acompanhou a faseproletária; num segundo momento (1945-1975), oreconhecimento da vida privada operária seguiuo melhoramento das condições de vida. Na lógicadeste movimento, a reproletarização, deveria con-duzir os operários a retornarem ao seu grupo.Schwartz nota, pelo contrário, o reforço do valorcentral organizador da família. Os índices dadospor diversos autores para outras categorias sociaisvão no mesmo sentido: o desenvolvimento do póloprivado parece irreversível, o que significa umaconcentração cada vez maior no alojamento, mastambém no carro, na casa de fim-de-semana ouna caravana. Por sua vez, na sequência da criseeconómica, o reforço da rigidez dos papéissexuais nas famílias operárias poderia acentuaruma diferença entre os operários e as outras cate-gorias, onde as tarefas são mais partilhadas.Como outros observadores, O. Schwartz confirmaque a noção de dona de casa não está de maneiranenhuma fora de moda, pois o espaço do aloja-mento continua a ser pensado, governado,organizado, limpo pelas mulheres. Em França, as

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mulheres asseguram 80% das tarefas domésticas:a redução do tempo de trabalho vai reconciliar ocasal? Interrogados sobre a utilização do tempolivre, os homem evocam os seus lazeres, otempo consagrado aos seus amigos, actividadesde forte investimento pessoal, tais como apequena manutenção e a jardinagem; as mulheresafirmam todas consagrar mais tempo à casa e àsua família. Como o desemprego, a redução dotempo de trabalho acentuaria as diferenças entrecamadas sociais; os quadros técnicos partem coma família para grandes fins-de-semana, enquantonos meios populares cada um conquista o seulugar em casa: curioso regresso! Sabia-se que otrabalho, juntamente com a educação, tinhamsido os principais motores da emancipação femi-nina; e pretendia-se crer que a fusão dos papéismasculinos e femininos era uma questão detempo. Ora, bastou que a pressão do trabalho sealargasse para que os papéis se tornassem maisrígidos.

J.Remy retira da obra de E.Goffman umareflexão sobre as dimensões primárias esecundárias que enriquecem o conceito deapropriação, procurando aprofundar essa relaçãoparadoxal entre o indivíduo e o social. Os espaçosde secundaridade "aqueles onde se podem afastaras exigências do papel e os efeitos do controlosocial" (Remy, 1995: 254) tornam-se lugaressecundários do alojamento principal e, comcerteza, também nos de segunda residência e doduplo-centramento que ela permite. Mas nasecundaridade está também uma relação alterna-tiva ao espaço público da cidade, oposta aoespaço doméstico, com um modo de sociabilidadepróprio, e com um outro sentido.

Os efeitos dos papéis sociais sobre os usosdo alojamento tinham sido identificados pelosautores dos Pavillonnaires (Haumont e Raymond,1966) a quem se deve as primeiras observaçõessobre a estruturação simbólica da habitaçãourbana (masculino/feminino, privado/público,traseiras/fachada, etc.).

A cozinha é hoje o lugar feminino tal comooutrora? A boa vontade masculina parece não sersuficiente para modificar a sua identidade,mesmo que Ele e Ela organizem em conjunto oespaço da cozinha, é incontestavelmente Ela queficará encarregada do forno mais tarde, o que jus-tifica que ela faça seu esse espaço. Nos anos 80,o sucesso da cozinha "americana" aberta, impostanos pequenos apartamentos, quando era maisconveniente nos maiores, deveu-se ao símbolo demodernidade que ela representava: "a mulher nãoestá mais destinada à cozinha", diziam as

mulheres questionadas nos inquéritos, falandocomo os jornalistas e sociólogos. Mas há já bas-tante tempo, que a preferência dominante vaipara uma grande cozinha para refeições, admitidopor mestres de obra que a prescrevem aos arqui-tectos. É partir de símbolos fortes como a pre-paração das refeições e da comensualidade que acozinha se torna o lugar da mulher e da mãe e,mais do que a sala, um lugar de troca mãe/filhos(o petiscar e os deveres) e, sobretudo, mãe/filha.

Das relações de "segredo e transparência"num casal e numa família (de Singly, 2000:246-248), os arquitectos retêm de preferência assegundas: o alojamento é, sobretudo, uma metá-fora da família moderna, aberta à comunicaçãointerior e exterior, mas é de um tamanho mínimo.O arquitecto empenhar-se-á para lhe atribuir amáxima ilusão – na senda de Corbusier, que nassuas casas em série para os trabalhadores (1924),por exemplo, tinha já posto em evidênciaa vantagem da diagonal de 10 metros numquadrado de 7 metros de lado.

Claramente masculina, a procura de espaçosde secundaridade (bricolage, escritório, jardi-nagem) participam sempre do mito da vivenda,que não tende a diluir-se mas bem pelo contrário,apesar dos candidatos à casa individual seremainda muito pouco numerosos a acreditar nasseveras prevenções de P. Bourdieu (2000). Osnúmeros mostram, sem ambiguidade, que emmédia, em França, os alojamentos em propriedadesão duas vezes maiores que os apartamentosarrendados (114,8 m2 para 63 m2 em habitaçõescolectivas), sem contar com o jardim e os seusanexos. Quem não quereria acreditar num talmito?

A Inovação Arquitectónica, uma Ideia Francesa

Experiências, mais do que experimentações

Os sociólogos desconfiam dos arquitectosvisionários, do seu direito ao olhar e da suapretensão de conhecimento dos modos de vida.Graças a A. Kopp, o eco da "construção dosmodos de vida" que propunham os construtivistasrussos dos anos 1920 fez-se ouvir em França até1968 acompanhado de "slogans" tais como"changer la vie, changer la ville" ou "arquitecturae revolução" (Kopp, 1967). Lembremo-nos, quedepois de 1921, Trotsky iniciou uma acçãocultural de grande envergadura para explicar ao

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povo os objectivos da revolução. Belo pretextopara os arquitectos revolucionários mais inspira-dos que inventaram dispositivos arquitectónicosdestinados à travessia do século, como se oarquitecto construtivista tivesse envelhecidomenos do que o projecto político com qual seidentificava.

As relações entre Le Corbusier e os constru-tivistas (Cohen, 1987) – por exemplo, as trocasentre os duplex invertidos, emprestados por LeCorbusier a Sobolev e a Ivanov, e os pilares e otelhado-terraço, retomados de Le Corbusierpor Ginzburg – ou ainda as simpatias de F.-L.Wright pela URSS mostram que a vontade deUbermensch3 passando aqui pelas vias do urba-nismo e da arquitectura, era um ideal largamentepartilhado. No fim de contas, os infelizes constru-tivistas contribuíram, sobretudo, para inspirar osseus colegas europeus, tendo Le Corbusier comoseu mensageiro genial, que inspirará, por sua vez,muitas gerações de arquitectos determinados emdar ao povo o melhor da arquitectura habita-cional. Com a "Unidade de Habitação" deMarselha (1945-1952) Le Corbusier foi, de facto,o primeiro arquitecto a comprometer a arquitec-tura da habitação com uma dupla experimentaçãotécnica e social. Em França, no período anterior àguerra, os historiadores da arquitectura retêm

sobretudo, a cidade de Pessac, perto de Bordéus,edificada por Le Corbusier entre 1924 e 1927,bem como as experimentações de Beaudouin eLods na cidade de la Muette, em Drancy (1931--1934) (Benevolo, 1980: 65; Monnier, 1997:221).

Por outro lado, para além da moda do betãoarmado, da invenção de dutos de ventilação edepois a ventilação mecânica controlada, quepermitiu aumentar a espessura dos imóveiscolocando as casas de banho no centro doalojamento, nenhuma inovação técnica teve umaincidência decisiva sobre as tipologia doalojamento. Em Marselha, Le Corbusier concebeuma obra-prima totalizadora que faltará àsréplicas de Rezé, Berlin, Briey-en-Forêt eFirminy, em parte desprovidas dos equipamentose do lirismo plástico do original. A crítica nãodeixou passar o paradoxo deste processo experi-mental invertido, onde as realizações se vãoempobrecendo (Panerai et al., 1978). LeCorbusier não foi o primeiro, desde o estudo dascasas Domino (1914), o desenho do edifício-vila(1922) e as tentativas de industrialização dafrente de obras de Pessac, a ter tentado umareflexão teórica (e ideológica segundo alguns) euma prática profissional – certamente limitada.Depois da sua morte (1965), a missa ainda ia ametade mas havia pensamento escrito, o queexplica, talvez, porque é que os arquitectosfranceses foram menos teoricistas do que os seusconfrades italianos ou britânicos. Isso nãoimpediu que na sua sequência, os arquitectos"brutalistas"4 franceses tenham fundado umaautêntica cultura francesa da arquitectura habita-cional comprometida com o progresso e amudança social mas não cúmplice das grandesurbanizações.

É contra estas últimas que, em 1971,tecnocratas iluminados criavam o Plan Construc-tion5, instituição que, apesar da sua denominaçãosoviética, não visava accionar novos conden-sadores sociais, mas, entre outras actividades,incitava os arquitectos – que não esperavamsenão isso – a "favorecer", "fazer emergir","acompanhar" os novos modos de habitar, umpouco à semelhança da forma como as embala-gens de pratos pré-preparados ilustram as

3 Em alemão no original, significa "sobre-humano".4 A expressão arquitectura "brutalista", aparece no início dos anos 50 na Suécia e em Inglaterra para designar uma arquitectura de forma pura. Em

França, ela é retomada com Le Corbusier na sua forma de utilizar o betão bruto. No entanto, diz o arquitecto P. Riboulet, "o termo de ‘brutal-ismo’, eu considerá-lo-ia mais do ponto de vista político e social do que do ponto de vista formal: é verdade que teríamos sido voluntariosamente‘brutalistas’ contra esta ordem social que rejeitávamos com, em imagem formal, a Escola de Belas Artes". (in Ch. Devillers, 1986a: 122).

5 O Plan Construction, é um organismo oficial de estudo e experimentação no campo da habitação.

"Unidade de Habitação", Marselha (1945-1952), arqt.°Le Corbusier. Foto de Jacques Reboud.

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"sugestões de apresentação". Foi desta forma queo habitante foi sucessivamente acomodado aomolho não-ortogonal (planos curvos, em octógono,em triângulo), ao molho aromático ("casas decinco sentidos"), ao molho do loft, etc. Quer dizer,a mesa generosamente aberta do Plan Construc-tion apoiou, num momento das suas carreiraspersonagens tão diferentes como H. Ciriani, L. eS. Goldstein, Y. Lion, J. Nouvel, Ch. dePortzamparc ou J. Renaudie. A diversidadede pistas exploradas deixa, no entanto, duaslacunas: o abandono do "habitat intermédio",tipologia inventada a meio dos anos sessenta masdesenvolvida depois com um sucesso público nãodesmentido; o encurtamento dos alojamentosmaiores nas experiências sucessivas de J. Nouvel.O habitat intermédio poderia ter sido a terceiravia entre o colectivo e o individual, numa Françaque não conhecia, ou conhece pouco, as casas embanda, frequentes no Norte e no Sul da Europa.Os franceses preferiram o tipo autêntico de mora-dia sobre uma parcela de terreno que o sistemabancário e a indústria de construção se unirampara satisfazer. Quanto aos alojamento mais am-plos que J. Nouvel não queria ver alugados maiscaros, já que o seu preço de construção não ultra-passava o das habitações sociais mais vulgares, oinfortúnio relativo de duas destas operações (emNîmes e em Bezons) deve-se tanto ao montantedas rendas e às carências de manutenção quantoà sua concepção arquitectónica. Em particular, oinsucesso do projecto mais radical, o de Nîmes(Nemausus I) é igualmente imputável, ao constru-tor que curto-circuitou as agências de habitaçãosocial e ao gestor que não estava preparado paramanter um navio destas características.

histórico, se este tipo de medida é uma condiçãonecessária à salvaguarda do testemunho maisimportante da arquitectura do alojamento dosanos 80, feito por um dos arquitectos franceses domomento? A menos que se queira fazer passar asresponsabilidades para os habitantes, vendendo oNemausus em co-propriedade como foi feito, tam-bém com sucesso, pela Unidade de Habitação deMarselha, visto que o melhor forma de conser-vação do património colectivo é ainda o de oconverter em património individual.

Habitações Sociais, Ivry-sur-Seine (1972), Arqt.° JeanRenaudie. Foto de Jacques Reboud.

As inovações técnicas e arquitectónicasaccionadas no Nemausus I não justificariam queeste, como a "Unidade de Habitação" deMarselha, fosse protegido como monumento

Nemausus, Nîmes (1985), Arqt.° Jean Nouvel eEmmanuel Cattani. Foto de Jean-Michel Léger.

A primeira inovação do Plan Construction éseguramente o da sua própria criação. Isto nãoimpede que nos interroguemos sobre o sentido eos objectivos da inovação em arquitectura habi-tacional, hoje necessariamente diferentes dos dehá trinta anos, quando ao betão das últimasgrandes urbanizações, ainda fresco, era fácilopor rotina e inovação, quantidade e qualidade.Não esqueçamos que a Reconstrução e asprimeiras grandes urbanizações foram construí-das como procedimentos experimentais decisivos.

Enfim, desde 1960, que P.-H. Chombart deLauwe tinha considerado que, com a "experimen-tação empírica (...) os laboratórios improvisadosque são as cidades novas"(Chombart de Lauwe,1960: 12), era possível a observação da misturasocial que era experimental quer os arquitectostivessem, ou não, uma intenção real nesse senti-do. Esta forma de construir o objecto ex-perimental confronta este com a política oficial,que não é condição necessária nem suficiente daexperimentação e que aliás não pretende repre-sentar. É preciso adaptar à arquitectura a noçãode experimentação que não é senão uma metáforado trabalho de laboratório e da relação de ida evolta entre teoria e prática, entre conceptualiza-ção e experiência in situ. Num grande número desituações, a inovação e a experimentação apare-cem, assim, como uma interpretação pelos

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observadores, de práticas que os arquitectos inte-gram no seu trabalho. Dois exemplos podemilustrar as ambiguidades da atitude experimental.

Em 1988-1992, Y. Lion experimenta emVillejuíf o que até então tinha sido uma pesquisapara o Plan Construction e desenhos em forma demanifesto: uma "fachada activa" de quartos-casa--de-banho (suprimindo a habitual casa de banhoindependente) e cozinhas onde o arquitectoqueria industrializar a fabricação e montagem(Gili, 1997: 46-51). Pouco depois, em Marne-la--Vallée (1989-1993), apresenta um compromissocom a fachada activa inicialmente proposta, masrecusada pelo encomendador. A tipologia dealojamentos que resulta é menos inventiva, maisconforme às convenções sem, no entanto, serconvencional. As críticas e os editores preferiramas células de Villejuif, os habitantes, os deMarne-la-Vallée, mas a passagem por Villejuifnão terá sido indispensável para chegar àsegunda forma?

dispositivos na economia do alojamento: queria--se o "feito por medida" com o preço do "pronto--a-vestir". O selo oficial não dá necessariamentelugar a uma ajuda financeira directa: torna, noentanto, menos visível a situação experimental,partilha entre os diferentes actores a responsabi-lidade do fracasso ou do sucesso e enquadra ascondições de reprodutividade dos dispositivos.

Criticar ou Avaliar, a Cada um a sua Tarefa

Quer seja assegurado, ou não, por agentesdo estado, o teatro da experimentação não sereduz a um afrontamento entre produtores e ava-liadores, na medida em que cada um se interrogasobre o estatuto das noções induzidas pelamodernidade (criação, inovação, avant-garde), nointerior da disciplina arquitectónica e face aopúblico, os arrendatários outrora cativos deramlugar a clientes que expressam as suas preferên-cias. A descodificação da caixa negra daconcepção fez um desvio para o lado das ciênciase das técnicas, afastando-se dos caminhos dacriação artística de que tinha sido tributáriadurante muito tempo – tendo a criação artística,no entanto, o mesmo tipo de interrogações.

Todos os investigadores (M. Callon, M.Conan, B. Haumont, R. Hoddé, R. Prost, Fr.

Habitações Sociais de Villejuif (1991), Arqt.° Yves Lion.Foto de Jean-Michel Léger.

Um outro exemplo, é-nos dado pelo edifício--vila construído por B. Paurd em Vitry-sur-Seine(1991-1993). Pequenos jardins suspensos emtransição entre a circulação aberta e os seusapartamentos, triplex de dupla orientação, utiliza-ção de um material ligeiro na separação entre osalojamentos, assinalaram estes edifícios como"um acontecimento na produção francesa dealojamentos". Realizado sem apoio do PlanConstruction, que estancou a sua política expe-rimental, também nunca foi objecto de umaavaliação socio-arquitectónica. O arquitecto que,como os seus confrades, não volta de boa-vontadeao lugar das suas obras, ignora o devir dos múlti-plos dispositivos que organizou e, portanto, apertinência da sua recondução, da sua correcçãoou do seu abandono. Por seu lado, o encomen-dador foi o único a suportar os custos destes

Habitações Sociais, Vitry-sur-Seine (1993), Arqt.°Bernard Paurd. Foto de Jean-Michel Léger.

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Rathier, etc.; ver Shapiro,1999) estão de acordosobre o carácter colectivo, interactivo, negociado,contraditório da concepção arquitectónica, esobre as falsas oposições entre criação e exe-cução, entre texto e contexto, entre o micro-cosmos da encomenda e a macroeconomia docampo de acção. A questão sobre quem-faz-o-quêcontinua um tabu, que certos patrões fazem cairtornando colegial o seu nome (ex.: Renzo PianoBuilding Workshop, Atelier Ricardo Bofill,Ateliers Lion), enquanto outros sempre colocaramem primeiro lugar o nome colectivo (AUA, Atelierde Montrouge, AREA, Architecture Studio,Avant-Travaux, etc.). Poderemos acreditar que aspastas de desenhos dos arquitectos estão cheiosde arquitectura de papel esperando apenas porum encomendador para passarem ao acto; defacto, o que gostaríamos de chamar criatividadeou invenção, sem ter necessidade de umadefinição formal, é um orgão que não está activonem é solicitado. Os concursos têm esse papel seos candidatos conhecerem as expectativas do júri:fachada fantasista mas alojamentos conservadoresse isso for a moda do momento, mesmo nosconcursos Europan, onde a inovação tipológica jánão é conveniente6. A equação "inovação = qua-lidade", sem dúvida verdadeira quando erapedido aos arquitectos que abrissem novas viaspara o alojamento, deixou de ser quando essasvias se tornaram avenidas de promessas eleitoraise a arquitectura se enriqueceu de novas corren-tes: prolífero, urbano, historicista, monumental,etc. Alguns arquitectos identificados como ino-vadores recusaram esse título e reinvindicaram, otítulo da revista AMC (Architecture, mouvement,continuité), declarando trabalhar segundo ummovimento próprio à profissão de arquitecto e àdefinição de obra de arquitectura, e em nome dacontinuidade dos seus próprios temas arquitec-tónicos (ex: fachada activa, as diferenças deníveis, as tipologias complexas, o alojamentoespaçoso), e das convenções sociais e arquitec-tónicas herdadas das culturas do habitar, e dacultura arquitectónica.

Em França, a crítica arquitectónica era maiscomprometida, precisamente, quando os arquitec-tos intelectuais estavam menos comprometidos naconstrução: criticar ou construir, parece que épreciso escolher. Como em Itália, ainda hoje, aactividade de ensino e de publicação, formandoum meio à parte, pode animar um debate que seaventura muito pouco para os lados da crítica das

obras feitas. Por exemplo, em 1986, na revistaAMC, o crítico Ch. Devillers enunciava os limitesda sua posição e reconhecia que não poderiaadoptar uma posição crítica do ponto de vista douso, pois só poderia falar "do ponto de vistaparcial e particular que é a forma como o projectorepresenta e integra a questão do uso" (Devillers,1986a: 104-105). Ele admitia, aliás, que seimaginasse que esses alojamentos eram bemapropriados, não tinha "qualquer prova e (podia)também supor o contrário"(Devillers, ibid.).

A crítica não está certamente ausente dodebate do jornal Le Monde, nem da tribuna dacrítica arquitectónica radiofónica animada por F.Chaslin, nem ainda de certos comentários dasrevistas de arquitectura, tais como Le Visiteur,quando, como o seu nome indica, leva, sem com-placência, os leitores nas visitas guiadas. Noentanto, onde existe a crítica arquitectónica, elanão é mais do que a expressão da subjectividadedo crítico, espiritual ou cáustico – é em geral oque se espera dele – não representando senão umponto de vista, validado somente pela legitimi-dade que adquire no meio onde se exprime.

Em comparação, a avaliação sociológica dasformas de uso, é científica?

Pelo menos tende a uma objectivação darecepção das obras arquitectónicas atravésda observação das práticas, da recolha da palavrados habitantes e do levantamento dos espaçoshabitados. A cientificidade das ciências sociais éum debate que agita os sociólogos, não os arqui-tectos, que reenviam os primeiros para as suasdivergências internas ao nível das abordagens e àilisibilidade dos resultados. A pesquisa interrogaa obra arquitectónica nas suas formas de usopelos habitantes, daí que as situações residen-ciais sejam uma noção próxima das "situaçõesconstruídas" (Marot, 1995 :5), quer dizer da si-tuação de relação do construído com a enco-menda, os contextos, as estratégias dos donos daobra, tudo o que é objecto de crítica no Visiteur.Geralmente acusa-se a crítica arquitectónica deser porta-voz dos arquitectos: os sociólogos nãosão porta-vozes dos habitantes?

Já há muito tempo que P. Bourdieu desmas-carou a neutralidade científica (Bourdieu et al.,1968). A mudança do seu olhar na Misère dumonde, onde os testemunhos orais são transmiti-dos em bruto, introduz a compreensão como meiode explicação: a forma através da qual o sociólogotoma partido pelos habitantes é antes de mais

6 Os PAN (Programmes Architecture Nouvelle), criados na origem pelo Plan Construction, tornaram-se europeus (Europan) em 1988. Abertos ajovens arquitectos estão destinados a fazer emergir ideias espaciais novas sobre temas e sítios definidos (Eleb, 1990a, 1990b).

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uma forma de conhecer as condições sociais emque esse discurso é produzido (Bourdieu, 1993:903-912; Kaufmann, 1996). P. Bourdieu cujoinvestimento não é apenas científico, vai paraalém da posição historicamente assumida pelamaioria dos sociólogos da vida quotidiana, com-pagnons de route da classe operária – quando,segundo a expressão de R. Cornu, esta "já não é oque nunca foi" (Cornu, 1995: 345).

P. Bourdieu não avalia: toda a avaliaçãovinda de cima só poderia trair a palavra dos queestão em baixo. Nas avaliações socio-arquitec-tónicas realizadas para o Plan Construction apalavra popular sai um pouco esmagada em nomeda perspectiva política e da eficácia, da mesmaforma que em fotografia se diz que a vista delonge por meio de uma lente de grande distânciaaltera as perspectivas. O risco de se ver dedemasiado longe é o mesmo da pretensão de verao longe. A relação com o terreno e a teoria écolocada quase nos mesmos termos pela ava-liação sociológica e pela crítica arquitectónicaquando chamados a falar das obras de arquitec-tura. Uma e outra adoptam o ponto de vista doobjecto de que falam, referindo-se a uma con-cepção teórica de arquitectura o que é simétricoà posição teórica do sociólogo. Nada impediria,portanto, arquitectos e sociólogos de trabalharemem interdisciplinariedade sobre os mesmosobjectos se este encontro não se revelasse comoexcepcional, já que a crítica e a avaliação, têmlógicas próprias quase nunca coincidentes nascircunstâncias científicas e editoriais.

Uso versus Arquitectura: o Espaço das Possibilidades

O balanço da experimentação oficial e"improvisada", para retomar as palavras deP.-H. Chombart de Lauwe, é uma operaçãode contabilidade pouco segura, na qual os benefí-cios e os custos não se adicionam. A plasticidadedo par espaço-uso não deve ser confundido com aflexibilidade do alojamento aquando das expe-riências arquitectónicas mais ou menos felizes.Sem a flexibilidade do tipo arquitectónico,enquanto estrutura de correspondência entreespaço e uso, não haveria nem variações tipológi-cas nem mesmo de arquitectura, pois cada tipo(no alojamento colectivo: imóvel burguês, imóvelpor inquilinos, HBM7; barra, torre, etc) deveria

ser simplesmente reproduzido. B. Huet (1990)chamou "tipo colectivo contemporâneo" à dis-tribuição do alojamento que todos conhecemos:corredor central, separação dia/noite, casa debanho ao fundo do corredor entre dois quartos.Por seu lado, Ch. Moley denunciou que a famosaseparação dia /noite era mais uma norma inscons-ciente, um habitus produzido pelos donos daobra, os engenheiros e os arquitectos do que umaprescrição regulamentar (Moley, 1998). O usoacabou por consagrar o tipo colectivo contem-porâneo, com um ajustamento muito próximoentre a oferta dos profissionais e a procura doshabitantes. Este tipo não corresponde senão a umgosto médio, a uma maioria estatística que podeser um utensílio das políticas e dos decisores masque não deveria ser o dos conceptores.

As investigações mostram que o quadro decorrespondências entre tipologias e práticascontém um número ilimitado de soluções,admitindo que seja desatado o nó que estrangulao alojamento social: a concepção de um aloja-mento de três divisões de cinquenta metrosquadrados releva mais do jogo de puzzle do queda arquitectura.

Vejamos a distribuição do alojamento colec-tivo: as práticas são suficientemente diversi-ficadas segundo a pertença social, os estilos devida e, sobretudo, a composição do grupo domés-tico para que diferentes tipos de distribuiçãosejam possíveis: uma sala de estar "atravessante"e comandando os quartos (que foi realizada por J.Dubuisson, R. Bofill, ou R. Piano em certos pro-jectos"8 ou pelo contrário: um largo corredor decirculação com, eventualmente, inversão da par-tição entre dia e noite posicionando os quartosperto da entrada e a sala no fim do corredor (ex: areabilitação dos imóveis no Arsenal, avenidaMorland em Paris por Y. Lion; as propostas decertos arquitectos suíços, como Diener & Dienerou R. Senn).

Nenhum dispositivo arquitectónico é univer-sal ou se pode prescrever em absoluto; cada umage em interacção com os outros e à luz dasvariáveis discriminantes que são o estatuto deocupação, a localização e o custo. Sabe-se o quefaz a pobreza da arquitectura da habitação (Léger,1996): uma geometria simplificada face aomodelo da caserna, uma fachada plana, umaentrada estreita, janelas reduzidas ao mínimo, emsíntese tudo o que pode significar, no seuverdadeiro sentido a Existenzminimum9.

7 "Habitation à bon marché": habitações sociais dos anos 20 - 40.8 "Estes planos são admiráveis na medida em que ficam sempre marginais, mas perduram atravessando o tempo sem ser afectados pela passagem

progressiva de um esquema dominante a outro, nem pela sucessão de políticas e regulamentos face ao alojamento" (Moley, 1998: 280).

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Os materiais são objecto de uma verdadeiramoral: são recusados os materiais brutos,não trabalhados (como o seu nome indica), nãoacabados, os materiais da indústria que evocam afábrica e o mundo do trabalho mais do que o dahabitação, as cores vivas que "se fazem notar"enquanto que o pudor é defendido. Ora a mo-dernidade, é também a desqualificação dosimóveis e o seu corolário, a má qualidade dasegunda escolha.

Os habitantes não pedem ornamentações,mesmo se as fachadas dos imóveis burgueses doséculo passado são invejadas pela riqueza quesão supostas transmitir. Não exigem também osreconhecidos signos da média burguesia – tipolo-gia do imóvel tradicional, com a fachadarevestida a pedra, telhado em zinco parisisense,como se encontra aliás na maioria dos programasde promoção privada na região parisiense.O trabalho do promotor e do arquitecto deveexprimir as intenções, quer dizer a atenção aoshabitantes, a pobreza da arquitectura do imóvelestá relacionada com a dos seus habitantes. Masé, sobretudo, o uso concreto que coloca a mo-dernidade contra a parede. O conforto na suadimensão ergonómica e funcional, a luz, o pro-longamento exterior (loggia ou terraço) não sãosuficientes em si (ver em que se tornaram algu-mas das grandes urbanizações que até os tinham)mas são, sem dúvida, dimensões fundamentais dohabitar moderno.

Conclusão

A combinação das formas de habitar consti-tui uma matriz ilimitada, razão pela qual asrespostas arquitectónica possíveis são também

em número infinito. Umas e outras não têm cor-respondência directa, senão a dona de casa demenos de cinquenta anos educando sozinha osseus dois filhos homens e preferindo tomar assuas refeições na sala, exigiria um alojamentodiferente da sua nora casada e mãe de dois filhoshabituados a jantar na cozinha. A plasticidadedas práticas reencontra a dos espaços, apesar dopouco respeito por um pequeno número de inter-ditos, suficientemente bem identificados atravésdo conhecimento dos usos, para que o diálogoentre concepção e recepção aconteça.

Em vez de fechar a concepção do aloja-mento, os saberes sociológicos podem serelementos da sua renovação. Tal, seria certamentepreferível fazer apelo aos criadores mais compro-metidos numa relação de serviço, dimensão daprofissão de arquitecto seguramente a promover.O relançamento da pesquisa tipológica no aloja-mento poderia ser estruturada em termos bemdefinidos (ex.: habitat intermédio, a superfíciesalargadas, os prolongamentos do alojamento, aspartes comuns, os materiais de segunda escolha,etc.). O objecto de consumo e bem cultural que oalojamento também é, inclui este nos ajuizamen-tos sobre o gosto quer ao seu interior quer à suaarquitectura. A crítica deplora que a conside-ração pela procura nivele, por baixo, aarquitectura de promoção privada e, por contágio,a do alojamento social.

Pode-se, assim, observar que certos promo-tores privados fazem apelo aos melhoresarquitectos que trabalhavam exclusivamente parao sector social público. A partir do momento emque este constrói cada vez menos, não é impos-sível que, progressivamente, a qualidadearquitectónica conquiste por fim o mercado pri-vado.

9 Um mínimo vital (N. das T.)

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