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PESQUISAS EM SINTAXE E SUA APLICAÇÃO EM SALA DE AULA

Violeta Virginia Rodrigues (organizadora)

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PESQUISAS EM SINTAXE E SUA APLICAÇÃO EM SALA DE AULA

Violeta Virginia Rodrigues (organizadora)

UFRJEditorarte

Rio de Janeiro, 2019

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Reitor | Roberto LeherVice-reitora | Denise Fernandes Lopez Nascimento

Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa | Leila Rodrigues da SilvaPró-reitor de Graduação | Eduardo Gonçalves Serra

Diretora da Faculdade de Letras | Sonia Cristina ReisVice-diretor da Faculdade de Letras | Humberto Soares da Silva

Diretora Adjunta de Pós-Graduação e Pesquisa | Maria Mercedes Riveiro Quintnans SeboldVice-Diretor Adjunto de Pós-Graduação e Pesquisa | Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina

Coordenador da Pós-graduação em Letras Vernáculas | Adauri BastosVice-coordenadora da Pós-graduação em Letras Vernáculas | Maria Eugenia Lammoglia Duarte

Comissão de Pós-graduação em Letras VernáculasLíngua Portuguesa

Silvia Figueiredo BrandãoVioleta Virginia Rodrigues

Eliete Figueira Batista da Silveira (suplente)

P474 Pesquisas em sintaxe e sua aplicação em sala de aula [Recurso eletrônico] / Violeta Virginia Rodrigues (organizadora). – Rio de Janeiro: Editorarte : UFRJ, Faculdade de Letras, [2018]. 1 recurso online (138 p.). ISBN 978-85-89242-20-2 1. Língua portuguesa - Sintaxe. 2. Língua portuguesa – Estudo e ensino. I. Rodrigues, Violeta Virginia. II. Título.

CDU 81’367=134.3

CATALOGAÇÃO NA FONTEUERJ/REDE SIRIUS/CEH-B

Capa, projeto gráfico e diagramação: Equipe Editorarte

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sumár io1. INTRODUÇÃO Violeta Virginia Rodrigues

2. SISTEMA DE TRANSITIVIDADE: AS DIFERENTES FORMAS DE EXPRESSÃO DO SIGNIFICADO E SEUS OBJETIVOS PRAGMÁTICO-DISCURSIVOSGesieny Laurett Neves Damasceno

3. MULTIFUNCIONALIDADE DE ONDE: UMA ABORDAGEM TÉORICA E PRÁTICAGustavo Benevenuti Machado 

4. A POLIFUNCIONALIDADE DO CONECTOR PARARachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre 

5. PARA ALÉM DAS CLASSES: A MULTIFUNCIONALIDADE DE TIPOHeloise Vasconcellos Gomes Thompson

6. NAS TRAMAS DA ARGUMENTAÇÃO: A HIPOTAXE CIRCUNSTANCIAL COMO ESTRATÉGIA ARGUMENTATIVAAmanda Heiderich Marchon

7. OBSERVAR, COMPREENDER: A JUSTAPOSIÇÃO EM TEXTOSAdriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann 

8. ADJETIVAS EXPLICATIVAS E O “DESGARRAMENTO” EM SALA DE AULAKaren Pereira e Violeta Virginia Rodrigues

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int rodução

Há bastante tempo venho me dedicando ao estudo da combinação de cláusulas, ao(s) uso(s) de conectores e de temas afins em minhas pesquisas envolvendo as minhas orientações de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado. Neste volume, são reunidos alguns dos resultados dessa atividade de pesquisa/orientação.

Os artigos que o constituem são oriundos de dissertações e teses que foram desenvolvidas no período de 2010 a 2016 no âmbito dos seguintes projetos: de 2008 a 2013, projeto Uso(s) de conjunções e combinação hipotática de cláusulas; de 2013 a 2016, projeto Cláusulas hipotáticas: uso(s) de articuladores e, atualmente, projeto Cláusulas hipotáticas: interface sintaxe & prosódia, em que se discute a articulação de orações sob a ótica de uma abordagem funcional-discursiva e em que se consideram as relações hipotáticas, tendo em vista o cotexto e contexto em que as cláusulas se inserem. De acordo com Dahlet (2006), contexto refere-se ao extralinguístico e, portanto, diferencia-se de cotexto, que se refere ao contexto estritamente linguístico.

Parte-se, portanto, de uma análise suprassentencial, revendo, por exemplo, a premissa de que a presença do conector seja o único parâmetro para a descrição do comportamento dessas cláusulas. Segundo esse mesmo viés, trabalha-se a noção de transitividade para além do verbo com vistas a identificar seu objetivo comunicativo. Para Bybee (2010), os falantes sabem muito mais sobre uma língua além das regras bem gerais que dizem respeito a sujeitos, objetos, orações completivas e relativas. De acordo com mesma autora, ainda, todas as relações sintáticas em uma gramática têm relevância semântica e estão fundamentadas nos contextos linguísticos e extralinguísticos em que são usadas. Assim, o aporte teórico dos estudos em tela vincula-se ao Funcionalismo, visto que todos buscam analisar a língua em uso em situações comunicativas reais e porque partimos do pressuposto de que a língua é sempre afetada pelo uso e pelo impacto que essa experiência tem sobre o sistema cognitivo, conforme atesta Bybee (2010).

A proposta do livro, como um todo, é apresentar resultados das pesquisas por nós desenvolvidas e, após isso, trabalhar a sintaxe por meio de textos, extrapolando o nível sentencial. Para tanto, descrevemos tanto os conectores que introduzem as orações quanto alguns tipos de oração, identificando as relações semântico-

Violeta Virginia Rodrigues1

1 Organizadora. Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ, onde desenvolve atualmente o Projeto CLÁUSULAS HIPOTÁTICAS: INTERFACE SINTAXE & PROSÓDIA, no qual aborda os seguintes temas: (i) Processos sintáticos – Subordinação, Hipotaxe, Coordenação, Correlação, Justaposição; (ii) Gramaticalização de conectores; (iii) Desgarramento de cláusulas.

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pragmáticas que emergem da articulação/da combinação de uma com a outra. Nesse sentido, também, abordamos a noção de transitividade que, conforme apontamos antes, é vista para além do verbo. Então, são os componentes da estrutura oracional dentro de um texto, relacionados tanto com os elementos cotextuais, os constituintes da oração, quanto no emprego/no uso que tem no texto, ou seja, no contexto, que determinam a transitividade da cláusula. Adotando Bakhtin (2015), leva-se em conta a perspectiva semântica implícita que escapa à análise sintática tradicional construída sobre bases lógico-formais, o que nos leva a refletir sobre os casos de justaposição como outra possibilidade de organização sintática das cláusulas nos períodos complexos.

Além disso, partimos da ideia de que as cláusulas se combinam tanto parataticamente quanto hipotaticamente, usando as noções de Mathiessen & Thompson (1988), o que nos permite repensar os conceitos de coordenação e subordinação da perspectiva tradicional. Com base nas considerações desses linguistas, pode-se estabelecer um continuum composto de parataxe (coordenação), hipotaxe e subordinação (encaixamento). Enquanto na visão tradicional, subordinação envolve as orações substantivas, adjetivas e adverbiais, a tríade antes apresentada permite-nos rever a noção de subordinação. Por esse viés, subordinação implica relação de constituência entre uma oração e outro constituinte, o que se verifica apenas no âmbito das completivas e relativas restritivas; já na hipotaxe, não se observa tal relação. As hipotáticas acrescentam circunstâncias como tempo, modo, lugar etc. ou relações de realce (comentário ou adendo, por exemplo) ao que se disse antes, contribuindo, assim, para a organização do discurso. Nesse caso, as adverbiais e relativas apositivas cumprem esse papel.

No que diz respeito à materialização escrita dessas cláusulas, outro tema de que tratamos neste livro é o da análise dos sinais de pontuação proposta por Dahlet (2006). A autora descreve a pontuação com base no próprio ato comunicativo, com suas estruturas sintáticas e seus efeitos de sentido, suas condições de produção e levando em conta a relação entre escrevente/leitor, o que propicia um novo olhar não só sobre esses sinais como também auxilia na compreensão da interface sintaxe/pontuação. Muitas vezes, os usos de sinais de pontuação que fogem à convenção da língua escrita são mal interpretados, embora sirvam a propósitos interacionais em seus cotextos e contextos de uso. Nas gramáticas, há pouca explicação sobre esses aspectos e, quando aparecem, normalmente, são vinculados a opções estilísticas do escrevente. Um dos fenômenos em que se verifica isso é o do desgarramento, possibilidade de cláusulas constituírem por si mesmas uma unidade informacional. A existência de cláusulas desgarradas permite que se questione a premissa de que não se possa separar orações subordinadas de suas principais no âmbito do período composto. Atualmente, é bastante comum a separação destas por ponto final de suas “principais”.

Na língua escrita, o ponto é o principal índice do fenômeno do desgarramento e, conforme Cunha e Cintra (1989), com o isolamento pela pontuação de orações que comporiam um período composto, o falante não só modifica a estrutura sintática do período como também seu sentido. A nova oração criada por ele ganha mais realce e isso não se verifica no uso convencional dos sinais de pontuação. No entanto, nem sempre tais usos serão tratados como uma opção estilística de que o falante/escrevente dispõe.

A proposta é de um livro em que as pesquisas linguísticas em sintaxe são aplicadas ao texto, tentando não usar o texto como pretexto para o ensino de conteúdos gramaticais. O texto é explorado em todos os seus aspectos para se entender melhor sua organização sintática, já que se parte da premissa de que as relações das partes do texto como um todo são reflexos das relações gramaticais e vice-versa. Para isso, portanto, nada melhor do que trabalhar a língua em uso, como defende a proposta funcionalista aqui adotada, o que se verifica pela variedade e diversidade de tipos e gêneros textuais dos mais diferentes domínios discursivos.

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Assim, as questões sintáticas são colocadas juntamente com as questões discursivo-textuais, tentando fazer uma gramática aplicada ao uso dessas estruturas no texto sempre. Segundo Bakhtin (2015), é preciso interligar gramática, leitura, escrita, produção de sentidos e autoria. O autor propõe, inclusive, o trabalho estilístico, ou seja, aquele que visa a colocar os alunos no caminho da linguagem utilizada na vida: uma linguagem tanto gramatical e culturalmente correta, quanto audaciosa, criativa e viva. Assim, segundo ele, resta ao professor ajudar nesse processo de nascimento da individualidade do aluno por meio de uma orientação flexível e cuidadosa.

A cada capítulo são apresentadas sugestões de exercício com gabarito para instigar/provocar o interesse de outros estudiosos e, principalmente, promover uma interlocução com os professores, que se ressentem da falta de aplicação dos resultados das pesquisas ao ensino. Tais exercícios foram elaborados tendo como público-alvo alunos a partir do 9º. ano até o 3º. ano do Ensino Médio. Tais propostas foram construídas adotando-se a noção de letramento em leitura e escrita como “um conjunto abrangente de conhecimentos, habilidades e estratégias que os indivíduos constroem ao longo de toda a vida, em diversas situações e por meio da interação com seus pares e com as comunidades mais amplas de que participam” (cf. ABAQUAR, 2007, p. 23). Por isso, houve a preocupação em se fazer a contextualização dos exercícios sempre que possível e, ainda, de se respeitarem os diversos níveis de letramento envolvidos nas atividades, que visam desde a localização de informações explícitas nos textos, a compreensão da construção global do texto, o relacionamento de informações, a criação de hipóteses, até a avaliação crítica de seu conteúdo.

Assim, o livro pretende não só divulgar os resultados das pesquisas desenvolvidas no âmbito dos projetos antes elencados, mas também promover uma maior aproximação da pesquisa com o ensino. Por isso, nosso principal objetivo é atingir os estudantes de Letras e os professores de Língua Portuguesa, que, como dissemos, denunciam a existência desse hiato.

Ao todo são sete artigos que abordam a transitividade não mais centrada apenas no verbo como faz a tradição, mas na relação entre os vários constituintes que formam a cláusula e nela atuam; a multifuncionalidade de onde que, como conector de oração em Português, pode introduzir substantivas, adjetivas e adverbiais; a polifuncionalidade da preposição para que, como conector, também pode introduzir substantivas, adjetivas e adverbiais, assim como o onde; a multifuncionalidade de tipo, substantivo que se comporta não só como conector de orações comparativas como também de outras estruturas; o uso de cláusulas hipotáticas circunstanciais em artigos de opinião e que contribuem para sua maior argumentatividade; a justaposição como processo sintático em que emergem relações semânticas na combinação de orações muito próximas das subordinadas adverbiais; o desgarramento de cláusulas relativas apositivas, normalmente associadas às adjetivas explicativas da tradição.

Como se vê, são temas variados, mas que convergem para um mesmo ponto – o falante/escrevente é sujeito de sua fala e/ou de sua escrita, não sendo um mero coadjuvante nesse processo. Sendo assim, os usos linguísticos refletem emoções, variações e mudanças pelas quais esses indivíduos passam e continuarão passando, porque a língua é viva, dinâmica e visa à interação. Portanto, quaisquer trabalhos linguísticos não podem desconsiderar tais aspectos.

Cientes disso, esperamos não só divulgar nossos trabalhos, mas também promover uma rica discussão em torno de temas relativos à sintaxe do Português com base em análise de textos reais exatamente que demonstram toda a dinamicidade dos usos linguísticos. Que a leitura dos artigos sirva de motivação para novos estudos, é o que desejamos!

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Referências BYBEE, Joan. Language, usage and cognition. Cambridge: CUP, 2010.

BAKHTIN, M. Questões de estilística no ensino da língua. São Paulo: Editora 34, 2013.

CUNHA, Celso & CINTRA, Luiz F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

DAHLET, Véronique. As (Man)obras da pontuação: usos e significações. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.

MATTHIESSEN, Christian & THOMPSON, Sandra A. The structure of discourse and “subordination”. In: HAIMAN, J. Thompson, S. (Ed.). Clause Combining in Grammar and Discourse. Amsterdam, John Benjamins, 1988. p. 275-329.

Letramento: leitura e escrita. Acre: Editora Abaquar, 2007.

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Sistema de transitividade: as diferentes formas de expressão do significado e seus objetivos pragmático-discursivos

Gesieny Laurett Neves Damasceno1

1 Professora Doutora do Departamento de Línguas e Letras (DLL) e do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGEL) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

RESUMOTendo em conta os componentes do Sistema de Transitividade sob a perspectiva da Linguística Sistêmico-Funcional (a saber, os Processos, os Participantes e as Circunstâncias), este trabalho objetiva correlacionar as formas de codificação das cláusulas aos propósitos sócio comunicativos dos gêneros discursivos. Como recorte analítico, descrevemos os Processos do tipo Material e, mais especificamente, as diversas configurações que o Participante Ator assume no contexto particular das notícias jornalísticas. Os resultados aqui apresentados pautaram-se na análise de um corpus constituído de 31 notícias jornalísticas, retiradas do corpus VARPORT. O recorte de análise compreende 131 cláusulas construídas em torno de Processos Materiais, que são os Processos do fazer e do acontecer (cf. HALLIDAY, 1994). A análise dos dados demonstrou que, no contexto das notícias jornalísticas, as três diferentes formas de expressão do significado – congruente, metafórica (Metáfora da Transitividade) e metonímica – cumprem funções pragmático-discursivas bastante específicas. As expressões metafóricas, por exemplo, revelaram-se como um recurso muito importante para os casos em que o que se deseja é a omissão do real agente dos eventos narrados, sem que, no entanto, sejam gerados enunciados incompletos. O uso mais frequente das expressões metafóricas com fins de ocultação do agente (49%/49) corrobora essa proposição.1

Palavras-chave: Linguística Sistêmico-Funcional; Sistema de transitividade; Processos Materiais; Formas de expressão do significado; Objetivos sócio comunicativos.

ABSTRACTConsidering the transitivity system under the systemic-functional perspective (namely, the processes, the participants and the circumstances), this study aims to correlate the forms of codifying clauses and the socio-communicative purposes of discourse genres. As analytic focus, we intend to describe the material processes and, more specifically, the different configurations that the acting participant admits in the paticular context of journalistic news. The results presented in this work were based on the analysis of a corpus consisted of 31 journalistic news taken from the VARPORT corpus. Our focus encompasses 131 clauses constructed around Material Processes, which are processes of making and happening (cf. HALLIDAY, 1994). The data analysis showed that, in journalistic news context, the three different forms of expresing meaning – congruent, methaphofical (Metaphor Transitivity) and metonimic – admit discursive-pragmatic functions very specific. The metaphorical expressions, for instance, was revealed to be a very importante resource for the cases in which it is intended to omit the real agent of the events told, without generating incomplete propositions, though. The most frequent use of the metaphorical expression with intention of omitting the agent (49%/49) corroborates this thesis.

Keywords: Systemic Functional Lingustics; transitivity system; Material Processes; forms of meaning expression; socio-communicative aims.

1 Os resultados apresentados aqui integram a tese A transitividade de processos materiais em notícias jornalísticas, defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ, em 2016.

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Sistema de transitividade: as diferentes formas de expressão do significado e seus objetivos pragmático-discursivos Gesieny Laurett Neves Damasceno

INTRODUÇÃOComumente, nas aulas de Língua Portuguesa, o estudo da transitividade segue as diretrizes contidas na

Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) e, por isso, se restringe à classificação dos verbos em transitivos ou intransitivos, de acordo com a necessidade (ou não) de complementos dos tipos objeto direto e objeto indireto. Apesar de abordagens dessa natureza contribuírem, em alguma medida, para o reconhecimento das estruturas da língua, elas tornam o estudo da transitividade demasiadamente normativista, não considerando, por exemplo, a maleabilidade das formas em consequência de propósitos sóciodiscursivos específicos.

Neste estudo, o termo transitividade será considerado em sentido mais amplo, ou seja, como o sistema por meio do qual representamos nossas experiências (externas e internas) e nossas relações. A abordagem acerca do Sistema de Transitividade que apresentamos aqui se enquadra na vertente funcionalista de análise linguística denominada Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) e busca, dentre outros aspectos: (i) investigar a relação entre forma e função, a partir das categorias envolvidas na transitividade, ou seja, verificar o modo como os usuários da língua adaptam as estruturas linguísticas às suas intenções comunicativas; (ii) priorizar o estudo da língua no seu contexto real de uso e (iii) considerar as categorias a partir de um continuum de realização.

Tendo em conta os componentes do Sistema de Transitividade sob a ótica da LSF (a saber, os Processos, os Participantes e as Circunstâncias), este artigo objetiva correlacionar as formas de codificação das cláusulas aos propósitos sócio comunicativos dos gêneros discursivos. Neste trabalho, descreveremos os Processos do tipo Material e, mais especificamente, as diversas configurações que o Participante Ator assume no contexto particular das notícias jornalísticas.

Para nos auxiliar nessa tarefa de caracterização, além dos preceitos da LSF, lançaremos mão de alguns pressupostos da Linguística Cognitiva, como a noção de metonímia. Os resultados aqui apresentados pautaram-se na análise de um corpus constituído de 31 notícias jornalísticas, retiradas do corpus VARPORT. O recorte de análise compreende 131 cláusulas construídas em torno de Processos Materiais, que são os Processos do fazer e do acontecer (HALLIDAY, 1994).

O presente artigo encontra-se organizado da seguinte forma: na primeira parte, são apresentados os fundamentos teóricos, bem como algumas discussões a respeito do Participante Ator, nosso foco de interesse. Na segunda parte, caracterizamos o corpus analisado. Na seção 3, apresentamos os resultados encontrados. Após as palavras finais (seção 4), são apresentadas propostas de aplicação da temática ao ensino de Língua Portuguesa.

1. A TRANSITIVIDADE NA PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL E O PARTICIPANTE ATORPara a Linguística Sistêmica, a experiência humana é traduzida em linguagem por meio dos Processos, dos

Participantes e das Circunstâncias, ou seja, por intermédio dos papéis principais que compõem o Sistema de Transitividade. No quadro teórico da Linguística Sistêmico-Funcional, são identificados seis tipos de Processo (Material, Mental, Relacional, Verbal, Comportamental e Existencial), aos quais se associam Participantes particulares e Circunstâncias específicas.

Os Processos do tipo Material, foco de interesse deste trabalho, têm sido genericamente descritos como os Processos do “fazer” e do “acontecer”, e a noção conceitual implícita é a de que uma entidade faz algo, que pode ser feito para alguma outra entidade. Nos termos da LSF, o “fazedor” desse tipo de ação é chamado de Ator. A priori,

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qualquer Processo Material tem um Ator, ainda que ele não esteja evidenciado na cláusula2. Em muitos casos, a ação pode ser representada como afetando ou “sendo feita para” um segundo Participante, e uma vez que a ação é, em certo sentido, dirigida a este Participante, ele é chamado de Meta.

Esses rótulos para os Participantes são mais facilmente entendidos quando o Ator é uma entidade humana, e a Meta, se houver, é uma entidade inanimada, como nos exemplos a seguir, elencados por Thompson (1996, p. 80):

Quadro 1 Processos Materiais do tipo 1 (THOMPSON, 1996, p. 80).

A jovem garotaEduardoSua mãe

saltouestava serrandoquebrou

madeira.o vidro.

para fora do portão.

Ator Processo: Material Meta Circunstância

No entanto, o Participante Ator pode ser uma entidade inanimada ou abstrata, e a Meta pode, naturalmente, ser uma entidade humana, como nos exemplos a seguir, também extraídos de Thompson (1996, p. 80):

Quadro 2 Processos Materiais do tipo 2 (THOMPSON, 1996, p. 80).

O carro

A grama grossaA infelicidadeO fogoDezenas de pequenos arbustosO ritmo acelerado

deslizou

estava crescendodesapareceu. havia destruídoarranharamsacudiu

tudo.ele.paredes e chão.

para fora da estrada.aqui e ali.

Ator Processo: Material

Meta Circunstância

Acerca dessa diversidade, Thompson (1996, p. 80) cita ainda os casos em que o significado relacional (estado) parece dominante, apesar de ser construído em torno de um Processo Material, como em

[01] Hope Street corre entre as duas catedrais,

em que o sentido de localização se encontra claramente expresso, mas a escolha por um verbo que normalmente codifica ação confere à designação estativa um tom mais dinâmico.

Como não poderia deixar de ser, a maneira mais adequada de olhar para essas elaborações, que representam áreas de incerteza, é aceitar que a categoria Processo Material tem um núcleo de Processos prototípicos que pode ser sondado por perguntas como O que x fez?; em torno desse núcleo, há Processos menos prototípicos que são

2 Uma das principais formas em que isso pode acontecer é pela escolha de uma cláusula passiva, como em O óleo é adicionado gota a gota (THOMPSON, 1996, p. 81).

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mais facilmente sondados por perguntas como O que aconteceu?; e ainda mais para fora, na periferia, existem Processos para os quais as investigações mais adequadas são perguntas como Qual foi o estado resultante?

Diante desses fatos, Thompson (1996) chama a atenção para a possibilidade de se identificarem várias subcategorias de Processos Materiais. Um agrupamento possível seria, por exemplo, separar os Processos que são “feitos para” Metas já existentes daqueles que trazem a Meta à existência, como em, respectivamente, Minha mãe nunca come pudim natalino e Acabei de fazer os pudins natalinos.

Outra divisão dos Processos Materiais pode ser feita tendo em vista a natureza intencional ou involuntária do Processo. Os exemplos seguintes, citados por Thompson (1996, p. 80), representam este último caso.

Quadro 3 Processos Materiais involuntários (THOMPSON, 1996, p. 80).

O carroO casoEla

acelerou.terminoutropeçou

depois de um ano.no degrau.

Ator Processo: Material Circunstância

Como Processo involuntário, o Ator se assemelha, em alguns aspectos, a uma Meta. Cláusulas como essas não são suscetíveis à pergunta O que x fez?; em vez disso, parece mais adequado perguntar O que aconteceu a x? – uma sondagem que lembra a forma como se define o papel do Participante Meta.3

Uma descrição mais sistemática do corpus selecionado mostrou, por exemplo, que, sob o rótulo de Ator, estão reunidas codificações com características muito peculiares, como é o caso das cláusulas a seguir, em que a função de Ator tanto é representada por uma entidade humana (exemplo [02]) como por uma entidade de natureza mais institucional (exemplo [03]). Os termos que codificam a função de Ator nas cláusulas encontram-se em itálico.

[02] O substitutivo votado pelo Congresso, embora tenha recebido 241 votos favoráveis dos arenistas (apenas a Deputada Lígia Lessa Bastos votou contra) e 156 contrários, por se tratar de emenda constitucional, precisava de dois terços do total (282 votos) para ser aprovado. (E-B-94-Jn-003)

[03] A aviação apoiou o avanço dos tanques em Khaldes e ainda bombardeou a cidade desportiva, onde há redutos da guerrilha palestina. (E-B-94-Jn-014)

Por expressarem sentidos diferenciados e extremamente relevantes, essas escolhas necessitam de uma descrição que as caracterize de forma mais meticulosa, conforme constataremos nas seções subsequentes.

2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOSNesta investigação, a descrição da transitividade encontra-se atrelada à noção de gênero discursivo. Uma análise

linguística pautada na perspectiva de gênero discursivo busca, primeiramente, considerar as construções a partir

3 Note-se que o termo Meta se refere ao participante modificado e não ao destino de movimento através do espaço. Assim, o sintagma preposicionado a um matagal em Ele chegou a um matagal não é Meta, nos termos usados aqui: não é sequer um participante, pelo contrário, é uma circunstância de localização – mais especificamente, o lugar de destino.

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das influências do contexto em que foram produzidas. Compartilhamos com os teóricos sistêmicos o pressuposto de que a noção de gênero se encontra alinhada à noção de contexto de cultura, ou seja, ao contexto social que perpassa o texto, influenciando as palavras e as estruturas utilizadas por seu produtor (EGGINS; MARTIN, 1997).

Para os objetivos pretendidos neste artigo, foram selecionados 31 textos pertencentes ao gênero notícia jornalística. As notícias jornalísticas foram retiradas do banco de dados do corpus VARPORT, disponível no endereço eletrônico www.letras.ufrj.br/varport, e escritas entre os anos 1975 e 2000 (Fase 4 do século XX – último período abarcado pelo corpus VARPORT) – configuram, portanto, uma fase mais moderna do jornalismo brasileiro (MELO, 1985).

Após a seleção dos textos, as cláusulas ativas construídas em torno de Processos do tipo Material foram separadas, por meio de leitura criteriosa. Foram encontrados 91 tipos diferentes de verbos e 131 cláusulas codificando Processos do ‘fazer’ e do ‘acontecer’. Optamos por descrever a transitividade dos Processos Materiais pelo fato de esse tipo de Processo ser reconhecido pela Gramática Sistêmico-Funcional (doravante, GSF) como um dos mais relevantes na representação das experiências humanas (juntamente com os Processos Mental e Relacional) (HALLIDAY, 1994).

O quadro exibido a seguir resume os aspectos que caracterizam o corpus deste estudo:

Quadro 4 Caracterização do corpus.

Gênero discursivo Quantidade de textos Tipos de verbos Cláusulas Materiais

Notícias jornalísticas 31 91 131

Nos parágrafos subsequentes, procuraremos demonstrar como as escolhas efetuadas no âmbito do Sistema de Transitividade encontram-se em consonância com o principal propósito comunicativo das notícias jornalísticas, qual seja: informar, da maneira mais objetiva possível.

3. AS DIFERENTES FORMAS DE EXPRESSÃO DO SIGNIFICADO E SEUS OBJETIVOS PRAGMÁTICO-DISCURSIVOSComo postula a LSF, o que faz da linguagem um sistema semiótico é a ideia subjacente de que os significados

são construídos através de escolhas, e que cada escolha adquire um significado em detrimento a outras escolhas que poderiam ter sido feitas (SANTOS, 2014). Tendo em vista essa rede de possibilidades, cumpre a esta seção relacionar o modo como os componentes do Sistema de Transitividade são articulados pelos autores das notícias às funções que esses arranjos desempenham nesse contexto particular de interação.

3.1 As formas congruente, metafórica e metonímicaNas notícias analisadas, as diferentes relações estabelecidas entre os papéis principais do Sistema de

Transitividade configuraram três importantes formas de expressão do significado. São elas: (i) a forma congruente, (ii) a forma metafórica (Metáfora da Transitividade) e (iii) a forma metonímica. As discussões que se seguem objetivam esclarecer acerca desses processos, bem como apontar a forma como o locutor engendra a mensagem segundo suas intenções comunicativas.

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Em termos de cognição, a metáfora é entendida como um mecanismo que envolve a conceptualização de um domínio de experiência em termos de outro, como ponderam Lakoff e Turner (1989) e Lakoff e Johnson (2007). Sendo assim, cada metáfora é constituída de um domínio-fonte e um domínio-alvo. A título de exemplificação, tomemos o seguinte fragmento de notícia jornalística:

[04] Regime do AI-5 acaba à meia - noite de hoje

À meia – noite de hoje o Brasil sai do mais longo período ditatorial de sua História. Dez anos e 18 dias depois de sua edição, o Ato Institucional no 5 que suspendeu liberdades individuais, eliminou o equilíbrio entre os Poderes e deu atribuições excepcionais ao Presidente da República, encerra sua existência. (E-B-94-Jn-006)

A cláusula À meia-noite de hoje o Brasil sai do mais longo período ditatorial de sua História, em destaque no fragmento [04], ilustra uma projeção metafórica que tem a localidade como domínio-fonte (sair de algum lugar) e o estado (condição) como domínio-alvo. Nesse exemplo, o conceito de ditadura é estruturado em termos de conceito de lugar, havendo, portanto, uma associação entre esses dois domínios.

A fim de atingirmos o objetivo principal do nosso estudo, que é o de verificar como a organização do Sistema de Transitividade representa o conteúdo ideacional das notícias jornalísticas, recorremos ao conceito de metáfora adotado pela LSF. Acerca dessa noção, discorremos nos parágrafos subsequentes.

No uso efetivo da linguagem, o falante possui à sua disposição uma gama de configurações possíveis para expressar um dado significado. O que irá determinar uma escolha, em detrimento de outras que poderiam ter sido feitas, será o conjunto de pré-requisitos determinados pelos propósitos comunicativos.

Os conceitos de Processo, Participante e Circunstância são categorias semânticas que explicam, de forma bastante geral, como os fenômenos do mundo real são representados em termos de estruturas linguísticas. Temos notado que, quando passamos a interpretar a gramática da cláusula de forma mais meticulosa, é possível perceber que as representações linguísticas reunidas sob um mesmo rótulo apresentam características semânticas e sintáticas bastante distintas. Exemplos dessa afirmação podem ser vistos nas cláusulas destacadas a seguir, em que os sintagmas nominais Mohamed, Novas normas e Os tanques israelenses, representados como participantes do tipo Ator, apresentam características bastante peculiares:

[05] Em novembro de 1979, Mohamed enviou uma carta, assinada com seu próprio nome, ao jornal Millyet, de Istambul, anunciando disposição de matar o Papa João Paulo II durante sua visita à Turquia. (E-B-94-Jn-012)

[06] Novas normas restringem grandemente as viagens ao exterior. (E-B-94-Jn-022)

[07] Os tanques israelenses estacionaram ontem a 200 metros do Palácio do Governo do Líbano, anunciou a rádio oficial libanesa. (E-B-94-Jn-014)

O Participante Ator das cláusulas [05], [06] e [07], destacado em itálico, desempenha, respectivamente, os papéis de agente, de causa e de paciente. Conforme dissemos em Damasceno et al. (2014), entendemos que as estruturas representadas em [06] e [07] são resultado de uma reorganização dos componentes da transitividade, cuja consequência é uma nova codificação quanto às funções representativas do sistema ideacional. Como essa

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recodificação se dá por meio da atribuição de novas funções aos elementos constitutivos do Sistema de Transitividade, denominamos esse processo de Metáfora da Transitividade. O conceito de Metáfora da Transitividade está sendo utilizado aqui, portanto, de forma mais abrangente que aquele utilizado, normalmente, pelos autores da teoria Sistêmico-Funcional.

O termo Metáfora Gramatical, no qual está inserida a Metáfora da Transitividade, é usado pela GSF para designar a variação na expressão de um dado significado em relação à sua forma congruente (HALLIDAY, 1994; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004; THOMPSON, 2014). Para essa vertente teórica, existem, portanto, duas formas de expressar um significado: uma forma congruente e uma metafórica. A representação congruente, ou menos marcada, é aquela considerada como o modo mais comumente dito em uma determinada língua ou o modo que é dito na ausência de qualquer circunstância especial (HALLIDAY, 1994).

Segundo os autores sistêmicos, a nominalização é o tipo mais comum de Metáfora Gramatical. Por meio desse recurso, os Processos (congruentemente organizados como verbos) e as Propriedades (congruentemente organizadas como adjetivos) são metaforicamente reformulados como substantivos, e em vez de funcionarem como Processo ou Atributo, esses componentes funcionam como uma entidade no grupo nominal (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 656). A título de exemplo, Halliday (1994, p. 344) cita as seguintes construções:

Forma CongruenteÀ noite, os convidados tomaram sorvete e depois nadaram suavemente.

Forma MetafóricaA ceia de sorvete dos convidados foi seguida por um mergulho suave.

Neste estudo, a Metáfora da Transitividade está sendo considerada como o processo em que uma nova expressão de significado surge em função de uma mudança de categoria no interior do Sistema Léxico-Gramatical. Em nosso corpus, foram identificados os seguintes processos metafóricos:

1. Um termo congruentemente circunstancial é estruturado como Participante Ator – conforme descrito em Damasceno et al. (2014).

2. Um grupo nominal que congruentemente exerce a função de Participante Meta nas cláusulas transitivas é estruturado como Participante Ator nas cláusulas intransitivas.

As representações seguintes permitem observar as formas mais congruentes dessas unidades linguísticas, bem como evidenciam as novas funções atribuídas aos componentes do Sistema de Transitividade:

(i) Forma metafórica

[08] Novas normas restringem grandemente as viagens ao exterior. (E-B-94-Jn-022)

Novas normas restringem grandemente as viagens ao exterior

Participante Ator Processo Material Circunstância Participante Meta

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(ii) Forma congruente

[08.1] [Alguém] restringe grandemente as viagens ao exterior por meio de novas normas.

[Alguém] restringe grandemente as viagens ao exterior

por meio de novas normas

Participante Ator Processo Material

Circunstância Participante Meta Circunstância

No exemplo [08], percebe-se que a configuração da expressão metafórica se deu por meio da utilização de um termo com características circunstanciais (Novas normas) na função de Ator do Processo.

No exemplo a seguir, a significação metafórica ocorre por meio da codificação de um Ator com as típicas características de um Participante do tipo Meta (-volitivo, -instigador e +afetado):

(i) Forma metafórica

[09] Os tanques israelenses estacionaram ontem a 200 metros do Palácio do Governo do Líbano, anunciou a rádio oficial libanesa. (E-B-94-Jn-014)

Os tanques israelenses estacionaram ontem a 200 metros do Palácio do Governo do Líbano

Participante Ator Processo Material Circunstância

(ii) Forma congruente

[09.1] [Alguém] estacionou os tanques israelenses ontem a 200 metros do Palácio do Governo do Líbano.

[Alguém] estacionou os tanques israelenses ontem a 200 metros do Palácio do Governo do Líbano

Participante Ator

Processo Material

Participante Meta Circunstância

A ideia de que essas construções se constituem em expressões metafóricas do significado é corroborada pela tensão existente entre o estrato da léxico-gramática e o estrato da semântica. Nas cláusulas analisadas, a correspondência entre os estratos que formam o sistema linguístico não é direta, visto que a representação da categoria Ator resguarda algumas das propriedades dos componentes Circunstância e Meta.

Assim como a metáfora (em seu sentido mais amplo), a metonímia sempre foi tratada pela retórica tradicional como uma mera figura de linguagem, cujo conceito é limitado e simplista. Todavia, longe de ser um processo simples de expressão, a metonímia representa um dos melhores exemplos da plasticidade da linguagem, seja em nível enunciativo, pragmático ou textual (BONHOMME, 1987).

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Os estudos cognitivistas reforçam o questionamento acerca da natureza puramente linguística da metonímia e a colocam como central em nossos processos cognitivos. Radden e Kövecses (1999, p. 21), por exemplo, definem a metonímia como “um processo cognitivo em que uma entidade conceitual, o veículo, fornece acesso mental para outra entidade conceitual, o alvo, dentro do mesmo modelo cognitivo idealizado”.

Embora não haja sempre uma distinção nítida entre a metáfora e a metonímia, os estudos cognitivistas têm destacado o fato de que a metonímia tem função referencial e, diferentemente da metáfora, que se dá entre dois domínios, a projeção metonímica envolve apenas um domínio – denominado domínio-matriz (CROFT; CRUSE, 2004; FERRARI, 2011; NASCIMENTO; PAIVA, 2011).

De acordo com a relação que expressam, as metonímias são classificadas em diferentes tipos, conforme apontam Lakoff e Johnson (2007, p. 76). No corpus desta pesquisa, foram encontradas relações metonímicas dos tipos Instituição pelos responsáveis e Lugar pela instituição. As seguintes cláusulas exemplificam essas relações:

[10] O Banco Central vai fixar uma nova taxa de câmbio, que se manterá fixa até o governo entenda ser conveniente outro reajuste. (E-B-94-Jn-016)

[11] O Estado utilizará a Lei Delegada n° 4, que permite o fechamento de estabelecimentos industriais e comerciais que não cumprirem as determinações. (E-B-94-Jn-016)

No exemplo [10], indica-se a instituição financeira (O Banco Central) em vez de se indicarem os nomes dos responsáveis pela fixação da nova taxa de câmbio. Já em [11], recorre-se à expressão locativa O Estado para designar metonimicamente a instituição que ela representa.

Os processos metonímicos foram os grandes responsáveis pela função pragmático-discursiva de indefinição do agente, como veremos na subseção seguinte. A omissão dos reais agentes da ação expressa pode estar a serviço da função pragmática de construção de face. Como exemplo dessa proposição, tomemos como modelo a seguinte notícia jornalística:

[12] Donos do Bateau Mouche estão foragidos na Espanha Dez anos depois da tragédia, O GLOBO localiza os empresários Passados dez anos do naufrágio do “Bateau Mouche IV”, que afundou na Baía de Guanabara no

réveillon de 1988 matando 55 pessoas, dois de seus donos, foragidos da Justiça brasileira, vivem e trabalham normalmente na Espanha. Depois de dois meses de investigação, O GLOBO localizou os empresários Avelino Fernandez Rivera e Faustino Puerlas Vidal na Galícia. Os dois fugiram do país após terem a prisão preventiva decretada, em fevereiro de 1994, sob a acusação de formação de quadrilha, falsificação de documentos e sonegação. Rivera é sócio de duas concessionárias da Mercedes-Benz e uma da Mitsubishi, em Vigo e Pontevedra. Faustino tem uma pequena participação nos negócios. Localizado em Vigo, chegou a marcar um encontro com a equipe do GLOBO, mas não apareceu. Por telefone, ficou surpreso ao ser descoberto: “Preciso telefonar logo para o Rivera.” Há quase 50 processos e ações tramitando na Justiça sobre o caso. Ninguém está preso e nenhuma vítima recebeu indenização. (E-B-94-Jn-031)

O autor dessa notícia, por meio do processo metonímico Instituição pelos responsáveis, constrói a face positiva da instituição jornalística O Globo, colocando em evidência sua natureza investigativa e denunciadora. A metonímia

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foi empregada nas seguintes cláusulas: Dez anos depois da tragédia, O GLOBO localiza os empresários e Depois de dois meses de investigação, O GLOBO localizou os empresários Avelino Fernandez Rivera e Faustino Puerlas Vidal na Galícia.

Como definem Brown e Levinson (1987, p. 61), face positiva é tudo aquilo que o interlocutor exibe para obter aprovação ou reconhecimento, correspondendo ao desejo que as pessoas têm de serem aceitas. Assim, ao atribuir à empresa O Globo as ações de localizar os empresários responsabilizados pela tragédia que matou 55 pessoas e de denunciar o estado de completa impunidade em que eles vivem, a notícia jornalística constrói a face positiva do jornal diante de seus leitores. O emprego da metonímia nesse contexto torna-se indispensável pelo fato de a menção dos verdadeiros agentes da ação não surtir esse efeito pragmático-discursivo.

Além de se revelar como um importante recurso para a construção de face, a metonímia pode ser utilizada para conferir autoridade àqueles que realizam ações. Vejamos essa questão na seguinte notícia:

[13] Índios protegem retirada ilegal de mogno O Ibama e a Polícia Federal, em operação que mobilizou 70 agentes e fiscais e um helicóptero, entraram

na reserva dos índios caiapós, na Serra do Cachimbo (PA), e descobriram um sistema organizado de retirada ilegal de mogno, protegido por oito indígenas armados com carabinas calibre 22. Até então, sabia-se que os índios eram coniventes, mas não que participavam diretamente da exploração da mata. Doze homens brancos foram presos. Foram apreendidos 614 toras de mogno, avaliadas em R$ 1,5 milhão, quatro caminhões e uma empilhadeira. A Funai enviou cinco funcionários para convencer os caciques de que a fiscalização era necessária. (E-B-94-Jn-028)

A notícia anteriormente transcrita versa sobre a atividade de retirada ilegal de mogno, que contava com a conivência e a participação direta de alguns indígenas. Por se tratar de um crime ambiental, foram introduzidas na narrativa algumas instituições federais, responsáveis por fiscalizar e combater tal prática. Nesse contexto discursivo, o emprego da relação metonímica Instituição pelos responsáveis (O Ibama e a Polícia Federal [...] entraram na reserva dos índios caiapós) indica ao leitor que os agentes da ação expressa estavam devidamente imbuídos de autoridade, outorgada pelas autarquias federais que representavam. As expressões metonímicas O Ibama e a Polícia Federal remetem o leitor às entidades responsáveis por inibir esse tipo de crime. Novamente, a simples menção do agente individualizado não seria suficiente para denotar essa significação, o que, entre outros aspectos, justifica o emprego da metonímia.

As discussões subsequentes colocam em evidência algumas das funções pragmáticas e discursivas desempenhadas pelas estruturas congruentes, metafóricas e metonímicas, retratadas aqui.

3.2 Os objetivos pragmático-discursivos das diferentes formas de expressão do significadoAo relacionarmos a forma gramatical aos propósitos pragmático-discursivos, identificamos as seguintes funções

para as configurações das cláusulas Materiais:

1. Individualização do Participante inerente: o Participante Ator é codificado por SNs com nomes próprios, ou seja, os sintagmas nominais têm como núcleo indivíduos. Nesse tipo de codificação, atesta-se a intencionalidade de expor a pessoa responsável pela ação expressa. Como exemplo, cita-se o fragmento a seguir, em que o SN Sarney é o sujeito agentivo do Processo Material construído em torno do verbo lançar.

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[14] Sarney lança plano da Inflação Zero. Todos os preços estão congelados. Salário mínimo aumenta amanhã. Cruzado substitui o cruzeiro. Caderneta dá 14,93% este mês. Poupança renderá por trimestre. ORTN deixa de ser reajustável (E-B-94-Jn-016)

2. Generalidade: o Ator é codificado por SNs lexicais genéricos, ou seja, os sintagmas nominais têm como núcleo um substantivo, modificado ou não. Os sujeitos agentivos são designados pelo grupo ao qual pertencem, e não de forma individualizada, como nos exemplos anteriores. O objetivo é estender a agentividade à espécie4 como um todo ou a parte dela, como se observa no exemplo a seguir, em que os indivíduos que compõem o grupo aludido por meio das expressões Operários da Ford e trabalhadores da Ford se encontram unanimemente comprometidos com as ações:

[15] Operários da Ford seguem os da Mercedes Benz e criam comissão de salários [...] A exemplo do que ocorreu na Mercedes Benz do Brasil no mês passado, trabalhadores da Ford do

Brasil formaram comissões para discutir salário com a gerência industrial da empresa. (E-B-94-Jn-005)

3. Indefinição do agente: o Ator é representado por SNs lexicais, cujos referentes, na maioria das vezes, são organizações social e legalmente instituídas. Nesse tipo de construção, o real sujeito agentivo é colocado em um plano secundário na comunicação. No exemplo a seguir, a expressão referencial Congresso, representativa das funções de Ator e de Sujeito, resguarda a identidade dos deputados e senadores responsáveis pela rejeição das eleições diretas para a presidência da república. A ação de rejeição é atribuída, de forma genérica, ao órgão governamental.

[16] CONGRESSO REJEITA DIRETAS Ao final de mais de 60 discursos, numa das mais longas (16 horas) e tensas sessões de sua história, o

Congresso Nacional rejeitou as primeiras horas de hoje, por não ter alcançado quorum constitucional, a emenda Dante de Oliveira que previa eleições diretas já para a Presidência da República. (E-B-94-Jn-015)

4. Ocultação do agente: apesar de as funções de Ator e de Sujeito estarem explicitamente marcadas nesse tipo de representação, não é possível identificar o agente da ação verbal. Nota-se a intencionalidade de não identificar, expor ou comprometer o agente do Processo de mudança. Como exemplo desse tipo de ocorrência, citamos o texto [17], em que o sintagma nominal Passagem de ônibus preenche as funções semântica e sintática de Ator e de Sujeito, porém, é parte de uma estratégia discursiva, cujo objetivo é a indeterminação referencial dos instigadores da ação representada pelo verbo subir.

[17] Passagem de ônibus sobe 50% no Rio A partir de zero hora de hoje, as passagens de ônibus de empresas particulares passam a custar 50% mais

caro. (E-B-94-Jn-017)

Tendo em vista essas especificidades, percebemos que, se nas codificações indefinidas a entidade instigadora do Processo é apontada de forma mais pluralizada e imprecisa, na ocultação, a entidade instigadora é plenamente apagada, não podendo, de forma alguma, ser identificada nos limites da notícia jornalística.

4 O termo espécie está sendo usado no sentido de “grupos de entidades definidas culturalmente mediante alguma propriedade comum” (MÜLLER, 2003).

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5. Tematização: nesse tipo de estrutura, as funções de Ator, de Sujeito e de Tema são compiladas em SNs não agentivos. Todavia, como a entidade instigadora do Processo Material pode ser recuperada no ambiente textual (diferentemente daquilo que acontece nas codificações mencionadas no item Ocultação do agente), esses SNs funcionam exclusivamente como a informação mais relevante da cláusula e, ainda, como o ponto de partida para a mensagem a ser veiculada nela. A utilização de tais estruturas é exemplificada a seguir:

[18] Carta entra em vigor hoje Depois de exatos 8.955 dias de incertezas institucionais a contar do dia 31 de março de 1964, o

Brasil inaugura hoje uma nova era. Por volta das 15h, na Tribuna do Congresso Nacional, perante o presidente José Sarney, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Rafaell Mayer, deputados, senadores, governadores e representantes de 30 países, o presidente da Assembléia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, dirá: “Declaro promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil.”

A nova Constituição entrará imediatamente em vigor. A partir desse momento, por exemplo, ninguém poderá ser preso a não ser em flagrante ou com expressa ordem judicial, nem um empregado poderá ser demitido sem receber multa no valor de 40% do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Uma risada dissolveu as últimas dúvidas a respeito da entrada em vigor da Carta - única reação do presidente do Supremo Tribunal Federal quando lhe perguntaram se não seria preciso esperar a publicação pelo Diário Oficial. (E-B-94-Jn-019)

[19] REFORMA DE COLLOR FAZ TERREMOTO NA ECONOMIA Em seu primeiro dia de governo, o presidente Fernando Collor de Mello colocou em funcionamento,

ontem, o mais amplo, radical e audacioso plano econômico já experimentado no Brasil, cujo elemento mais explosivo é um bloqueio em contas correntes, cadernetas de poupança, over-night e demais aplicações financeiras que configura um virtual confisco de extensa parcela do dinheiro em poder das pessoas e das empresas. “Não temos alternativas”, disse Collor, durante a reunião em que, presentes seus ministros e líderes partidários, anunciou as linhas gerais do plano, às 7h da manhã. “O Brasil não aceita mais derrotas. Agora é vencer ou vencer. Que Deus nos ajude.” (E-B-94-Jn-022)

Nas notícias supracitadas, o enunciador institui os sintagmas lexicais Uma risada e Reforma de Collor como Ator, Sujeito e Tema das cláusulas Uma risada dissolveu as últimas dúvidas a respeito da entrada em vigor da Carta e Reforma de Collor faz terremoto na economia. Nesses contextos discursivos, no entanto, as entidades humanas responsáveis pelas ações podem ser identificadas no próprio texto, por meio, por exemplo, do aposto única reação do presidente do Supremo Tribunal Federal [Rafaell Mayer] e da locução adjetiva de Collor. As cláusulas em destaque poderiam, portanto, ser parafraseadas das seguintes formas:

[18.1] O presidente do Supremo Tribunal Federal, Rafaell Mayer, dissolveu as últimas dúvidas a respeito da entrada em vigor da Carta com uma risada.

[19.1] Collor faz terremoto na economia por meio de reforma econômica.

A tabela a seguir mostra o percentual de ocorrência dos objetivos pragmático-discursivos encontrados nas notícias jornalísticas analisadas:

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Tabela 1 Percentual de ocorrência dos objetivos pragmático-discursivos nas notícias jornalísticas.

Objetivos pragmático-discursivos Quantidade Percentual

Individualização 40 31%

Indefinição 29 22%

Ocultação 24 19%

Tematização 19 14%

Generalidade 19 14%

Total 131 100%

Como podemos ver na Tabela 1, as cláusulas com Ator e Sujeito codificados por um SN individualizado foram as mais frequentes. Acerca dessas ocorrências, destacamos o fato de as notícias com temas policiais terem sido o ambiente mais propício, em termos percentuais, para a ocorrência de um Ator individualizado. Apesar de as notícias com tema político terem sido, de longe, as mais frequentes (61%/19), 40%/16 das individualizações foram encontradas em notícias com tema policial – que representaram apenas 19%/6 do total dos assuntos abordados. Essa configuração pode ser motivada pelo critério de personalização, ou seja, de valorização dos indivíduos envolvidos no ato de infração.

Ao correlacionarmos os critérios forma de expressão do significado e objetivos pragmático-discursivos, foi possível constatar que, se a maioria das formas mais congruentes de expressão do significado codifica um Ator individualizado, ou seja, se nesse tipo de estrutura expõe-se o indivíduo responsável pela ação, o inverso ocorre com as expressões metonímicas e metafóricas. A análise sistemática dos dados pressupõe que a metonímia e a metáfora da transitividade, no contexto discursivo em questão, se revelam como recursos muito importantes para os casos em que o que se deseja é a omissão do real agente dos eventos narrados. O uso mais frequente das expressões metafóricas com fins de ocultação do agente corrobora essa proposição. Na Tabela 2, a seguir, são fornecidas as informações quantitativas dessas ocorrências em nosso corpus:

Tabela 2 Percentual de ocorrência dos objetivos pragmático-discursivos e das formas de expressão dos significados nas notícias jornalísticas.

Objetivos pragmático-discursivos

Forma Congruente

Forma Metafórica

Forma Metonímica

Individualização 31%/40 - -

Ocultação - 19%/24 -

Indefinição 0,5%/1 4%/5 17%/23

Tematização - 14%/19 -

Generalidade 14/11% 1/0,5% 4/3%

Total 131/100%

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No contexto das notícias jornalísticas analisadas, portanto, as três diferentes formas de expressão do significado cumprem funções pragmático-discursivas bastante específicas, quais sejam:

(i) nas construções mais congruentes, os Participantes envolvidos na cena discursiva tendem a ser plenamente identificados, por meio de SNs com nome próprio (individualização). O objetivo principal desse tipo de estrutura é fornecer ao leitor informações mais precisas acerca de quem fez o quê, (a quem), quando, onde e como, como no exemplo a seguir, construído com o verbo descer:

[20] Em seguida, o General [Newton Cruz] desceu de seu gabinete, bastão de comando em punho, apreendeu cerca de 100 automóveis e sete ônibus. Um dos carros teve os pneus furados a bala. (B-94-Jn-015)

(ii)As formas metafóricas (Metáfora da Transitividade) tendem a veicular a noção de mudança auto causada, ou seja, apesar de o Processo ser provocado por um agente externo a ele, essa entidade agentiva não é identificada – seja no domínio da cláusula ou, de forma mais ampla, no domínio do texto. Nas notícias jornalísticas, essas formas de expressão exercem as importantes funções de enfatizar o elemento da narrativa considerado como o mais importante e ocultar o real responsável pelas mudanças efetuadas, sem que, no entanto, seja gerada uma proposição incompleta. A cláusula a seguir, construída com o verbo crescer, exemplifica esse tipo de ocorrência:

[21] A Presidência da República cresceu, com a criação das secretarias de Administração Federal, Assuntos Estratégicos, Ciência e Tecnologia, Cultura, Meio Ambiente, Desenvolvimento Regional e Desportos. (E-B-94-Jn-022)

(iii) As formas metonímicas, por sua vez, cumprem a função de codificar ações veiculadas às esferas sociais e públicas. Por meio da metonímia, os fazeres são atribuídos, por exemplo, a instituições financeiras, jurídicas, sociais e políticas, em detrimento de seus representantes legais ou responsáveis. Nesses contextos discursivos, conforme exemplo repetido a seguir, as instituições ocupam papel mais relevante que seus dirigentes específicos.

[22] O Banco Central vai fixar uma nova taxa de câmbio, que se manterá fixa até que o governo entenda ser conveniente outro reajuste. (E-B-94-Jn-016)

4. SUGESTÕES DE ATIVIDADESApesar de termos consciência de que a perspectiva de transitividade adotada neste trabalho se distancia do

conceito tradicionalmente adotado pelos manuais de gramática e pelos livros didáticos (que, conforme dissemos, se pauta na noção de (in)completude verbal), entendemos que o presente artigo aponta alternativas para uma abordagem dos fenômenos gramaticais atrelada às funções cognitivas, semânticas, pragmáticas e discursivas das estruturas linguísticas.

Para que as discussões suscitadas aqui ultrapassem o caráter puramente acadêmico e, dessa forma, ganhem um viés operacional, são apresentadas, a seguir, propostas de atividades, organizadas de forma a fixar e ampliar os resultados e as discussões.5

5 Exercícios e sugestão de respostas elaborados por Gesieny Laurett Neves Damasceno, Violeta Virginia Rodrigues, Heloise Vasconcellos Gomes Thompson e Adriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann.

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A notícia é um gênero textual que tem como objetivo principal relatar, de forma objetiva, um fato real. A seguir, apresentam-se duas notícias publicadas entre os anos de 1975 e 2000. Leia-as com atenção e responda as questões propostas.

Notícia 1:

APOGEU E DECADÊNCIA

Fifa consagra Ronaldinho; polícia caça Reinaldo

O futebol brasileiro viveu ontem um dia de contrastes. Em Lisboa, Ronaldinho foi escolhido pela Fifa como o melhor jogador do mundo em 1996 e posou com o troféu (foto) ao lado do inglês Alan Shearer, terceiro colocado na votação de 120 técnicos de todo o mundo.

Em Belo Horizonte, a tragédia de um dos principais jogadores brasileiros do final da década de 70 e início dos anos 80. Reinaldo, ídolo do Atlético Mineiro, está foragido, depois de ter sido condenado a quatro anos de prisão por tráfico de drogas. (Corpus VARPORT E-B-94-Jn-025)

1. As notícias apresentam, em sua maioria, importantes mecanismos textuais para ajudar a construir a estrutura temática, como as manchetes e o lide, que exprimem as informações consideradas mais importantes do texto. A partir da manchete e da primeira sentença (lide), o leitor é capaz de sumarizar o sentido global da notícia. Com isso em mente, responda:

a) Quais são os principais fatos relatados na notícia 1?

b) Quais são os Participantes envolvidos nesses fatos?

c) Quem realizou as principais ações descritas na notícia?

2. A notícia 1 apresenta a oposição de ações realizadas por jogadores brasileiros na manchete e no corpo do texto. Identifique e transcreva o trecho que ilustra a simultaneidade dos atos.

3. Observe os verbos destacados no lide da notícia:

Fifa consagra Ronaldinho; polícia caça Reinaldo.

a) De acordo com o contexto da notícia 1, qual é o propósito comunicativo do uso desses dois verbos?

b) Como a seleção dos verbos se relaciona com os efeitos discursivos pretendidos na notícia em questão?

4. Releia o trecho a seguir e responda:

Reinaldo, ídolo do Atlético Mineiro, está foragido, depois de ter sido condenado a quatro anos de prisão por tráfico de drogas.

a) Qual é a função sintática do sintagma “Reinaldo, ídolo do Atlético Mineiro”?

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Sistema de transitividade: as diferentes formas de expressão do significado e seus objetivos pragmático-discursivos Gesieny Laurett Neves Damasceno

b) No contexto em questão, para que se fez necessária a expressão “ídolo do Atlético Mineiro”?

c) Compare o uso das formas “Reinaldo” e “ídolo do Atlético Mineiro”. Qual dessas formas é mais específica? E qual é mais genérica?

d) Quais efeitos de sentido essas diferentes escolhas geram no texto?

Notícia 2

Prefeitura culpa hábito de urinar nas pilastras pela deterioração dos viadutos

O hábito de urinar nas pilastras é uma das causas da deterioração dos viadutos da cidade, porque a urina provoca a oxidação dos ferros, segundo explicou o diretor da Divisão de Conservação da Secretaria Municipal de Obras, Joberto Pimentel. Há ainda o aumento excessivo do tráfego, problema que também afeta as pontes que sofrem, inclusive, os efeitos da água poluída.

A Prefeitura já recuperou os viadutos de Ana Néri e três pontes nas Avenidas Francisco Bicalho e Rodrigues Alves. Agora está terminando as obras dos viadutos de Realengo, Bento Ribeiro, Magalhães Bastos, Engenheiro Leal, Del Castilho e Deodoro. Até o final do ano vai recuperar a antiga Ponte dos Marinheiros, o Trevo dos Estudantes e uma ponte na rua Francisco Eugênio, e executar laudos técnicos de oito viadutos. (Corpus VARPORT - E-B-94-Jn-010)

5. Na notícia jornalística 2, ocorre a apresentação de um problema desconhecido por muitos brasileiros.

a) Qual é o problema apontado?

b) O que a Prefeitura fez acerca desse problema? Que verbo foi usado para indicar essa ação?

6. Releia o 2º parágrafo do texto. Sobre a intervenção da Prefeitura, responda:

a) Qual foi o resultado da ação tomada pela Prefeitura?

b) Na oração “A Prefeitura já recuperou os viadutos de Ana Néri e três pontes nas Avenidas Francisco Bicalho e Rodrigues Alves”, qual é a função sintática exercida pelo vocábulo Prefeitura?

c) A Prefeitura é apresentada como Agente da transformação na sociedade. No entanto, é sabido que essa entidade, verdadeiramente, não realiza uma ação, já que não apresenta as propriedades semânticas próprias de um Participante mais agentivo. Qual processo cognitivo foi empregado para atribuir tal característica a essa entidade conceitual?

7. O substantivo Prefeitura permite ao jornalista omitir o nome dos responsáveis pelas ações descritas ao longo da notícia.

a) Que efeito de sentido essa opção provoca no leitor?

b) Como esse recurso auxilia na construção do texto?

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Sistema de transitividade: as diferentes formas de expressão do significado e seus objetivos pragmático-discursivos Gesieny Laurett Neves Damasceno

8. A notícia 2 apresenta ideias pouco conhecidas pela maior parte da população. Que recurso textual é utilizado para garantir veracidade ao fato relatado?

9. Ao se compararem as duas notícias, percebe-se que os fatos foram relatados de forma bastante peculiar. Analise-os e faça o que se pede nas questões seguintes.

a) Complete o quadro com base no que você leu nas notícias jornalísticas 1 e 2:

NOTÍCIA 1

Fato principal relatado

Agentes das ações principais

NOTÍCIA 2

Fato principal relatado

Agente da ação principal

b) Observe, atentamente, as informações preenchidas no quadro do item (a). Descreva a forma como os Agentes das ações expressas nas notícias 1 e 2 foram representados nos contextos discursivos em questão. Indique os objetivos discursivos dessas representações (se individualização, ocultação ou indefinição dos responsáveis pelas ações).

c) Você acha que o uso do nome da instituição ou do nome do lugar pela instituição confere menos ou mais autoridade aos que realizam as ações? Justifique sua resposta.

Sugestão de respostas

1. a) Espera-se que o aluno aponte a contrariedade entre a consagração de um jogador (Ronaldinho Gaúcho) e a perseguição policial a outro jogador (Reinaldo).

b) Os jogadores, Ronaldinho e Reinaldo; a Fifa e a polícia.

c) Duas instituições: a Fifa e a polícia.

2. O futebol brasileiro viveu ontem um dia de contrastes.

3. a) O propósito comunicativo é demonstrar a oposição das ações de consagrar e de caçar.

b) A seleção dos verbos enfatiza o paradoxo apresentado na notícia na medida em que o verbo consagrar denota uma ação de reconhecimento, positiva, enquanto o verbo caçar denota uma ação negativa.

4. a) “Reinaldo, ídolo do Atlético Mineiro” funciona sintaticamente como sujeito.

b) A expressão é empregada para descrever / especificar o substantivo Reinaldo.

c) O substantivo próprio identifica nominalmente o jogador e o aposto o especifica ainda mais, já que o individualiza/caracteriza como “ídolo” no grupo de jogadores do time.

d) Essas diferentes escolhas acentuam a contrariedade das ações. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que o jogador é concebido como ídolo, esse também é considerado um foragido da justiça. Ou o paradoxo do passado glorioso do jogador e o momento presente em que é procurado pela polícia.

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Sistema de transitividade: as diferentes formas de expressão do significado e seus objetivos pragmático-discursivos Gesieny Laurett Neves Damasceno

5. a) A deterioração dos viadutos em virtude, dentre outras coisas, do hábito de urinar nas pilastras.

b) A Prefeitura já recuperou os viadutos de Ana Néri e três pontes nas Avenidas Francisco Bicalho e Rodrigues Alves, mas ressalta que a culpa é também dos cidadãos. O verbo empregado é recuperar.

6. a) O resultado consiste em uma recuperação progressiva dos viadutos da cidade.

b) Núcleo do sujeito.

c) O processo cognitivo empregado foi a substituição do nome dos reais agentes da ação expressa pelo nome da instituição: processo metonímico (Instituição pelos Responsáveis).

7. a) Neste caso, a simples menção dos nomes dos indivíduos que efetivamente realizaram a ação de recuperar alguns viadutos não gera o mesmo impacto discursivo que a menção do órgão responsável por esse tipo de procedimento. Assim, a substituição dos nomes dos indivíduos pelo nome da instituição atribui um papel mais relevante ao órgão governamental.

b) Esse recurso fornece mais credibilidade e objetividade à descrição dos fatos, evitando interpretações com julgamentos acerca de pessoas específicas e deixando essa responsabilidade a cargo da entidade “Prefeitura”, que pode ser representada por pessoas diversas.

8. O uso da citação por meio da fala de um especialista, no caso o diretor da Divisão de Conservação da Secretaria Municipal de Obras, Joberto Pimentel.

9. a)

Notícia 1

Fato: O paradoxo futebolístico – a consagração do jogador Ronaldinho e a condenação do jogador Reinaldo. Agentes: A Fifa e a Polícia.

Notícia 2

Fato: A recuperação de viadutos após deterioração acarretada pela urina de pessoas.Agente: Prefeitura.

b) Os agentes foram apresentados como instituições personificadas nas manchetes das matérias, a fim de chamar atenção para o que foi noticiado. Nos dois casos, os reais agentes das ações expressas são omitidos e a substituição dos responsáveis pela instituição objetiva atribuir maior relevância discursiva às instituições, em detrimento de seus representantes legais.

c) Resposta pessoal. Espera-se que o aluno perceba que o emprego do nome das instituições citadas nas notícias (Fifa, Polícia e Prefeitura) indica que os agentes das ações estavam devidamente imbuídos de autoridade para exercê-las, o que confere a eles maior credibilidade. Isso não seria possível caso se fizesse uso dos nomes próprios dos indivíduos que efetivamente realizaram a ação.

5. PALAVRAS FINAISPara além da categórica dicotomia verbos transitivos versus verbos intransitivos, amplamente divulgada pelos

manuais de gramática normativa e pelos livros didáticos, este estudo propôs-se a analisar a transitividade sob

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Sistema de transitividade: as diferentes formas de expressão do significado e seus objetivos pragmático-discursivos Gesieny Laurett Neves Damasceno

a perspectiva da construção dos sentidos dos textos, buscando descrever a forma como o locutor engendra a mensagem segundo suas intenções comunicativas.

Os resultados divulgados neste trabalho endossam a tendência dos estudos linguísticos de analisar as configurações clausais sob a ótica dos propósitos comunicativos envolvidos nos atos de comunicação e interação. Ao descrever a língua em seu uso efetivo, buscamos nos distanciar dos exemplos minuciosamente elaborados pelos manuais prescritivos e, como consequência, colocarmos como centro de nossas análises as diferentes configurações das estruturas oracionais em função de propósitos sócio comunicativos bem definidos.

Ao correlacionarmos o modo como os componentes do Sistema de Transitividade são articulados pelos autores das notícias às funções que esses arranjos desempenham nesse contexto particular de interação, procuramos atrelar o estudo da forma às intenções sócio interativas dos gêneros discursivos – em especial, das notícias jornalísticas –, conforme preveem os estudos de cunho funcionalista.

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Multifuncionalidade de onde: uma abordagem teórica e prática

Gustavo Benevenuti Machado1

1 Doutorando em Letras Vernáculas, área de concentração: Língua Portuguesa, pela Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.

RESUMOO item onde é apresentado nos dicionários de língua portuguesa como advérbio locativo ou como pronome indicativo de lugar equivalente a em que. Nas gramáticas normativas, no que se refere à articulação de orações, o item pode introduzir orações subordinadas adjetivas, desde que se refira a um antecedente nominal locativo. Entretanto, há casos em que onde aparece sem antecedente expresso, o que gera divergências de análise a depender da gramática consultada. Em contextos reais de interação comunicativa, onde parece assumir funções diferentes daquelas que propõe a tradição gramatical. Nesse artigo, com base no que propõe Machado (2017), partimos da hipótese de que onde é tão multifuncional quanto o conector que em língua portuguesa, levando em conta situações reais de interação. Assim, onde funciona como introdutor de oração adjetiva (veiculando outros conteúdos semânticos, além do locativo), substantiva e adverbial. Os dados analisados provêm do corpus roteiro de cinema, corpus misto, por apresentar tanto características da fala, quanto da escrita. Foram analisados, para esta investigação, 20 roteiros e encontrados 388 dados de onde como articulador de cláusulas completivas, cláusulas relativas e cláusulas hipotáticas. Além da descrição desses usos, pensou-se em uma proposta de aplicação ao ensino, em que foram desenvolvidos alguns exercícios, a fim de tentar aplicar a teoria à prática.

Palavras-chave: onde; multifuncionalidade; Funcionalismo.

ABSTRACTThe word onde is presented in Portuguese Language dictionaries as a locative adverb or as a locative pronoun corresponding to em que. In traditional grammars, when it comes to clause combining, such word may introduce adjective subordinate clauses as long as it refers to a locative antecedent noun. However, there are cases in which onde appears without any expressed antecedent, which creates analysis disagreements depending on the grammar that we consult. In real communication contexts of interaction, onde seems to admit functions that are different from those proposed by traditional grammars. In this article, based on the propositions made by Machado (2017), we assume the hipothesis that onde is as multifunctional as que, a connector in Portuguese Language that admits many funtions in real situations of interaction. Thus, onde functions as an introducing item in adjective clauses (presenting other semantic contents besides the locative one), noun clauses and adverbial clauses. We analyzed data from film scripts since such texts reveal oral and writing characteristics. Twenty film scripts were analyzed in this investigation and we found 388 cases of onde as combining element of complement clauses, relative clauses and hypotactic clauses. In addition to this, trying to associate theory and practice, we propose some exercises to be used in Portuguese Language classrooms.

Keywords: onde; multifunctionality; Functionalism.

INTRODUÇÃOEm dados sincrônicos da língua portuguesa, tanto na oralidade quanto na escrita, é possível encontrarmos

usos do conector onde funcionando como articulador de diferentes orações (substantivas, adjetivas e adverbiais),

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Multifuncionalidade de onde: uma abordagem teórica e prática Gustavo Benevenuti Machado

apresentando outros conteúdos semânticos, além do locativo, tradicionalmente descrito como pronome relativo. No entanto, alguns desses usos ainda não estão em conformidade com o uso considerado padrão (pronome relativo, em retomada locativa) e, por isso, não são contemplados pela maioria das gramáticas normativas (cf. Bechara, 2009 e Cunha & Cintra, 2008, por exemplo). Este artigo visa, então, a descrever parte desses usos (considerados padrão ou não).

Embora a multifuncionalidade do conector onde já tenha sido objeto de pesquisa em alguns trabalhos, compreendemos que este tema não parece estar esgotado, principalmente, se levarmos em consideração alguns aspectos teórico-metodológicos. Estudos como os de Braga e Manfili (2004) e Manfili (2007) investigam, dentre outras coisas, a remissão anafórica do item em contextos não locativos e locativos em textos jornalísticos, sob a perspectiva da sociolinguística. Em Silva (2008), encontramos uma análise diacrônica e quantitativa, em que a autora traça a trajetória de gramaticalização desse conector. Tais pesquisas já demonstram a complexidade de usos que envolvem o conector onde. No entanto, apesar dos trabalhos mencionados apresentarem uma descrição bastante relevante sobre o item em análise, a investigação de Machado (2017) se difere das demais pelo (i) aporte teórico-metodológico utilizado, (ii) pelo corpus analisado e (iii) pelos usos de onde descritos na atual sincronia.

Em análises iniciais, Machado (2011 a 20131) investigou dados recentes da língua portuguesa no corpus roteiro de cinema, gênero considerado misto, isto é, gênero prototipicamente escrito, porém, com intenção de reproduzir a fala em determinados contextos/sequências, o que permitiu ao autor traçar um continuum dos usos de onde, com base em contextos mais próximos à fala e em contextos mais próximos da escrita. No corpus supracitado, encontram-se usos de onde como articulador em diferentes contextos oracionais, podendo este, inclusive, veicular outros valores semânticos, além do prototípico locativo, como atestam os dados que se seguem.

(1) Vários bombeiros e motoristas estão ali, em silêncio, aguardando uma emergência. Som de pernilongo no ar. Um dos bombeiros caminha em direção ao portão, onde apoia-se e acende um cigarro, quando, de repente, o silêncio é interrompido pelo SOM DO TELEFONE, que toca. Bombeiro-chefe atende o telefone. (É proibido fumar)

(2) Daniel chega na escola, para a bicicleta, desce, vê Mim encostada numa coluna, na entrada da escola, entre um bando de outros COLEGAS que vão chegando. Daniel dá as costas para ela, fica botando a tranca na sua bicicleta. Daniel dá um tempo, respira fundo. Então se vira para onde Mim estava. Mas ela já foi. (Antes que o mundo acabe)

(3) Eu não tenho pra onde ir, Baby. Eu não tenho pra onde ir... Max pega na mão de Baby e beija. (É proibido fumar)

A partir da leitura dos dados anteriores, retirados do corpus roteiro de cinema, encontram-se casos de onde introduzindo, para usar os rótulos tradicionais, (i) oração adjetiva, (ii) oração adverbial e (iii) oração substantiva, respectivamente.

Em (1), há o uso considerado padrão pela tradição gramatical, isto é, aquele em que a oração introduzida por onde retoma o antecedente nominal locativo antes expresso “portão”. No entanto, observamos que, em seu uso

1 Trabalho de iniciação científica inserido e desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa Uso(s) de conjunções e combinação hipotática de cláusulas. Já o tema desse artigo se insere no âmbito do projeto de pesquisa Cláusulas Hipotáticas: interface sintaxe & prosódia. Ambos os projetos supracitados são coordenados pela Profª. Drª. Violeta Virginia Rodrigues.

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Multifuncionalidade de onde: uma abordagem teórica e prática Gustavo Benevenuti Machado

como pronome relativo, onde pode veicular outros valores semânticos, além do de lugar. Já em (2), encontramos o uso de onde como um introdutor de oração adverbial. Isso porque, além de apresentar conteúdo circunstancial, característica desse tipo de oração, também não apresenta o antecedente nominal expresso, além de a oração por ele iniciada apresentar mobilidade posicional. No exemplo (3), no entanto, encontramos o uso de onde como um introdutor de oração substantiva, isto é, seu funcionamento como uma conjunção integrante, estágio de maior esvaziamento semântico do item. É nesse contexto que a oração introduzida por onde [para onde ir] parece se encaixar sintaticamente ao sintagma verbal da oração principal [Eu não tenho]. No que se refere a esse dado, por exemplo, cabe destacar que a leitura como uma conjunção subordinativa, isto é, como um introdutor de oração adverbial também é possível pelos mesmos critérios verificados em (2). Mais adiante trataremos dados desse tipo como constituindo um contexto sintaticamente intermediário, por apresentar duas possibilidades de funcionamento sintático.

Levando-se em consideração os dados supracitados, apesar de amplamente usados pelo falante da língua portuguesa, em contextos mais ou menos formais, ainda não são contemplados pela tradição gramatical. O trabalho de Machado (2017) tem o intuito de demonstrar que esses usos já fazem parte de uma gramática “brasileira”, isto é, os usos de onde fazem parte da gramática internalizada do falante no português brasileiro. Assim, o autor tem por objetivo descrever parte desses usos de onde em contextos oracionais diversos, tais como (i) orações adjetivas (funcionando como pronome relativo, conforme prevê a tradição gramatical, podendo, no entanto, manifestar outros valores semânticos, além do locativo), (ii) orações substantivas (funcionando, nesse contexto, como uma conjunção integrante, já que introduziria uma oração com maior vínculo de encaixamento em relação ao sintagma verbal da oração principal) e (iii) orações adverbiais (funcionando como uma conjunção subordinativa, apresentando, além da leitura circunstancial, maior mobilidade no período, sem retomar um antecedente nominal). Além desses usos, o autor descreveu ainda os usos desgarrados de onde. No entanto, neste artigo, analisamos somente a multifuncionalidade do item, não abordando, portanto, seus usos em desgarramento.

1. ONDE: PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOSApós essa breve apresentação sobre os usos de onde, pode-se dizer que nos interessamos um pouco mais sobre

alguns aspectos que envolvem os seus usos e sobre a análise ainda, de certo modo, limitada a respeito dos usos reais desse item em contexto oracional. Assim, o presente artigo se justifica, já que tem como objetivo descrever os usos de onde em situações de interação comunicativa por meio de dados coletados em roteiros cinematográficos. Para esta análise, utilizamos, como aporte teórico, o funcionalismo, que visa a contemplar as funções discursivas em âmbito textual e interacional, privilegiando os contextos reais de interação. Nesse sentido, Neves (1997) aponta que considerar o estudo linguístico sob a ótica da gramática funcional é reconhecer a capacidade do indivíduo de codificar, refletir e empregar expressões de forma satisfatória. Sendo assim, a adoção da teoria funcionalista, neste estudo, justifica a escolha do corpus utilizado, bem como a análise dos dados, a partir das intenções comunicativas delimitadas pela contextualização.

Partindo-se, portanto, da premissa de que onde já passou por processo de gramaticalização, pretende-se agora verificar em qual estágio o item se encontra após se gramaticalizar. A hipótese é de que onde parece assumir os mesmos valores semânticos e os mesmos funcionamentos sintáticos que o conectivo universal que. Nesse sentido, onde seria, pois, tão multifuncional quanto o que, podendo ser considerado também um conectivo universal.

No que se refere aos dados analisados, todos foram extraídos de 20 (vinte) roteiros de cinema, totalizando 388 orações introduzidas por onde, como mostra o quadro 1 a seguir.

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Multifuncionalidade de onde: uma abordagem teórica e prática Gustavo Benevenuti Machado

Quadro 1 número de ocorrências de onde por roteiro analisado

RoteirosAnalisados

Ano de Publicação

Número de Dados

Feliz ano velho 1982 59

Dores e amores 1999 17

Tolerância 2000 15

O circo das qualidades humanas 2000 13

Memórias Póstumas 2001 21

A selva 2002 21

O homem que copiava 2003 09

Jogo subterrâneo 2005 41

Quanto vale ou é por quilo? 2005 28

Se eu fosse você 2006 05

Zuzu Angel 2006 13

Não por acaso 2007 17

Os 12 trabalhos 2007 22

3 Efes 2007 02

Fim da linha 2008 18

É proibido fumar 2009 14

Antes que o mundo acabe 2009 19

Carro de Paulista 2009 16

Olhos Azuis 2010 32

As melhores coisas do mundo 2010 06

TOTAL: 388

Embora não tenha sido nosso objetivo, se compararmos os dados de onde nos roteiros mais antigos em relação aos mais atuais, uma significativa diferença é percebida, já que foi no roteiro Feliz Ano Velho (1982) em que se observou o maior número de ocorrências de onde introduzindo orações diversas. No entanto, essa constatação precisa ser relativizada, uma vez que não nos preocupamos em organizar os roteiros por épocas diferentes, isto é, esse não foi um critério para a escolha dos roteiros a serem analisados. Essa escolha se deu, tão somente, pela ordem em que os roteiros estavam disponíveis no site (http://www.roteirodecinema.com.br/roteiros/longas.htm), ou seja, em ordem cronológica. Além disso, buscou-se privilegiar os roteiros mais próximos da atualidade.

1.1. O FuncionalismoPara esta pesquisa, utilizamos os pressupostos teóricos funcionalistas, que consideram a linguagem em seu uso

real, servindo à função comunicativo-interacional, ou seja, visando, dentre outras coisas, a relação gramatical das

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Multifuncionalidade de onde: uma abordagem teórica e prática Gustavo Benevenuti Machado

línguas e seus contextos de interação, valorizando o uso que o falante faz dessas estruturas. Por isso, Neves (1997) explicita que, ao se afirmar que a gramática funcional considera a competência comunicativa, significa dizer que o que ela considera é a capacidade que os indivíduos têm não apenas de codificar e decodificar expressões, mas também de interpretá-las de forma interacionalmente satisfatória. Neves (1997) aponta ainda que se entende por gramática funcional a organização gramatical das línguas naturais, que procura integrar-se em uma teoria global da interação social. Trata-se, portanto, de uma teoria que considera que as relações entre as unidades e as funções das unidades têm prioridade sobre seus limites e sobre sua posição. A teoria funcionalista entende, então, a gramática como acessível às pressões do uso. Ainda com base nesta perspectiva, Dik (1989) aponta que, em um paradigma funcional, a língua é concebida como um instrumento de interação social entre os seres humanos, usada com o objetivo principal de estabelecer relações comunicativas entre os usuários. Esta teoria preza, então, pelo estudo das estruturas linguísticas dentro de seu contexto de uso, reforçando a tese de que discurso e gramática interferem um no outro.

Nesse sentido, para os funcionalistas, a gramática de uma dada língua é formada não só a partir de pressões internas a seu sistema, mas também de pressões externas a ele. Sendo assim, a gramática é concebida como um sistema adaptativo, que está em constante reformulação por meio dos usos que os falantes fazem da língua em situações comunicativas reais.

Sabendo que a língua é um organismo vivo e se encontra em constante reformulação, podemos entender melhor o surgimento de novas estruturas linguísticas a partir de uma visão funcionalista da língua. O surgimento de estruturas novas em um sistema linguístico não envolve elementos completamente novos, muito pelo contrário, envolve elementos gramaticais já disponíveis no sistema, porém, com funcionalidades diferenciadas. Desse modo, parece ser recurso recorrente nas línguas o uso de estruturas “velhas” com novas finalidades. Não é rara, portanto, a utilização de itens e construções lexicais com finalidades mais gramaticais. Esse processo é conhecido por gramaticalização.

No que se refere à gramaticalização, Meillet (1948 [1912]) define esse processo como uma mudança de categoria, em que uma palavra autônoma passa a ter um caráter mais gramatical. Para o autor, essa mudança está associada a um esvaziamento semântico e formal, em consequência da frequência de uso de determinadas formas.

1.2. A proposta de análise funcionalistaDe acordo com o que propõe a tradição gramatical, no que tange ao tratamento das orações complexas (ou o

período composto, para se utilizar os rótulos tradicionais), Carvalho (2004) afirma que a ausência de consistência teórica na formulação desses conceitos é que tem motivado diversas investigações na área. Isso porque essa inconsistência surge em decorrência do fato de a tradição considerar somente os processos sintáticos da coordenação e da subordinação para tratar das possibilidades de articulação de orações diversas.

É por isso, então, que recorremos aos estudos funcionalistas sobre articulação de cláusulas, por compreender serem eles os que melhor se adéquam às nossas necessidades. Para isso, analisamos nossos dados sob a perspectiva de Matthiessen e Thompson (1988), Hopper e Traugott (1993), Castilho (2010) entre outros. Isso porque esses teóricos têm se preocupado, em suas investigações, em postular outros procedimentos de organização sintática, além dos processos de coordenação – subordinação. A tríade subordinação – hipotaxe – parataxe, proposta por Matthiessen e Thompson (1988), evidencia essas novas formas de se pensar a articulação de cláusulas.

Além de rever a insuficiência na dicotomia coordenação – subordinação, adotando a tríade proposta por Matthiessen e Thompson (1988), em nossa descrição, para atender a uma análise funcionalista dos dados, adotamos alguns aspectos e nomenclaturas específicas dessa teoria. A noção de cláusula, por exemplo, para o funcionalismo, não é, necessariamente, sinônima de oração. Nessa corrente teórica, a noção de cláusula envolveria aspectos não só

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gramaticais, como propõe o rótulo tradicional, mas também aspectos discursivos. Decat (2011) afirma que o que importa não é classificar as cláusulas, mas reconhecer a capacidade que elas têm de se combinarem umas com as outras. Em nossos dados, no entanto, cláusula corresponde à oração.

Castilho (2010) afirma que a polarização coordenação/subordinação é bastante antiga na reflexão gramatical. Para o autor, esses dois procedimentos sintáticos representam expansões de uma sentença simples. Nesse sentido, na coordenação a função do elemento acrescentado é idêntica à função dos elementos preexistentes; na subordinação, os elementos subordinados teriam natureza sintática distinta. Assim, a coordenação seria um procedimento combinatório sintático de termos equivalentes, ou seja, de um mesmo estatuto hierárquico. Contrário a isso, a subordinação seria um procedimento hierárquico do ponto de vista sintático. É por isso que, para Castilho (2010), as orações subordinadas podem ser focalizadas por clivagem, já que funcionam como constituintes integrados em sentenças hierarquicamente mais altas, ao passo que as orações coordenadas não possuem essa propriedade.

O linguista, seguindo a ideia de que essa dicotomia não é suficiente para analisar as diversas possibilidades de combinação de cláusulas em contextos reais de interação, afirma que, embora as subordinadas sejam tratadas como dependentes sintaticamente, os tipos de subordinadas (substantivas, adjetivas e adverbais) possuem propriedades sintáticas diferentes. Para ele, ao passo que as substantivas teriam caráter argumental, as adjetivas e as adverbiais apresentariam caráter adjuncional. Além disso, Castilho (2010), assim como Rodrigues (2007), compreendem a correlação como sendo um procedimento sintático diferente dos tradicionalmente descritos (a coordenação e a subordinação), isto é, para os autores, a correlação seria um terceiro tipo de relação intersentencial, cuja característica principal seria a interdependência sintática, relação materializada por meio de expressões correlatas. No entanto, no que se refere à justaposição, contrariamente ao que propõe Gonçalves (2017), a partir de análises sintática, pragmática e prosódica, Castilho (2010) não a considera como um procedimento sintático, mas, na verdade, como um artifício para justificar o procedimento sintático da coordenação. A coordenação, a correlação e a justaposição, no entanto, não serão levadas em consideração em nossas análises, já que o fenômeno em tela não ocorre em nenhum desses contextos. Focalizaremos, então, os procedimentos que envolvem os usos de onde, ou seja, a subordinação e a hipotaxe.

Nesse sentido, adotando a proposta funcionalista, a fim de associarmos os aspectos gramaticais aos aspectos discursivos, consideramos (i) cláusulas completivas/encaixadas; (ii) cláusulas relativas restritivas e (iii) cláusulas hipotáticas, para designar, respectivamente, o que tradicionalmente seria chamado de orações substantivas, orações adjetivas restritivas e orações adverbiais e adjetivas explicativas/apositivas, respectivamente (cf. quadro 2 a seguir).

Quadro 2 a proposta de análise funcionalista

Gramática Tradicional (GT) A Visão Funcionalista

Subordinadas Substantivas Cláusulas Completivas/encaixadas

Subordinadas Adjetivas Restritivas Cláusulas Relativas

Subordinadas Adjetivas ExplicativasSubordinadas Adverbiais Cláusulas Hipotáticas

Sobre o quadro 2, vale explicitar que, segundo o funcionalismo, a noção de subordinação não corresponde à visão tradicional. No âmbito funcionalista, subordinação pressupõe encaixamento, relação de constituência entre elementos. Por esse motivo, só podemos falar de subordinação, seguindo essa proposta, para o caso das completivas (substantivas da tradição) e relativas restritivas (adjetivas restritivas da tradição) – as primeiras encaixadas ao

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sintagma verbal (SV) e as segundas encaixadas ao sintagma nominal (SN). No caso da hipotaxe, uma cláusula não estabelece relação de constituência com outra, mas contribui para expandir/realçar seu conteúdo como acontece com as hipotáticas - adverbiais da tradição e as relativas apositivas (adjetivas explicativas da tradição). As paratáticas, além de não serem constituintes de outra cláusula, são sintaticamente independentes (cf. MATTHIESSEN e THOMPSON, 1988). A adoção da tríade subordinação, hipotaxe e parataxe permite que repensemos as relações entre as orações no âmbito da tradição gramatical, conforme visualizado no continuum a seguir:

Continuum 1 a tríade proposta por Hopper e Traugott (1993, p. 171)

As estruturas de parataxe são, então, caracterizadas, como se pode atestar no continuum 1, como estruturas sem vínculo sintático e sem encaixamento entre as cláusulas. Já as estruturas de hipotaxe e subordinação apresentam um ponto em comum: a noção de dependência. No entanto, diferenciam-se em relação ao encaixamento. Isso porque as estruturas de hipotaxe, contrapondo-se às de subordinação, não apresentam níveis de encaixamento.

Halliday (1985) analisa as orações complexas segundo duas dimensões: relações semântico-funcionais e relações de dependência. Matthiessen e Thompson (1988), recuperando a ideia de Halliday (1985), diferenciam as estruturas de hipotaxe (cláusulas hipotáticas e cláusulas relativas explicativas) das estruturas de parataxe (cláusulas coordenadas) por meio de dois tipos de relações semântico-funcionais: a projeção (parataxe) e a expansão/realce (hipotaxe). Ao diferenciar as estruturas de encaixamento, os autores levam em consideração o fato das cláusulas encaixadas (cláusulas completivas e cláusulas relativas restritivas) representarem cláusulas que funcionem como constituinte de outra, seja vinculada ao sintagma verbal (SV), no caso das cláusulas completivas, seja vinculada ao sintagma nominal (SN), no caso das cláusulas relativas restritivas. As estruturas de hipotaxe (ou adverbiais), por sua vez, não constituem subordinação, por estarem privadas do traço de encaixamento.

Em nossas análises, trataremos nossos dados conforme descrito a seguir:

Quadro 3 a proposta de divisão dos dados analisados2,3.

Eixo da Subordinação/ Encaixamento Eixo da Hipotaxe/Estruturas de Realce

Cláusulas Completivas Cláusulas Relativas Explicativas4

Cláusulas Relativas Restritivas Cláusulas Hipotáticas

2 A proposta de análise e organização dos dados analisados surgiu a partir da ideia de Matheus et al (2003). Além disso, é das mesmas autoras a justificativa para nossa interpretação de onde como (i) articulador de cláusulas completivas, (ii) articulador de cláusulas relativas e (iii) articulador de cláusulas hipotáticas, já que, para as teóricas, a posição do conector é um dos critérios para essas análises.

3 Os usos descritos no quadro 3 podem ocorrer ou não sob a forma de desgarramento, mas não serão abordados, como já mencionado anteriormente, neste artigo.

4 As Cláusulas Relativas Explicativas não foram encontradas em nosso corpus. Por isso, não serão mencionadas na seção correspondente à análise dos dados.

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Após essa breve revisão sobre a teoria funcionalista no que tange à articulação de cláusulas, faz-se, em seguida, uma breve sistematização sobre os contextos sintáticos em que onde pode se inserir, para demonstrar como se deu a análise efetiva dos dados para este estudo.

1.2.1 Cláusulas CompletivasGonçalves, Sousa e Casseb-Galvão (2016) afirmam que o rótulo subordinação tem servido para identificar

não somente a relação de dependência entre as cláusulas, mas também outras relações de constituência, como a dependência entre um núcleo lexical e os adjuntos e/ou modificadores dele dependentes. No entanto, abordaremos somente as relações entre cláusulas. Nesse sentido, o termo subordinação é usado para identificar o ambiente sintático entre as cláusulas, já que uma funciona como um constituinte argumental de outra. Assim, os termos cláusulas subordinadas, encaixadas e/ou completivas são adotados como sinônimos e, ao longo de nosso texto, podem ser intercambiáveis. Muito embora, privilegiaremos o termo cláusulas completivas quando nos referirmos às cláusulas com maior nível de encaixamento.

As cláusulas encaixadas, para nós, são aquelas que apresentam o maior grau de dependência sintática e encaixamento com um termo de outra cláusula. Tradicionalmente, correspondem às substantivas, que ocorrem vinculadas por uma hierarquia sintática ao sintagma verbal (SV) da cláusula núcleo (ou a oração principal, ainda no rótulo tradicional). Além disso, são as cláusulas completivas que podem assumir posição sintática, equiparando-se a um sintagma nominal. O fato de as completivas serem encaixadas ao sintagma verbal (SV) e poderem assumir posição sintática é o principal critério para nossa identificação. Por assumirem posição sintática e serem equivalentes a um sintagma nominal é que são tradicionalmente denominadas como substantivas. Em termos de uso, essas cláusulas podem ser consideradas argumentos de um predicado (verbal ou nominal) se ocorrerem em posição argumental semelhante à de um termo simples. É por isso que, para Gonçalves, Sousa e Casseb-Galvão (2016), as cláusulas completivas podem assumir a função de um sintagma nominal.

1.2.2 Cláusulas RelativasAs cláusulas relativas, tradicionalmente descritas como adjetivas, poderão pertencer ao eixo da subordinação, no

caso das relativas restritivas, ou pertencer ao eixo da hipotaxe, no caso das relativas não restritivas (ou explicativas). As relativas não restritivas têm a função, de acordo com a proposta de Souza (2009), de expandir as cláusulas núcleo, ou seja, oferecendo um maior detalhamento das informações ou fornecendo comentários a respeito do antecedente nominal. Do ponto de vista sintático, ela não funciona como constituinte da cláusula núcleo. É por isso, então, que são consideradas como cláusulas pertencentes ao eixo hipotático. As relativas restritivas, por sua vez, também podem expandir a informação da cláusula núcleo. No entanto, diferenciam-se das cláusulas relativas não restritivas pelo fato de poderem assumir a função de um constituinte da cláusula núcleo, sendo, portanto, do eixo da subordinação/encaixamento.

As cláusulas relativas, restritivas e não restritivas, têm como principal critério de análise o fato de retomarem o antecedente nominal, principal função de um pronome relativo, conector prototípico desse tipo de cláusula. Além disso, as cláusulas relativas podem assumir, a depender do contexto em que estiverem inseridas, leituras circunstanciais diversas. É nesse ponto que daremos ênfase ao uso de onde como pronome relativo, uma vez que, tradicionalmente, essa função do item já é descrita. No entanto, onde funcionando como pronome relativo é, de

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acordo com a tradição, estritamente locativo, ou seja, veicula somente valor semântico de lugar. Contrariando a perspectiva tradicional, em nossos dados, onde como pronome relativo, introduz cláusulas, retomando, além do valor locativo, outros valores semânticos, que são descritos na análise de nossos dados.

1.2.3 Cláusulas HipotáticasRodrigues (2010), no que se refere às cláusulas hipotáticas, afirma que, no âmbito tradicional, essas cláusulas

correspondem às orações subordinadas adverbiais, caracterizando-se, normalmente, por serem equivalentes a um advérbio ou a um adjunto adverbial de uma oração principal. Além disso, a autora enumera ainda outros critérios que nos permitem refletir acerca das definições e caracterizações apresentadas pela tradição gramatical, como o fato de algumas adverbiais não serem contempladas pela Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), a exemplo das locativas, que é um dos usos de onde rastreados por nós. Outro aspecto comentado por ela é o de que, embora as adverbiais sejam reconhecidas pela mobilidade, algumas, tratadas como correlatas, não apresentariam essa possibilidade. No entanto, isso não se verificará em nossos dados, já que em todos os casos de onde funcionando como articulador de cláusulas hipotáticas (ou adverbiais), a mobilidade das cláusulas se verifica.

É nesse sentido que, nessa investigação, tratamos, como critérios para identificação de uma cláusula hipotática, sua leitura circunstancial (locativa, por exemplo), além de sua mobilidade em relação à cláusula núcleo.

Ainda em relação às adverbiais locativas (isso para usar o rótulo tradicional), Kury (2002) afirma que essas orações se assemelham a um complemento adverbial de lugar, sob a forma desenvolvida, mas sem a presença de uma conjunção. Isso porque, para o autor, o conector onde, que introduz essas orações, não é reconhecido como uma conjunção. É nesse ponto que discordamos da abordagem tradicional.

2. ANÁLISE DOS DADOSOs usos multifuncionais de onde identificados no corpus foram: (i) articulador de cláusulas completivas, (ii)

articulador de cláusulas relativas, (iii) articulador de cláusulas hipotáticas, (iv) onde em contextos sintaticamente intermediários e, por fim, (v) onde em contextos semanticamente intermediários.

2.1. Onde com função de articulador de cláusulas completivasComo já mencionado, onde tem sido empregado pelo falante em contextos oracionais diversos, explicitando,

assim, sua multifuncionalidade. Um de seus usos que se destacam é o funcionamento como um articulador de cláusulas completivas, isto é, a cláusula introduzida por onde possui maior nível de integração sintática, isto é, maior nível de encaixamento em relação à cláusula núcleo. Os exemplos que se seguem, retirados e analisados do corpus roteiro de cinema, indicam essa relação.

(4) O que você viu nesse cara? O que ele tem que eu não tenho? Poxa, se você pelo menos me contasse onde foi que eu errei, quem sabe eu pudesse corrigir e a gente começasse tudo de novo? (Dores e Amores)

(5) Agora ela me mandou ir pra casa. E eu não tenho a menor idéia de onde tá meu primo! Sem o Raio, eu nem volto mais! (Carro de paulista)

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(6) Alberto dorme encostado à sua mala de viagem. Tem o chapéu pousado na cara, tentando cortar o sol forte que o ilumina sem piedade. É acordado pelos salpicos de água dos marinheiros que, com maus modos, baldeiam e esfregam o convés. Durante alguns momentos fica baralhado, esfregando os olhos e tentando perceber onde está. (A selva)

Em (4), (5) e (6), há exemplos de onde introduzindo cláusulas completivas. Em (4), a cláusula introduzida por onde [onde foi que eu errei] está encaixada, isto é, dependente sintaticamente, em relação ao sintagma verbal [contasse] da cláusula núcleo [Poxa, se você pelo menos me contasse]. A cláusula introduzida por onde assume, então, função sintática de um objeto direto no contexto em que se insere.

Em (5), novamente ilustra-se onde funcionando como um articulador de cláusulas completivas. Neste caso, no entanto, a estrutura de encaixamento não se dá em relação ao verbo da cláusula núcleo [E eu não tenho a menor ideia], mas, sim, em relação ao sintagma nominal [menor ideia]. Assim, a cláusula introduzida por onde [de onde tá meu primo!] assume a função sintática de um complemento nominal.

Em (6), há também o funcionamento de onde como um articulador de cláusulas completivas. Diferentemente do que ocorre em (5), agora a integração sintática da cláusula introduzida por onde [onde está.] se encaixa ao sintagma verbal [tentando perceber] da cláusula núcleo [Durante alguns momentos fica baralhado, esfregando os olhos e tentando perceber], assumindo a função sintática de um objeto direto.

Em relação ao funcionamento de onde como articulador de cláusulas completivas, cabe salientar que, embora alguns gramáticos normativos (cf. Bechara, 2009) admitam a existência de orações substantivas introduzidas por pronomes ou advérbios interrogativos, quando estão na forma de uma oração interrogativa indireta, isto não inviabiliza nossa análise. Muito pelo contrário, a reforça, porque os gramáticos que assim o fazem percebem exatamente o mesmo que percebemos: onde funcionando como se fora uma conjunção integrante. Não podemos nos esquecer, também, de que tal abordagem não é consensual entre eles, o que nos ajuda a defender a ideia de que não é, portanto, o uso prototípico do item.

2.2. Onde com função de articulador de cláusulas relativasAinda em relação à multifuncionalidade de onde, um de seus usos que mais têm se destacado em trabalhos

diversos é o uso como um articulador de cláusulas relativas. O grande interesse por esse funcionamento se dá, exclusivamente, pelas diversas possibilidades de leitura que o item pode assumir, uma vez que é sabido que as cláusulas relativas podem assumir leituras hipotáticas diversas (cf. Sousa, 2009). Com o onde, nesse contexto, não é diferente. Os exemplos a seguir atestam as possibilidades de leitura encontradas no corpus analisado.

(7) Vários bombeiros e motoristas estão ali, em silêncio, aguardando uma emergência. Som de pernilongo no ar. Um dos bombeiros caminha em direção ao portão, onde apoia-se e acende um cigarro, quando, de repente, o silêncio é interrompido pelo som do telefone, que toca. Bombeiro-chefe atende o telefone. (É proibido fumar)

(8) Apartamento idêntico ao de Baby, mas vazio, sem móveis e espelhado. Por ele caminham um corretor de imóveis, 35 anos, com calça e camisa social e capanga embaixo do braço. e Mikaela, a sua cliente, uma mulher jovem, com ar determinado. Ele abre a janela, onde está pregado um anúncio onde se lê: Imobiliária Rodrigues – Aluga-se. Ela olha tudo, em silêncio. (É proibido fumar)

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(9) Nesse marco, a influência dos EUA é notória, onde são recrutados alguns dos melhores alunos das grandes universidades. Graças a esse recrutamento, muitas ONGs dispõem assim de quadros qualificados, que trabalham nessas associações, tornando-se parceiros críticos das empresas multinacionais e dos Estados – como relata o artigo de Yves Dezalay e Bryant Garth, autores de La Mondialisation des guerres de palais. (Quanto vale ou é por quilo?)

(10) Mário desliga as luzes de seu quarto e dirige seu olhar para a tela branca onde, depois de instantes, aparecem as primeiras imagens do filme nas quais ele se encontra deitado na cama de hospital, iluminado pela luz azulada da televisão. (Feliz ano velho)

Em (7), retomando o que propõe a tradição gramatical, onde funciona como um articulador de cláusulas relativas, cujo antecedente nominal assume valor semântico de lugar. Esse uso passa a ser, então, o único considerado por nós como um uso padrão. Isso porque é esse o funcionamento de onde, em contextos oracionais, licenciado pela gramática tradicional. Assim, a cláusula introduzida por onde [onde apoia-se e acende um cigarro] retoma o antecedente nominal locativo [ao portão], inserido na cláusula núcleo [Um dos bombeiros caminha em direção ao portão].

Em (8), há duas cláusulas introduzidas por onde, a primeira, tal como ocorre em (7), de uso padrão locativo [onde está pregado um anúncio], retomando a ideia de lugar expressa pelo antecedente nominal [janela], presente na cláusula núcleo [Ele abre a janela]. A segunda cláusula introduzida por onde, no entanto, assume o valor nocional, isto é, não se trata mais de um lugar físico. O falante, nesse sentido, expande a noção de lugar, alargando-a. Assim, compreende-se que há uma noção de lugar e não propriamente um lugar físico. A cláusula [onde se lê: Imobiliária Rodrigues – Aluga-se.] é uma relativa, cujo antecedente nocional é [um anúncio] inserido na cláusula núcleo [onde está pregado um anúncio].

Em (9), ainda em seu funcionamento como um articulador de cláusulas relativas, onde não parece mais veicular a noção de lugar. Nesse exemplo, além do cancelamento da preposição [de], a cláusula introduzida por onde [de onde são recrutados alguns dos melhores alunos das grandes universidades.] parece apresentar leitura circunstancial de causa, em relação ao sintagma nominal [a influência dos EUA] inserido na cláusula núcleo [Nesse marco, a influência dos EUA é notória,]. A leitura causal fica mais evidente por meio da paráfrase (9’) a seguir:

(9’) Nesse marco, a influência dos EUA é notória, onde [porque] são recrutados alguns dos melhores alunos das grandes universidades. Graças a esse recrutamento, muitas ONGs dispõem assim de quadros qualificados, que trabalham nessas associações, tornando-se parceiros críticos das empresas multinacionais e dos Estados – como relata o artigo de Yves Dezalay e Bryant Garth, autores de La Mondialisation des guerres de palais. (Paráfrase do exemplo 9)

Por meio da paráfrase anterior, é possível compreendermos que o que justifica a influência dos EUA é o fato de serem recrutados os melhores alunos das grandes universidades.

Em (10), há outra leitura circunstancial presente na cláusula introduzida por onde [onde, depois de instantes, aparecem as primeiras imagens do filme nas quais ele se encontra deitado na cama de hospital, iluminado pela luz azulada da televisão.] que parece assumir valor temporal em relação à cláusula núcleo [Mário desliga as luzes de seu quarto e dirige seu olhar para a tela branca]. A expressão [depois de instantes] pressiona a leitura temporal, isto é,

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funciona como uma pressão de informatividade (cf. Traugott & König, 1991). O conteúdo semântico de tempo fica ainda mais evidente por meio da leitura da paráfrase em (10’) a seguir:

(10’) Mário desliga as luzes de seu quarto e dirige seu olhar para a tela branca onde [quando], depois de instantes, aparecem as primeiras imagens do filme nas quais ele se encontra deitado na cama de hospital, iluminado pela luz azulada da televisão. (Paráfrase do exemplo 10)

Nesse sentido, por meio da descrição dos usos em (7), (8), (9) e (10), foi possível compreender como onde, em seu funcionamento como pronome relativo, pode assumir outros valores semânticos, além do tradicional locativo.

2.3. Onde com função de articulador de cláusulas hipotáticasAlém dos usos já descritos, outro uso também multifuncional de onde é seu funcionamento como um

articulador de cláusulas hipotáticas. Nesse contexto, além do conteúdo circunstancial de lugar, presente na cláusula em que onde se insere, a mobilidade entre as cláusulas que indica menor integração sintática entre elas também foi um critério de análise. Nesse funcionamento, não há, portanto, relação de encaixamento ou complementação, a relação aqui é de adjunção. Os exemplos a seguir atestam essas características.

(11) Ênio se surpreende com o comentário.

ÊNIO - É aí que começa a ficar interessante. Tem que tomar cuidado pra isso não acontecer muito. É essa a negociação.

BIA - Mas pra alguém pegar mais luzes verdes, alguém tem que pegar mais vermelhas?

ÊNIO - Onde alguém ganha, alguém tem que perder. Silêncio.

Ênio volta-se para Bia. (Não por acaso)

(12) Em Angola, Daniel, vi escolas onde poucas crianças tinham as duas pernas. Todas as outras tinham as pernas amputadas por uma mina. Daquelas que explodem quando a gente pisa. E que podem estar em qualquer lugar. Que você acha disso? Você vai jogar bola, vai ao supermercado comprar leite, ou vai na casa da namorada e dá azar, pisa onde não devia. (Antes que o mundo acabe)

(13) Não é grana o problema, Jorginho. É que... Ah, quer saber, eu fiquei de saco cheio! A gente sai do nosso pedaço, vem até onde todo mundo diz que tem as minas mais bacanas e volta de mão abanando!!! Pô, que merda!!! (Carro de paulista)

Em (11), onde funciona como um articulador de cláusulas hipotáticas, em que a cláusula introduzida por onde [Onde alguém ganha,] se relaciona por adjunção à cláusula núcleo [alguém tem que perder.], em que a mobilidade da cláusula hipotática se faz possível, evidenciando o menor grau de integração sintática entre a cláusula hipotática e a cláusula núcleo, uma vez que a cláusula hipotática já se apresenta em ordem inversa em relação à cláusula núcleo. Além do mais, o item onde, nesse contexto, não parece veicular conteúdo semântico de lugar, transmitindo, na verdade, conteúdo circunstancial de tempo, conforme a paráfrase (11’):

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(11’) Ênio se surpreende com o comentário.

ÊNIO - É aí que começa a ficar interessante. Tem que tomar cuidado pra isso não acontecer muito. É essa a negociação.

BIA - Mas pra alguém pegar mais luzes verdes, alguém tem que pegar mais vermelhas?

ÊNIO – Onde [Quando] alguém ganha, alguém tem que perder. Silêncio.

Ênio volta-se para Bia. (Não por acaso)

Nesse sentido, onde, como um articulador de cláusulas hipotáticas, não funciona somente em cláusulas do tipo locativas, como também em cláusulas temporais.

Em (12), há dois usos de onde: o primeiro, já descrito por nós como um articulador de cláusula relativa, e o segundo, como um articulador de cláusula hipotática. Como já descrevemos os usos de onde como relativo, nos centraremos agora em seu segundo funcionamento presente no exemplo em questão. A cláusula em que onde se insere [onde não devia.] assume relação de adjunção no que se refere à cláusula núcleo [pisa]. Semelhante a esse funcionamento é o que ocorre no exemplo (13), em que a cláusula introduzida por onde [até onde todo mundo diz que tem as minas mais bacanas e volta de mão abanando] assume relação de adjunção no que tange à cláusula núcleo [vem].

Nesses exemplos, em que foi possível compreender a multifuncionalidade de onde, no que se refere a seu uso como um articulador de cláusulas hipotáticas, além da mobilidade, critério que indica o menor grau de integração sintática, a ausência de antecedente nominal expresso5, como ocorre nos exemplos (11), (12) e (13), inviabiliza a análise de onde como um pronome relativo.

Os usos citados nos exemplos de (4) a (13) demonstram que onde pode ser considerado como um articulador multifuncional e universal. No entanto, onde não aparece somente em contextos com características prototípicas. Há ainda seus contextos sintaticamente e semanticamente intermediários, nomenclaturas assumidas por nós, como atestam os exemplos nas seções 2.4 e 2.5, respectivamente.

2.4. Onde em contextos sintaticamente intermediáriosNo que se refere aos usos de onde em contextos sintaticamente intermediários, os exemplos (14) e (15) transcritos

a seguir, podem veicular a leitura de onde como um articulador de cláusulas completivas ou como um articulador de cláusulas hipotáticas. Vejamos:

(14) Pô, que chato. Justo hoje que minha mãe me deu um monte de grana, eu não tenho onde gastar. (Carro de paulista)

(15) Eu até poderia contar onde é que você errou... Mas isso não adiantaria absolutamente nada. (Dores e amores)

5 Embora tenhamos o conhecimento do que estabelecem Mateus et al. (2003) a respeito das Relativas livres ou sem antecedentes, não adotaremos essa perspectiva, por compreender não ser ela a que melhor nos auxiliaria no desenvolvimento desse artigo.

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Em (14), há as duas possibilidades de análise. Isso porque a cláusula introduzida por onde [onde gastar.] pode ser compreendida como estabelecendo uma complementação ao sintagma verbal da cláusula núcleo [tenho], indicando maior integração sintática, isto é, maior nível de encaixamento, podendo, assim, ser analisada como uma cláusula completiva. Nesse mesmo exemplo, por meio do critério da mobilidade entre as cláusulas [eu não tenho] e [onde gastar.], também pode ser analisado como um caso em que há mobilidade da cláusula hipotática [onde gastar]. Análise semelhante ocorre no exemplo (15), fragmento inerentemente de fala e de sequência argumentativa, em que a cláusula introduzida por onde [onde é que você errou] pode tanto ser entendida como complementação ao sintagma verbal da cláusula núcleo [poderia contar] como, por conta da mobilidade da cláusula hipotática em relação à cláusula núcleo, ser compreendida como uma relação de adjunção. Assim, podem ser tanto classificadas como cláusulas completivas ou como cláusulas hipotáticas.

É nesse sentido que estamos diante de casos de onde introduzindo cláusulas sintaticamente (completivas ou hipotáticas) intermediárias. Vale destacar ainda que o critério da mobilidade para analisarmos as cláusulas como hipotáticas é válido, uma vez que as cláusulas completivas prototípicas não possuem essa característica, salvo aquelas com função de sujeito, tradicionalmente chamadas de subjetivas, o que não ocorre nos exemplos (14) e (15) e em nenhum outro analisado por nós como um contexto sintaticamente intermediário. No entanto, os contextos intermediários não se esgotam na questão sintática, já que, no que se refere ao contexto semântico, essas relações intermediárias também se fazem presentes nas cláusulas introduzidas por onde, conforme notado nos exemplos da seção seguinte.

2.5. Onde em contextos semanticamente intermediáriosPara finalizarmos a seção que se refere à análise dos dados de onde, descreveremos agora os contextos

semanticamente intermediários, isto é, usos de onde como articulador de cláusulas relativas, assumindo mais de uma possibilidade de interpretação semântica, conforme demonstram os exemplos que se seguem:

(16) Uma carta é virada e aparece a Torre.

PAULA - (off ) Torre!

HELENA (ansiosa) - É bom ou ruim?

PAULA - A Torre significa uma grande transformação. Uma transformação violenta onde muita coisa pode ser destruída. Você tem idéia do que possa ser?

HELENA - A campanha. Paula olha para ela interrogativamente.

HELENA - Eu vou mexer na campanha do Cláudio. (Se eu fosse você)

(17) Corta para plano geral onde se vê o carro sendo rebocado por um guincho da cet tendo ao fundo o prédio do detran. entram os créditos finais. (Carro de paulista)

Em (16), há duas possibilidades de leitura em relação ao funcionamento de onde como um articulador de cláusula relativa. Isso porque a cláusula introduzida por onde [onde muita coisa pode ser destruída.] pode assumir, em relação à cláusula núcleo, [Uma transformação violenta,] a ideia nocional, interpretada como a expansão da noção de lugar e a ideia causal, já que se trata de uma forma de justificar o porquê de a Torre (carta

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retirada) ser considerada uma “transformação violenta”. A leitura causal fica ainda mais evidente por meio da paráfrase em (16`) a seguir:

(16`) Uma carta é virada e aparece a Torre.

PAULA - (off ) Torre!

HELENA (ansiosa) - É bom ou ruim?

PAULA - A Torre significa uma grande transformação. Uma transformação violenta, onde [já que] muita coisa pode ser destruída. Você tem idéia do que possa ser?

HELENA - A campanha. Paula olha para ela interrogativamente.

HELENA - Eu vou mexer na campanha do Cláudio. (Paráfrase do exemplo 16)

Em (17), as duas possibilidades interpretativas são: nocional e temporal. Nocional pelos mesmos critérios já adotados anteriormente; trata-se da expansão da noção de lugar do antecedente nominal [plano geral]. Temporal porque a cláusula introduzida por onde [onde se vê o carro sendo rebocado por um guincho da cet tendo ao fundo o prédio do detran.] pode ser considerada como a noção de tempo em relação à cláusula núcleo [corta para plano geral]. Isso porque podemos compreender que, no momento em que se corta a ação para o plano geral, ocorre a ação de ver o carro sendo rebocado. Nesse caso, também utilizamos o recurso da paráfrase.

(17`) Corta para plano geral onde [quando/ no momento em que] se vê o carro sendo rebocado por um guincho da CET tendo ao fundo o prédio do detran. Entram os créditos finais.

(Paráfrase do exemplo 17)

Após a descrição dos usos multifuncionais de onde encontrados no corpus roteiro de cinema, apresentaremos a seguir uma proposta prática para o ensino, em que serão elucidadas algumas sugestões de exercícios, com o propósito de levar o aluno à reflexão acerca dos usos de onde e seus contextos de análise, indo além dos usos descritos pela tradição gramatical.

3. PROPOSTA DE APLICAÇÃO AO ENSINOMuito embora o conectivo onde seja tradicionalmente descrito, em contextos oracionais, como um pronome

relativo, cujo antecedente nominal expressa a noção de lugar físico, os falantes de língua portuguesa (os falantes cultos, inclusive, como atesta Machado, 2017) fazem uso dos muitos funcionamentos de onde descritos anteriormente por nós. Nesse sentido, muitos textos apresentam parte desses usos multifuncionais de onde. Assim, para essa proposta de aplicação ao ensino, recolhemos alguns textos multimodais veiculados em propagandas, por meio da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (ABAP), por considerarmos ser esse um gênero textual presente em nossa vida na atualidade e de maior afinidade entre jovens e adolescentes, público alvo dos exercícios propostos.

Nossos exercícios foram pensados de acordo com os critérios de análise que expusemos nas seções anteriores, a fim de levar o aluno a refletir acerca dos usos diversos de onde (tradicionais ou não) e de seus critérios de análise. Isso posto, vamos às questões.

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Multifuncionalidade de onde: uma abordagem teórica e prática Gustavo Benevenuti Machado

Questão 01.

Leia o texto abaixo e, em seguida, faça aquilo que se pede.

“Volte a frequentar aquela parte do armário onde ficam as roupas de alguns anos atrás.”

(Yogoberry)

a) Leia a seguinte definição de slogan:

Pequeno texto, normalmente fácil de ser lembrado, muito utilizado em propaganda com o propósito de lançar um produto e/ou uma ideia.

Agora, explique de que modo o slogan “Volte a frequentar aquela parte do armário onde ficam as roupas de alguns anos atrás” se relaciona com a proposta do produto anunciado.

b) A oração [onde ficam as roupas de alguns anos atrás] está vinculada ao verbo ou ao substantivo da oração anterior?

c) O conector onde é o termo que estabelece a relação de coesão entre as orações presentes no slogan. Levando isso em consideração e com base na sua resposta ao item anterior, indique o conteúdo semântico do termo antecedente de onde.

Questão 02.

Observe atentamente o anúncio publicitário, gênero textual que promove a divulgação de uma marca e/ou um produto, a seguir:

“$ 1,00Preço pago por Kees Mouween Jr., na compra de várias obras de Van Gogh, em 1902.”

“Oportunidades existem. Você só precisa saber onde elas estão.”

(Unibanco – Private Bank)

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Multifuncionalidade de onde: uma abordagem teórica e prática Gustavo Benevenuti Machado

a) Explique de que modo o slogan “Oportunidades existem. Você só precisa saber onde elas estão” se relaciona com a história sobre a compra das obras de arte de Van Gogh.

b) Através da história sobre a compra dos quadros de Van Gogh, em 1902, e por meio dos elementos visuais e das informações periféricas no texto, é possível traçar um perfil para o público alvo dessa propaganda? Que público alvo seria esse?

c) Levando em consideração o público alvo mencionado por você no item anterior, diga que tipo de linguagem (culta ou não culta) seria melhor empregada para atender a esse público?

d) Ainda em relação ao slogan, a oração [onde elas estão] está vinculada ao substantivo ou ao verbo da oração anterior? Para justificar sua resposta, transcreva o termo ao qual a oração está vinculada.

e) As orações denominadas como subordinadas substantivas exercem função sintática, a semelhança dos termos oracionais no período simples, em relação à oração principal. Levando isso em consideração e, partindo-se da hipótese de que a oração [onde elas estão] pode ser considerada como uma substantiva, indique a função sintática exercida por essa oração em relação a sua principal.

Questão 03.

Leia atentamente a propaganda dos Correios a seguir e, em seguida, siga os comandos subsequentes.

“Onde você estiver, não se esqueça de mim.”

(Correios)

a) Levando-se em consideração o slogan “Onde você estiver, não se esqueça de mim”, explique de que modo esse texto pode ser considerado intertextual. Lembre-se de que a intertextualidade é, na realidade, a influência de um texto sobre o outro. Pesquise, portanto, a que outro texto esse slogan faz referência.

b) Explique de que modo o slogan parece dialogar com a proposta da propaganda das agências dos Correios.

c) As orações desse slogan aparecem de modo invertido, isto é, a subordinada adverbial [Onde você estiver] vem antes da sua oração principal [não se esqueça de mim]. Em termos textuais, o que isso pode significar?

d) A mobilidade da oração [Onde você estiver] do slogan comentada no item anterior pode revelar uma relação sintática diferente, se compararmos ao slogan da questão 02. Explique que diferença sintática seria essa.

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Multifuncionalidade de onde: uma abordagem teórica e prática Gustavo Benevenuti Machado

Sugestão de respostas

Questão 01

a) Trata-se da associação entre a promoção de um produto 0% de gordura e a possibilidade de emagrecimento.

b) A oração está vinculada ao substantivo.

c) A oração introduzida por “onde”, pronome relativo, retoma o antecedente nominal “armário”, que possui conteúdo semântico de lugar.

Questão 02

a) A relação se constrói pelo fato de obras de Van Gogh terem sido compradas a valor completamente diferentes do que seria na atualidade.

b) Trata-se, muito provavelmente, de um público com maior nível de escolaridade, já que traz a referência a Van Gogh.

c) A linguagem culta, principalmente por se tratar de um público escolarizado.

d) A oração está vinculada à locução verbal “precisa saber”.

e) A oração apresentaria a função sintática semelhante a de um objeto direto, por ser uma complementação à forma verbal “precisa saber”, não sendo introduzida por preposição.

Questão 03

a) Apresenta uma intertextualidade com a canção “Não se esqueça de mim”, de Erasmo Carlos e Roberto Carlos.

b) Trata-se da ideia de que os Correios chegariam a qualquer lugar. Essa ideia é reforçada ainda pelo aspecto visual, a partir da representação de um lugar, aparentemente, isolado.

c) A inversão é motivada pela intertextualidade revelada no item (a). No entanto, pode-se pensar também que a inversão estaria associada à ênfase ao conteúdo. Isto é, a Agência de Correios quer reforçar a ideia de que independente do lugar e da distância (“Onde você estiver”), chegará até o leitor.

d) A diferença entre as orações da questão 02 e da questão 03 é o nível de integração sintática entre as orações. Isso porque, em 02, a oração introduzida por “onde” apresenta maior vínculo sintático em relação ao sintagma verbal do que a oração introduzida por “onde” na questão 03. Nesse sentido, em 02, teríamos uma relação de complementação ao verbo, ao passo que em 03, teríamos uma relação de adjunção ao verbo.

4. CONCLUSÃO Este artigo, baseado nos resultados de Machado (2017), teve como propósito, no que tange ao articulador

de cláusulas onde, demonstrar, por meio da perspectiva funcional, seus usos efetivos em situações reais de interação comunicativa, buscando descrever seus usos mais inovadores e não licenciados pela tradição gramatical. Para isso, então, procurou-se a partir do corpus roteiro de cinema, corpus analisado por nós como sendo misto, já que se trata de um texto escrito, com a finalidade de ser reproduzido oralmente, podendo, assim, conter características tanto da escrita quando da oralidade, verificar o comportamento desse item em cláusulas diversas, a fim de constatar como o falante da língua tende a usar onde após seu estágio de gramaticalização.

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Multifuncionalidade de onde: uma abordagem teórica e prática Gustavo Benevenuti Machado

Após, então, a descrição dos dados analisados, conseguimos atingir nosso objetivo: descrever e organizar os usos de onde, comprovando, portanto, ser este conector um item multifuncional, sendo considerado um item tão multifuncional e universal quanto o que, mesmo que com nível de esvaziamento semântico diferente.

A partir de uma proposta prática de exercícios para o ensino, em que buscamos evidenciar questões textuais e gramaticais que envolvem o uso do conector onde, é que encerramos este artigo. Com base na teoria aqui levantada, na análise dos dados e, ainda, em relação aos exercícios propostos, esperamos contribuir para uma melhor revisão a respeito da abordagem tradicional do quadro de conectores no português brasileiro. Além disso, é claro, almejamos auxiliar professores e alunos no que se refere ao ensino, lembrando, obviamente, que, muito embora o ensino regular seja pautado nas descrições tradicionais da língua, essa não deve ser a única fonte ou recurso utilizado pelos professores em sala de aula. Isso porque é urgente a concepção de um ensino contextualizado, em que os diferentes usos linguísticos, sejam eles licenciados ou não pela tradição gramatical, sejam abordados e descritos (e não simplesmente excluídos por serem considerados “erros”), para que tenhamos, então, o ensino de uma língua portuguesa real e não o ensino de uma língua idealizada e a que nem todos os falantes têm acesso, em que parte dos usos descritos podem não refletir usos reais da língua.

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Multifuncionalidade de onde: uma abordagem teórica e prática Gustavo Benevenuti Machado

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RESUMOEste trabalho tem o objetivo de analisar, à luz da teoria funcionalista, no corpus Roteiro de Cinema, os usos do conector para, considerado introdutor de orações subordinadas adverbiais finais pelas Gramáticas Tradicionais. Em situações reais de interação, o conector para pode introduzir não só as orações finais, como também cláusulas hipotáticas circunstanciais desgarradas, completivas e relativas. Além do conteúdo de finalidade, o conector em estudo apresenta a possibilidade de veicular o conteúdo semântico consecutivo.

Cinquenta e cinco (55) longas-metragens e oitenta e um (81) curtas-metragens foram analisados, totalizando 2.883 dados de cláusulas introduzidas por para. Deste total, 1.008 (34,96%) são completivas, 1.856 (64,37%) são hipotáticas circunstanciais - sendo 51 (2,74%) destas desgarradas - e 19 (0.67%) relativas. No que se refere ao conteúdo semântico veiculado pelas cláusulas com para, verifica-se que 2.862 (99,27%) dados veiculam conteúdo final, 11 (0,39%) veiculam conteúdo semântico de consequência e 10 (0,34%) veiculam simultaneamente mais de uma relação semântica.

As ocorrências no corpus analisado apontaram que para pode se comportar como conjunção integrante e como pronome relativo, podendo indicar não só o conteúdo de finalidade, como também o conteúdo semântico consecutivo. Essas funções são possíveis em termos de usos na Língua Portuguesa e atestam a multifuncionalidade de para.

Palavras-chave: conector; para; funcionalismo; hipotaxe; roteiro de cinema.

ABSTRACTThis study aims to analyse through the Functionalism, in the corpus Roteiro de Cinema, the usages of para connector, characterized as a linker of clauses of purpose by Traditional Grammars. In real contexts of interaction, the connector para may introduce not only clauses of purpose but also detached circumstantial hypothetical clauses, completive clauses and relative clauses. Besides the final content, the connector in this study may introduce the consecutive semantic content, presenting, in this way, the possibility of making other syntactic and semantic analysis.

Fifty-five (55) feature films and eighty-one (81) short films were analyzed, totalizing 2.883 data of clauses introduced by para, and counting them manually. Out of the total, 1008 data (34,96%) functioned as completive clauses, 1.856 (64,37%) functioned as circumstantial hypothesis, 51 of them (2,74%) were considered detached and 19 (0.67%) interpreted as relative. About the semantic content introduced by para, we verified that 2.862 (99,27%) data present purpose content, 11 (0,39%) present consecutive content and 10 (0,34%) present more than one content simultaneously.

The data analyzed in the corpora indicate that para may function as a complementizer and a relative pronoun, and para may, depending on the point of view of the relations established through the clauses in the context, introduce consecutive and purpose semantic content. These functions are possible terms of usage in the Portuguese Language and certify para’s polifunctionality. In addition, we evidence through the item polifunctionality the usage of para beyond its prototypical usage.

Keywords: connector; para; functionalism; Hypotaxis; roteiro de cinema.

A polifuncionalidade do conector para

Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre1

1 Mestre em Letras Vernáculas - Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutoranda em Letras Vernáculas pela mesma instituição. E-mail: [email protected]

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A polifuncionalidade do conector para Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre

INTRODUÇÃOO objetivo deste estudo é descrever a polifuncionalidade das cláusulas introduzidas pelo conector PARA.

Considerado como introdutor de orações subordinadas adverbiais finais pelas Gramáticas Tradicionais (GT), PARA, à luz da teoria Funcionalista, pode apresentar a possibilidade de introduzir não só cláusulas hipotáticas circunstanciais finais, como também cláusulas hipotáticas circunstanciais finais desgarradas, cláusulas completivas e cláusulas relativas. Além disso, PARA pode indicar conteúdo semântico de consequência, como atesta o estudo de Azeredo (2000).

Embora as Gramáticas Tradicionais asseverem que a preposição PARA funciona como introdutor de orações subordinadas adverbiais finais, Kury (1963) e Bechara (2009) afirmam que PARA pode veicular tanto conteúdo semântico final como também o consecutivo. Essa possibilidade de uso do conector não é aceita por alguns estudiosos da língua, como Cunha & Cintra (2007) e tampouco reconhecida pela GT. No entanto, estudiosos como Azeredo (2000) e Mateus et alii (2003) também reconhecem esse uso do conector - a possibilidade de veicular conteúdo semântico consecutivo. Além das noções de circunstância que PARA indica, Neves (2000) e Mateus et alii (2003) consideram, em seus estudos, que PARA pode funcionar como introdutor de cláusulas completivas e relativas.

As cláusulas do corpus pertencem ao gênero roteiro de cinema. Por ser um gênero misto, por apresentar características tanto da escrita como da fala, esse corpus permite comprovar os usos das estruturas com PARA em contextos comunicativos bastante próximos de situações interativas reais. Cinquenta e cinco (55) longas-metragens e oitenta e um (81) curtas-metragens foram analisados, totalizando 2.883 dados de cláusulas introduzidas por PARA, analisados e contados manualmente. Do total de dados, foram mais frequentes no corpus as cláusulas hipotáticas circunstanciais, seguidas das cláusulas completivas, das desgarradas e das relativas, respectivamente. Quanto ao conteúdo semântico veiculado pelas cláusulas com PARA, verificou-se que o conteúdo final, por ser o prototípico, foi o mais frequente.

A seguir, serão apresentados os pressupostos teóricos, posteriormente serão expostos o corpus e a análise dos dados e, por fim, os resultados, as aplicações do objeto de estudo para o ensino, as considerações finais e as referências bibliográficas.

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS A teoria que norteia este estudo é a funcionalista, que, dentre outras coisas, analisa a relação gramatical das

línguas em seus contextos de interação. Nesta teoria, a sintaxe, a semântica, o texto e a pragmática estão integrados, pois operam em conjunto na análise. No entanto, para a investigação da polifuncionalidade de PARA, também levamos em consideração outras perspectivas teóricas. Assim, os estudos de Bechara (1982), Azeredo (2000), Mateus et alii (2003), embora sejam de aportes teóricos diferentes, contribuíram teoricamente para este estudo e se juntaram aos trabalhos funcionalistas de Neves (2000), Decat (2001, 2011), Poggio (2002) e Gonçalves e Carvalho (2007).

Embora não tenhamos focalizado a visão prescritiva na análise do item, é importante mencionar, mais uma vez, que a Gramática Tradicional (GT) considera PARA como uma preposição que introduz orações subordinadas adverbiais finais reduzidas. Apenas alguns gramáticos, como Bechara (2003), verificaram e se debruçaram sobre outros usos que este conector pode ter.

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A polifuncionalidade do conector para Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre

Para a GT, no período composto por subordinação, as orações são classificadas em substantivas, adjetivas e adverbiais. Na perspectiva funcionalista, Hopper e Traugott (1993), por exemplo, afirmam que as cláusulas subordinadas implicam as noções de dependência e de encaixamento à cláusula núcleo. Neste tipo de estrutura, segundo eles, enquadram-se as substantivas e adjetivas restritivas da GT. Com base ainda no funcionalismo (cf. Matthiessen e Thompson: 1988), hipotáticas são aquelas consideradas como cláusulas interdependentes do discurso, ou seja, não integradas sintaticamente umas às outras, mas sim interdependentes semanticamente, são as circunstanciais e as relativas apositivas, que compreendem, respectivamente, as adverbiais e as adjetivas explicativas da GT.

Portanto, em nossa análise consideramos que PARA como conector pode introduzir cláusulas completivas, hipotáticas circunstancias e hipotáticas relativas apositivas e, ainda, cláusulas desgarradas. Além disso, já passou por um longo processo de gramaticalização (cf. Poggio: 2002).

A gramaticalizaçãoConforme apontado por Cunha (2008, p.173), a gramaticalização

designa um processo unidirecional1, segundo o qual itens lexicais e construções sintáticas, em determinados contextos, passam a assumir funções gramaticais e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais. (CUNHA 2008, p.173)

Normalmente, esse fenômeno ocorre em itens muito frequentes, provocando um desgaste fonético em que ele sofre perda de expressividade, podendo passar a indicar novas categorias gramaticais. Devido à gramaticalização sofrida pelo item PARA, este passou a assumir funções e sentidos diferentes da sua prototipia2 e contribuíram para a compreensão disso os estudos de Hopper (1991), Poggio (2002) e de Gonçalves e Carvalho (2007).

Para Gonçalves e Carvalho (2007, p.79), “a gramática de uma língua é sempre emergente, ou seja, estão sempre surgindo novas funções/valores/usos para formas já existentes”. Assim, segundo estes autores, podemos afirmar que é possível PARA adquirir novas funções e novos usos devido às mudanças que a língua sofre.

Hopper (1991) postulou o princípio da persistência, que “prevê a manutenção de alguns traços semânticos da forma-fonte gramaticalizada, o que pode ocasionar restrições sintáticas” para o seu uso (cf. GONÇALVES & CARVALHO, 2007, p. 83). Esse princípio justifica o porquê de PARA admitir comportamento de pronome relativo e conjunção, embora seja, originariamente e isoladamente, uma preposição.

Poggio (2002) assevera em seu estudo que a preposição PARA sofreu gramaticalização e ela ressalta também que o item é resultante de morfologização. Segundo a autora (2002), para se constituir na palavra PARA, houve um “processo de redução fonológica” e houve “alterações no campo semântico da preposição”. Ainda conforme a estudiosa (2002), PARA passou a constituir locução adverbial e prepositiva através de um processo de recategorização sintática, ocorreu um processo de semanticização quando pera passa a denotar finalidade”. Num processo de

1 Embora seja considerado um processo unidirecional, nem todos os autores contemporâneos compartilham mais dessa designação referente ao processo de gramaticalização.

2 De acordo com Martins (2013, p. 105), "a prototipicidade é um fenômeno cognitivo responsável por organizar as categorias em termos de membros mais centrais e membros mais periféricos". Ainda segundo o autor (cf. Martins, 2013, p. 106), nos modelos semânticos, "o protótipo é o elemento de maior frequência e um ponto de referência para a definição de uma categoria." Isto significa que o conector PARA tem, como introdutor de cláusula, o sentido de finalidade como mais frequente, por isso, afirma-se que este é o prototípico.

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sintaticização, registra-se a extensão do emprego da preposição PARA da relação entre vocábulos para a relação entre orações”. A autora afirma que PARA pôde formar prefixos e a forma pera “foi gramaticalizada para introduzir sintagmas que substituem os casos morfológicos latinos ablativo, acusativo e locativo” (POGGIO: 2002, p. 243).

Conforme esses estudos, portanto, pode-se notar que PARA, por ter sofrido o fenômeno chamado “gramaticalização”, pode assumir outras funções, como as de pronome relativo e conjunção integrante e outros sentidos, como o de consequência, o que será defendido por Azeredo (2000) e Mateus et alii (2003), por exemplo.

PARA como introdutor cláusulas hipotáticas consecutivasMateus et alii (2003) defendem o uso de PARA como introdutor do conteúdo semântico de consequência.

De acordo com as autoras, as cláusulas introduzidas por PARA antecedidas por expressões de quantidade podem portar esse sentido, desde que não sofram clivagem e nem possuam mobilidade. A seguir, podem-se observar alguns dos exemplos apresentados pelas linguistas (MATEUS ET ALII: 2003, p. 761):

* Os meninos comeram o suficiente é para estarem satisfeitos.

(#O que eles comeram é para estarem satisfeitos).

* Para estarem satisfeitos os meninos comeram o suficiente.

Portanto, a presença de expressões como bastante, muito e suficiente antecedendo o conector PARA, assim como a impossibilidade de mobilidade e de clivagem3 na cláusula encetada por PARA são características que diferenciam uma cláusula final de uma consecutiva, conforme asseveram as autoras.

Segundo Azeredo (1990, p. 114), “as orações finais, únicas que podem preceder a oração-base, denotando um efeito visado, uma intenção, diferem-se das consecutivas, que sempre se colocam após a oração-base e denotam um efeito contingente, não intencional.” Para ele, as cláusulas introduzidas por PARA que veiculem conteúdo semântico consecutivo não admitem “focalização” por meio de “só”, “ser que” e “apenas”. O autor aponta que na oração final o verbo é empregado no modo subjuntivo, enquanto na oração consecutiva, o verbo é empregado no modo indicativo, a não ser que o verbo na oração-base apareça negado. Neste último caso, o verbo, portanto, assume o modo subjuntivo.

PARA como introdutor cláusulas completivas e relativasComo já mencionado, PARA pode encetar cláusulas completivas e relativas. Sobre essas possibilidades, Neves

(2000) e Mateus et alii (2003) afirmam que PARA também introduz cláusulas completivas e relativas, assumindo, desse modo, função de conjunção integrante e pronome relativo, respectivamente.

Neves (2000) assevera que PARA introduz (a) complemento de verbo, (b) de substantivo, (c) de adjetivo e (d) de advérbio e aponta que a preposição PARA mantém relações semânticas fora da transitividade no sintagma verbal, no entanto, estabelece relações semânticas com o sintagma verbal e nominal, o que ilustra a possibilidade de funcionar como introdutor não só de cláusulas hipotáticas, mas também de completivas e de relativas.

3 Conforme Perini (2005), a clivagem é "uma construção que põe em evidência um elemento da oração, com o auxílio do verbo ser mais o item que, pode-se, assim, 'clivar' um sujeito".

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A polifuncionalidade do conector para Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre

Quanto às completivas, Mateus et alii (2003, p. 621) afirmam que PARA funciona como complementador e não como preposição, pois “nas completivas finitas correspondentes, PARA não pode coocorrer com o complementador que; por esta razão, tais completivas estabelecem relação gramatical de objeto direto e não uma relação gramatical oblíqua”.

Para Mateus et alii (2003), PARA também pode funcionar como um morfema QU_, isto é, pode apresentar comportamento similar ao de um pronome relativo. Um exemplo que ilustra essa possibilidade levantada pelas autoras é: “Eles não têm nada para comer”. Nesse caso, a preposição pode ser substituída pelo pronome relativo que, que ocupa sua posição na sentença. Assim, tem-se a seguinte estrutura: “Eles não têm nada que se coma/ que se possa comer”.

De acordo com essas linguistas, podemos entender que PARA apresenta a possibilidade de se comportar como conjunção integrante, quando funciona como introdutor de argumento verbal (em cláusulas completivas), e como pronome relativo, quando funciona como introdutor de argumento do nome (em cláusulas relativas).

PARA como introdutor de cláusulas hipotáticas desgarradasOutra possibilidade de uso de PARA é em contexto de desgarramento. Segundo Decat (2011), as cláusulas

hipotáticas adverbiais podem se materializar de maneira desgarrada, isto é, não anexada/vinculada sintaticamente à cláusula núcleo. A estudiosa afirma que essas estruturas são unidades de informação à parte, portanto, podendo ocorrer isoladas. As desgarradas, na língua escrita, se seguem geralmente de uma pontuação de final de cláusula. Para a autora (2011), a pausa diferenciaria na fala uma cláusula desgarrada de uma cláusula não desgarrada.

Na seção seguinte, serão apresentadas algumas considerações sobre o corpus que serviu de base para este artigo e a análise dos dados.

2. CORPUS E ANÁLISE DOS DADOSEste trabalho tem o objetivo de analisar as cláusulas iniciadas por PARA, considerado como introdutor

prototípico de orações subordinadas adverbiais finais reduzidas, segundo a GT. No entanto, devido à sua polifuncionalidade, este conector, em situações reais de interação, pode introduzir cláusulas completivas, relativas e hipotáticas circunstancias desgarradas. O corpus utilizado neste estudo é o de roteiro de cinema, que permite evidenciar as possibilidades de uso do conector PARA em situações reais de interação.

Os roteiros estão disponíveis no site www.roteirodecinema.com.br, um portal que disponibiliza curtas-metragens e longas-metragens na íntegra. No total, foram analisados 55 (cinquenta e cinco) longas-metragens e 81 (oitenta e um) curtas-metragens, dos quais foram coletados 2.883 dados, contados manualmente.

A seguir, são apresentadas algumas ocorrências de dados do corpus que ilustram a polifuncionalidade do conector:

(1) Inúmeros artistas e autoridades compareceram ao seu funeral para prestar suas últimas homenagens ao cineasta, tragicamente desaparecido.

(Corpus Roteiro de Cinema – A Dama do Cine Shangai)

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A polifuncionalidade do conector para Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre

A estrutura destacada em negrito em (1) pode ser analisada como cláusula hipotática circunstancial final, já que apresenta mobilidade, principal característica deste tipo de cláusula. A paráfrase a seguir ilustra essa propriedade:

(1.1) Para prestar suas últimas homenagens ao cineasta, tragicamente desaparecido, inúmeros artistas e autoridades compareceram ao seu funeral.

(2) E aí a nossa equipe médica faz um check-up geral... Para ver se eles têm alguma doença grave... (Corpus Roteiro de Cinema – O homem que virou suco)

A estrutura destacada em negrito em (2) é considerada uma cláusula hipotática circunstancial final desgarrada, visto que funciona como uma unidade de informação à parte, comportando-se como uma estratégia de realce ou de focalização da informação precedente, estando separada de sua cláusula núcleo pelo sinal de pontuação reticências.

(3) Já disse para não gritar sua burra! (Corpus Roteiro de Cinema – O bandido da luz vermelha)

A estrutura destacada em negrito em (3) é analisada como uma cláusula completiva, já que PARA se comporta como uma conjunção integrante. A cláusula destacada está em relação de complementação com o verbo “disse” da cláusula matriz. Além disso, toda a estrutura encetada por PARA pode ser substituída pela proforma “isto”.

(4) O filme já estava na lata, mas o risco de faltar dinheiro para levar o trabalho adiante pairava no ar. (Corpus Roteiro de Cinema - Feliz ano velho)

A estrutura destacada em negrito em (4) apresenta duas leituras possíveis. Ora pode ser considerada uma cláusula relativa, pois PARA se comporta como um pronome relativo, como em (4.1), podendo ser substituído pelo pronome relativo “que”, ora pode ser interpretada como uma cláusula hipotática circunstancial final, já que apresenta mobilidade, como em (4.2). Essas interpretações podem ser percebidas nas paráfrases a seguir:

(4.1) O filme já estava na lata, mas o risco de faltar dinheiro que levasse o trabalho adiante pairava no ar.

(4.2) Para levar o trabalho adiante, o filme já estava na lata, mas o risco de faltar dinheiro pairava no ar.

(5) A pobreza, a necessidade de um acréscimo de dinheiro em alguns casos o gosto de servir ao poder dava impulso aos homens que se sentiam bastante fortes para tentar pôr ordem à desordem.

(Corpus Roteiro de Cinema - Quanto vale ou é por quilo?)

Em (5), a cláusula destacada em negrito é analisada como uma hipotática circunstancial, no entanto, PARA veicula conteúdo semântico consecutivo, visto que é antecedido por uma expressão de quantidade (bastante), não possui mobilidade e permite a seguinte paráfrase:

(5.1) A pobreza, a necessidade de um acréscimo de dinheiro em alguns casos o gosto de servir ao poder dava impulso aos homens que se sentiam tão fortes que tentavam pôr ordem à desordem.

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A polifuncionalidade do conector para Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre

3. RESULTADOSDois mil, oitocentos e oitenta e três (2.883) dados foram analisados. Deste total, duas mil, oitocentas e sessenta

e duas cláusulas (2.862) analisadas veiculam conteúdo semântico final (99,27%), onze (11/0,39%) apresentam leitura consecutiva e dez (10 /0,34) possibilitam tanto a leitura final quanto a consecutiva.

Gráfico 1 Quantitativo de cláusulas introduzidas por PARA em cada estrutura

Um mil, oitocentos e cinquenta e seis cláusulas (1.856 / 64,37%) foram analisadas como hipotáticas circunstanciais, sendo cinquenta e uma (51 /2,74%) delas desgarradas. Um mil e oito cláusulas (1.008) introduzidas por PARA foram analisadas como completivas (34,96%) e dezenove (19), como relativas (0,67%).

Gráfico 2 Tipo de cláusula introduzida por PARA

Verificou-se, com base no corpus dos roteiros analisado, que o conector PARA é polifuncional, pois além de veicular o seu conteúdo semântico prototípico - finalidade, apresenta também a possibilidade de indicar conteúdo semântico de consequência, um dos resultados de sua gramaticalização, embora esse uso apresente menor número de ocorrências.

Os resultados revelam que, mesmo que PARA tenha sofrido gramaticalização, suas propriedades originais são preservadas, podendo assumir outros valores e outras funções nas estruturas em que se encontra. Desse modo, percebe-se que o uso deste item confirma o princípio de persistência postulado por Hopper (1991), que “prevê a manutenção de alguns traços semânticos da forma-fonte gramaticalizada, o que pode ocasionar restrições sintáticas” para o seu uso (cf. GONÇALVES & CARVALHO: 2007, p. 83).

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A polifuncionalidade do conector para Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre

4. APLICAÇÃO AO ENSINOComo a maioria das gramáticas tradicionais e livros didáticos não apresentam essas outras possibilidades de

usos que PARA pode apresentar, ou seja, como conector não apenas de cláusulas hipotáticas circunstanciais finais, mas também de cláusulas hipotáticas circunstanciais finais desgarradas, de cláusulas hipotáticas circunstanciais consecutivas, de cláusulas completivas e de relativas, seria interessante que os professores mostrassem tais usos na escola. Assim, os profissionais da educação, conscientes dessas novas funções que PARA pode estabelecer, poderiam, dentre outras atividades, oferecer oficinas de textos para seus alunos, a fim de lhes mostrar como o conector PARA se estrutura no discurso em que se insere. Além disso, seria muito produtiva a abordagem do desgarramento, já que é cada vez mais comum, nos textos de alunos, que estão cursando o Ensino Médio, a realização de estruturas desgarradas, consideradas como desvios pela maioria dos professores. Ainda sobre este fenômeno, também seria interessante que se gravassem cláusulas desgarradas introduzidas por PARA com entoações diferentes e que se arguissem os alunos sobre quais impressões eles teriam, quais sentidos e significados atribuiriam a elas. Além dessas propostas mais gerais, há que se pensar também em propostas mais específicas.

Assim, a seguir, apresentamos um modelo de atividade, voltado para alunos do 3º ano do Ensino Médio, que tem como principal objetivo propor ao falante/escrevente de Língua Portuguesa, dentre outras coisas, uma reflexão sobre os usos de PARA, sobre quais podem ser considerados mais ou menos adequados,4 tendo em vista as considerações feitas ao longo deste artigo.

Um Apólogo(Machado de Assis)

ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha:

— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.

— Decerto que sou.

— Mas por quê?

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

4 Exercícios e sugestão de respostas elaborados por Violeta Virginia Rodrigues e Adriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann.

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A polifuncionalidade do conector para Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

FIM

Apólogo é uma narrativa caracterizada por estabelecer lições de sabedoria ou ética, por meio de personagens inanimados.

a) Que personagens no apólogo de Machado de Assis agem como seres humanos?

b) Que figura de linguagem pode ser identificada no comportamento desses personagens?

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A polifuncionalidade do conector para Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre

1) Os textos podem ser constituídos por sequências textuais descritivas, narrativas, expositivas, argumentativas ou injuntivas. Identifique no texto:

a) a sequência textual que predomina;

b) em que momento há uma ruptura do universo ficcional, característico do apólogo, para um universo factual, próximo à realidade.

2) O universo ficcional do apólogo é reforçado pela seleção vocabular associada ao mesmo grupo de ideias (campo semântico) representado pelos personagens.

a) Retire do texto pelo menos cinco vocábulos que exemplifiquem essa relação.

b) A que campo semântico os vocábulos identificados pertencem?

3) Algumas palavras que são utilizadas na narrativa não são frequentes no nosso cotidiano, caracterizando a temporalidade desse texto.

a) Identifique pelo menos três vocábulos que comprovam isso e o sentido que esses assumem no texto.

b) Que denominação recebe a variação vocabular identificada por você anteriormente?

4) Observe os usos do substantivo cabeça no texto:

“(...) e falarei sempre que me der na cabeça”.

“Agulha não tem cabeça”.

“Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça (...)”.

a) A palavra cabeça assume o mesmo sentido em todas os contextos ilustrados anteriormente? Justifique.

b) Explique em qual dos contextos exemplificados há um uso ambíguo do vocábulo cabeça.

5) Emprega-se, em alguns momentos do texto, o modo verbal imperativo, que é usado para expressar ordem, pedido, recomendação, alerta, sugestão, convite, conselho, súplica, entre outros usos. Observe um desses casos:

“Faze como eu, que não abro caminho para ninguém”.

a) Retire do texto outro exemplo de imperativo.

b) Explicite o sentido que ele expressa.

6) Nos exemplos apresentados a seguir, a preposição “para” foi usada como conector relacionando ora palavras, ora orações.

“Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile”.

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A polifuncionalidade do conector para Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre

“Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela”.

a) Identifique nos trechos apresentados anteriormente a palavra e a oração com a qual a estrutura introduzida por “para” se relaciona.

b) Retire do texto um exemplo de cada uso indicando o elemento com o qual a estrutura introduzida por “para” se refere.

7) Observe as orações sublinhadas nos exemplos a seguir bem como a pontuação entre elas empregada:

“Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética”.

“A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário”.

a) Que relação de sentido as orações exprimem?

b) Qual dos sinais de pontuação empregado se mostra mais expressivo? Justifique sua resposta.

8) A pontuação pode ser usada como recurso para destacar um determinado objetivo comunicativo. Atualmente, verifica-se na língua escrita a separação por ponto final de uma estrutura oracional com ideia de finalidade contrastando com o uso da vírgula que é mais frequente. Analise os trechos a seguir e responda:

“Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela”.

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si. Para não andar atrás dela. (adaptado)

a) Que diferença, no que se refere ao propósito comunicativo, se verifica na estrutura sublinhada e separada por ponto final?

b) Comparando os dois usos dos sinais de pontuação, você verifica algum problema neles? Justifique sua resposta.

9) O último parágrafo do texto provoca uma ruptura com o desenvolvimento da narrativa.

a) Que recursos linguísticos contribuem para essa quebra?

b) De que forma as palavras do professor se relacionam com o resto do apólogo?

Sugestão de respostas

Questão 1

a) A agulha e a linha.

b) A figura identificada é a personificação.

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A polifuncionalidade do conector para Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre

Questão 2

a) Sequência textual narrativa.

b) A ruptura é identificada no último parágrafo do apólogo.

Questão 3

a) As palavras são: “novelo”, “enrolada”, “alfinete”, “coso” (e suas flexões), “vestidos”, “enfeites”, “pano”, “modista”, “costureira” e “costura”.

b) Ao campo semântico de costura.

Questão 4

a) Os vocábulos são: “coser”, “decerto” e “feição”. Esses vocábulos assumem o sentido de: costurar, certeza e forma, respectivamente.

b) Pode ser identificada a variação temporal ou diacrônica.

Questão 5

a) Podem ser identificados os sentidos de mente, ponta e caixa craniana, respectivamente.

b) No segundo contexto, pode-se identificar o sentido denotativo referente à ponta da agulha e o sentido conotativo, que se refere à provocação da personagem Linha em dizer que a Agulha é desprovida de raciocínio.

Questão 6

a) “Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros” ou “— Anda, aprende, tola”.

b) No primeiro exemplo, o sentido explicitado é de sugestão e, no segundo, de ordem.

Questão 7

a) “a costura” e “que tinha a modista ao pé de si”.

b) ‘Para’ não oracional:

“Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?”

‘Para’ oracional: “Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas”.

“A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário”.

“E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha (...)”

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Questão 8

a) As orações exprimem a relação de finalidade, propósito.

b) O uso do travessão destaca mais a oração introduzida por “para” do que a vírgula, recurso empregado com mais frequência.

Questão 9

a) A estrutura ganha maior destaque porque ela fica isolada do período anterior e, por isso, dá mais ênfase à ideia de não haver modista ao pé de si.

b) Resposta pessoal. Espera-se que o aluno perceba que, do ponto de vista da comunicação, não há nenhum problema.

Questão 10

a) O uso da 1ª pessoa; a presença de um personagem humano; o emprego do vocábulo melancolia se referindo ao Professor.

b) As palavras do Professor se assemelham a uma moral para o texto, ressaltando que, apesar do trabalho da Agulha e da Linha, no final, só a Linha é valorizada.

As atividades propostas evidenciam que é necessário que os profissionais da área de educação reflitam sobre a linguagem humana a partir de construções reais da língua portuguesa e que o desgarramento com PARA e os novos usos sintáticos e semânticos desse conector sejam tratados como opções de uso disponíveis para o falante elaborar seu texto, deixando de ser consideradas como “erros”5.

5. CONSIDERAÇÕES FINAISConforme comprovado pelos resultados da análise dos dados dos roteiros, é possível afirmar que PARA é

polifuncional, o que não é contemplado pela descrição das Gramáticas Tradicionais. Foram analisadas cláusulas encetadas pelo conector para em estruturas hipotáticas, hipotáticas desgarradas, completivas, relativas e estruturas que podem apresentar mais de uma leitura hipotática.

Como introdutor de cláusula completiva, PARA apresenta comportamento de conjunção integrante e mantém uma relação de complementação com o sintagma verbal. No entanto, como introdutor de cláusula relativa, PARA mantém uma relação de complementação em relação ao sintagma nominal que o antecede. Além da impossibilidade de mobilidade, característica também de PARA como introdutor de completiva, PARA introdutor de relativa pode ser substituído por um pronome relativo por se comportar como tal.

No que se refere ao conteúdo semântico veiculado por PARA, o de finalidade teve o maior número de ocorrências, por ser este o conteúdo prototípico veiculado por ele. Contudo, em contextos reais de interação, este conector apresenta a possibilidade de uma outra leitura semântica - a de consequência. Tal conteúdo semântico,

5 Segundo Travaglia (1997, p.63), "a norma (culta, da classe de prestígio) constitui o português correto; tudo o que foge à norma representa um erro". Ainda conforme Travaglia (1997, p.30-31), "a gramática normativa apresenta e dita normas de bem falar e escrever, normas para a correta utilização oral e escrita do idioma, prescreve o que se deve e o que não se deve usar na língua".

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A polifuncionalidade do conector para Rachel de Carvalho Pinto Escobar Silvestre

no entanto, só é possível se forem verificados alguns critérios nos usos de PARA, como a impossibilidade de a estrutura por ele iniciada poder sofrer clivagem, de possuir mobilidade e a presença de expressões como bastante, suficiente, muito, que diferenciam a leitura consecutiva de uma cláusula introduzida por PARA de uma leitura final.

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DECAT, Maria Beatriz Nascimento. Aspectos da gramática do português: uma abordagem funcionalista. Campinas: Mercado de Letras, 2001. 232p.

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Para além das classes: a multifuncionalidade de tipo

Heloise Vasconcellos Gomes Thompson1

1 Professora de Língua Portuguesa e Língua Inglesa no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutoranda em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa) pela mesma universidade. E-mail: [email protected]

RESUMOFaz-se, neste artigo, uma breve descrição dos diferentes usos de tipo no português brasileiro, com base nos resultados encontrados por Thompson (2013), utilizando como suporte a teoria funcionalista. Partimos da hipótese de que o item sob análise seja multifuncional, admitindo funções [+ lexicais] e [+ gramaticais]. Acreditamos, ainda, que tipo se encontre em processo avançado de gramaticalização, apresentando, inclusive, usos mais discursivos. Recorremos a quatro diferentes corpora para coletar dados do item tipo na língua portuguesa do Brasil: o corpus Varport, o corpus D&G, roteiros de filmes brasileiros e postagens da rede social Facebook. Após a coleta e análise de dados, constatamos nove diferentes usos para o item, levando em consideração sua forma e seu conteúdo dentro do cotexto e contexto linguísticos: substantivo [- genérico], substantivo [+ genérico], substantivo delimitador, articulador modificador, articulador delimitador, articulador de comparação, articulador de aproximação, articulador de adendo e marcador discursivo. Tendo em vista os nove usos de tipo, podemos alocá-lo em três diferentes classes: a dos substantivos, a dos articuladores e a dos marcadores discursivos. Seus usos, porém, não são homogêneos dentro dessas classes, apresentando, portanto, subclassificações. Em outras palavras, o item apresenta três funções diferentes (substantivo, articulador e marcador discursivo), as quais se realizam de nove maneiras distintas.

Palavras-chave: classe de palavras; tipo; multifuncionalidade; Funcionalismo.

ABSTRACTThis article briefly describes the different uses of the word tipo in Brazilian Portuguese based on the results found by Thompson (2013), using the functionalist theory as our basis. We assume that such item is multifuncional, allowing either [+ lexical] or [+ grammatical] functions. Moreover, we believe that tipo is undergoing an advanced process of grammaticalization, already presenting more discursive uses. In order to gather data to accomplish the goal of our research, we analyzed four different corpora: D&G corpus, Varport corpus, Brazilian film scripts, and posts taken from Facebook. After collecting and analyzing the data, we found three functions for the word tipo: noun, linker and discourse marker. Such functions do not present homogeneous behavior, though. These functions of tipo can be materialized in different ways within their word classes. In this sense, we identified nine different uses for tipo, which pass over the classes: [- generic] noun, [+ generic] noun, delimiting noun, delimiting linker, modifying linker, approximation linker, comparison linker, addendum linker, and discourse marker. Such uses were identified by taking into consideration the linguistic co-text and context in which the structures were involved. We can affirm, then, that the word tipo presents three different functions, which are produced in nine different ways.

Keywords: word classes; tipo; multifunctionality; Functionalism.

INTRODUÇÃOTendo em mente a noção de que as línguas apresentam caráter emergente, ou seja, estão em constante

reformulação, e que a gramaticalização é um processo de mudança linguística, podemos analisar itens de nossa língua sob novas perspectivas. Nesse sentido, uma mesma palavra ou expressão pode apresentar em cotexto e

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Para além das classes: a multifuncionalidade de tipo Heloise Vasconcellos Gomes Thompson

contextos1 específicos diferentes usos, sendo passível de diferentes análises de acordo com os atributos apresentados. No Português do Brasil (PB), o comportamento da palavra tipo mostra-se bastante intrigante. Seu uso parece não se restringir mais a contextos estritamente lexicais e seu comportamento nos permite classificá-lo como item multifuncional. Observemos os exemplos a seguir:

(1) Quer conhecer um tipo azarado? Sou eu. Em janeiro bati o carro, não tinha seguro. Quando consertou, roubaram o rádio. Emprestei o último dinheiro a um amigo, ele não me paga. Fui a um baile, não dancei e acabei apanhando. Comprei um carro velho, atrasei as prestações e o dono tomou de volta.

(Roteiro de “Conceição – autor bom é autor morto”, 2007)

(2) E: ele contou como é que era o tamanho da baleia? se era grande...

I: não... ele não contou... ( ) só falou que... era tipo uma ilha só que não era muito grande... (entendeu?) aí eu fiquei assim... eu não acreditei muito não... né? mas...

(Corpus D&G - Informante 9, feminino, 15 anos, ensino fundamental, Niterói, oral, narrativa recontada)

No exemplo (1), a palavra tipo tem função de substantivo, podendo ser parafraseada por “pessoa”. Uma prova de que o item pode ser analisado como tal é o fato de ser precedido pelo artigo “um”. Em (2), por sua vez, tipo funciona como item responsável por conectar elementos dentro da oração. Além disso, podemos identificar, no item, um valor semântico comparativo, similar ao da conjunção comparativa como. No caso apresentado em (2), tipo não pode ser analisado como substantivo, visto que, ao tentarmos flexioná-lo (*era tipos uma ilha) ou aplicar estratégias de derivação (*era tipão uma ilha), propriedades típicas dos membros dessa classe de palavras, a cláusula se torna agramatical. Com base nesses dois casos apresentados, temos pistas do caráter multifuncional do item, já que pode cumprir diferentes papéis dentro da oração.

A defesa desse ponto de vista pressupõe a adoção da ideia de que as unidades linguísticas não são discretas. Em outros termos, as classes de palavras não formam grupos que se opõem uns aos outros de forma categórica, mas envolvem níveis, gradação, ou seja, formam um continuum, que sofre pressões dos usos linguísticos nos mais variados contextos de interação linguística. Sendo assim, tipo, item tema deste artigo, prototipicamente classificado como substantivo pelas gramáticas tradicionais, apresenta, nos usos linguísticos atuais, novas possibilidades de categorização.

Gonçalves et al (2007, p. 166) já haviam apontado a possibilidade de tipo apresentar função2 diferenciada em contextos de uso específicos na língua. Segundo esses autores, “a palavra tipo é empregada como um conector recorrente no uso cotidiano dos jovens adolescentes em centros brasileiros”. Tal pressuposto reforça nosso interesse pela análise dos diferentes usos desse item, visto que, ao nos depararmos com estruturas do português brasileiro da atualidade, percebemos que tipo apresenta diversas realizações além de seu uso prototípico como substantivo. Essas realizações distintas, entretanto, na maioria dos casos, não aparecem descritas e nem analisadas em compêndios gramaticais ou estudos linguísticos.

Diante desse cenário, este artigo pretende descrever os diferentes usos de tipo no PB, baseando-se na teoria funcionalista. Partimos da hipótese de que o item seja multifuncional, admitindo funções [+ lexicais] e [+

1 Nesta pesquisa, diferenciamos “cotexto” de “contexto”, utilizando o primeiro termo para nos referir a aspectos estritamente linguísticos e o segundo, para aspectos extralinguísticos.

2 Entendemos como função o papel exercido por determinado item ou expressão em seu(s) cotexto(s) e contexto(s) de uso.

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gramaticais]. Acreditamos, ainda, que o item se encontre em processo avançado de gramaticalização, apresentando até mesmo usos mais discursivos. Para tanto, organizamos nosso trabalho da seguinte maneira: após introduzirmos nosso tema, apresentamos os pressupostos teóricos que fundamentaram nossa análise; em seguida, descrevemos as funções de tipo, ilustrando seus vários usos nos corpora analisados; com base na descrição feita, propomos nosso continuum de mudança para tipo; posteriormente, apresentamos uma proposta de articulação de nossa descrição com o ensino; por fim, concluímos nosso artigo e elencamos as referências bibliográficas utilizadas.

1. SUPORTE TEÓRICO: NOÇÕES DA TEORIA FUNCIONALISTAEste trabalho encontra, na teoria funcionalista, embasamento para sustentar sua hipótese de que um item

como tipo pode apresentar mais de uma função dentro do sistema da língua. O Funcionalismo preza pela descrição das estruturas linguísticas dentro de seu contexto de uso. Seguindo esse ponto de vista, Neves (2001, p. 39) aponta que “a função das formas linguísticas parece desempenhar um papel predominante” em sua categorização, o que nos leva a analisá-las para além de suas estruturas isoladas, levando em conta, portanto, seus usos nos mais variados contextos linguísticos.

Para os funcionalistas, a língua é entendida como sistema parcialmente autônomo, ou seja, não deve ser vista como totalmente independente de forças externas, mas como resultado da interação entre forças internas e externas a seu sistema. Assim, acreditamos que aspectos pragmático-discursivos também são essenciais para a descrição e o entendimento do uso das formas linguísticas.

Nossa visão de língua é a de que esta seja uma entidade dinâmica que se (re)formula por meio da interação de seus usuários. Desse modo, de acordo com o pensamento funcionalista, podemos compreender melhor a inserção de “novas” estruturas no sistema linguístico. Por ser a língua um sistema adaptativo e estar em constante reformulação, novas estruturas surgem a partir dos diferentes usos realizados pelos falantes. Essas “novas estruturas”, porém, dificilmente constituem-se de novas formas linguísticas, mas representam o recrutamento de velhas formas para novos significados e/ou usos. Dessa maneira, não é rara a utilização de itens e construções lexicais para usos mais gramaticais, ou ainda, para usos com finalidades discursivas e interacionais. Tal fenômeno é chamado, pelos estudiosos funcionalistas, de gramaticalização (cf. Heine, 2003). É o que verificamos, por exemplo, com tipo, prototipicamente substantivo, que passa a funcionar como articulador de comparação —ou conjunção subordinativa comparativa, nos termos da tradição gramatical —, um dos usos do item que mostraremos mais adiante.

Baseados em tais preceitos funcionalistas, partimos, então, para a descrição dos diferentes usos do item tipo na estrutura do PB, de acordo com alguns estudiosos da língua.

2. TIPO E SUAS FUNÇÕES: DESCRIÇÃO DO FENÔMENO2.1. As visões dos estudiosos

De maneira geral, o item tipo encontra classificação nos compêndios gramaticais para seu uso mais lexical. Dessa forma, pode ser alocado no grupo dos substantivos, ou seja, das palavras “com que nomeamos os seres em geral, e as qualidades, ações, ou estados, considerados em si mesmos, independentemente dos seres com que se relacionam” (ROCHA LIMA, 2006, p. 66).

De fato, o item tipo pode apresentar caráter lexical e funcionar como substantivo em determinados contextos. Parece-nos, porém, que tal classe gramatical não esgota as diferentes possibilidades de realizações do item na língua portuguesa do Brasil.

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Com base na definição dada por Rocha Lima (2006, p. 66), podemos afirmar que substantivos são palavras autônomas semântica e gramaticalmente: “considerados em si mesmos, independentemente dos seres com que se relacionam”. No exemplo (3), indicado a seguir, o uso de tipo corrobora o pensamento do estudioso. Observemos:

(3) A porta do elevador abre e aparecem dois tipos mal-encarados: o “Gangster” que matou o vizinho de Tito na SEQ.06 e seu “Comparsa”. São uma espécie de “Don Corleone & Stan Laurel”, com o comparsa magro sempre mexendo na gravata como fazia o “Gordo”. Os dois caminham até o guichê da telefonista para falar com Josefa.

(Roteiro de “A hora mágica”, 1998)

Em (3), tipo funciona como substantivo. Apresenta sentido similar ao da palavra “indivíduo”, fazendo referência a um ser do mundo biossocial, tendo, assim, autonomia semântica. Também é autônomo sintaticamente, já que não precisa estar “ancorado” em outros itens para que apareça e tenha significado na sentença. Além disso, está flexionado quanto ao número e tem modificadores que tanto o antecedem (“dois”) quanto o seguem (“mal-encarados”).

Esse uso, entretanto, não é a única possibilidade de realização para o item. Ao analisarmos outros dados reais do PB, verificamos que a autonomia de que falamos anteriormente não está sempre presente nos usos de tipo como substantivo. Atentemos para o exemplo (4):

(4) Quando eu tiro a pizza do forno enrolo em um plástico tendo o cuidado para não deixar ar, isso se eu quiser guardá-la. Ela só dura uns 2 dias no máximo na geladeira. Eu geralmente faço dois tipos de pizza, a muzzarella e a de presunto. Eu preparo um molho para cobrir a massa.

(Corpus D&G – Informante 1, masculino, 26 anos, Ensino Superior, Natal, Escrita, Relato de Procedimento)

Em (4), tipo também apresenta função de substantivo, sendo modificado pelo numeral “dois” à esquerda e apresentando flexão de número. No entanto, diferentemente do que ocorre em (3), seu grau de autonomia não é o mesmo, já que seu conteúdo é complementado pelo sintagma preposicional que o segue ─ “de pizza”.

Diante dos fatos apresentados, ao seguirmos os critérios apontados por Rocha Lima (2006) para a classificação dos substantivos, a alocação de tipo nessa classe fica comprometida. Ainda são poucos os estudos que buscam abarcar em sua descrição e análise usos menos autônomos de itens lexicais como tipo, mas encontramos em Moraes de Castilho (1991) algumas pistas do processo de mudança do item em foco.

Moraes de Castilho (1991) sugere, em seu trabalho, que o item tipo, além de sua função nominal, juntamente com a preposição de, funcionaria como um advérbio delimitador aproximador. Para a autora, estruturas como a de “tipo de X” servem como modalizadores de um constituinte da sentença, delimitando sua interpretação semântica. Para ela, tipo de funciona como especificador do SN que modifica, sendo este o núcleo da estrutura. Os delimitadores aproximadores serviriam, então, para categorizar e predicar “a classe sujeito indicando que ela não é um membro representativo de sua categoria” (MORAES DE CASTILHO, 1991, p. 94). Em outras palavras, em um trecho como “nós fazemos um tipo de frequência, né?”3, a estrutura “um tipo de” serve para delimitar o SN “frequência”, indicando que esta não é membro prototípico de sua classe, apresentando significação aproximada daquela do membro prototípico, dentro de uma escala graduada.

3 Exemplo retirado de Moraes de Castilho (1991, p. 95).

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Apesar de não atestar tal aspecto em sua dissertação, a pesquisadora chama atenção, ainda, para a possibilidade de os delimitadores aproximadores, como tipo de, servirem a fins mais discursivos. A estudiosa diz que apresentam “pelo menos dois papéis pragmáticos: o de atenuador e o de preenchedor de pausas como estratégia de planejamento do que está sendo falado” (MORAES DE CASTILHO, 1991, p. 170).

Lima-Hernandes (2005) também realizou estudo sobre o item analisado neste artigo. Em sua tese de doutorado, faz uma análise dos deslizamentos funcionais de tipo. Segundo a autora, tais deslizamentos têm sua causa em fatores sociais, cotextuais e contextuais. Lima-Hernandes (2005) reconhece a possibilidade de tipo funcionar como juntor e, até mesmo, como marcador discursivo. Em seu trabalho, descreve seis diferentes usos para o item, sendo eles: substantivo referenciador, substantivo classificador, preposição exemplificativa, conjunção comparativa, delimitador aproximativo e marcador discursivo.

Na descrição da estudiosa, o uso de tipo como substantivo referenciador englobaria os casos em que este pode ser parafraseado pela palavra “pessoa” e apresenta as propriedades formais dos substantivos prototípicos: flexão de número, derivação de grau, coocorrência com determinantes e modificadores. O exemplo a seguir, retirado de um dos corpora utilizados por Thompson (2013), ilustra o uso descrito pela autora.

(5) Eles continuam a conversa. Um tipo suspeito observa dissimuladamente a conversa.

(Roteiro de “O dia em que meus pais saíram de casa”, 2006)

No exemplo (5), tipo apresenta um uso substantival, sendo modificado pelo artigo indefinido “um” à esquerda e pelo adjetivo “suspeito” à direita. Em tal cotexto, uma reescritura possível seria: “Uma pessoa suspeita observa dissimuladamente a conversa”.

Lima-Hernandes (2005) chama de substantivo classificador os casos em que tipo se apresenta junto da preposição “de”, podendo ser parafraseado por “espécie, modelo”. Esse uso também apresenta as propriedades formais dos substantivos em geral. Suas realizações podem ser de dois tipos: [um/o tipo de + N] ou [SN desse tipo]. O exemplo (4) ilustra a segunda possibilidade para tal caso:

(6) Ela tem certa gamação por mim que é fora do comum. O que ela puder fazer por mim, ela faz. O tipo de pessoa que, assim, qualquer coisa que eu depender dela – e eu também faço por ela que eu gosto dela demais, né?

(E42-PEUL-Amostra 00)4

O terceiro uso de tipo descrito pela autora abarca sua função mais preposicional, ligando, assim, dois sintagmas nominais. Nesses casos, o item apresenta conteúdo semântico exemplificativo. Outra possibilidade de uso para o item apresentada por Lima-Hernandes (2005) é a de conjunção comparativa, em que introduz uma oração dessa natureza e admite a substituição pela conjunção comparativa prototípica “como”. Vejamos os exemplos a seguir5:

(7) num sei se é lei ou alguma coisa assim que eles têm que tê [uma]...um seguro pro...oferecê um seguro [pro]...para os funcionários, né? por causa do perigo [da]...da profissão, né? tem empresas assim...

4 Exemplo retirado de Lima-Hernandes (2005, p. 70).

5 Os exemplos 5 e 6 foram retirados de Lima-Hernandes (2005, p. 71).

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indústrias normalmente ó, tipo a Colgate, que agora é Colgate com...e a Kollynos, né? se uniram, também porque são empresas que lidam [com]...com muitos funcionários, né? tem empresas assim que têm...ah empresas [de]...[de]...[de]...de transporte rodoviário, a empresa de ônibus, né?

(E63-PEUL-Recontato)

(8) Vai morar para lá, (“então”) carrega sua família. Tem muitos capixabas, tem muitos cariocas, gaúchos, mineiros. Mineiro dá muito! Então, aí é tipo uma colônia, não é?

(E23-PEUL-Amostra 80)

Em (7), o item tipo funciona como preposição exemplificativa, nos termos de Lima-Hernandes (2005), introduzindo um sintagma que ilustra as “empresas” que o falante menciona em seu discurso. No exemplo (8), tipo introduz uma oração comparativa — é tipo colônia — e pode, claramente, ser substituído pela conjunção “como” – é como colônia. Note-se, neste caso, a elipse do verbo (é), uma das propriedades elencadas no âmbito da tradição gramatical para caracterizar estruturas comparativas. 6

A autora ainda explicita dois usos mais discursivos para o item tipo. Seu uso como delimitador aproximativo serve como indicador de imprecisão, aproximação no discurso. Nesse caso, o item não admite nenhuma espécie de modificação. Observe o exemplo a seguir, retirado de Lima-Hernandes (2005, p. 72):

(9) cada dia era uma coisa diferente, enquanto isso a casa ia ficando o caos, mas aquele momento que eu chegava, assim, tipo oito horas da noite, microondas é uma coisa, assim, muito rápida, então você oito horas tinha alguma coisa pronta pro jantar, uma coisa diferente (inint), agora não que num vira mais novidade, né?

Finalmente, outro uso de tipo é o de marcador discursivo. Lima-Hernandes (2005) aponta que, em tais casos, o item funciona como finalizador de subtópico e se apresenta acompanhado do advérbio assim. A estudiosa acrescenta, ainda, que o item sozinho também pode funcionar como sinalizador de digressão, organizando a sequência tópica da conversa.

Outro linguista que reconhece usos não prototípicos para tipo é Castilho (2010). Em sua Nova Gramática do Português Brasileiro, o estudioso defende a possibilidade de haver variações no interior da língua. Como exemplo de variação no PB, menciona o caso de tipo. O autor sugere que tal item seria inicialmente núcleo de um sintagma nominal que, através da reanálise, passa a operar como especificador em expressões como “um tipo de + N”. Além disso, Castilho (2010) cita os casos em que tipo funciona como advérbio delimitador, retomando um pouco o trabalho de Moraes de Castilho (1991). Reconhece, ainda, os usos mais conjuncionais do item.

Apesar de não encontrarmos muitos estudos na literatura linguística acerca do item tipo, ao considerarmos os estudos de Moraes de Castilho (1991), Lima-Hernandes (2005) e Castilho (2010), percebemos que, ao contrário do que nossas gramáticas em geral sinalizam, tipo é muito mais do que um substantivo. Mais ainda, percebemos que seus diferentes usos representam a reformulação do sistema linguístico do português, propriedade recorrente das gramáticas, que estão sempre sofrendo pressões internas e externas a si, possibilitando mudanças.

6 Para mais informações acerca das estruturas comparativas, conferir Rodrigues (2001, 2013).

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Nas próximas subseções deste artigo, apresentam-se os resultados encontrados por Thompson (2013) no que diz respeito aos usos de tipo. Tais resultados ajudam numa descrição mais fiel dos usos desse item, em correspondência com materializações reais do PB.

2.2. A nossa visãoPara a realização deste artigo, recorremos a quatro diferentes corpora para coletar dados do item tipo na língua

portuguesa do Brasil: o corpus Varport, o corpus D&G, roteiros de filmes brasileiros e postagens da rede social Facebook. Após extensa coleta e análise de dados, constatamos nove diferentes usos para o item tipo, levando em consideração sua forma e seu conteúdo dentro do cotexto e contexto linguísticos, sendo eles: substantivo [- genérico], substantivo [+ genérico], substantivo delimitador, articulador modificador, articulador delimitador, articulador de comparação, articulador de aproximação, articulador de adendo e marcador discursivo.

Os nove usos encontrados para tipo podem ser alocados em três diferentes classes: a dos substantivos, a dos articuladores e a dos marcadores discursivos. Seus usos, porém, não são homogêneos dentro dessas classes, apresentando subclassificações. Em outras palavras, o item apresenta três funções diferentes (substantivo, articulador e marcador discursivo), as quais se realizam de nove maneiras distintas.

A seguir, descreveremos detalhadamente todas as possibilidades de uso que encontramos para o item em nossos corpora e apresentaremos as classificações e subclassificações, por nós propostas, a fim de que compreendamos mais claramente o processo de mudança do item e suas diferentes funções.

2.2.1. Usos de tipo como substantivoA classe dos substantivos abarca as palavras que exercem função sintática de núcleo do sujeito, objeto (direto

ou indireto) e agente da passiva. Em sua forma, podem apresentar flexão de gênero e número. Quanto ao sentido, podem nomear seres, lugares, sentimentos, objetos etc.

Dentro da classe dos substantivos, portanto, os usos de tipo subdividem-se em três grupos: o de substantivo [- genérico], o de substantivo [+ genérico] e o de substantivo delimitador.

Substantivo [- genérico]

O item tipo funciona como substantivo [- genérico] quando faz referência a um ser específico, [+ humano], podendo ser parafraseado por “indivíduo, pessoa”. Nesse caso, pode apresentar flexão de número, derivação quanto ao grau, modificadores e determinantes. Observemos os exemplos a seguir:

(10) Tito, um pouco perturbado, cumprimenta os dois tipos.

(Roteiro de “A hora mágica”, 1998)

(11) STAN: O tipinho é muito assustado. Não tá acostumado com nosso tipo de negócio.

(Roteiro de “A dama o cine Shangai, 1987)

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Em (10), o item tipo funciona como substantivo, podendo ser substituído pela palavra “indivíduos”, sem muitas mudanças de interpretação nesse cotexto. Em tal cotexto, o substantivo encontra-se flexionado quanto ao número e apresenta o numeral “dois” como seu modificador. Observando o exemplo, percebemos que tipos se refere a um ser de referência específica, sendo, assim, [- genérico]. Além disso, seus atributos formais correspondem aos dos membros mais prototípicos da classe dos substantivos. Em (11), também temos tipo funcionando como substantivo que se refere a um indivíduo, mas, nesse cotexto, ocorre, ainda, a derivação de diminutivo, propiciando uma interpretação de cunho depreciativo e corroborando o caráter estritamente nominal do item.

Substantivo [+ genérico]

Quando funciona como substantivo [+ genérico], tipo apresenta semântica um pouco diferenciada. Ao desempenhar essa função, o item indica “modelo” e faz referência a um representante de determinada classe. O exemplo a seguir deixa tal comportamento mais evidente:

(12) 4 EXT. RECEPÇÃO DO MOTEL - NOITE 14

Um carro último tipo da época parado na recepção do motel. Um HOMEM com pinta de playboy pega o documento que a Recepcionista, a mesma da cena anterior, entrega para ele.

(Roteiro de “Cidade de Deus”, 2002)

No exemplo (12), tipo funciona como substantivo, sendo o núcleo do sintagma nominal “último tipo da época”. Nesse cotexto, o item pode ser parafraseado por “modelo”, apresenta modificadores ligados a si e até poderia sofrer flexão de número. O que diferencia esse uso do descrito anteriormente é, basicamente, o conteúdo semântico. Tal separação justifica-se pelo fato de, em nossa perspectiva, forma e conteúdo serem ambos de extrema importância para a análise. É exatamente o conteúdo semântico que, em um continuum dentro da classe de substantivos, o deixa um pouco mais afastado do elemento prototípico, já que não faz referência a um ser específico e que não é necessariamente animado.

Substantivo delimitador

O terceiro uso nominal de tipo é um pouco diferenciado dos outros, encontrando-se ainda mais distante do modelo prototípico de substantivo. Quando exerce a função de substantivo delimitador, tipo apresenta-se juntamente com o articulador de, em uma fórmula que delimita, modifica o SN a que se liga. Apesar de apresentar os atributos formais de um substantivo prototípico, seu conteúdo semântico é mais esvaziado, podendo ser parafraseado por “espécie de”. Em (13), temos um exemplo em que tipo funciona como substantivo delimitador:

(13) aí eu fiz uma plástica ... tive que fazer uma plástica aqui e aqui né ... e se tivesse sido até ... talvez se tivesse sido outro tipo de ... de ... operação ... tivesse costurado assim ... talvez hoje tivesse apa/ aparecendo a ... a marca né?

(Corpus D&G - Informante 1: Carlos, masculino, 26 anos, ensino superior, Natal, língua oral, narrativa de experiência pessoal)

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Em (13), tipo, por si só, não faz referência a ser algum, mas precisa do SN a que se liga para que seja autossuficiente comunicativamente. Em outras palavras, a fórmula “tipo de” foi utilizada para, de alguma forma, delimitar o sentido do SN “operação”. Ao interpretarmos o segmento “tipo de operação”, abrimos um leque de possibilidades em nossa mente, que corresponde às diversas formas de operação. Tal interpretação só é possível por meio do uso da forma “tipo de”. Vale ressaltar que, já nesse uso, percebemos perda de autonomia do item, já que, sozinho, ele não apresenta autossuficiência comunicativa. Essa constatação pode ser o primeiro indício de mudança categorial sofrida pelo item.

Em seu estudo, Moraes de Castilho (1991) classifica estruturas semelhantes a que encontramos em (13) como advérbios delimitadores aproximadores. Diferentemente da autora, em nossa proposta, optamos por manter a classificação de substantivo em nossa análise justamente por acreditarmos na gradiência e fluidez das classes. Taylor (1989, p. 41) afirma que “no que concerne à caracterização de uma entidade, isso não é uma questão de averiguar se a entidade possui tal atributo ou não, mas do quão próximas das dimensões ótimas estão as dimensões da entidade7.

Apesar de a forma “tipo de” não apresentar todos os atributos de um substantivo prototípico, ela ainda preserva outros que a mantém dentro da classe. Vale ressaltar que, dentro de uma escala de prototipicidade, tipo de se encontraria mais distante dos substantivos prototípicos e um pouco mais próximo dos advérbios. Para nossa análise, tal fato não é um problema e, sim, mais um argumento que nos ajuda a entender a possibilidade de migração entre as classes de palavras. O esquema a seguir representa a distribuição dos usos de tipo substantivo em uma escala de prototipicidade.

Esquema 1 Escala de prototipicidade para os usos de tipo substantivo

2.2.2. Usos de tipo como articuladorA classe dos articuladores engloba os vocábulos que funcionam sintaticamente como elos, que podem ligar

palavras, sintagmas, cláusulas e até porções de texto. Semanticamente, os articuladores apresentam esvaziamento de sentido, porém, por ser uma classe que apresenta grande quantidade de elementos originados de outras classes, podem apresentar resquícios de significado da classe de origem. Quanto à sua forma, os articuladores, em sua maioria, não apresentam flexão.

Os usos de tipo como articulador envolvem diversas estruturas. Nossos dados apontam que tipo pode ligar diferentes elementos, desde palavras até porções de texto. Em sua função como articulador, tipo apresenta cinco diferentes usos, sendo eles: articulador modificador, articulador delimitador, articulador de comparação, articulador de aproximação e articulador de adendo.

7 “in categorizing an entity, it is not a question of ascertaining whether the entity possesses this attribute or not, but how closely the dimensions of the entity approximate to the optimum dimensions” (TAYLOR, 1989, p. 41).

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Articulador modificador

Seu uso como articulador modificador constitui-se dos casos em que tipo liga dois nomes, explicitando uma relação de semelhança entre eles. Atentemos para seu uso no exemplo a seguir:

(14) O piso é bege e vindo da esquerda para a direita, tem o fogão de quatro bocas, um armário de azulejos com tampo inox e portinhas de madeira (dentro estão minhas garrafas!), depois o refrigerador duplex, um armário de canto, que fica com a lava-louças e ao lado, já na curva, tem um pequeno armário com quatro gavetas para: talheres, panos de prato, toalhas, bugigangas.

Tudo é, de madeira tipo cerejeira, até os armários aéreos que na mesma ordem, guardam, meus eletrodomésticos, meus pratos e xícaras, um fininho acima do refrigerador, com panos e toalhas mais novos, um para os copos, um grandão de canto para as louças maiores (que eu detesto!) e outro, na curva, que fica as compras, ou seja, funciona como uma pequena despensa.

(Corpus D&G - Informante 2: Lisandra, feminino, 23 anos, Rio Grande, ensino superior, língua escrita, descrição de local)

Em (14), tipo está ligando o nome “madeira” ao nome “cerejeira”, ressaltando a relação de semelhança existente entre eles. Nesse uso, diferentemente de seus usos mais nominais, o item não pode apresentar nenhum tipo de flexão ou derivação, o que reforça sua função de articulador. Cumpre destacar que a supressão do item tipo faz com que a relação entre os nomes seja de igualdade ─ madeira cerejeira ─ e não mais de semelhança, aproximação.

Recorrendo aos pressupostos funcionalistas adotados em Thompson (2013), podemos associar tal uso ao princípio da iconicidade, postulado por Givón (1990). Esse princípio prevê a relação motivada entre forma e função de elementos linguísticos.

Entendemos que o uso de tipo em tais estruturas é motivado, e não arbitrário. Em busca de mais expressividade, o falante recorre ao uso de tipo para estabelecer a relação de semelhança entre os nomes, já que não há, em nossa língua, outro elemento que desempenhe esse exato papel. Mais ainda, levando em consideração o subprincípio da proximidade, concluímos que estruturas modificadoras introduzidas por tipo apresentam uma comparação menos direta. Lembramos que o subprincípio da proximidade prevê que entidades que se encontram mais próximas funcional, conceptual ou cognitivamente são linguisticamente codificadas próximas umas das outras (temporal ou espacialmente). Nesse sentido, por estarem mais distantes conceptualmente, as estruturas modificadoras introduzidas por tipo são codificadas linguisticamente mais distantes de seu referente, sendo tipo o responsável por concretizar tal distanciamento.

Articulador delimitador

Outro uso de tipo é o de articulador delimitador. Nesse caso, tipo introduz um sintagma que funciona como complemento verbal, evidenciando o caráter impreciso da ação descrita. Observe:

(15) aí tinha uma revistinha... que tinha/ era pra colorir... “co/ de/ pinte... desenhe...” não sei o que lá... aí... a gente pegava... tirava com papel manteiga... colocava em cima do... do desenho dos ursinhos carinhosos... pegava o lápis e ia fazendo o contorno... né? fazendo o desenho... aí chega/ aí depois você tinha que virar o papel... pintar todo por trás de preto... pra fazer tipo papel carbono... a/ e ia pro

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prato... pra porcelana... passava de novo o lápis... por cima... aí ficava o risco... no/ na porcelana...

(Corpus D&G – Informante 8: Priscila, feminino, 17 anos, ensino médio, Niterói, relato de procedimento)

No exemplo (15), tipo introduz o SN complemento de “fazer”. Nesse cotexto, o item serve como delimitador, explicitador da imprecisão da ação realizada. O que se faz não é exatamente “papel carbono”, mas é algo parecido, semelhante a papel carbono. Dessa forma, à semelhança de seu uso como articulador modificador, a inserção do item serve para explicitar uma relação de semelhança entre entidades, dando lugar para a efetivação do princípio da iconicidade. A diferença entre o primeiro uso e o uso como articulador delimitador é que neste caso não há uma ligação explícita entre nomes, o primeiro elemento da comparação encontra-se elíptico e tipo introduz o sintagma-complemento.

Articulador de aproximação

O item tipo também pode funcionar como articulador de aproximação. Esse uso assemelha-se ao uso de locuções prepositivas na tradição, como “por volta de”, ou advérbios, como “aproximadamente”. É utilizado antes de expressões numéricas. Observemos o exemplo a seguir:

(16) A: é relativamente perto do metrô?

B: sim, pertíssimo

A: beleza, vamos marcar sábado então! que horas, mais ou menos? tipo umas 17h?

B: ótimo!! :3

(Comentários no Facebook – 4 de abril de 2012)

No exemplo (16), tipo introduz uma cláusula8, explicitando a noção de aproximação, imprecisão. Diferentemente de outros usos, tipo como articulador de aproximação introduz apenas expressões numéricas.

Articulador de comparação

O uso de tipo como articulador de comparação envolve a ligação entre cláusulas que partilham uma relação comparativa, ou seja, de cotejo entre seus elementos. Chamamos a atenção, aqui, para o fato de que, em nossa abordagem, cláusula não corresponde exatamente a uma oração, nos termos tradicionais. Entendemos por cláusula qualquer estrutura que constitua, nos termos de Chafe (1980), uma unidade informacional9, podendo apresentar ou não formas verbais. Decat (2010) ressalta que as unidades informacionais que compõem as cláusulas geralmente equivalem a uma oração, sim, mas que podem ser qualquer porção de texto, desde um período inteiro, como no caso de cláusulas de complementação, e até mesmo sintagmas soltos.

Quando funciona como articulador de comparação, tipo não apresenta flexão e nenhuma espécie de modificação, sendo, pois, invariável. Vejamos o exemplo a seguir:

8 Consideramos estruturas, como as em (14), cláusulas por constituírem, por si só, uma unidade de informação (Chafe, 1980).

9 Chafe (1980) entende por unidade informacional um “jato de linguagem” que apresenta o máximo de informação que pode ser manipulada pelo indivíduo em um único foco de consciência.

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(17) A: Buenos Aires é a nova Cabo Frio.

B: Mais um motivo pra eu não ir pra lá.

A: Pff.

B: :P

A: Buenos Aires é VIDA. Quero nem saber se virou Cabo Frio.

B: Nunca fui, na verdade.

A: Fui duas vezes e tô pra ir de novo, beijos.

B: Mas que chiqueza

C: novela das 21h, a grande família e agora uma citação em as brasileiras. globo comprou um pacote com a tam pelo jeito.

A: Não é chique. É tipo Cabo Frio e lá o nosso dinheiro vale mais que o dobro. :D

B: A parte do ‘mais que o dobro’ quase me fez ir no site da Tam agora conferir preços de passagem... hahaha

(Postagem e comentários do Facebook – 21 de abril de 2012)

Em (17), tipo liga duas cláusulas “é” e “Cabo Frio (é)”. Em tal estrutura, o item funciona como articulador das cláusulas e, mais que isso, explicita a relação de comparação partilhada por elas. Verificamos, também, que a cláusula comparativa, introduzida por tipo, aparece posposta à sua “principal”10 — é, constituída apenas pelo núcleo verbal — e apresenta o núcleo verbal elíptico — tipo Cabo Frio (é). Tais características são prototípicas das cláusulas tradicionalmente chamadas subordinadas adverbiais comparativas. Se substituirmos o item tipo pelo item como, considerado a conjunção comparativa prototípica pela tradição, não teremos muitos prejuízos de sentido e manteremos a relação de comparação. Inclusive outros itens podem ter função semelhante à de tipo, tais como feito, igual, que nem.11

Articulador de adendo

Tipo também pode introduzir estruturas de adendo, funcionando como articulador entre essas e as estruturas a que se referem. As estruturas de adendo têm a função de detalhar, especificar algo previamente mencionado no discurso e aparecem, na escrita, separadas por vírgulas e, na fala, destacadas por pausa. Tais estruturas introduzidas por tipo podem se materializar de diferentes formas: sintagmas nominais, cláusulas ou, até mesmo, porções textuais maiores.

A seguir, apresentamos três diferentes exemplos de estruturas de adendo introduzidas por tipo:

(18) A: Acho que eu vou declarar luto oficial pela morte do Chico Anysio e não vou à aula.

B: To tentando arrumar uma desculpa mais forte, tipo enchente. Acho que vai dar, hein!

(Postagem e comentário do Facebook – 23 de março de 2012)

10 De acordo com os termos da gramática tradicional.

11 Para maiores informações sobre outros itens que podem encabeçar estruturas comparativas, veja os trabalhos de Rodrigues (2013) e Tota (2013), só para citar alguns.

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(19) PROFESSORA: A televisão, realmente, podia ter um papel educativo importante.

TELMA: Podia, claro! Podia ensinar português, matemática, até alguma coisa útil, tipo fazer um arroz, um café, tem gente que eu conheço que não sabe fazer café!

(Roteiro de “Bendito Fruto”, de 2004)

(20) eu tava meio perdido nos meus objetivos de vida ... é:: eu comecei a questionar todos esses meus é ... pontos de apoio ... que eu tinha naquele momento ... tipo um curso que eu ... de economia ... que eu num sabia nem pra onde ir com economia ... um trabalho que num tinha nada a ver em oitenta e cinco comigo ... que você sabe né?

(Corpus D&G – Informante 4, masculino, 30 anos, ensino superior, Natal, relato de procedimento)

Em (18), tipo introduz uma estrutura de adendo em formato de sintagma nominal. Nesse cotexto, “enchente” especifica, detalha o que o locutor entende por “desculpa mais forte”. Em (19), o item introduz uma estrutura clausal, que é um desdobramento de “alguma coisa útil”. Em (20), por sua vez, tipo introduz uma estrutura mais complexa, constituída de mais de uma cláusula, detalhando o que seriam os “pontos de apoio” do locutor.

2.2.3. Usos de tipo como marcador discursivoConsideramos marcadores discursivos as unidades que funcionam como organizadores tópicos, servindo a

fins mais discursivos e interacionais. Com base em Risso, Silva & Urbano (2006), na Gramática do Português Culto Falado no Brasil (cf. JUBRAN & KOCH, 2006), afirmamos que os marcadores discursivos apresentam três atributos fundamentais para sua identificação, sendo eles: exterioridade ao conteúdo proposicional, independência sintática e falta de autonomia comunicativa.

Segundo Martelotta, Votre e Cezario (1996, p. 20),

tudo o que, num determinado estágio da mudança, é icônico e transparente será ou tenderá a ser, um dia, opaco e aparentemente arbitrário. Logo, prevê-se que, nos estágios finais da trajetória de mudança, os mecanismos de processamento serão mais automáticos e menos transparentes para cada item da língua. (...) (P)assam a significar coisas mais genéricas, menos específicas, mais vagas.

Nesse sentido, acreditamos que o estágio de mudança em que estruturas com o item tipo se encontram é avançado, já apresentando casos de funcionamento como marcador discursivo. Em tais casos, as construções com tipo apresentam valor semântico mais genérico do que aqueles apresentados em outros usos.

Os dados a seguir ilustram o uso de estruturas com tipo funcionando como marcador discursivo12:

(21) olha... a gente::/ eu... eu não estava não... mas uma amiga minha me contou... que foi uma viagem que a gente fez... e:: a gente viajou com... com/ eram/ tinham doze pessoas na casa... e um deles era filho de um deputado... tá? e/ só que ela... ela... ela::... tipo... estava nam/ começou a namo/ namorou não... ficou com o cara lá no carnaval ((riso)) que::... ela achou que... ele que era filho do deputado... entendeu?

(Corpus D&G - Informante 5: Mônica, feminino, 23 anos, Rio de Janeiro, ensino superior, narrativa recontada)

12 Consideramos, em nosso estudo, apenas os dados em que tipo se apresentava isolado, não sendo incluídos, portanto, os casos de tipo assim.

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(22) Guilherme: Pô, sei lá...sabe quê que é... é que de repente eu acho que a galera tinha que fechar mais o filme...tipo, tem que pensar mais nas imagens que a gente quer ... porque pô, cinema é imagem (os outros se manifestam)... não, mas é, é imagem mesmo... (os outros se manifestam com mais veemência).

(Roteiro de “Conceição - Autor bom é autor morto”, 2007)

Em (21) e (22), o item tipo não desempenha papel primordial para a organização interna das estruturas gramaticais em que se insere, mas funciona como reformulador de algo dito previamente. Em (21), o falante decide mudar a maneira de narrar a história e, assim, passar uma informação mais clara para seu interlocutor. Tipo é usado para dar pistas ao interlocutor de que o falante irá reformular o que disse previamente. O mesmo ocorre em (22), o “falante” reformula o que ele entende por “fechar mais o filme”, utilizando o marcador tipo para indicar tal reformulação e, assim, passar uma informação mais clara para seu “interlocutor”. Mesmo (22) sendo um exemplo de um roteiro de filme, portanto, um caso de expressão da língua na modalidade escrita, há momentos em que o roteirista, ao tentar representar/reproduzir a língua oral, usa elementos mais prototipicamente encontrados na oralidade. Por isso, pudemos considerar o uso de tipo em tela como marcador.

Portanto, nos exemplos (21) e (22), tipo apresenta os atributos necessários para que seja identificado como membro da classe dos marcadores. Em tais contextos, o item apresenta exterioridade ao conteúdo proposicional; é independente sintaticamente, visto que se encontra “solto” no discurso; e não apresenta autossuficiência comunicativa. O item não apresenta conteúdo semântico específico, mas se encontra esvaziado, servindo a fins meramente interacionais.

Para Martelotta, Votre e Cezario (1996, p. 33), “os marcadores são usados para viabilizar o processamento das informações na fala, no sentido de marcar para o ouvinte essas reformulações e de ajudar o falante a ganhar tempo para reorganizar suas ideias”. Mais ainda, esses autores apontam que marcadores discursivos são elementos provenientes do léxico que apresentam um valor semântico que é estendido para usos com fins interativos e discursivos. Como nos gêneros discursivos utilizados em nossa análise há a ocorrência de casos como os descritos pelos autores, justifica-se aqui nossa opção de descrição desses usos como marcadores.

3. PARA ALÉM DAS CLASSES: O CONTINUUM DE MUDANÇA DE TIPOOs diferentes usos de tipo deixam evidente sua multifuncionalidade, princípio que prevê que “muitos dos

constituintes de uma construção entram em mais de uma configuração construcional” (NEVES, 2001, p. 64). Dessa forma, ao analisarmos as funções de tipo, afirmamos que este perpassa por diferentes classes (substantivo, articulador e marcador discursivo), evidenciando seu processo de gramaticalização. Tal processo não parece ter-se esgotado, possibilitando a aquisição futura de novas funções para o item.

Os nove usos de tipo distribuem-se dentro das classes de acordo com seus atributos, ora se aproximando mais dos membros prototípicos de cada uma, ora se distanciando dos mesmos. Acreditamos, então, que as classes de palavras não apresentam limites precisos e seus membros não apresentam igual status. Baseados em Taylor (1989) e sua teoria dos protótipos, defendemos que

a categoria não é estruturada em termos de compartilhamento de características criteriais, mas sim por uma rede entrecruzada de similaridades. Há, de fato, atributos tipicamente associados à categoria. Alguns membros partilham alguns desses atributos, outros membros partilham outros atributos. No entanto, não há atributos comuns a todos

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os membros ou a cada um deles em particular. Talvez seja até o caso de que alguns membros tenham praticamente nada em comum com outros (TAYLOR, 1989, p. 38)13.

Taylor (1989) defende a noção de protótipos para a descrição e categorização das formas linguísticas. Nesse sentido, protótipos servem como pontos de referência para a categorização de usos não tão claros. A partir de tal perspectiva, torna-se mais viável a descrição e classificação de usos não prototípicos para formas linguísticas, os quais, muitas vezes, são tratados como desvio às normas.

Ainda sobre os usos de tipo, podemos dizer que são mais facilmente entendidos a partir de um continuum, que evidencia o percurso de sua mudança, saindo do léxico, passando pela gramática e atingindo o discurso.

Meillet (1948 apud Neves, 2001) aponta que a transição de um item ou construção de uma categoria [+ lexical] para uma categoria [+ gramatical] dá-se, geralmente, por meio de um continuum de mudança, sendo uma palavra lexical a fonte primária. Tal pensamento é confirmado por meio da análise do processo de gramaticalização do item tipo. Acreditamos que esse processo tenha seu gatilho no uso como substantivo, ou seja, seu uso [+ lexical], passando por um uso [+ gramatical] ao assumir função de articulador, e atinge o discurso, imprimindo função de marcador.

No esquema a seguir, evidenciamos o continuum de mudança de tipo a partir dos diferentes usos que encontramos em nossa pesquisa.

Esquema 2 Continuum de mudança dos usos de tipo

13 “(…) the category is not structured in terms of shared criterial features, but rather by a criss-crossing network of similarities. There are indeed attributes typically associated with the category. Some members share some of these attributes, other members share other attributes. Yet there are no attributes common to all the members, and to them alone. It may even be the case that some members have practically nothing in common with others” (TAYLOR: 1989, p. 38).

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Com base no Esquema 2, verificamos que as estruturas com tipo apresentam usos intermediários aos três níveis linguísticos — léxico, gramática e discurso. Tal fato reforça a ideia de que processos de mudança linguística se dão nos moldes de um continuum. As estruturas linguísticas apresentam mudanças graduais e a frequência de uso é crucial para que essas mudanças atinjam estágios mais avançados.

Cabe reforçar, mais uma vez, a existência de limites difusos entre as classes gramaticais, viabilizando usos mais ou menos prototípicos e evidenciando a gradiência das classes. Bybee (2010, p. 2) afirma que a gradiência se refere ao fato de muitas categorias da língua ou da gramática serem difíceis de distinguir, devido a mudanças graduais que ocorrem através do tempo, movendo um elemento de uma categoria a outra ao longo de um continuum. Podemos atestar tais pensamentos ao observarmos o Esquema 2, anteriormente representado.

Os diferentes usos de tipo por nós encontrados ainda nos permitem estruturar outro continuum, que leva em consideração usos [+ concretos] e usos [+ abstratos]. Com base em Martelotta, Votre e Cezario (1996), comprovamos, por meio dos usos do item em foco, que palavras que designam fatos reais são (re)utilizadas analogicamente para designar conceitos mais abstratos. Os estudiosos apontam que “é a metáfora que permite que o homem compreenda o mundo das ideias em função do mundo concreto” (MARTELOTTA, VOTRE e CEZARIO, 1996, p. 26). Assim, concebemos a língua como um sistema semântico, ou seja, um sistema de produção de significados por meio de enunciados linguísticos. Esse sistema é de base experiencial, possibilitando a transferência de sentidos do mundo real para os domínios do mundo abstrato. Dessa forma, o processo metafórico apresenta uma trajetória que vai do [+ concreto] para o [+ abstrato].

O continuum de base metafórica para os usos de tipo é representado a seguir.

Esquema 3 Continuum de abstratização dos usos de tipo

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O Esquema 3 pode ser reforçado, ainda, por meio do pensamento de Gonçalves et al (2007, p. 40), que, retomando o trabalho de Heine et al (1991a), defendem que as mudanças nas categorias cognitivas são unidirecionais e ocorrem sempre da esquerda para a direita. Dessa forma, as mudanças são operadas “de categorias cognitivas mais próximas do indivíduo, [+ concretas], para categorias cognitivas mais distantes do indivíduo, [- concretas].” Esse processo de abstratização pode ser representado por meio do seguinte esquema:

Esquema 4 A unidirecionalidade na mudança das categorias cognitivas

pessoa > objeto > processo > espaço > tempo > qualidade

Pensando nos usos de tipo, percebemos que sua trajetória de mudança sai de uma categoria [+ concreta], passando a se referir também a objetos e elementos [- concretos] e, mais adiante, passa a servir como modificador dentro de estruturas qualitativas. Fazendo referência ao Esquema 4 apresentado, teríamos a seguinte sequência para o processo de mudança de tipo:

Esquema 5 A unidirecionalidade na mudança das categorias cognitivas de tipo

pessoa > objeto > qualidade

Os exemplos (23), (24) e (25) reforçam o que apresentamos no esquema de abstratização dos usos de tipo:

(23) SUZANA: Querido...! O homem é Desdino, um tipo sério, de olhar maligno e cabelos grisalhos, gestos afetados e roupas extravagantes. Lucas, desconcertado, procura disfarçar suas intenções e senta na fileira de Suzana; três cadeiras à sua direita. Desdino senta à esquerda de Suzana.

(Roteiro de “A dama do cine Shangai”, 1987)

(24) pensa é ... quais ... quais seriam os traços principais daquela fotografia a serem é ... trans/ transportados pra tela né? os traços em ... em grafite né? ou qualquer ... qualquer objeto que ... que delimite ... qualquer lápis ... qualquer tipo de lápis que também não deixe marcas posteriores na ... na tela né? tem que ser um material leve

(Corpus D&G – Informante 4: Ítalo, masculino, 30 anos,Ensino Superior, Natal, Oral, Relato de Procedimento)

(25) Nonato entra na cela, se aproxima de seu beliche e destaca, da parede, uma foto de mulher pelada, Atrás dela, um mocó com várias coisas escondidas. Do buraco, Nonato apanha uma faca tipo meia-lua que o Seqüestro andou fazendo para ele.

(Roteiro de “Estômago”, 2007)

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Em (23), tipo funciona como substantivo pleno que pode ser parafraseado por “indivíduo”, fazendo referência, assim, a uma pessoa. Em (24), o item também funciona como substantivo, mas, em tal cotexto, apresenta caráter delimitador, sendo parafraseado como “espécie” e fazendo referência direta ao objeto “lápis”. Finalmente, em (25), tipo apresenta papel de articulador modificador, introduzindo um sintagma que modifica, qualifica o SN “uma faca”.

Podemos afirmar, então, conforme Gonçalves et al (2007, p. 44) já apontavam, que o item tipo envolve um processo de mudança “num arranjo de abstratização metafórica exemplar”.

4. OS USOS DE TIPO EM SALA DE AULAApós apontarmos a falta de descrição e classificação possível para itens multifuncionais como tipo na maioria

dos compêndios gramaticais vigentes e depois de toda a análise descritiva que fizemos acerca dos usos de tipo, cabe, então, pensarmos em como aplicar esses novos olhares para as estruturas linguísticas em sala de aula.

Conforme afirma Perini (2005), um dos principais problemas do ensino de gramática é a metodologia que é empregada. Segundo o autor, na maioria das vezes, “o que o professor está ensinando não bate com o que se observa na realidade” (PERINI, 2005, p. 51). Por ser o ensino de gramática, majoritariamente, uma série de ordens a serem obedecidas, os alunos logo se desinteressam. Esse fato reforça a necessidade de apresentarmos a gramática como parte do cotidiano dos alunos, como uma ferramenta que o permita compreender e participar mais ativamente do mundo em que vive.

Os usos de tipo mostram-se extremamente recorrentes no cotidiano de alunos e professores de língua portuguesa no Brasil. Sendo assim, abordar seus usos efetivos em sala de aula significa propiciar ao aluno a compreensão e a utilização consciente de estruturas que ele reconhece como legítimas de sua língua. Como realizar tal abordagem, afinal?

Tendo em vista a noção de que as classes de palavras apresentam limites difusos, permitindo que seus membros ora se aproximem do membro prototípico, ora se distanciem, ora migrem para outra classe, parece adequada a proposta de um trabalho em sala de aula que leve em conta a função dos itens linguísticos no contexto e cotexto de uso. Para isso, a análise e a compreensão linguísticas precisam ocorrer a partir de textos autênticos com usos reais da língua, os quais propiciam o contato com o funcionamento dos itens linguísticos conforme eles verdadeira e efetivamente são usados. Assim, as salas de aula de língua portuguesa deixariam de abordar as análises morfossintáticas com frases feitas que não refletem aquilo com que os alunos têm contato e usam, permitindo uma maior identificação dos mesmos com o objeto de estudo em questão. A seguir, apresentamos uma proposta de atividade conforme nossa defesa de abordagem. Observemos:

1) Leia a letra de música reproduzida a seguir e responda às questões propostas.

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Passarinhos - (Part. Vanessa da Mata) Emicida

Despencados de voos cansativos

Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivos E dá-lhe anti-depressivos

Acanhados entre discos e livros Inofensivos Será que o sol sai pra um voo melhor Eu vou esperar, talvez na primavera O céu clareia e vem calor vê só O que sobrou de nós e o que já era Em colapso o planeta gira, tanta mentira Aumenta a ira de quem sofre mudo A página vira, o são delira, então a gente pira E no meio disso tudo Tamo tipo

[Refrão:] Passarinhos Soltos a voar dispostos A achar um ninho Nem que seja no peito um do outro Passarinhos Soltos a voar dispostos A achar um ninho Nem que seja no peito um do outro

Laiá, laiá, laiá, laiá A Babilônia é cinza e neon, eu sei Meu melhor amigo tem sido o som, ok Tanto carma lembra Armagedon, orei Busco vida nova tipo ultrassom, achei Cidades são aldeias mortas, desafio nonsense Competição em vão, que ninguém vence

Pense num formigueiro, vai mal Quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus No pé que as coisas vão, jão Doidera, daqui a pouco, resta madeira nem pro caixão Era neblina, hoje é poluição Asfalto quente queima os pés no chão Carros em profusão, confusão Água em escassez, bem na nossa vez Assim não resta nem as barata Injustos fazem leis e o que resta pro ceis? Escolher qual veneno te mata Pois somos tipo

a) A ideia central do texto organiza-se em torno de uma metáfora, ou seja, uma comparação indireta. Com base no título, nas duas primeiras estrofes e no refrão da canção, responda: que elementos estão sendo comparados?

b) Retire, das estrofes iniciais, palavras e/ou expressões que foram utilizadas para reforçar a comparação estabelecida na letra da canção.

c) Releia o trecho: “E no meio disso tudo / tamo tipo / passarinhos / soltos a voar dispostos / a achar um ninho / nem que seja no peito um do outro”. A palavra em destaque funciona como um articulador, ligando o verbo “tamo” (estamos) ao substantivo “passarinhos”. Em sua opinião, qual é o valor semântico explicitado por esse articulador? Você consegue pensar em outra(s) palavra(s) que tenha(m) função similar à de tipo no trecho lido? Se sim, que palavra(s) seria(m)?

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d) No trecho: “No pé que as coisas vão, jão / Doidera, daqui a pouco, resta madeira nem pro caixão / Era neblina, hoje é poluição”, o eu-lírico estabelece uma oposição entre o passado e o presente. Qual é o par de vocábulos explicitamente utilizado para indicar essa oposição?

e) Reflita sobre a relação entre os termos “neblina” e “poluição”, presentes no trecho reproduzido em “d”. Com suas palavras, explique de que forma esses vocábulos podem ser considerados opostos.

f ) A segunda parte da música, 3ª e 4ª estrofes, apresenta uma descrição do cenário atual em que o eu-lírico se encontra. Na sua opinião, é construída uma imagem positiva ou negativa desse cenário? Aponte palavras e/ou expressões que ajudem a construir tal imagem.

Com a leitura e interpretação dessa letra de música percebemos o quanto a escolha das palavras que usamos é importante para expressar as ideias que desejamos transmitir. Com isso em mente, leia a tirinha a seguir e responda:

Disponível em: http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2013/01/18/tipo-assim/

g) Em determinadas situações, podem nos faltar palavras que expressem exatamente aquilo que desejamos transmitir e, por vezes, criamos termos para tentar dar conta dessa falta. Chamamos essa prática de neologismo. Aponte um exemplo de neologismo presente na tirinha antes lida.

h) Com base no seu conhecimento de mundo e da língua portuguesa, explique, com suas palavras, o significado do termo criado presente na tirinha e apontado por você no exercício anterior.

i) Pensando no uso da palavra tipo na tirinha, que função você acha que ela tem no texto? É a mesma função daquela observada antes na letra c?

j) Com base nos exercícios feitos até então, o que você aprendeu sobre o significado e a função das palavras?

Sugestão de Respostas:14

a) Espera-se que o aluno perceba que a letra de música apresenta uma comparação entre “nós”, seres humanos, e os passarinhos.

b) Algumas possibilidades: “despencados”; “voos cansativos”; “voo melhor”.

c) É esperado que o aluno identifique a relação de comparação/semelhança explicitada por meio do conector tipo. Algumas palavras que exercem função semelhante à de tipo no trecho explicitado são: como, igual, que nem, feito.

d) Os termos são “neblina” e “poluição”.

14 Reforçamos que propusemos sugestões de respostas, sendo possível e cabível que os alunos, em contexto real de aula, respondam às questões de forma diferente.

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e) Espera-se que o aluno compreenda que, no texto, o autor coloca os termos “neblina” e “poluição” como opostos pelo fato de se manifestarem na natureza de forma semelhante, como uma espécie de vapor ou fumaça, mas terem origem, consequência e repercussão diferentes. Enquanto a neblina é um fenômeno natural e não causa danos ao ecossistema e nem ao homem, a poluição é resultado das más práticas humanas e traz graves consequências para a vida no planeta. Assim, a neblina é posta como algo positivo e a poluição, como algo negativo, resultando numa relação de oposição.

f ) O eu-lírico constrói uma imagem negativa do cenário atual em que ele se encontra. Para isso, utiliza palavras de cunho negativo, como “cinza”, “carma”, “mortas”, “caixão”, “poluição” etc.

g) O exemplo de neologismo é a expressão “tiponite aguda”.

h) É esperado que o aluno defina “tiponite aguda” como uma doença ou síndrome caracterizada pelo uso excessivo da palavra tipo.

i) Na tirinha, tipo não apresenta sentido claro, servindo apenas para preencher e auxiliar na (re)formulação da fala do personagem. Tal uso é diferente daquele presente na letra c.

j) Espera-se que o aluno seja capaz de perceber que escolhemos as palavras de acordo com o sentido que desejamos transmitir e que, às vezes, não encontramos vocábulos que reflitam fielmente nossas ideias. Dessa forma, em alguns contextos, lançamos mão de estratégias como o neologismo para tentar sanar o problema. Além disso, uma mesma palavra pode apresentar diferentes funções em diferentes contextos da língua. (Caso os alunos apresentem dificuldade em responder tal questão, o professor deverá, de forma indutiva, mostrar a eles como se chegar a tais conclusões.)

A atividade proposta parte da interpretação da letra de um rap e de uma tirinha. O rap é um estilo musical que comumente apresenta, em suas letras, um uso da língua que reflete a forma como os falantes brasileiros, especialmente aqueles originários das favelas e periferias do país, se comunicam. As tirinhas geralmente apresentam uma linguagem compatível com aquela utilizada pelo seu público-alvo. Assim, acreditamos que os textos utilizados na proposta de exercícios reflitam um uso da língua mais real e mais próximo daquele possivelmente feito pelo aluno. Além disso, nos exercícios que propusemos, a compreensão do funcionamento das estruturas linguísticas é construída com base no entendimento do aluno acerca do que leu e não com base em algo que ele precisou decorar para responder. Desse modo, as respostas aos exercícios são apenas conclusões a que o leitor chega após a sua leitura, possibilitando a proximidade entre aluno e texto, entre aluno e sua verdadeira língua.

5. CONCLUSÃOAo fim deste artigo, então, reconhecemos o caráter multifuncional do item tipo. Acreditamos que o item pode

exercer mais de uma função e sua análise varia de acordo com o cotexto e contexto em que se apresenta. Por meio de nossa descrição, torna-se possível sua alocação dentro de diferentes classificações gramaticais.

Defendemos que o processo de gramaticalização de tipo esteja em estágio avançado, pois já atinge o discurso. Seus diferentes usos nos possibilitam inseri-lo em três classes gramaticais diferentes (substantivos, articuladores e marcadores), apresentando realizações mais ou menos prototípicas dentro delas.

O processo de mudança categorial do item dá-se nos moldes de um continuum, que vai de seu uso [+ lexical], como substantivo, e chega a seu uso [+ gramatical], como marcador. Tal continuum ressalta o grau de avanço do processo, visto que os novos usos de tipo já atingiram o discurso. Além disso, tal processo evidencia, também, uma abstratização dos usos do item, que passa de usos em contextos [+ concretos] para usos [+ abstratos].

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Por fim, acreditamos que a descrição aqui apresentada para os usos de tipo possa colaborar para o ensino mais coerente das estruturas linguísticas do PB, possibilitando aos alunos perceberem funcionalidade no que estudam e fazerem uso do conhecimento linguístico adquirido para desfrutarem mais e melhor do universo de informação que os rodeia.

REFERÊNCIAS BYBEE, Joan. Language, use and cognition. New York: Cambridge University Press, 2010. 252p.

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Nas tramas da argumentação: a hipotaxe circunstancial como estratégia argumentativa

Amanda Heiderich Marchon1

1 Possui licenciatura em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa – pela Faculdade de Filosofia Santa Doroteia, mestrado e doutorado em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, está fazendo estágio Pós-Doutoral sob supervisão da Professora Doutora Violeta Virginia Rodrigues, na mesma universidade. E-mail: [email protected]

RESUMO Este artigo investiga a impossibilidade de se empreender uma análise linguística que dissocie os níveis sintático, semântico e pragmático. Mais especificamente, nessa perspectiva, discutiremos como as cláusulas se articulam, no português brasileiro em uso, baseando-nos em um dos aspectos que contribuem para a organização argumentativa do discurso, a hipotaxe circunstancial. Objetivando uma análise que amplie a visão da tradição gramatical e que ultrapasse o nível sentencial, propomos um estudo baseado nos aparatos teóricos do Funcionalismo, especificamente no que se refere à análise das cláusulas hipotáticas, priorizando tanto a semântica quanto a sintaxe. Nesse sentido, consideraremos não só o nível microtextual, pautado nas cláusulas, mas também o nível macrotextual, que representa o imaginário sociodiscursivo a respeito de temas polêmicos, bem como os posicionamentos escolhidos pelo enunciador frente a esse questionamento sobre o mundo. Partindo da hipótese de que as estruturas hipotáticas revelam um matiz argumentativo, constituíram como corpus de análise desta pesquisa vinte e quatro (24) artigos de opinião publicados, aos sábados, pelo jornal Folha de São Paulo, na coluna Tendências e Debates, ao longo do ano de 2014, dos quais provêm cento e oitenta e cinco (185) cláusulas hipotáticas circunstanciais. Sobre essas estruturas, destacamos sua produtividade e seu posicionamento no nexo clausal para a construção da argumentação.

Palavras-chave: Hipotaxe circunstancial; Funcionalismo; discurso; argumentação.

ABSTRACTThis thesis investigates the impossibility of undertaking a linguistic analysis which dissociates the syntactic, semantic and pragmatic levels. More specifically, in this perspective, we will discuss how clauses are articulated, in the Brazilian Portuguese which is in use, based on one of the aspects that contribute to the argumentative organization of discourse, the circumstantial hypotaxis. Aiming for an analysis which broadens the view of the grammatical tradition and that surpasses the sentential level, we propose a study based on theoretical postulates theoretical apparatuses of Functionalism specifically with regard to the analysis of hypotatical clauses, prioritizing both semantics and syntax. In this sense, we consider not only the microtextual level, based on the clauses and connectors that introduce them, but also the macrotextual level, which represents the social imaginary on controversial themes, as well as the positions chosen by the enunciator in relation to this questioning about the world. Based on the hypothesis that hypotatical structures reveal an argumentative nuance, the corpus of analysis of this research was constituted by twenty-four (24) opinion articles published on Saturdays by the Folha de São Paulo newspaper, in the column Tendências e Debates, during 2014, out of which there are one hundred and eighty-five (185) circumstantial hypotatical clauses. On these structures, we emphasize their productivity and their position in the nexus clausal for the construction of argumentation.

Key words: Circumstantial hypotaxis; Functionalism; discourse; argumentation.

INTRODUÇÃO Há décadas, a articulação entre oração principal e subordinada tem sido objeto de estudo sob várias perspectivas

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teóricas. Embora seja ponto pacífico entre os estudiosos que a análise das orações ultrapassa o nível da sentença e alcança o nível do discurso, não é essa a prática veiculada pela tradição gramatical e verificada em muitas aulas de Língua Portuguesa. Diversos gramáticos, professores e autores de livros didáticos ainda restringem o estudo do período composto ao âmbito da classificação de orações e do reconhecimento dos conectores que as constituem, sem que sejam problematizados os usos nos cotextos e contextos, associando as questões pragmático-funcionais-discursivas relevantes à análise desse tópico.

Cientes de que o estudo da língua materna não se esgota na descrição e na classificação dos elementos que a estruturam, bem como considerando a gramática não como um fim, mas como um meio através do qual as capacidades de expressão, de comunicação, de interação são desenvolvidas, analisaremos a importância de focalizar os mecanismos que ligam sintática, semântica e pragmaticamente as orações umas às outras. Nessa perspectiva, discutiremos a maneira como essas estruturas se combinam, no português brasileiro em uso, atentando-nos, mais especificamente, para um dos aspectos que contribuem para a organização argumentativa do discurso, as orações que veiculam prototipicamente leitura circunstancial, as subordinadas adverbiais, doravante denominadas, nos termos funcionalistas, cláusulas hipotáticas circunstanciais1.

Como a noção semântica que emerge da relação entre as cláusulas independe da marca lexical que as une, debruçar-nos-emos sobre os efeitos de sentido que as estruturas hipotáticas mantêm com as porções de discurso em que estão inseridas. Nesse sentido, buscaremos discutir a necessidade de se considerar não só o nível microtextual, mas também o nível macrotextual, com vistas a ampliar os parâmetros de ensino, alicerçado na tradição gramatical, no que tange ao tratamento das cláusulas.

Uma vez considerado que as estruturas hipotáticas revelam um matiz argumentativo, as que constituem nosso corpus de análise provêm de vinte e quatro (24) artigos de opinião publicados, aos sábados, pelo jornal Folha de São Paulo, na coluna Tendências e Debates, entre os meses de janeiro e dezembro de 2014. Essa seção apresenta uma pergunta sobre determinado assunto que suscitou polêmicas ao longo da semana nos noticiários. Os articulistas convidados2, ao responderem sim ou não ao questionamento feito pela instância midiática, defendem visões opostas em relação ao tema em tela, aproximando-se ou afastando-se da doxa vigente.

Doxa é uma palavra emprestada do grego e designa a opinião, a reputação, o que dizemos das coisas ou das pessoas. A doxa corresponde ao sentido comum, isto é, a um conjunto de representações socialmente predominantes, cuja verdade é incerta. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 176-177)

Como a doxa expressa não a verdade incontestável, mas determinado ponto de vista parcial de um grupo e está mais comprometida com a subjetividade de quem a emite e a endossa do que com a verdade do assunto de que trata, pode-se questionar, porém, como identificar a doxa vigente, uma vez que o que é tido como verdadeiro para um grupo pode ser considerado inválido para outro. Propomos, então, investigar a doxa que emerge dos pares de textos em análise, por meio do exame das marcas linguísticas que denunciam a presença de múltiplas vozes – não apenas a do enunciador – nos discursos em tela.

1 No Funcionalismo, sob o rótulo de hipotaxe, incluem-se as orações subordinadas adverbiais e as orações adjetivas explicativas. Neste artigo, porém, somente as primeiras serão nosso objeto de análise.

2 Frisamos que nenhum dos articulistas mantém vínculo profissional com o jornal, são apenas figuras com notoriedade na sociedade e, por isso, convidadas para escreverem os artigos de opinião que compõem a coluna. A formação acadêmica e a profissão de todos os autores convidados para exporem suas opiniões, de certa forma, estão em estreita relação com o assunto proposto para o debate, o que lhes confere autoridade para se posicionarem.

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À guisa de exemplificação, analisemos, brevemente, fragmentos de dois textos, publicados no dia 05 de abril de 2014, que respondem ao seguinte questionamento: A sociedade tolera agressão sexual contra mulheres? Nesse caso, em pleno século XXI, parece óbvio que o posicionamento politicamente correto advogaria contra a aceitação da violência contra mulheres. A fim, entretanto, de comprovarmos essa constatação, examinemos trechos de dois artigos de opinião que defendem teses contrárias em relação à discussão proposta pelo jornal:

SIM: O OVO DA SERPENTE

(01) Quem dos mais novos imagina que na década de 1980 existia um “movimento machista mineiro”, que defendia o direito do “macho” a matar a mulher, ante a mera suspeita de que ela o traísse? Quem lembra que foi preciso pichar paredes com o slogan “Quem ama não mata” para não só penalizar o assassinato que era denominado “legítima defesa da honra”, como também e sobretudo para educar os homens a respeitar as mulheres? Em tudo isso, avançamos.

No entanto, nos últimos anos, com a tolerância e por vezes até algum estranho prazer de secções da mídia, e o decidido engajamento de umas confissões religiosas, tem havido uma reação a essas conquistas – que não são apenas das mulheres.

(Folha de São Paulo, 05 de abril de 2014)

NÃO: REAÇÃO CONSCIENTE

(02) O problema é grave. A violência contra as mulheres é fenômeno mundial que deixa sérios efeitos, visto que pode levar logo a traumatismos, incapacitações e óbitos, mais tarde a mudanças fisiológicas e psicológicas induzidas pelo estresse decorrente do trauma. As mulheres que sofreram abusos têm altas taxas de gravidez não desejada, abortos, desfechos neonatais e infantis adversos, infecções sexualmente transmissíveis e transtornos mentais.

No Brasil, mudanças no aparato institucional já foram feitas. A legislação foi mudada com a Lei Maria da Penha e a de notificação compulsória. Já contamos com delegacias especiais para atender as mulheres agredidas. Existem em número crescente serviços que dão assistência às que sofrem violências.

(Folha de São Paulo, 05 de abril de 2014)

É interessante perceber que o imaginário sociodiscursivo de que a violência deve ser reprimida aparece tanto no exemplo 01, cuja tese defendida é a de que a sociedade tolera, sim, a agressão sexual contra a mulher, quanto no exemplo 02, cuja argumentação estrutura-se totalmente contrária a esse ponto de vista.

O enunciador do exemplo 01, ao empregar a forma verbal “avançamos” e o substantivo “conquistas”, deixa transparecer que a repressão à violência contra as mulheres é uma vitória de toda a sociedade. O segundo enunciador, ao citar ações do poder público que visam a atender mulheres agredidas, reforça sua tese de que agressões sexuais contra esse grupo não devem ser toleradas.

Em razão da amplitude do que se pretende neste artigo, partimos, portanto, da hipótese de que haveria uma articulação indissociável entre os níveis social (o extralinguístico), textual e sentencial, refletida na inseparável associação entre mecanismos sintáticos e construções semântico-pragmáticas para a construção da argumentação.

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Mais especificamente, buscaremos, pois, responder à seguinte pergunta: Quanto maior a necessidade de comprovação de uma proposição, como em artigos de opinião opostos à doxa vigente, mais produtivo seria o emprego de cláusulas hipotáticas circunstanciais?

Como este artigo focalizará, especificamente, a hipotaxe circunstancial, processo sintático a que a gramática tradicional denomina subordinação adverbial, iniciaremos nossa discussão sobre o estudo das cláusulas hipotáticas à luz da tradição gramatical e do funcionalismo.

1. AS CLÁUSULAS ADVERBIAIS À LUZ DA TRADIÇÃO GRAMATICAL As orações subordinadas adverbiais, no âmbito da tradição gramatical, são conhecidas como orações que, além

de estarem sintática e semanticamente dependentes de sua oração principal, funcionam como adjunto adverbial e exprimem alguma circunstância. A seguir, destacamos definições de algumas gramáticas tradicionais quanto às estruturas em estudo nesta seção e objeto de investigação deste artigo:

Quadro 1 Definição das orações adverbiais, segundo a GT

GRAMÁTICOSTRADICIONAIS

DEFINIÇÃO SUBORDINAÇÃO ADVERBIAL

BECHARA (2004, p. 471)

“As adverbiais exercem função própria de advérbio, que é um adjunto ou determinante circunstancial não-argumental do núcleo verbal.”

BUENO (1963, p. 383)

"São assim chamadas as orações subordinadas que correspondem a circunstâncias e são tantas quantas as espécies de advérbios.”

CUNHA e CINTRA (2001, p. 604-605)

“Funcionam como adjunto adverbial de outras orações e vêm, normalmente, introduzidas por uma das conjunções subordinativas (com exclusão das integrantes que [...] iniciam orações substantivas).” De acordo com os autores, as orações adverbiais classificam-se, segundo a conjunção ou locução conjuntiva que as encabece.”

KURY (2003, p. 62)

“As orações subordinadas adverbiais, que funcionam sempre como adjunto ou complemento adverbial da oração principal de que dependem.”

LIMA (2011, p.341)

“Assim se denominam porque, equivalentes a um advérbio, figuram como adjunto adverbial da oração a que se subordinam.”

LUFT (1985, p. 59)

“São as que têm valor de advérbio [...]. Exercem, pois, a função de adjuntos adverbiais da oração regente. Exprimem as diversas ‘circunstâncias’, e se introduzem, quando não reduzidas, por uma das conjunções subordinativas, excluída a integrante. Subclassificam-se com base na significação.”

SAID ALI (1965, p.114)

“Aplica-se esta denominação a uma série de orações cujo papel é comparável ao dos advérbios. São na maior parte iniciadas por conjunções subordinativas que indicam a respectiva espécie.”

De acordo com as gramáticas tradicionais consultadas, as orações subordinadas adverbiais estão limitadas a exercerem a função sintática de adjunto adverbial das orações principais com as quais formam o período composto. As análises dos autores do quadro 01 não ultrapassam, portanto, o nível sentencial.

Sobre tais análises, ressaltamos que a definição apresentada por Luft (1985) não deixa clara se a significação está relacionada ao conector que introduz a oração ou à relação que emerge da articulação da oração subordinada com a principal.

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Frisamos também as propostas de Said Ali (1965) e Cunha e Cintra (2001), que consideram que a classificação das adverbiais está restrita à classificação do conector que as introduz, posicionamento com qual não compactuamos. Um mesmo conector pode indicar relações semânticas diversas entre as cláusulas, sendo, pois, considerado ambíguo ou não-prototípico para expressar aquela relação de significação, como comprovam dados do nosso corpus. O conector “quando”, destacado no exemplo 03, embora introduza uma cláusula que expresse uma proposição relacional temporal, pode introduzir também cláusulas com noções de causa:

(03) A publicidade e a comunicação mercadológica que se dirigem diretamente às crianças, além de ilegais, são antiéticas e imorais. Aproveitam-se da peculiar fase de desenvolvimento dos pequenos, justamente quando não conseguem entender o caráter persuasivo das mensagens ou mesmo diferenciar o conteúdo de entretenimento do comercial. A publicidade infantil intensifica problemas sociais como o consumismo infantil, a formação de valores materialistas, o aumento da obesidade infanto-juvenil, a violência e a erotização precoce.

(Folha de São Paulo, 28 de junho de 2014)

Vale destacar que a análise da relação circunstancial que emerge entre as cláusulas nos contextos em que figuram, conforme o exemplo 03, só pode ser feita no nível do discurso, para o qual a classificação tradicional mostra-se insatisfatória. Parece-nos, pois, que essa multifuncionalidade do “quando”, ao indicar proposições relacionais diferentes, decorre de seu esvaziamento semântico, conforme estudos de Ferreira (2008, 2013), fenômeno que é verificado em outras conjunções ou expressões conjuntivas, como já fora apontado por Decat (1993, p. 150):

[...] a perda de carga lexical por parte do conectivo conjuntivo vem não só corroborar a postulação de que a relação adverbial é dada pela proposição relacional que emerge entre as cláusulas, como também reforçar a relevância de uma análise que leve em conta tais inferências.

Decat (1999) comenta que as análises tradicionais acerca da relação entre cláusulas são insuficientes e pautadas apenas em critérios formais. Ainda segundo a autora, embora algumas gramáticas tentem considerar aspectos semânticos no estudo da articulação entre cláusulas, o que se observa são a mistura e a indefinição de critérios – ora se faz uma análise baseando-se na sintaxe, ora na semântica.

Às definições apresentadas no quadro 01, acrescentamos que, segundo classificações da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), as orações subordinadas adverbiais expressam nove circunstâncias, quais sejam: causa, comparação, concessão, condição, conformidade, consequência, finalidade, proporção e tempo. Vários estudos, todavia, questionam essa subclassificação apresentada pela tradição. Um dos questionamentos, por exemplo, está voltado para o fato de algumas circunstâncias não estarem contempladas pela lista da NGB – caso das adverbiais modais, consideradas fundamentais por Lima (2011, p. 353):

O modo (juntamente com o tempo e o lugar) é a mais fundamental das circunstâncias. Mas em português, assim como não existem conjunções locativas, assim também não existem conjunções modais; de sorte que, no plano do período composto por subordinação, a circunstância de modo somente aparece sob a forma de oração reduzida (de gerúndio).

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Neste trabalho, além das cláusulas modais reduzidas3 de gerúndio, ainda encontramos essas estruturas reduzidas de infinitivo, como se verifica no trecho em destaque, cotejado do texto que se posiciona contra a proibição da publicidade destinada às crianças, do dia 22 de junho de 20144:

(04) Quem se espanta com a posição desses artistas “ao trocar suas criações por dinheiro” e acredita que a publicidade é a mais nefasta das profissões deve lembrar não apenas os casos de abuso existentes no passado e no presente e cujos exemplos proliferam nas redes sociais. Mas também aqueles que, ao atingirem em cheio o universo infantil, levaram à criança muito mais do que um simples produto. Como o lápis de cor que inseriu no imaginário infantil um valioso pedacinho da música popular brasileira ao imortalizar a “Aquarela” de Toquinho envolta em cores e desenhos na TV.

A sociedade responsavelmente cobra dos órgãos públicos mais atenção na prevenção aos riscos a que a criança está exposta. Mas, certamente, não é seu desejo passar uma borracha nos desenhos, personagens e animações que fazem parte do universo infantil. Tampouco creio que as famílias queiram evitar o excesso de cores ou as músicas infantis que tanto encantam seus filhos em qualquer situação.

Ainda assim, ao agir com o legítimo intuito de coibir práticas comerciais abusivas direcionadas à criança, a resolução acabou por recomendar que se apaguem algumas das luzes do universo infantil.

(Folha de São Paulo, 22 de junho de 2014)

Kury (2003) e Luft (1985), além das orações modais, ainda consideram as locativas, perfazendo, assim, um total de onze (11) relações semânticas empreendidas pelas orações subordinadas adverbiais, posicionamento seguido nesta investigação. Em nosso corpus de análise, encontramos uma (1) cláusula que veicula a noção de lugar e trinta e duas (32) que expressam modo, o que corrobora o posicionamento dos autores.

Outros estudiosos propõem classificações diferentes das explicitadas, uma vez que relacionar o grande espectro de noções circunstanciais que essas cláusulas podem veicular é tarefa desafiadora, ainda mais quando os critérios empregados para a classificação não são sistemáticos, homogêneos. Soma-se a isso o fato de tais estruturas poderem ser codificadas de diversas formas, já que participam essencialmente na formação da coerência discursiva e estão a serviço do enunciador em seu projeto lógico de raciocínio.

Em nossa abordagem, importa, pois, analisar a relação de significado mantida entre as cláusulas e também sua função argumentativa em diferentes níveis sintático-semânticos e discursivos. Em outras palavras, entendemos que as cláusulas hipotáticas circunstanciais, muito mais que meros adjuntos adverbiais dependentes da cláusula núcleo com a qual se articulam, atuam como importante estratégia argumentativa. Nossa investigação, portanto, vai além da relação semântica que as estruturas em tela veiculam – consideramos que estudos que se restringem ao nível frástico apresentam um objetivo meramente classificatório.

3 É mister esclarecer que, nesta pesquisa, em relação à forma e ao modo como se articulam com as orações principais, consideramos que as orações subordinadas reduzidas, como postula Lima (2011, p. 325), “têm o verbo numa das formas infinitas ou nominais: o infinitivo, o gerúndio, ou o particípio”. Para esta classificação só cabe analisar a forma do verbo, independentemente de as estruturas estudadas apresentarem ou não conector para introduzi-las.

4 Esclarecemos que as estruturas destacadas no exemplo 04 também permitem leitura temporal.

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2. AS CLÁUSULAS HIPOTÁTICAS CIRCUNSTANCIAIS SOB UM OLHAR SINTÁTICO-DISCURSIVOConforme discutido anteriormente, acreditamos que um estudo da articulação de cláusulas – ousamos dizer:

um estudo de qualquer instância gramatical – que leve em consideração apenas o nível sentencial mostra-se incompleto e ineficiente. Numa análise linguística, torna-se indispensável um tratamento que considere os fatos em seu comportamento no discurso, o que, inevitavelmente, ultrapassa o nível sentencial por que muitos estudos se pautam.

Buscar análises mais profícuas para o entendimento da língua é a inquietação que move os pesquisadores e não esgota os trabalhos acadêmicos. A fim de contribuir, ainda que modestamente, para a descrição gramatical do fenômeno relacionado à articulação de cláusulas, especialmente no que tange à hipotaxe circunstancial, representada, neste estudo, pelas orações subordinadas adverbiais, nos termos da tradição, propomos uma investigação que considere que o discurso é constituído tanto por elementos linguísticos quanto por elementos extralinguísticos. Este artigo, portanto, fundamenta-se na hipótese de que os níveis social, textual e sentencial são indissociáveis, sendo, pois, um reflexo do outro na estruturação do discurso, conforme ilustra a figura 01 a seguir:

Figura 1 Os três planos de análise (MARCHON, 2017, p.45)

A figura 1 pode representar as etapas metodológicas seguidas para a investigação proposta neste estudo. Especificamente, no plano discursivo, por meio de marcas polifônicas, examinaremos os componentes que constroem a situação de comunicação e de que forma a tese dos artigos de opinião em foco representa o imaginário socio discursivo, a doxa. No que tange ao plano textual, de acordo com estudos de Ducrot (1981) sobre classe e escala argumentativas, discutiremos como os argumentos apresentados pelos articulistas sustentam seus pontos de vista. Quanto à análise sentencial, fatores de ordem estrutural e contextual serão controlados para que se verifique a produtividade de determinados mecanismos linguísticos engendrados para a construção da argumentação, quais sejam: (i) a produtividade de cláusulas hipotáticas em textos contrários e favoráveis à doxa; (ii) a posição da cláusula hipotática no nexo clausal – qualquer par de cláusulas relacionadas por interdependência.5

5 Embora a metodologia adotada para a investigação proposta se divida em três etapas, sem as quais não acreditamos ser possível entender as

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Entendemos, portanto que, além de selecionar argumentos que sejam eficientes para a sustentação de suas teses, torna-se indispensável que o enunciador considere aspectos linguísticos para a construção de seu projeto de argumentação. Em outras palavras, não basta que os argumentos sejam convincentes, mas que sua disposição no texto, bem como a configuração gramatical das estruturas sintáticas que os expressam sejam bem articuladas e eficientes, mostrando-se, metaforicamente, como uma teia que envolve o interlocutor.

A fim de endossar nossa perspectiva de análise, citamos Matthiessen e Thompson (1988) que defendem que a gramática da articulação de cláusulas reflete a própria organização do discurso. Para esses estudiosos, o mecanismo da hipotaxe constitui-se como uma combinação de cláusulas que reflete as opções organizacionais do discurso como um todo. Decat (1993, p. 117-118), em seu estudo sobre a hipotaxe circunstancial no português em uso, salienta:

Como a hipotaxe reflete o tipo de construção que traduz as opções organizacionais (opções de uso) de que o usuário da língua se utiliza para formar discurso coerente, é esse o tipo de combinação que vai nos interessar: mais especificamente, a hipotaxe chamada por Halliday (1985) de realce – “enhancing hypotaxis”, ou de “enhancement”. (...) Nesse caso, uma cláusula realça, salienta o significado da outra qualificando-a com referência a tempo, modo, lugar, causa ou condição. (...) a combinação de ‘realce’ com hipotaxe dá origem ao que tradicionalmente se chama de cláusula adverbial.(Grifos nossos)

Ao consideramos, nesta investigação, que o emprego da hipotaxe circunstancial exerce papel relevante no projeto argumentativo empreendido pelo enunciador, é mister que consideremos, no plano sentencial, o princípio da iconicidade para buscarmos responder à pergunta apresentada na Introdução deste artigo: Quanto maior a necessidade de comprovação de uma proposição, como em artigos de opinião opostos à doxa vigente, mais produtivo seria o emprego de cláusulas hipotáticas circunstanciais?

Os estudos de base funcionalista definem a iconicidade como a correlação natural e motivada entre forma e função, ou seja, entre o código linguístico e o conteúdo (Neves, 2001, p. 103). O princípio da iconicidade desdobra-se em três subprincípios, que se relacionam (i) à quantidade de informação; (ii) à ordenação linear dos segmentos; (iii) ao grau de integração entre os constituintes da expressão e do conteúdo. Em virtude do que se intenta apresentar neste artigo, porém, não destacaremos o terceiro subprincípio.

Subprincípio da quantidade: quanto maior a quantidade de informação, maior a quantidade de forma, de tal modo que a estrutura de uma construção gramatical indica a estrutura do conceito que ela expressa. Isso significa que a complexidade de pensamento tende a refletir-se na complexidade de expressão. Ao analisarmos as ocorrências de cláusulas hipotáticas nos textos do nosso corpus que discutem a proibição ou não da publicidade dirigida a crianças, por exemplo, contabilizamos doze (12) cláusulas no artigo de opinião que se apresentavam contra a doxa vigente de que as propagandas não estimulariam o consumo, ao passo que apenas sete (07) cláusulas foram encontradas no artigo de posicionamento contrário, comprovando que, quanto maior a complexidade da argumentação, mais recursos linguísticos devem ser empreendidos, justificando, pois, o emprego do subprincípio da quantidade em nosso estudo. Situação análoga foi observada na análise dos demais artigos de opinião que compõem nosso corpus, como detalharemos na seção sobre a discussão dos dados.

cláusulas hipotáticas circunstanciais como fios da teia argumentativa, devido aos objetivos específicos a que se destina este artigo e ao espaço limitado, discutiremos mais detalhadamente apenas questões relacionadas ao plano sentencial. Aspectos relacionados aos planos discursivo e textual não serão desconsiderados, mas terão menos destaque neste estudo.

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Subprincípio da ordenação linear: relaciona-se à ordem dos segmentos no encadeamento sintático – a informação mais importante tende a ocupar o primeiro lugar da cadeia sintática, de maneira que a ordenação dos elementos no enunciado indica a sua ordem de importância para o falante (FURTADO DA CUNHA et alii., 2003, p.32). Na construção da argumentação empreendida pelo enunciador no exemplo 05 a seguir, ao se mostrar contra o uso de inibidores de apetite, o enunciador ressalta a possibilidade de a Agência Nacional de Vigilância Sanitária não aprovar a comercialização de tais substâncias, reforçando sua tese de que tais compostos químicos, por serem prejudiciais à saúde dos usuários, não terão licença governamental para serem vendidos – informação que, no contexto, mostra-se mais relevante do que o preço dos medicamentos.

(05) A questão do acesso é um ponto crucial. Logo devem chegar novas opções de remédios ao mercado brasileiro. Os americanos já têm à sua disposição dois novos e promissores agentes antiobesidade. Ambos chegam respaldados por pesquisas clínicas que envolveram milhares de pacientes e centenas de milhões de dólares em investimentos.

Mas quando a Anvisa aprová-los, / se aprová-los, / deverão custar pelo menos R$ 200 a R$ 300 por mês. E aí como fica o acesso? A grande maioria dos obesos brasileiros só poderão comprá-los depois de dez anos, quando expirar a patente e despencar o preço ao consumidor.

(Folha de São Paulo, 17 de maio de 2014)

Considerando os propósitos comunicativos, pode-se afirmar que o princípio da iconicidade, permite uma investigação detalhada das condições que governam o uso dos recursos de codificação morfossintática da língua.

[...] a língua não é um mapeamento arbitrário de ideias para enunciados: razões estritamente humanas de importância e complexidade se refletem nos traços estruturais das línguas. As estruturas sintáticas não devem ser muito diferentes, na forma e organização, das estruturas semântico-cognitivas subjacentes. (FURTADO DA CUNHA et alii, 2003, p. 34)

Como pretendemos explicar as estratégias discursivas por meio da análise de estruturas sintáticas, o número de cláusulas hipotáticas e sua posição no nexo clausal estão diretamente relacionados ao princípio da iconicidade, como exploraremos com mais detalhes na seção seguinte de análise dos dados.

3. ANÁLISE DOS DADOS E DISCUSSÃO DOS RESULTADOSConforme apresentado na Introdução, esta investigação pauta-se na hipótese da indissociabilidade dos

planos discursivo, textual e sentencial para os usos linguísticos. Os falantes, como membros de uma sociedade, são detentores de crenças e de ideologias que perpassam o grupo a que pertencem. Para defenderem suas ideias e posicionamentos, os enunciadores, constroem seus textos a partir de escolhas linguísticas, partindo da esfera macrotextual para a microtextual, possibilitando a passagem da língua ao discurso.

Neste artigo, como já explicado, defendemos que o emprego das cláusulas hipotáticas circunstanciais nos artigos de opinião dos quais provém o nosso corpus de pesquisa representam uma importante estratégia argumentativa. Os dados levantados, como veremos a seguir, apontam, no nosso corpus, para a confirmação da suspeita de que quanto

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maior a necessidade de argumentação, mais numerosos serão os recursos linguísticos utilizados para convencer o interlocutor sobre a plausibilidade e a veracidade dos argumentos selecionados em favor de determinada tese6.

Para fins organizacionais, dividiremos a análise dos dados em duas seções: a primeira relaciona-se à discussão da produtividade das cláusulas hipotáticas acerca dos posicionamentos adotados pelos enunciadores dos artigos de opinião investigados frente às doxas vigentes; a segunda contempla a posição das cláusulas hipotáticas em relação à cláusula núcleo, reportando-nos, pois, ao princípio da iconicidade, no que tange, respectivamente, aos subprincípios da quantidade e da ordenação linear.

Os fios da teia argumentativa: a produtividade das cláusulas hipotáticas circunstanciaisEntendidas, metaforicamente, como fios da teia argumentativa, as cláusulas hipotáticas circunstanciais,

de acordo com nossa suspeita inicial, foram mais produtivas em textos cujas teses não coincidem com as doxas vigentes. Das cento e oitenta e cinco (185) estruturas encontradas, destacamos que 107 (58%) figuram nos artigos de opinião cuja tese mostra-se contrária à doxa vigente, ou seja, nesses textos, o enunciador tem a tarefa de buscar desconstruir o senso comum e, para tanto, mais complexa se torna a argumentação em relação à composição dos dispositivos argumentativos para defender o posicionamento assumido. Nos textos que defendem o senso comum, encontramos 78 cláusulas, o que perfaz 42% do total, conforme ilustra o gráfico 1:

Gráfico 1 Presença de cláusulas hipotáticas em relação à doxa

Entendemos que esse resultado é um indício da iconicidade, especialmente no que tange ao subprincípio da quantidade. A análise quantitativa apontou que, dos doze (12) temas abordados, foi encontrado maior número de cláusulas hipotáticas circunstanciais em apenas quatro (04) dos textos cujas teses coincidem com as doxas, perfazendo um total de 33,33% dos dados; enquanto oito (08) artigos que defendem teses contrárias às doxas vigentes apresentam maior produtividade das estruturas sintáticas objeto de estudo deste artigo, totalizando 66,67%, ou seja, o dobro de ocorrências verificado.

6 Disponibilizamos, nos anexos deste artigo, os dois pares de textos da coluna Tendências e Debates diretamente por nós citados e discutidos na seção 4, que analisa os dados e discute os resultados.

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A tabela a seguir explicita essa constatação em relação aos pares de artigo de opinião discutidos diretamente neste artigo.

Tabela 1 Temas e total de cláusulas hipotáticas por texto

Matthiessen e Thompson (1988, p. 299) defendem a hipótese de que as cláusulas hipotáticas representam a gramaticalização das unidades retóricas que constroem o discurso, pois contemplam as forças e as maneiras como as formas e as construções gramaticais emergem, são utilizadas e formatam a língua. As cláusulas hipotáticas, neste artigo, representam as unidades discursivas gramaticalizadas que colaboram para a defesa dos pontos de vista defendidos por cada articulista, passando-se de uma análise da macroestrutura textual para uma análise da microestrutura que forma o discurso. Em outras palavras, o uso ou não das cláusulas hipotáticas no texto está diretamente atrelado aos propósitos do enunciador, o que torna a hipotaxe circunstancial prescindível do ponto de vista sintático, já que, nas teias da argumentação, atua como intensificador dos argumentos apresentados.

O trecho destacado a seguir, por exemplo, apresenta um encadeamento de cinco (05) cláusulas hipotáticas – a primeira cláusula, destacada em azul, imprime uma noção ambígua de tempo / modo à cláusula núcleo (Curioso notar que a nova norma abre uma exceção); na sequência, observamos o emprego de duas cláusulas condicionais seguidas de uma cláusula final.

(06) Curioso notar que a nova norma abre uma exceção ao permitir o uso dos personagens, cores e trilhas sonoras infantis em campanhas de utilidade pública, como se essas mesmas criações brotassem de fonte natural e não fossem produzidas por músicos, artistas, cartunistas e escritores para serem comercializadas, direta ou indiretamente, por meio do licenciamento.

(Folha de são Paulo, 28 de junho de 2014)

Na complexa tarefa de argumentar contra o que a sociedade considera politicamente correto, em outras palavras, contra a doxa vigente de que campanhas publicitárias não induzem ao consumismo, o enunciador do exemplo 06 emprega, em um único período, cinco cláusulas hipotáticas. Ele critica que a exceção aberta ao projeto de lei sobre a proibição de propagandas direcionadas às crianças beneficiaria o próprio governo, já que o uso de personagens e trilhas sonoras infantis só seria permitido em campanhas de utilidade públicas, ou seja, exclusivamente em publicidade de órgãos ligados ao mesmo governo que deseja proibir a publicidade infantil, desconsiderando, pois, o trabalho dos artistas envolvidos na criação de obras destinadas a esse público em especial. Pode-se dizer, portanto, que as cláusulas hipotáticas realçam o argumento e encadeiam um interessante raciocínio lógico, que prendem o leitor nas tramas da argumentação.

Pergunta feita pela Folha de São Paullo Doxas

Texto escrito pelos articulistas favoráveis à doxa

Total de cláusulas

hipotáticas

Texto escrito pelos articulistas contrários à doxa

Total de cláusulas

hipotáticas

A sociedade tolera agressão sexual às mulheres?

(05/04/2014)

Agressão contra a mulher é um ato de violência inaceitável.

Não: Reação consciente 04 Sim: O ovo da

serpente 08

Inibidores de apetite devem ser proibidos? (17/05/2014)

Inibidores de apetite são prejudiciais à

saúde.Sim: Remédio

político 05Nâo: São

mais que três quilinhos

16

Publicidade dirigida a crianças deve ser proibida?

(28/06/2014)

Propagandas dirigidas ao público infantil

incentivam o consumismo.

Sim: um mercado fora da

lei07

Não: Crianças, cores e

imaginação12

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Vale salientar que, ao tomar a palavra, o enunciador constrói uma imagem de si próprio e de seu interlocutor e, diante disso, não podemos negar que toda maneira de dizer induz a uma imagem que pode facilitar ou condicionar a boa realização de um projeto discursivo. Em outras palavras, “por meio da enunciação, revela-se a personalidade, o caráter dos enunciadores” (PAULIUKONIS et. alii, 2012, p. 57). Não basta ao enunciador, portanto, produzir um discurso verdadeiro, mas é necessário que o discurso produza um efeito de verdade, fazendo com que seu interlocutor interprete e acredite nas ideias e fatos expostos nos artigos de opinião.

Cabe ressaltar, ainda, que os jornais constituem instâncias complexas de comunicação e que os seres sociais são reconhecidos em pessoas responsáveis por diversos setores, como a equipe de editorialistas, por exemplo. O autor do artigo de opinião da coluna Tendência e Debates, entretanto, é um ser social convidado, não faz parte da equipe da Folha de São Paulo, mas ele representa a figura do enunciador que detêm autoridade para discutir o assunto em tela naquela página especial. Quanto ao exemplo 06, embora não seja nosso foco de análise o sujeito empírico, ressaltamos a parcialidade da autora, Mônica de Souza, diretora-executiva da Mauricio de Sousa Produções, empresa responsável pela criação e divulgação de todos os personagens da famosa Turma da Mônica. Não parece, pois, destoante que seu artigo de opinião se apresente contrário à lei que proíbe a publicidade destinada a crianças.

A costura da teia argumentativa: a posição das cláusulas hipotáticas circunstanciais no nexo clausual

Além da relação semântica que as cláusulas hipotáticas expressam, observamos também sua posição em relação à cláusula núcleo e chegamos ao seguinte resultado expresso pela tabela 02 a seguir:

Tabela 2 Posição das cláusulas hipotáticas em relação à cláusula núcleo

POSIÇÃO DA CLÁUSLA HIPOTÁTICA TOTAL DE CLÁUSULAS

Anteposta à cláusula núcleo 56 (30, 27%)

Intercalada entre o sujeito e o predicado da cláusula núcleo 26 (14,05%)

Posposta à cláusula núcleo 103 (55,68%)

Total 185 (100%)

A análise atenta da tabela 02 leva à importante observação de que, somados os percentuais referentes às cláusulas antepostas e intercaladas, 44,32% do total de cláusulas não aparecem na posição, em geral, indicada pela tradição gramatical, qual seja, a de posposição à cláusula núcleo, já que as estruturas investigadas são associadas funcionalmente ao adjunto adverbial. Em outras palavras, das cento e oitenta e cinco (185) cláusulas analisadas, oitenta e duas (82) não aparecem depois da cláusula nuclear. Apesar de entendermos que o estudo da posição das cláusulas tem estrita relação com a circunstância expressa pelas estruturas no período – em geral, cláusulas que exprimem a noção de comparação, por exemplo, tendem a ocupar a posição posposta à cláusula núcleo –, destacamos que a anteposição ou a intercalação de um argumento o coloca em destaque, o que contribui para a tessitura da teia argumentativa.

Destacamos, ainda, que das cinquenta e seis (56) cláusulas verificadas antes da cláusula núcleo, trinta e quatro (34) delas, ou seja, 60,70%, aparecem em textos cuja tese é contrária à doxa. Nesses casos, o enunciador faz uso

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do subprincípio da ordenação linear (princípio da iconicidade), apresentando a informação mais importante em primeiro lugar da cadeia sintática, fato que contribui para a comprovação da hipótese principal desta investigação: a indissociabilidade entre os níveis social, textual e sentencial, refletida na construção linguística do discurso, sendo, pois, o emprego de cláusulas hipotáticas uma importante estratégia argumentativa. A fim de ilustrarmos tal constatação, reproduzimos, novamente, o exemplo 05, ampliando, porém, a discussão:

(05) A questão do acesso é um ponto crucial. Logo devem chegar novas opções de remédios ao mercado brasileiro. Os americanos já têm à sua disposição dois novos e promissores agentes antiobesidade. Ambos chegam respaldados por pesquisas clínicas que envolveram milhares de pacientes e centenas de milhões de dólares em investimentos.

Mas quando a Anvisa aprová-los, se aprová-los, deverão custar pelo menos R$ 200 a R$ 300 por mês. E aí como fica o acesso? A grande maioria dos obesos brasileiros só poderão comprá-los depois de dez anos, quando expirar a patente e despencar o preço ao consumidor.

(Folha de São Paulo, 17 de maio de 2014)

O trecho em destaque representa a opinião do enunciador que defende que os inibidores de apetite não devem ter a venda proibida no Brasil, posicionamento contra a doxa construída pelo par de textos sobre o tema. Ao topicalizar a informação de que a aprovação da comercialização dos medicamentos já vendidos nos Estados Unidos depende da aprovação da Anvisa – fato que pode demorar ou mesmo nem acontecer, sentidos expressos pela leitura circunstancial das cláusulas grifadas –, o enunciador fortalece seu posicionamento de que as pessoas obesas não terão acesso ao medicamento que pode ajudá-las a emagrecer.

4. A HIPOTAXE CIRCUNSTANCIAL NAS AULAS DE LÍNGUA MATERNAHá muito já se sabe que o fracasso escolar, principalmente nas séries iniciais, está intimamente relacionado

com a questão da leitura e da escrita – resultado da enorme dificuldade que a escola tem de estabelecer novas e mais eficazes metodologias para o desenvolvimento, por parte do aluno, das diversas competências linguísticas, tributárias do ato de ler-escrever-falar-ouvir e da aprendizagem formal desses processos.

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN) para o Ensino Fundamental:

Formar um leitor competente supõe formar alguém que compreenda o que lê; que possa aprender a ler também o que não está escrito, identificando elementos implícitos; que estabeleça relações entre o texto que lê e outros textos já lidos; que saiba que vários sentidos podem ser atribuídos a um texto; que consiga justificar e validar sua leitura a partir da localização de elementos discursivos.” (PCN, 1997, p. 54)

Todavia, vimos que o que é estabelecido pelos PCN para o ensino de Língua Portuguesa não condiz, na íntegra, com a realidade do processo ensino/aprendizagem. O processo de produção/compreensão textual é tão complexo cognitivamente que Kato (1995), aponta que o aprendizado da leitura e da escrita em língua materna pode ser comparado ao aprendizado de uma segunda língua (L2). Sabemos que é ilusória a ideia de que um indivíduo que domina a decifração de letras e sílabas seja um leitor ou um produtor de textos. Os processos de leitura e de produção textual se constroem durante toda a vida e serão mais ou serão menos eficientes dependendo do contato com o mundo da escrita e de como esse contato é mediado pelo professor na escola.

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Não poderíamos deixar de esclarecer que a motivação para a realização desta seção nasceu e foi alimentada pelas nossas inquietações referentes aos desafios impostos aos professores de níveis Fundamental e Médio no que concerne ao ensino do período complexo e à sua adequada aplicação para a compreensão e para a produção de textos argumentativos. Dessa forma, esperamos que as discussões por nós empreendidas possam, de alguma forma, embasar o desenvolvimento de estratégias pedagógicas que privilegiem o estudo de interface sintático-discursivo das cláusulas hipotáticas, método que julgamos mais eficiente do que a mera reprodução de termos classificatórios esvaziados de sentido tanto para discentes quanto para docentes. De acordo com Travaglia (2009, p. 150), atividades que levem a um estudo do que o autor denomina “gramática reflexiva”

[...] funcionam como estratégias para ensinar o aluno a pensar, a raciocinar, uma vez que sempre o levam a observar usos de recursos linguísticos e a perceber, organizar e explicitar o que regula a sua utilização para produzir efeitos de sentidos em situações concretas de interação comunicativa. Para isso, o aluno tem que utilizar sua intuição de falante e a de outras pessoas, bem como a habilidade de análise, comparação, estabelecimento de relações (causa-consequência, condição, oposição, semelhança, diferença, etc.), generalização que são características do pensamento organizado, do raciocínio. Na verdade, nas atividades de gramática reflexiva, o aluno termina por explicitar elementos da gramática da língua (o que equivale a criar teorias) em aspectos de sua semântica (o que significa) e de sua pragmática (em que situações o texto constituído por dado recurso da língua pode ser usado, em que condições e para produzir que efeito de sentido, podendo este variar ou não conforme sua situação).

Concluímos, portanto, que, muito mais que mera decodificação de signos e palavras, as atividades de análise linguística que têm o texto como unidade de ensino são fundamentais não apenas para a formação acadêmica do aluno, mas também para a formação de um falante-comunicador competente nas diversas esferas sociais, objetivo primeiro do ensino de Língua Portuguesa na escola.

A título de propostas de intervenção pedagógica, trabalharemos com os artigos de opinião publicados no dia 28 de junho de 2014, sobre publicidade infantil, tema inclusive que foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) meses depois, naquele mesmo ano. Os textos analisados mais detalhadamente neste artigo estão disponíveis nos anexos. Acreditamos que as atividades aqui sugeridas possam ser aplicadas às turmas de 2º e 3º anos do Ensino Médio.

Propostas de atividades

Utilize o texto Crianças, cores e imaginação para resolver as questões de 1 a 4.

1. O artigo de opinião lido por você e que responde não ao questionamento feito pelo jornal defende que a publicidade dirigida às crianças não deve ser proibida. Dentre os argumentos elencados pelo enunciador para a defesa dessa tese, um, em especial, se repete ao longo de vários parágrafos.

a) Qual é o argumento principal empregado pelo enunciador no texto Crianças, cores e imaginação?

b) Destaque, do texto, uma passagem que justifique a resposta dada no item anterior.

2. Como sabemos, a análise linguística de enunciados descontextualizados pode levar a equívocos. Tendo como parâmetro o texto Crianças, cores e imaginação, observe o trecho a seguir e, em seguida, faça o que lhe é solicitado nos itens a e b.

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Ao considerar abusivo o uso de criações desenvolvidas para a criança em embalagens de produtos infantis, a resolução afetará diretamente a produção cultural voltada às crianças.

a) Muito mais que marcar uma relação temporal no período em estudo, a oração subordinada adverbial em negrito é passível de outras leituras, ou seja, pode estabelecer outras relações semânticas com a oração principal (a resolução afetará diretamente a produção cultural voltada às crianças). Identifique, pelo menos, uma dessas relações.

b) Reescreva o período de forma que fique explícita essa outra possibilidade de leitura. Faça as adaptações gramaticais necessárias.

c) Com base em todo o projeto argumentativo desenvolvido pelo enunciador, responda: que relação semântica a oração destacada em negrito expressa no contexto?

d) Como você classificaria a oração em estudo? Essa classificação é reconhecida oficialmente, como uma das circunstâncias expressas pelas orações subordinadas adverbiais?

Releia o trecho a seguir para responder às questões 3 e 4.

A sociedade responsavelmente cobra dos órgãos públicos mais atenção na prevenção aos riscos a que a criança está exposta. Mas, certamente, não é seu desejo passar uma borracha nos desenhos, personagens e animações que fazem parte do universo infantil. Tampouco creio que as famílias queiram evitar o excesso de cores ou as músicas infantis que tanto encantam seus filhos em qualquer situação.

Ainda assim, ao agir com o legítimo intuito de coibir práticas comerciais abusivas direcionadas à criança, a resolução acabou por recomendar que se apaguem algumas das luzes do universo infantil.

3. No início do fragmento em destaque, o enunciador parece conceder razão àqueles que possam considerar válida a lei que proíbe a veiculação de publicidade destinada a crianças.

a) Que palavra comprova a afirmação anterior?

b) O conector mas estabelece entre as duas primeiras frases do trecho em estudo uma relação de contraste. Una, em um único período, as frases em discussão, estabelecendo uma relação sintática de subordinação adverbial.

4. Dentre as variadas leituras que se pode fazer das orações em negrito, no que se refere à relação de sentido que se estabelece entre elas, identifique aquela mais coerente com o projeto argumentativo do texto. Lembre-se de que o texto em estudo é um artigo de opinião que visa a convencer o leitor sobre a veracidade da tese defendida.

Utilize o texto Um mercado fora da lei para resolver as questões 5 e 6.

5. Da mesma forma que o texto Crianças, cores e imaginação, o artigo que responde sim à pergunta Publicidade dirigida a crianças deve ser proibida, apresenta um argumento principal que conduz toda a argumentação. Identifique-o.

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6. Sabemos que o conector quando, dentre seus vários usos na articulação de orações, é muito empregado para introduzir a noção temporal. Entretanto, de acordo com toda a argumentação empreendida no texto Um mercado fora da lei, outra relação semântica pode ser observada da relação entre as orações em que ele foi usado.

A publicidade e a comunicação mercadológica que se dirigem diretamente às crianças, além de ilegais, são antiéticas e imorais. Aproveitam-se da peculiar fase de desenvolvimento dos pequenos, justamente quando não conseguem entender o caráter persuasivo das mensagens ou mesmo diferenciar o conteúdo de entretenimento do comercial. A publicidade infantil intensifica problemas sociais como o consumismo infantil, a formação de valores materialistas, o aumento da obesidade infanto-juvenil, a violência e a erotização precoce.

a) Além da noção temporal, qual outro sentido emerge da relação entre as orações em negrito?

b) Reescreva o período destacado em negrito de forma que expresse, claramente, a noção semântica identificada por você no item a. Faça as adaptações gramaticais necessárias.

Sugestão de respostas

Esclarecemos que o que vamos apresentar é apenas uma sugestão de gabarito, outras respostas podem ser aceitas. Ressaltamos, todavia, que a macroestrutura textual, o projeto argumentativo do enunciador sejam considerados para a resolução de todas as questões propostas, utilizando-se o texto, de fato, como unidade de ensino, conforme sugerem os PCN de Língua Portuguesa, proposta com a qual compactuamos e sobre a qual se pauta toda a discussão empreendida neste artigo.

1a. O texto Crianças, cores e imaginação pauta-se no argumento principal de que a lei que proíbe a publicidade destinada a crianças prejudicará os artistas cujas obras são destinadas a esse público. Acrescente-se, ainda, a crítica à escassez de incentivo cultural no país, especialmente em relação ao universo infantil.

1b. Dentre outros trechos, destacamos os seguintes:

Trata-se do licenciamento de marcas, pelo qual o criador de uma música, um personagem ou uma animação infantil cede o direito de uso de sua criação ao fabricante de um produto. É o licenciamento que, no final, permite que essas criações sobrevivam, dado o limitadíssimo consumo cultural em nosso país.

Curioso notar que a nova norma abre uma exceção ao permitir o uso dos personagens, cores e trilhas sonoras infantis em campanhas de utilidade pública – como se essas mesmas criações brotassem de fonte natural e não fossem produzidas por músicos, artistas, cartunistas e escritores para serem comercializadas, direta ou indiretamente, por meio do licenciamento. Esses, sim, serão diretamente afetados caso a resolução se mantenha.

2a. A oração em destaque pode expressar a noção de causa e de modo.

2b. Possibilidades de reescritura:

Causa:

Por considerar abusivo o uso de criações desenvolvidas para a criança em embalagens de produtos infantis, a resolução afetará diretamente a produção cultural voltada às crianças.

Como considera abusivo o uso de criações desenvolvidas para a criança em embalagens de produtos infantis, a resolução afetará diretamente a produção cultural voltada às crianças.

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Modo:

A resolução afetará diretamente a produção cultural voltada às crianças, considerando abusivo o uso de criações desenvolvidas para a criança em embalagens de produtos infantis.

2c/d. Se o aluno citar a relação semântica de causa, responderá que a oração em estudo classifica-se como Oração Subordinada Adverbial Causal.

Se o aluno citar a relação semântica de modo, não encontrará classificação, na NGB, para a oração, já que as orações modais não figuram no rol de circunstâncias expressas pelas orações subordinadas adverbiais.

3a. O advérbio responsavelmente comprova que o enunciador, no início do trecho em estudo, concede razão aos opositores de sua tese.

3b. Embora / Mesmo que / Ainda que a sociedade responsavelmente cobre dos órgãos públicos mais atenção na prevenção aos riscos a que a criança está exposta, certamente, não é seu desejo passar uma borracha nos desenhos, personagens e animações que fazem parte do universo infantil.

4. Tendo em vista que o enunciador procura levar o leitor a concordar ou, no mínimo, considerar plausíveis seus argumentos, a relação causa/consequência é a melhor leitura para a relação que emerge da relação entre orações em negrito. A causa seria a coibição das práticas comerciais abusivas direcionadas à criança; a consequência seria a perda do colorido do universo infantil, representado pelos personagens e pelas músicas infantis empregados nas campanhas publicitárias alvo da lei.

5. O texto Um mercado fora da lei defende, como argumento principal, que a publicidade dirigida às crianças induz ao consumismo precoce.

6a. Além da noção de tempo, a noção de causa também emerge da relação entre as cláusulas, estabelecendo, pois, entre as duas orações em destaque, uma relação de causa (segunda oração) e consequência (primeira oração).

6b. Sugestões de reescritura:

Aproveitam-se da peculiar fase de desenvolvimento dos pequenos, justamente porque as crianças não conseguem entender o caráter persuasivo das mensagens ou mesmo diferenciar o conteúdo de entretenimento do comercial.

Aproveitam-se da peculiar fase de desenvolvimento dos pequenos, justamente por saberem que as crianças não conseguem entender o caráter persuasivo das mensagens ou mesmo diferenciar o conteúdo de entretenimento do comercial.

5. CONSIDERAÇÕES FINAISOs estudos recentes sobre o texto concebem-no como um evento comunicativo que demanda a mobilização

de conhecimentos da língua e de como pode se dar esse uso, considerando a situação em que se encontram os sujeitos envolvidos na interação e as expectativas em jogo. Acatando essa perspectiva, endossada pelas palavras de

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Adam (2009, p. 117), para quem o texto é “uma realidade heterogênea demais para que seja possível circunscrevê-la aos limites de uma definição estrita”, dentre diversos recursos linguístico-discursivos que permitem detectar que os níveis discursivo, textual e sentencial se apresentam intrinsecamente relacionados, tese norteadora deste trabalho, escolhemos, investigar as cláusulas hipotáticas circunstanciais, no que tange à sua produtividade em textos contrários e favoráveis ao senso comum, bem como seu posicionamento no nexo clausal.

Como nossa perspectiva de análise privilegia a “materialidade textual” e encara como inseparáveis do texto os aspectos discursivos e sociais, foi possível focalizar que o êxito do projeto argumentativo empreendido pelo enunciador não está restrito apenas à seleção dos argumentos para a defesa de seus pontos de vista, mas também à materialização em termos linguísticos desses argumentos. Em outras palavras, os dados levantados, no nosso corpus, confirmam que quanto mais complexa a defesa de uma tese, mais numerosos serão os recursos linguísticos utilizados para convencer o interlocutor sobre a plausibilidade e a veracidade dos argumentos elencados, o que, neste artigo, foi representado pela maior frequência das cláusulas hipotáticas circunstanciais em artigos de opinião que contestam o que a sociedade considera politicamente correto. Entendemos, pois, que as cláusulas hipotáticas são imprescindíveis no que se refere ao discurso – já que realçam argumentos e encadeiam raciocínios lógicos arquitetados pelo enunciador em seu projeto de argumentação.

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Nas tramas da argumentação: a hipotaxe circunstancial como estratégia argumentativa Amanda Heiderich Marchon

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ANEXOS

INIBIDORES DE APETITE DEVEM SER PROIBIDOS? 17/05/2014

SIM: REMÉDIO POLÍTICO

O tempo serviu para demonstrar que o uso de medicamentos que contém anfetamínicos gera mais riscos do que a própria doença que pretende tratar. Há duas centenas de trabalhos científicos publicados ao longo dos últimos anos que concluem que eles não são capazes de gerar redução sustentada de peso e causam hipertensão arterial, hipertensão pulmonar e distúrbios psiquiátricos em grande parte das pessoas que os utilizam.

Por essas razões, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) adotou a resolução nº 52/2011, que proíbe a produção e a venda dos medicamentos que contém como princípios ativos anfepramona, femproporex e mazindol. É uma questão de saúde, respaldada técnica e cientificamente.

Os dados científicos acumulados ao longo de décadas de uso desses medicamentos indicam um perfil de segurança e eficácia bastante insatisfatório. Os riscos aos quais os pacientes são submetidos durante o tratamento são injustificáveis, dada a baixa capacidade de se alcançar a redução sustentada do peso.

Os estudos mostram ainda que reduções modestas de peso obtidas com inibidores de apetite não são necessariamente traduzidas em benefícios à saúde no longo prazo, isto é, redução da morbidade associada ao excesso de peso.

Até o ano de 2011, o Brasil era um dos maiores mercados consumidores de medicamentos controlados indicados para o tratamento da obesidade. Estavam disponíveis medicamentos a base dos derivados anfetamínicos (mazindol, anfepramona e femproporex) e da sibutramina.

Os dados de consumo dos produtos manipulados em farmácias e os fabricados pela indústria contendo os chamados inibidores de apetite evidenciavam que seu uso era crescente, ao mesmo tempo em que a epidemia da obesidade aumentava.

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Nas tramas da argumentação: a hipotaxe circunstancial como estratégia argumentativa Amanda Heiderich Marchon

Dados da Vigitel (Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico) publicados agora pelo Ministério da Saúde mostram que a curva de crescimento do número de pessoas obesas no Brasil era crescente no período em que esses produtos estavam no mercado.

Em um momento em que muitas agências reguladoras ao redor do mundo adotaram decisões sobre a retirada da sibutramina dos seus mercados (Estados Unidos da América, Europa, Canadá, Austrália, além de vários países da América do Sul), a Anvisa recebeu recomendações da Câmara Técnica de Medicamentos e de sua área de farmacovigilância de revisão das autorizações de registro de todos os medicamentos indicados para o tratamento da obesidade com efeitos sobre o sistema nervoso central.

Até a publicação da resolução nº 52/2011, um amplo debate técnico e científico concluiu pela retirada do mercado dos medicamentos contendo derivados anfetamínicos. Foram cancelados os registros de 13 medicamentos, sendo que dez continham anfepramona, dois continham mazindol e um continha femproprex. O fato é que se concluiu não haver níveis seguros de uso para esses produtos.

Diferentemente do que afirmam opositores da resolução, não houve aumento da obesidade em consequência da proibição dos derivados anfetamínicos. Ao contrário, o resultado do Vigitel mostra que, entre os anos de 2012 e 2013, o percentual de pessoas obesas se estabilizou pela primeira vez desde 2006, sugerindo uma resposta responsável da sociedade na adoção de caminhos não dependentes de drogas para manejar a obesidade.

Dogmas não são bem-vindos nem na ciência nem na política, mas o método científico é muito mais apropriado para a tomada de decisões sobre saúde. Esse é o caminho adotado pela Anvisa diariamente quando cumpre sua missão, delegada por lei.

DIRCEU BARBANO, 48, mestre em fármacos e medicamentos pela USP, é diretor-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)

NÃO: SÃO MAIS QUE TRÊS QUILINHOS

Mais da metade dos brasileiros adultos está acima do peso e 1 em cada 6 já tem o diagnóstico de obesidade. Quem já tentou emagrecer sabe que os tratamentos são cheios de armadilhas. Baixar o peso até pode ser fácil, mas manter um bom resultado a longo prazo é sempre mais complicado.

É aí que entram os remédios. Claro que seria mais seguro emagrecer só com dieta e exercício. Todo medicamento traz algum risco para a saúde. Será então que devem ser usados? Por trás dessa dúvida se esconde um preconceito cruel. Aquela velha ideia de que usar remédio para emagrecer é coisa de preguiçoso, que com um pouquinho de força de vontade qualquer obeso consegue resolver o seu problema.

Não é isso que a ciência médica tem mostrado. Está claro que a maior parte desses pacientes só consegue um bom resultado com a ajuda dos medicamentos. E eles não têm culpa. Muitos nasceram com forte tendência genética para acumular gordura e metabolismo lento.

Quando decide receitar um remédio para auxiliar, o médico conta com pouquíssimas opções. No Brasil só temos dois agentes aprovados para o tratamento da obesidade: o orlistate e a sibutramina. E nenhum deles resolve o problema de todos os pacientes. Pelo menos 1 em cada 3 pessoas que tentam emagrecer com esses remédios não consegue o resultado esperado.

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Nas tramas da argumentação: a hipotaxe circunstancial como estratégia argumentativa Amanda Heiderich Marchon

É aí que deveriam entrar os inibidores do apetite. São remédios antigos, que chegaram ao mercado há décadas, quando não se exigiam com tanto rigor pesquisas clínicas para comprovar eficácia e segurança. A principal justificativa da Anvisa quando proibiu o uso dos inibidores foi justamente essa escassez de estudos clínicos controlados.

As sociedades científicas representativas dos médicos que tratam os pacientes obesos foram contrárias à proibição por entenderem que, apesar da escassez de estudos clínicos, o equilíbrio entre o risco e o benefício ainda pende em favor de sua utilização. Claro que só quando são bem prescritos. Para uma pessoa que só precisa perder quatro ou cinco quilos, certamente o risco será maior que o benefício.

Esse parece ser o pomo da discórdia. A Anvisa preocupou-se principalmente em proteger esses brasileiros que usavam de forma abusiva os inibidores de apetite. As sociedades científicas se concentraram em lutar pelo acesso dos pacientes verdadeiramente obesos a esses medicamentos, por entenderem que, apesar de antigos, são razoavelmente eficazes e seguros.

A questão do acesso é um ponto crucial. Logo devem chegar novas opções de remédios ao mercado brasileiro. Os americanos já têm à sua disposição dois novos e promissores agentes antiobesidade. Ambos chegam respaldados por pesquisas clínicas que envolveram milhares de pacientes e centenas de milhões de dólares em investimentos.

Mas quando a Anvisa aprová-los, se aprová-los, deverão custar pelo menos R$ 200 a R$ 300 por mês. E aí como fica o acesso? A grande maioria dos obesos brasileiros só poderão comprá-los depois de dez anos, quando expirar a patente e despencar o preço ao consumidor.

Para sair desse impasse, o caminho legislativo promete ser tortuoso. O Congresso não está aparelhado para avaliar tecnicamente o risco e o benefício dos medicamentos. Ainda que estivesse, parece esdrúxulo termos uma lei proibindo a agência regulatória de regular.

O cenário ideal seria o de uma maior aproximação entre a Anvisa e as sociedades científicas. Precisamos encontrar o equilíbrio que garanta a prescrição responsável, livrando de um risco desnecessário os brasileiros com pequeno excesso de peso e garantindo o acesso aos pacientes que de fato necessitem.

WALMIR COUTINHO, 55, é presidente da Federação Mundial de Obesidade e professor titular de endocrinologia da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)

PUBLICIDADE DIRIGIDA A CRIANÇAS DEVE SER PROIBIDA?28/06/2014

NÃO: CRIANÇAS, CORES E IMAGINAÇÃO

Embora a discussão sobre a necessidade de regulamentar a publicidade infantil no país seja pertinente, uma resolução do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda), ao tentar evitar excessos, atingiu, por tabela, um sem-número de atividades econômicas e culturais destinadas única e exclusivamente à criança.

Trata-se do licenciamento de marcas, pelo qual o criador de uma música, um personagem ou uma animação infantil cede o direito de uso de sua criação ao fabricante de um produto. É o licenciamento que, no final, permite que essas criações sobrevivam, dado o limitadíssimo consumo cultural em nosso país.

A resolução, de abril deste ano, além de estabelecer que é abusiva a conduta de direcionar a publicidade à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de produtos e serviços, também considera abusiva toda a

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Nas tramas da argumentação: a hipotaxe circunstancial como estratégia argumentativa Amanda Heiderich Marchon

comunicação mercadológica dirigida à criança que contenha linguagem infantil, excesso de cores, trilhas sonoras e personagens infantis, desenhos animados e bonecos. A mesma resolução define comunicação mercadológica não apenas como a publicidade propriamente dita, mas também páginas na internet, embalagens, ações em shows e disposição dos produtos em lojas e supermercados.

Na tentativa de coibir eventuais abusos, a resolução provoca efeitos certamente indesejáveis. Estranho imaginar, por exemplo, uma boneca embalada em papel pardo na vitrine da loja de brinquedos ou uma caixa de lápis de cor que, por fora, seja inteira em preto e branco. Difícil aceitar também que se queira substituir o papel crucial que os pais exercem na educação de seus filhos. Aos pais cabe impor regras saudáveis de consumo de produtos e limitar compras de artigos que considerem prejudiciais às crianças. Ao considerar abusivo o uso de criações desenvolvidas para a criança em embalagens de produtos infantis, a resolução afetará diretamente a produção cultural voltada às crianças. Curioso notar que a nova norma abre uma exceção ao permitir o uso dos personagens, cores e trilhas sonoras infantis em campanhas de utilidade pública –como se essas mesmas criações brotassem de fonte natural e não fossem produzidas por músicos, artistas, cartunistas e escritores para serem comercializadas, direta ou indiretamente, por meio do licenciamento.

Esses, sim, serão diretamente afetados caso a resolução se mantenha.

Quem se espanta com a posição desses artistas “ao trocar suas criações por dinheiro” e acredita que a publicidade é a mais nefasta das profissões deve lembrar não apenas os casos de abuso existentes no passado e no presente e cujos exemplos proliferam nas redes sociais. Mas também aqueles que, ao atingirem em cheio o universo infantil, levaram à criança muito mais do que um simples produto. Como o lápis de cor que inseriu no imaginário infantil um valioso pedacinho da música popular brasileira ao imortalizar a “Aquarela” de Toquinho envolta em cores e desenhos na TV.

A sociedade responsavelmente cobra dos órgãos públicos mais atenção na prevenção aos riscos a que a criança está exposta. Mas, certamente, não é seu desejo passar uma borracha nos desenhos, personagens e animações que fazem parte do universo infantil. Tampouco creio que as famílias queiram evitar o excesso de cores ou as músicas infantis que tanto encantam seus filhos em qualquer situação.

Ainda assim, ao agir com o legítimo intuito de coibir práticas comerciais abusivas direcionadas à criança, a resolução acabou por recomendar que se apaguem algumas das luzes do universo infantil.

O que precisamos mais do que tudo neste momento é ouvir a sociedade e debater o tema sem radicalismos, para que se chegue a um consenso do que é, no fim das contas, o melhor para a criança.

MONICA DE SOUSA, 53, é diretora-executiva da Mauricio de Sousa Produções

SIM: UM MERCADO FORA DA LEI

Há quase três meses foi publicada a resolução nº 163 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), que passou a considerar abusiva toda e qualquer publicidade ou comunicação mercadológica dirigidas ao público infantil com menos de 12 anos.

No entanto, o que se verifica é um completo desrespeito à norma. A publicidade que fala diretamente com a criança com a intenção de seduzi-la para o consumo continua firme e forte nos canais televisivos segmentados infantis, na tevê aberta, nos cinemas, nas escolas, nos parques, nos clubes, na distribuição de brindes colecionáveis das cadeias de fast-food e em outros inúmeros espaços de convivência.

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Nas tramas da argumentação: a hipotaxe circunstancial como estratégia argumentativa Amanda Heiderich Marchon

E como justificar isso? Como explicar para mães e pais cansados do bombardeio publicitário que atingem seus filhos que a norma está em vigor, mas praticamente o mercado inteiro não a cumpre? Não há como. Só mesmo a constatação de que, para as empresas anunciantes, para as agências de publicidade e para os veículos de comunicação envolvidos, os interesses financeiros e corporativos são enormemente mais importantes que o saudável desenvolvimento das nossas crianças.

A publicidade e a comunicação mercadológica que se dirigem diretamente às crianças, além de ilegais, são antiéticas e imorais. Aproveitam-se da peculiar fase de desenvolvimento dos pequenos, justamente quando não conseguem entender o caráter persuasivo das mensagens ou mesmo diferenciar o conteúdo de entretenimento do comercial. A publicidade infantil intensifica problemas sociais como o consumismo infantil, a formação de valores materialistas, o aumento da obesidade infanto-juvenil, a violência e a erotização precoce.

O mercado, de maneira geral, está infringindo despudoradamente uma norma que foi aprovada por unanimidade em um Conselho Nacional de Direitos vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos, criado pela lei nº 8.242/91 com competência para formular, deliberar e controlar as políticas referentes à infância e adolescência. Conselho que nasce da Constituição cidadã e é formado, de maneira paritária, por representantes da sociedade civil organizada atuantes no âmbito da promoção e proteção dos direitos da criança e por representantes do Poder Executivo federal.

Na prática, a resolução nº 163, em conjunto com o artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, deveria significar o fim dos abusos mercadológicos desferidos às crianças, ou seja, o fim do direcionamento da publicidade ao público infantil, à medida que se trata de uma norma emanada de um conselho deliberativo, com poder vinculante e, obrigatoriamente, precisaria ser observada e cumprida em território nacional.

No entanto, o mercado age à revelia da norma, acreditando estar acima dela, acima do Conanda, da própria sociedade que o compõe e do clamor social pela proteção das crianças. Pensa ser até mesmo intocável pela Constituição Federal ou pelo Código de Defesa do Consumidor. Nada lhe atinge. Só o que lhe interessa é o expressivo volume financeiro que movimenta ao convencer crianças de que elas precisam consumir cada vez mais.

Ocorre que a sociedade brasileira atual exige a responsabilização daqueles que infringem os direitos sociais, inclusive o das crianças a uma infância plena, sadia e feliz.

É por isso que, como única forma de se frear esse assédio, caberá aos Procons, à Secretaria Nacional do Consumidor, aos Ministérios Públicos, às Defensorias Públicas e ao próprio Poder Judiciário, coibir as ilegalidades cometidas, inclusive com a aplicação das respectivas sanções, a fim de se garantir a construção de um país que verdadeiramente honre suas crianças.

ISABELLA HENRIQUES, 39, advogada, é diretora do Instituto Alana, dedicado à defesa dos direitos da criança

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Observar, compreender: a justaposição em textos

Adriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann1

1 Possui licenciatura em Letras – Língua Portuguesa e Inglês – pela Faculdade Federal do Rio de Janeiro, mestrado em Letras Vernáculas também pela Faculdade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, está fazendo doutorado sob supervisão da Professora Doutora Violeta Virginia Rodrigues, na mesma universidade.E-mail: [email protected]

RESUMO Neste artigo, pretende-se apresentar a justaposição como um procedimento sintático, que não se restringe ao âmbito do período composto por coordenação e nem à rotulação de um subtipo de uma das orações coordenadas – as assindéticas. Desse modo, são apresentadas descrições acerca da justaposição propostas por alguns gramáticos, a saber, Luft (1978), Cunha e Cintra (1985), Bechara (1987) e Rocha Lima (1998). Em seguida, são contempladas outras abordagens sobre esse fenômeno em gramáticas gerativas, Mateus et alii (1983) e Raposo et al (2013), e por autores funcionalistas como Lima-Hernandes (2008), Rodrigues e Dias (2010), Gonçalves (2017), para citar alguns. Além disso, propõe-se atividades que permitam a reflexão dos usos linguísticos, principalmente, do procedimento da justaposição, no âmbito escolar.

Palavras-chave: justaposição; Funcionalismo; ensino.

ABSTRACTIn this essay, we present the juxtaposition as a syntactic procedure, which is not considered as a subtype of parataxis clause - the asynthetic ones. Therefore, we introduce some descriptions of the juxtaposition proposed by some grammarians such as Luft (1978), Cunha e Cintra (1985), Bechara (1987) e Rocha Lima (1998). Posteriorly, we present other approaches about this phenomenon, for instance, the Generative grammar studies as Mateus et alii (1983) and Raposo et al (2013), and functionalist studies, Lima-Hernandes (2008), Rodrigues e Dias (2010) and Gonçalves (2017). In addition, we proposed some activities that allow the reflection of the linguistic uses, mainly, of the juxtaposition procedure, in the school context.

Keywords: juxtaposition; Functionalism; teaching.

INTRODUÇÃOAs gramáticas que seguem a NGB, Nomenclatura Gramatical Brasileira, contemplam somente os processos

de coordenação e subordinação para a estruturação do período composto. Assim, justaposição é, geralmente, associada às orações coordenadas assindéticas, isto é, quando mencionada, restringe-se à possibilidade de se colocar uma oração ao lado da outra sem considerar uma possível relação semântica entre elas.

No entanto, neste estudo, ao contrário do que é apresentado nas gramáticas tradicionais, objetiva-se defender que a justaposição é um processo sintático e não simplesmente uma forma de organização de orações restrita ao âmbito da coordenação. A fim de compreender e descrever esse processo sintático, à luz do aporte teórico funcionalista, é necessário relacionar as cláusulas justapostas com a organização do discurso e os recursos

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Observar, compreender: a justaposição em textos Adriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann

linguísticos e/ou semióticos empregados nos textos em que as estruturas ocorrem. Sendo assim, as estratégias textuais no contexto em que as cláusulas justapostas estão inseridas possibilitam uma melhor percepção das relações semânticas de causa, consequência, entre outras, que distinguem a coordenação da justaposição, isto é, o que caracteriza as cláusulas coordenadas é a independência semântica e o que caracteriza as cláusulas justapostas é a interdependência semântica. Vale mencionar que o estudo do contexto e do cotexto dos quais os exemplos foram retirados não é um fator observado nas gramáticas normativas. Ao contrário, essas utilizam usos consagrados pela norma padrão que, com frequência, não correspondem aos usos efetivos elaborados pelos falantes brasileiros no dia a dia, pois são descontextualizados.

Desse modo, esse artigo almeja descrever o processo sintático intitulado justaposição, que é caracterizado pela interdependência semântica entre as cláusulas, atribuída por meio dos elementos linguísticos e semióticos empregados em textos, e pela independência sintática da cláusula conforme ilustra o exemplo a seguir:

Imagem 1 Propaganda Sedex.

http://www.propagandaemrevista.com.br/ano/1998/06/?page=2 (acesso em 28 de março de 2017)

Observando o slogan da propaganda do produto Sedex, entrega rápida da empresa Correios, percebe-se que há uma relação semântica de temporalidade implícita entre as partes que constituem o período, “Mandou, chegou”. Essa relação se dá por meio dos recursos semióticos empregados tais como imagem do personagem Papaleguas1, que remete à agilidade, e aos traços de movimento, que indicam alta velocidade. Além disso, a relação semântica de tempo também é estabelecida pelos usos dos recursos linguísticos como o léxico associado ao campo semântico

1 O Papa-léguas é um dos personagens do desenho animado do Papa-léguas e do Coiote que foi criado no ano de 1949 pelo o estúdio Warner Bros. No desenho, Coiote, personagem com instinto natural selvagem e sempre faminto, elabora planos mirabolantes e absurdos para tentar capturar sua presa, o Papa-léguas. No entanto, esse sempre consegue escapar ileso das armadilhas por ser esperto e veloz. O desenho é uma paródia de outro tradicional desenho animado - o Tom e Jerry.

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de rapidez, como: a palavra “pressa” e a expressão “correr contra o tempo”. Desta forma, o slogan e os recursos semióticos presentes na mídia impressa possibilitam que relações de causa e consequência emerjam, como as estabelecidas nas paráfrases a seguir:

(i) Assim que manda, chega.

(ii) Quando manda, chega.

Assim, percebe-se que, apesar de as cláusulas que constituem o slogan da propaganda não serem introduzidas por conector e possuírem uma autonomia sintática, há entre elas uma interdependência semântica que, só quando identificada, possibilita que o interlocutor acesse o propósito comunicativo da propaganda, nesse caso, o imediatismo e a garantia da entrega que só é proporcionada pelo envio por Sedex.

Sendo assim, este artigo tem como intuito apresentar como as gramáticas normativas descrevem a justaposição no âmbito do período composto, apresentar uma descrição de como outras abordagens, a saber, a descritiva e a funcionalista, definem a justaposição e, por último, relacionar o fenômeno da justaposição com o ensino, mais especificamente, pensar em como as cláusulas justapostas são relevantes para o ensino e para a compreensão dos textos em que aparecem.

1. SOB A ÓTICA DAS GRAMÁTICAS NORMATIVASConforme descrito anteriormente, a Gramática Tradicional reconhece, no âmbito do período composto,

dois processos sintáticos, a coordenação e a subordinação. Esses mecanismos são definidos, na maioria das vezes, por meio de dois aspectos. O primeiro se relaciona com a estrutura da cláusula, que consiste em uma oração desempenhar ou não função sintática em outra oração ou em um termo dessa. O segundo aspecto consiste na autonomia de sentido, isto é, a possibilidade de as orações possuírem sentido próprio ou o sentido ser construído a partir da relação estabelecida entre as duas orações que formam o período composto. Portanto, as gramáticas tradicionais diferenciam a coordenação da subordinação com base no parâmetro maior ou menor dependência, todavia, não especificam se a natureza dessa (in)dependência é de ordem sintática ou semântica. Observemos as orações nos períodos a seguir:

(i) O estudante notou / que seu desempenho reduzira.

(ii) O estudante / que se dedica / vence na vida.

(iii) Quando se dedica, / o estudante vence na vida.

(iv) O estudante se dedicou muito, / mas venceu na vida.

(v) O estudante se dedicou, / venceu na vida.

De acordo com a Gramática Tradicional, doravante GT, as orações em itálico em (i), (ii) e (iii) seriam classificadas como subordinadas, isto é, como orações que são mais dependentes do ponto de vista sintático e semântico. Em outras palavras, são exemplos em que a oração subordinada exerce função sintática na oração principal ou em um termo desta e depende desta para estabelecer comunicação.

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Observar, compreender: a justaposição em textos Adriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann

No entanto, há uma diferença quanto ao grau de dependência entre os exemplos citados. Segundo a tradição, o traço maior ou menor dependência sintática e semântica se relaciona com a categoria a que a oração corresponde e à função sintática que essa desempenha. Desse modo, os exemplos seriam analisados e classificados da seguinte forma: no exemplo (i), a oração “que seu desempenho reduzira” é considerada uma oração subordinada substantiva, pois pode ser substituída pelo substantivo “a redução do seu desempenho”, além disso, essa oração funciona como objeto direto do verbo “notou”; no exemplo (ii), a oração “que se dedica” é considerada uma oração subordinada adjetiva, pois é introduzida pelo pronome relativo “que”, que retoma o antecedente nominal “estudante”, além de atribuir uma característica a esse antecedente, no caso, “dedicado” e exerce a função sintática de adjunto adnominal em relação a esse nome; no exemplo (iii), a oração “quando se dedica” é considerada uma oração subordinada adverbial temporal/condicional, pois funciona como adjunto adverbial da oração “consegue”.

Em contrapartida, os exemplos (iv) e (v) seriam considerados, pela tradição, como períodos compostos por coordenação. As orações coordenadas são descritas pela maioria dos gramáticos como mais independentes do ponto de vista sintático e semântico, ou seja, a oração coordenada não é um termo da oração a que se liga e, por isso, possui autonomia sintática. Desse modo, o período do exemplo (iv) seria classificado como composto por duas orações coordenadas. A primeira, “O estudante se dedicou muito”, uma oração coordenada assindética por não ser introduzida por um conector. A segunda, “mas conseguiu”, classificada como uma oração coordenada sindética adversativa por ser introduzida pelo conector mas e veicular o conteúdo semântico de contraste, oposição. O exemplo (v) seria classificado como composto por duas orações coordenadas assindéticas por não serem introduzidas por conector. A primeira “O estudante se dedicou” e a segunda “conseguiu”. Como não há conectores entre as orações, não se identifica, do ponto de vista classificatório, a relação semântica estabelecida entre elas, embora, muitas vezes, tais relações possam ser inferidas pelos cotexto e contexto de uso.

Rodrigues & Gonçalves (2015) problematizam, no quadro comparativo disposto a seguir, como alguns gramáticos definem os procedimentos sintáticos da subordinação e da coordenação.

Quadro 1 Coordenação & subordinação no âmbito da GT

GRAMÁTICO COORDENAÇÃO SUBORDINAÇÃO

BECHARA(1987, p. 218-219)

“Chama-se coordenação à seqüência de orações em que uma não exerce função sintática na outra.”Ex.: “Ouve e obedece aos teus superiores.”

“Chama-se subordinação à seqüência de orações em que uma é um termo sintático de outra.”

Ex.: “Não sei se todos disseram que não queriam o brinquedo.”

CUNHA & CINTRA(1985, p. 578-579)

“As horas passam, os homens caem, a poesia fica. Vemos que as três orações são da mesma natureza, pois: a) são autônomas, INDEPENDENTES, isto é, cada uma tem sentido próprio; b) não funcionam como TERMOS de outra oração, nem a eles se referem: apenas, uma pode enriquecer com o seu sentido a totalidade da outra. A tais orações autônomas dá-se o nome de COORDENADAS, e o período por elas formado diz-se COMPOSTO POR COORDENAÇÃO.”

“As orações sem autonomia gramatical, isto é, as orações que funcionam como termos essenciais, integrantes ou acessórios de outra oração chamam-se SUBORDINADAS. O período constituído de orações SUBORDINADAS e uma oração PRINCIPAL denomina-se COMPOSTO POR SUBORDINAÇÃO.”

Ex.: “O meu André não lhe disse que temos aí um holandês que trouxe material novo?”

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GRAMÁTICO COORDENAÇÃO SUBORDINAÇÃO

KURY (2002, p. 62-63)

“Se todas as orações de um período são independentes, isto é, têm sentido por si mesmas, e poderiam, por isso, constituir cada uma um período, o período se diz COMPOSTO POR COORDENAÇÃO. Ex.: “Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei.” (M. de Assis, MA, 4)”

“O período se diz COMPOSTO POR SUBORDINAÇÃO quando haja nele uma oração PRINCIPAL e uma ou mais SUBORDINADAS, isto é, dependentes dela. Pode também haver orações subordinadas não a uma principal, mas a um vocativo. Ex.: “Não permita Deus [que eu morra.]”

LUFT(1978, p.144 -145)

“Período composto por coordenação: só tem orações independentes (coordenadas).”Ex.: “As saudades me convidam, suspiros me põem a mesa.”

“Período composto por subordinação: tem oração principal e subordinada(s).”Ex.: “Quando um não quer, dois não brigam.”

ROCHA LIMA (1998, p. 260-261)

“A comunicação de um pensamento em sua integridade, pela sucessão de orações gramaticalmente independentes - eis o que constitui o período composto por coordenação.”Ex.: “As senhoras casadas eram bonitas; porém Sofia primava entre todas.”

“No período composto por subordinação, há uma oração principal, que traz presa a si, como dependente, outra ou outras. Dependentes, porque cada uma tem seu papel como um dos termos da oração principal.”Ex.: “É certo que o trem já partiu.”

Analisando as definições propostas no Quadro 1, observa-se que as gramáticas tradicionais adotam, principalmente, a noção de (in)dependência sintática e semântica para definir os procedimentos sintáticos da coordenação e da subordinação. No entanto, essa diferenciação, conforme apontada por Dias (2009), Rodrigues e Dias (2010) e Gonçalves (2017) não é suficiente para a descrição do período composto, tendo em vista que as noções de dependência e independência não consideram as possíveis, e muitas, funções das orações aplicadas ao discurso.

Portanto, tais definições contemplam somente o modo como as orações se ligam dentro dos dois processos sintáticos, apresentando para a justaposição de orações uma visão que se aplica à forma e não ao mecanismo sintático de estruturação em si, desprezando, ainda, a relação semântica entre os núcleos. (DIAS: 2009, p. 24)

Sendo assim, o slogan da Imagem 1, “Mandou, chegou”, parece não receber um tratamento adequado quanto à estruturação da oração, segundo Rodrigues e Dias (2010) e Gonçalves (2017). Analisadas sob a perspectiva da tradição gramatical, as orações “mandou” e “chegou” seriam classificadas simplesmente como coordenadas assindéticas, pois são estruturas independentes do ponto de vista sintático, ou seja, não são consideradas como membro sintático uma da outra, além de não possuírem um conector que as relacione. Entretanto, de acordo com a perspectiva funcionalista, proposta nos trabalhos de Rodrigues e Gonçalves (2015) e Gonçalves (2017), as leituras circunstanciais emergem do contexto e do cotexto2 em que a estrutura está inserida, independente da presença do conector.

Desse modo, percebe-se que as definições propostas por Luft (1978), Cunha e Cintra (1985), Bechara (1987), Rocha Lima (1998) e Kury (2002) acerca dos processos sintáticos em foco não consideram o conteúdo circunstancial implícito nesse tipo de período composto, muito menos outros processos sintáticos como a correlação descrita, por exemplo, por Rodrigues (2014) e a justaposição descrita por Dias (2009) e Gonçalves (2017).

No que tange à justaposição, as gramáticas tradicionais, frequentemente, associam esse conceito à organização das orações, isto é, justapor períodos, orações ou vocábulos, em geral, significa colocar um elemento ao lado do

2 Contexto é compreendido como possibilidade de um cenário ou mais cenários em que o texto está inserido, ou seja, é parte integrante do texto. Já o cotexto compreende as formas linguísticas que integram as condições que permitem interpretar um enunciado ou texto. Em outras palavras, o cotexto é que desencadeia as possibilidades contextuais que se encontram estabilizadas em um texto.

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outro, sem que esses possuam uma relação semântica entre si. Assim, nas gramáticas pós NGB, é consensual a ideia de justaposição como sinônimo de coordenação assindética.

Kury (2002, p. 64), por exemplo, aborda a justaposição como um recurso associado à forma com que as orações são organizadas. De acordo com o autor, a justaposição se caracteriza pela “colocação lado a lado, sem qualquer conectivo, de orações coordenadas assindéticas”.

Bechara (2006), embora também não considere a justaposição como processo sintático, aponta algumas particularidades acerca do fenômeno, ainda que permaneça descrevendo a justaposição como um subtipo de coordenação. Nas palavras do autor:

Ao lado da presença de transpositores e conectores vistos até aqui, as orações podem encadear-se, como ocorre com os termos sintáticos dentro da oração, sem que venham entrelaçadas por unidades especiais; basta-lhes apenas a sequência, em geral proferidas com contorno melódico descendente e com pausa demarcadora, assinalada quase sempre por vírgulas, ponto e vírgula e ainda por dois pontos.Esse procedimento de enlace chama-se justaposição.Sob o ponto de vista sintático e semântico, tais justaposições se aproximam, pela independência sintática e estreito relacionamento semântico, da parataxe ou coordenação.(BECHARA; 2006, p .479)

Desse modo, nota-se que as definições propostas por Kury (2002) e Bechara (2006) contemplam somente o aspecto formal pelo qual as orações se ligam, isto é, a ausência de conector explícito e a pontuação continuativa, desconsiderando, assim, a relação semântica entre as orações.

Todavia, essa associação entre a justaposição e a coordenação assindética nem sempre foi consensual em gramáticas tradicionais. Alguns gramáticos, como Oiticica (1942) e Ney (1955), autores pré NGB, defendiam a justaposição como uma forma de articulação de orações.

Oiticica (1942) atribui à justaposição um status de processo de composição de período com comportamento semelhante aos processos de subordinação, coordenação e correlação. O gramático classifica as orações justapostas em intercaladas, apostas e adverbiais.

Ney (1955, p. 62) afirma que o que diferencia a justaposição como processo de composição das orações é a “declaratividade” total, sem uso de “conectivo”. O autor aponta também que, apesar da ausência de um conector introduzindo as orações justapostas, há uma dependência de sentido entre elas. Nos termos do autor:

Na justaposição há declaratividade total, sem conectivo; mas as orações não são interdependentes no sentido. Ex.: “O viúvo teve uma única preocupação: deixar a música”; “não se pode dizer, atalhou o vigário, que isso seja obra do satanás”. “O mestre concluíra a obra, há dez meses”. No primeiro período, deixar a música é aposto de única preocupação; dizemos, pois que é uma oração justaposta aposta. No segundo período, atalhou o vigário é uma justaposta intercalada de citação. No terceiro período, há dez meses é justaposta adverbial.(NEY:1955, p. 62)

A partir das descrições propostas pela tradição apresentadas neste artigo, é notório que a justaposição, quando abordada, é associada estritamente à ausência de conector encabeçando as orações. Apesar de Oiticica (1942) e Ney (1955) considerarem a justaposição como um processo sintático distinto da coordenação, da subordinação e da correlação, os autores não abordam, em seus estudos, as possíveis relações circunstanciais que podem emergir do discurso, aspecto muito relevante no estudo do processo sintático que aqui se propõe.

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2. OUTRAS ABORDAGENS A justaposição, processo sintático abordado neste artigo, é também mencionada em gramáticas descritivas.

Por vezes, essa é reconhecida como um processo sintático dentro do nível paratático diferente da coordenação, como na gramática de Raposo (2013) e, por vezes, é apontado como um caso não prototípico da coordenação, como na gramática de Mateus et alii (1983).

Apesar de Mateus et alii (1983) não reconhecerem a justaposição como um processo sintático, as autoras apontam que há casos-fronteira no âmbito do período composto, já que a distinção entre coordenação e subordinação não é de tão fácil percepção. Um desses casos é nomeado por elas como orações coordenadas assimétricas, construções que estariam na fronteira dos dois processos.

Desse modo, sobre as coordenadas assimétricas, Mateus et alii (1983, p.555) apontam que “essas coordenações estabelecem nexos entre os membros coordenados que, do ponto de vista semântico, se aproximam da relação entre subordinante e subordinada”, mesmo que essas orações se comportem estruturalmente como coordenadas por possuírem autonomia discursiva, como nos exemplos a seguir citados pelas autoras:

“Não comes a sopa e não te levo ao cinema!” “Está um dia quente, mas a criança tem frio.” “Se não comeres a sopa, não te levo ao cinema!” “Embora esteja um dia quente, a criança tem frio”. (MATEUS ET ALII: 1983, p.155)

Nota-se que os exemplos supracitados, embora se assemelhem formalmente às orações coordenadas, podem estabelecer relações circunstanciais identificadas por meio do recurso da paráfrase entre as orações que são semelhantes às relações oriundas de orações subordinadas adverbiais, mais especificamente, o conteúdo condicional e concessivo.

Raposo et al (2013, p. 1715), na Gramática do Português, propõe dois tipos de conexão de orações: a hipotaxe, eixo, segundo o autor, “constituído por processos sintáticos que combinam constituintes em níveis hierárquicos distintos”, e a parataxe, que se caracteriza por “unidades que não estabelecem relações sintáticas de dependência hierárquica e que, por conseguinte, apresentam um grau de coesão menor entre si do que na hipotaxe”. Além disso, os estudiosos apontam que a parataxe pode ser estabelecida também sem qualquer articulador formal entre os constituintes, como no exemplo: “Chegou, viu, venceu”. Assim, Raposo et al (2013) afirmam que, além da coordenação, na parataxe há dois outros processos ─ o de suplementação e o de justaposição.

Para os autores, a justaposição caracteriza-se (cf. RAPOSO et al, 2013, p. 1735) por estruturas que, embora sejam autônomas, estabelecem nexos de significado entre as orações. Raposo et al (2013, p. 1735) mencionam também que “no caso da justaposição, a sequência linear (na escrita) ou temporal (na oralidade) entre as duas orações e também o nosso conhecimento de mundo são fatores importantes no estabelecimento desses nexos”. Em relação à escrita, modalidade do corpus deste estudo, os autores afirmam que a pontuação entre as orações justapostas - dois pontos, vírgula ou ponto e vírgula - acontece, muitas vezes, em função de estabelecer o nexo semântico que o falante pretende atribuir às orações.

Os linguistas (cf. RAPOSO et al, 2013) propõem também três propriedades que, quando empregadas simultaneamente, caracterizam canonicamente a justaposição, que são : (i) ausência de conector entre as orações; (ii) o fato de a segunda oração não poder ocorrer dentro da primeira, e (iii) a ordem linear relativamente rígida das orações, já que a inversão de uma delas pode provocar sequências agramaticais ou semanticamente anômalas.

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Sendo assim, nota-se que as gramáticas descritivas de Mateus et alii (1983) e Raposo et al (2013) não reconheçam a justaposição como um procedimento sintático no âmbito do período composto, assim como a coordenação e a subordinação o são. Ambos autores apontam que há uma estrutura, coordenadas assimétricas, nos termos de Mateus et alii (1983) e, justaposição, no nível paratático, nos termos de Raposo et al (2013), que possui características distintas das coordenadas prototípicas.

Outra abordagem teórica que também aponta que o binômio coordenação e subordinação não dá conta da organização das sentenças no âmbito do período composto é a teoria funcionalista. Esse aporte teórico se diferencia dos outros na medida em que considera a linguagem como espaço de interação que se adequa às mudanças sociopolíticas, considerando assim as estruturas linguísticas em contextos reais de interação. Em outras palavras, as estruturas gramaticais estudadas são analisadas sob a ótica de diversos fatores, como: motivação linguística, interlocutores envolvidos no ato comunicativo, propósitos comunicativos do gênero textual utilizado e o contexto discursivo.

Vale ressaltar que, por conta desses fatores que diferenciam essa abordagem teórica, vamos utilizá-la na próxima seção para propor exercícios que capacitem os alunos a refletir sobre a língua em uso e suas respectivas escolhas lexicais e gramaticais.

No que tange ao procedimento sintático da justaposição, alguns linguistas funcionalistas, tais como Decat (2001), Lima-Hernandes (2008), Dias (2009), Rodrigues e Dias (2010) e Rodrigues e Gonçalves (2015), conceituam a justaposição como um processo de combinação de orações, assim como propunham Oiticica (1942) e Ney (1955), gramáticos pré NGB, citados anteriormente na seção relativa às gramáticas normativas. Esses autores funcionalistas apontam, em seus estudos, algumas propriedades e características que reforçam a hipótese de que a justaposição não é simplesmente um subtipo da coordenação.

Ao propor uma abordagem funcional-discursiva das relações adverbiais que emergem da combinação de cláusulas3, Decat (2001) aponta que não só as orações subordinadas adverbiais, rótulo adotado pelas gramáticas normativas, possibilitam que emerjam proposições relacionais4. Segundo a autora, algumas estruturas, que não possuem conector, podem apresentar proposições relacionais, dentre elas a justaposição hipotática, nos termos da estudiosa.

Desse modo, para a linguista, a característica que particulariza as estruturas justapostas é a presença de proposições relacionais que articulam as cláusulas, embora não exista uma marca formal que relacione as porções do discurso. Decat (2001, p.130) ressalta também que essa forma de combinação de cláusula é identificada por muitos gramáticos, conforme mencionado anteriormente, como um caso de coordenação assindética.

Decat (2001) aponta ainda que a justaposição hipotática é amplamente empregada no gênero propaganda; nas palavras da autora:

(...) não reconhecer a hipotaxe adverbial por justaposição nessas estruturas significa também não admitir, por exemplo, a relação de condição existente em construções como: “Pagou, passou!” e “Comprou, levou!” (...) que frequentemente servem a estratégia de propagandas. (DECAT: 2001, p. 133)

3 A noção de cláusula consiste em uma estrutura sintática, oração, período ou sintagma nominal que pode se combinar com outra com o intuito de estabelecer comunicação com relações semânticas estabelecidas pelo cotexto e contexto.

4 Para Decat (2001), proposições relacionais são inferências que emergem da articulação de cláusulas e servem para relacionar duas cláusulas, quer estejam, ou não, adjacentes, podendo servir de base para outras inferências. Desse modo, essas relações não são explicitadas por meio de um conectivo. Ainda que os conectivos estejam presentes, o significado da inferência, não é necessariamente explicitado.

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Observar, compreender: a justaposição em textos Adriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann

Lima-Hernandes (2008, p. 5) caracteriza a justaposição como “um fenômeno de encadeamento de orações, sem o emprego de partículas conectoras”. Desse modo, a linguista afirma que as características básicas da justaposição consistem na “independência formal” e no “forte entrelaçamento de sentidos” entre as cláusulas justapostas. A pesquisadora afirma que alguns parâmetros particulares da justaposição são a ordem em que as cláusulas se apresentam e a possibilidade de mobilidade entre as orações.

Outra autora que também considera a justaposição como um processo de articulação de cláusulas é Dias (2009). A estudiosa propõe uma análise da justaposição em provérbios, cláusulas constituídas por mais de um sintagma nominal. Segundo ela (cf. Dias: 2009, p. 50), entende-se “a justaposição como o modo pelo qual as cláusulas são dispostas em construções em que a relação de circunstância entre elas é percebida por processos inferenciais e não somente pela ausência do conectivo, como formalmente caracteriza a tradição gramatical”.

Rodrigues e Dias (2010), com o objetivo de defender a justaposição como um procedimento sintático distinto da coordenação e da subordinação, afirmam que:

“no âmbito oracional, podemos definir a justaposição como um processo de articulação de cláusulas em que há uma relação inferencial entre seus núcleos. Isso equivale a dizer que a relação entre cláusulas justapostas é explicitada sem conectivos, constituindo uma relação entre dois ou mais núcleos próximos um ao outro, cuja relação semântica é dada por inferência”. (RODRIGUES e DIAS: 2010, p. 27)

Gonçalves (2017), sob a ótica de uma análise sintática, prosódica e pragmática, aponta que a justaposição, procedimento amplamente usado no gênero textual propaganda, é um procedimento distinto da coordenação. Para a pesquisadora, a coordenação se caracteriza pela autonomia sintática e por uma maior independência semântica entre as cláusulas, podendo ou não ser introduzida por conector. Em relação aos fatores prosódicos, a autora confirma a hipótese de que a pausa pode auxiliar na descrição da justaposição. Assim, a coordenação se caracteriza pela ausência de pausa entre as cláusulas. Já as cláusulas compostas por justaposição, além de potencialmente aparecerem intercaladas por pausa, se caracterizam pela autonomia sintática, pela ausência de conector introduzindo as cláusulas e pela interdependência semântica entre elas, com maior frequência da proposição relacional de causalidade.

Desse modo, é necessário que os procedimentos sintáticos que caracterizam a articulação do período composto sejam revistos, a fim de que haja a inclusão dos processos da correlação e justaposição nas descrições vigentes. Ademais, é preciso também que o estudo de língua portuguesa no âmbito escolar aborde os procedimentos sintáticos como mecanismos gramaticais aplicados ao texto com o intuito de uma melhor compreensão das várias possibilidades de organização sintática das orações em seu interior.

3. PROPOSTA DE APLICAÇÃO AO ENSINOApesar de a justaposição, processo sintático descrito nesse artigo, não ser reconhecido nas gramáticas

tradicionais, constata-se que esse é utilizado em alguns textos. Assim, nessa seção são propostos alguns exercícios de intepretação e de gramática aplicada ao texto.

Há, no exercício proposto a seguir, questões que abordam a justaposição (questões 4 e 8, letra b); entretanto, há também questões sobre referenciação (questão 1, letra a), sobre morfologia associada à interpretação (questões 1, letra b, 5, 6, letra b, 7 e 8, letra a), sobre variação linguística (questão 2, letra a), sobre intencionalidade comunicativa (questões 2, letra b e 5), além de questões de interpretação de texto (questões 3 e 6). Todas essas foram elaboradas com o objetivo de facilitar o entendimento global dos textos e dos recursos linguísticos e semióticos adotados, além da necessidade de não utilizar o texto apenas como pretexto para se abordar conteúdos gramaticais.

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Observar, compreender: a justaposição em textos Adriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann

Leia o Texto I para responder às questões a seguir:

Texto I:

A cidade

O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas Que cresceram com a força de pedreiros suicidas Cavaleiros circulam vigiando as pessoas Não importa se são ruins, nem importa se são boasE a cidade se apresenta centro das ambições Para mendigos ou ricos e outras armações Coletivos, automóveis, motos e metrôs Trabalhadores, patrões, policiais, camelôsA cidade não para, a cidade só cresce O de cima sobe e o de baixo desce A cidade não para, a cidade só cresce O de cima sobe e o de baixo desceA cidade se encontra prostituída Por aqueles que a usaram em busca de uma saída Ilusória de pessoas de outros lugares A cidade e sua fama vai além dos maresA cidade não para, a cidade só cresce O de cima sobe e o de baixo desce A cidade não para, a cidade só cresce O de cima sobe e o de baixo desceE no meio da esperteza internacional A cidade até que não está tão mal E a situação sempre mais ou menos Sempre uns com mais e outros com menos

Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu

Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus

Num dia de sol, recife acordou

Com a mesma fedentina do dia anterior.

CHICO SCIENSE, A cidade. In Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao Caos. Chaos, 1994. Faixa 4.

Questão 1: O Texto I propõe uma crítica ao espaço urbano descrito de forma desigual.

a) Que tipo de inferência é construída, no contexto da música, na expressão “pedras evoluídas”?

b) O adjetivo “evoluídas” estabelece uma ironia com a descrição proposta acerca da construção da cidade no primeiro verso. Explique essa afirmação com as suas palavras.

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Observar, compreender: a justaposição em textos Adriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann

Questão 2: O uso da linguagem coloquial é frequente na canção intitulada “A cidade”.

a) Retire do texto alguns exemplos dessa coloquialidade.

b) Na sexta estrofe, há desvios da norma culta estabelecidos de forma intencional para atender a uma característica do gênero textual música. Qual é essa intenção?

Questão 3: São apresentadas no texto visões distintas sobre a importância da cidade para diferentes grupos sociais. Retire duas passagens que ilustrem essas visões e compare-as.

Questão 4: Observe o verso:

“A cidade não para, a cidade só cresce”.

Entre as duas orações do nono verso, é estabelecida uma relação semântica capaz de resumir o tom de denúncia adotado na letra da música e acentuado, inclusive, pelo verso subsequente. Aponte essa relação semântica.

Questão 5: No sétimo verso, há o uso da primeira e da segunda pessoas do discurso; como o eu-lírico descreve essas pessoas e qual a intenção comunicativa no uso dessas pessoas?

Leia o Texto II para responder às questões 6, 7 e 8:

Texto II:

Imagem 2 Empresa de Gás natural de Minas Gerais, Gasmig. Propaganda extraída do portfólio da agência Asa e comunicação em março de 2016.

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Observar, compreender: a justaposição em textos Adriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann

Legenda:

“Com tanta coisa poluindo o meio ambiente, tinha que existir um combustível mais limpo.

O gás natural Gasmig une desenvolvimento e preservação do meio ambiente: move indústrias, carros, pessoas. Tudo isso sem poluir. Gás natural. Invisível e essencial”.

Questão 6: Assim como a problemática da desigualdade social abordada no Texto I, o Texto II é uma propaganda que também aborda um problema dos grandes centros urbanos: a poluição.

a) De que forma o Texto I e o Texto II caracterizam o espaço urbano?

b) Que recursos linguísticos e visuais são empregados no Texto II que justifiquem a caracterização apontada por você anteriormente?

Questão 7: A empresa Gasmig se propõe a unir dois pontos de vista diferentes por meio de dois campos semânticos distintos: o do desenvolvimento e o da preservação do meio ambiente. Quais palavras, substantivos e adjetivos, podem ser associados a cada área?

Questão 8: Leia o trecho a seguir, que constitui o slogan da propaganda, isto é, a frase de efeito empregada que resume a intenção comunicativa da propaganda:

“Com tanta coisa poluindo o meio ambiente, tinha que existir um combustível mais limpo”.

O slogan da propaganda remete a uma fala de um cidadão na medida em que remete a um desejo.

a) Que elemento gramatical estabelece essa noção de desejo no slogan?

b) O slogan pode ser reescrito com um conector explicitando o conteúdo semântico implícito. Reescreva-o inserindo o conector e explicitando a relação semântica implícita.

Sugestão de respostas

A seguir, são apresentadas algumas sugestões de respostas para as questões formuladas anteriormente. Vale ressaltar que essas respostas não são gabaritos fechados, são encaminhamentos para possíveis respostas.

Questão 1:

a) A referência é estabelecida em relação às construções que compõem uma cidade, como prédios e casas.

b) O adjetivo “evoluídas” estabelece ironia com o primeiro verso na medida em que “as pedras evoluídas”, a cidade, é construída por meio da desigualdade social.

Questão 2:

a) “bom pra tu”, pra gente sair da lama”, “num dia”.

b) Os desvios da norma culta devem-se à opção sonora pelas rimas.

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Observar, compreender: a justaposição em textos Adriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann

Questão 3:

As passagens são:

“E a cidade se apresenta centro das ambições

Para mendigos ou ricos e outras armações”

E

“A cidade se encontra prostituída

Por aqueles que a usaram em busca de saída”

Ambas as visões são negativas; no entanto, na primeira, a cidade é culpada; na segunda, é vítima.

Questão 4:

As relações semânticas estabelecidas são as de causa, consequência, resultado, finalidade entre outras relacionadas ao campo semântico de causalidade.

Questão 5:

As pessoas do discurso são descritas como marginalizadas e, por isso, o uso do “eu” e “tu” cumprem a função de dialogar com o leitor mostrando que ambos sofrem do mesmo mal: a desigualdade social.

Questão 6:

a) O texto I caracteriza o espaço urbano negativamente, acentuando seus problemas. Já o texto II caracteriza o espaço urbano com esperança, mostrando que há a possibilidade de melhorá-lo.

b) Para construir esse tom de esperança, é utilizado na propaganda o recurso visual da borracha que mostra que há como apagar os problemas e são utilizados adjetivos como limpo, invisível e essencial e os substantivos como desenvolvimento, preservação e meio ambiente que acentuam esse tom positivista.

Questão 7:

Desenvolvimento: indústrias, carros, poluir e invisível.

Preservação do meio ambiente: limpo, pessoas e essencial.

Questão 8:

a) A locução verbal “tinha que existir” que estabelece noção de futuro.

b) “Porque com tanta coisa poluindo o meio ambiente, tinha que existir um combustível mais limpo”. Estabelece relação relativa ao campo semântico de causalidade.

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Dessa forma, ressaltamos que, mesmo sem empregar a palavra justaposição em nenhum momento nas atividades didáticas antes apresentadas, os exercícios que abordam a noção de inferência de relações semânticas possibilitam que o aluno tenha uma leitura muito mais abrangente das possibilidades de leitura dos textos, capacitando-o a codificar também os textos que o cercam cotidianamente.

4. CONCLUSÃOAo revisitar os processos sintáticos descritos no âmbito do período composto nas gramáticas tradicionais,

observamos que essas gramáticas consideram somente a coordenação e a subordinação, processos sintáticos que não dão conta de outras formas de articulação do período como a correlação descrita por Rodrigues (2014) e a justaposição descrita por Dias (2009) e Gonçalves (2017).

Assim, sobre o processo em foco neste estudo, a justaposição, recorremos a outros estudos como os de Mateus et alii (1983) e Raposo et al (2013) sob a ótica da abordagem gerativa. Observamos que, embora não reconheçam a justaposição como procedimento sintático, apontam que estruturas justapostas possuem características distintas das coordenadas prototípicas. Além dos trabalhos anteriormente apontados, revisitamos os estudos de Decat (2001), Lima-Hernandes (2008), Dias (2009), Rodrigues e Dias (2010) e Rodrigues e Gonçalves (2015) que, a partir de uma abordagem funcionalista, enumeram características que distinguem cláusulas coordenadas de cláusulas justapostas, a saber, o forte entrelaçamento de sentido devido à interpendência semântica, à autonomia sintática, à ausência de conector introduzindo as cláusulas justapostas.

Sendo assim, pelo amplo uso de cláusulas justapostas em textos de frequente circulação na sociedade, sugerimos alguns exercícios que, além de problematizarem e reconhecerem a estrutura descrita nesse artigo, cumprem também a função de fazer o discente refletir sobre as escolhas linguísticas utilizadas nos textos com o propósito de garantir o objetivo comunicacional desses.

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RODRIGUES, Violeta Virginia. Em foco a correlação. Revista Diadorim / Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 16, p. 122-139, dez. 2014. Disponível em <https://revistas.ufrj.br/index.php/diadorim/article/view/4028/3006>.

RODRIGUES e DIAS, Maria de Lurdes. Justaposição: processo sintático distinto da coordenação e da subordinação? In: RODRIGUES, Violeta Virginia (org.). Articulação de orações: pesquisa e ensino. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.

RODRIGUES e GONÇALVES, Adriana Cristina Lopes. Comprou, levou? Justaposição: procedimento sintático comum em propagandas. In: Revista Digital do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-RS, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 409-421, jul./dez. 2015. Disponível em <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica/article/view/20348/13854>

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Adjetivas explicativas e o “desgarramento” em sala de aula

Karen Pereira Fernandes de Souza1

Violeta Virginia Rodrigues2

1 Possui licenciatura em Letras – Português/Francês pela Faculdade Federal do Rio de Janeiro; especialização em Metodologia da Língua Portuguesa pela AVM; mestrado em Letras Vernáculas também pela Faculdade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, está cursando o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PGLEV/UFRJ) sob supervisão da Professora Doutora Violeta Virginia Rodrigues. E-mail: [email protected].

2 Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FL/UFRJ).

RESUMOAs chamadas “adjetivas explicativas”, ao aparecerem separadas de sua principal, na modalidade escrita, produzem um efeito pragmático que não teriam se estivessem “unidas” conforme prescreve a tradição. Tomando por base o funcionalismo linguístico (MATTHIESSEN & THOMPSON, 1988; HOPPER & TRAUGOTT, 1993; CHAFE, 1980; DECAT, 2011), este artigo tem como objetivo divulgar os resultados obtidos na investigação das cláusulas relativas apositivas “desgarradas”, desenvolvido por Souza (2016a), usando como corpus 1.883 textos de domínio jornalístico publicados em larga escala na sociedade carioca em três sincronias passadas (séculos XIX, XX e XXI). Parte-se da hipótese de que as cláusulas relativas apositivas são hipotáticas e que podem ser desgarradas e que, nesse caso, indicam o efeito pragmático de focalização. Aplicam-se os resultados de Souza (2016a) ao ensino e se propõe exercícios que visam a suscitar reflexão sobre o fenômeno do desgarramento de relativas apositivas em sala de aula entre alunos e professores de língua materna.

Palavras-chave: cláusulas relativas apositivas “desgarradas”; funcionalismo; domínio jornalístico; ensino; modalidade escrita.

RESUMÉQuand la proposition «adjective explicative» apparaît séparé de leur proposition principale, en modalité d’écrite, un effet pragmatique est émergé qu’il n’y avaient pas si elles seraient «unis» comme la prescription grammaticale prévu. Basé sur le fonctionnalisme linguistique (MATTHIESSEN & THOMPSON, 1988; HOPPER & TRAUGOTT, 1993, CHAFE, 1980, DECAT, 2011), cet article vise à diffuser les résultats obtenus dans la recherche des clauses relatives apositives «détachées» développée par Souza (2016a) en utilisant un corpus de 1.883 textes de domaine journalistique publiés dans la société carioca au cours des trois siècles (XIXe, XXe et XXIe). On parte de l’hypothèse que les clauses relatives apositives sont hypotatics et qu’elles peuvent se séparer de la proposition noyau et, dan ce cas, ces propositions indiquent un effet pragmatique de focalisation. On met en pratique les résultats de Souza (2016a) à l’enseignement et on propose des exercices que visent à susciter une réflexion sur le phénomène de «détachement» de relatives apositives en classe entre les élèves et les enseignants.

Mots-clés: proposition relatives apositive «détachées»; fonctionnalisme; domaine journalistique; enseignement; modalité d’écrite.

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Adjetivas explicativas e o “desgarramento” em sala de aula Karen Pereira Fernandes de Souza e Violeta Virginia Rodrigues

INTRODUÇÃOO fenômeno do “desgarramento” contraria a premissa de que toda oração subordinada deve vincular-se

sintaticamente a uma oração principal (ou a um termo dela). Entretanto, adotando-se a perspectiva funcionalista, é possível admitir que há cláusulas satélites em língua portuguesa que figuram nos textos sem a sua cláusula núcleo.

A cláusula relativa apositiva “desgarrada” é uma das estratégias linguísticas em língua portuguesa – não tratada pelos manuais normativos e didáticos – que visa à ênfase, isto é, à focalização do conteúdo nela veiculado com referência a um sintagma nominal ou a uma porção de texto já mencionada anteriormente no discurso. Neste caso, na modalidade escrita, estas cláusulas se realizam separadas, sintaticamente, em relação ao sintagma nominal/oracional da cláusula núcleo por meio de um ponto final, mas a relação semântica estabelecida entre elas permanece inalterada, produzindo, inclusive, um efeito pragmático de ênfase. Observemos o exemplo (1) a seguir:

(1) “[...] represen/tante operário, que disse falar/ em nome dos empregados em/ construção civil. Referindo-se/ ao candidato de origem militar,/ êsse cidadão construiu a segui/nte frase:/ - Lott, por pior que seja, é/ melhor que Jânio./ [O que não deixa de ser um/ consôlo para o Sr. Lott].”

(SOUZA: 2016a, p. 117)

No exemplo (1), a cláusula sublinhada foi retirada de uma notícia do Jornal do Brasil em 1960 e é uma cláusula relativa apositiva “desgarrada”, pois retoma o sintagma oracional (SO) “Lott, por pior que seja, é melhor que Jânio” por meio do morfema relativo “o que”, segundo Mateus et alii (2003). Podemos ver que, mesmo isolada sintaticamente por um ponto final, ela funciona como um aposto deste SO, fazendo emergir, portanto, um comentário que incide sobre este SO. Para a Gramática Tradicional (GT), tais usos se configuram como “desvios” que devem ser evitados, porque aparecem como uma oração independente, sem a sua oração principal, e são analisadas, portanto, como estruturas fragmentadas.

Para solucionar “desvios” como estes, a GT propõe modificações na composição do período no sentido de desfazer a fragmentação ao substituir, por exemplo, o ponto final pelo uso da vírgula ou pelo uso do ponto-e-vírgula ou, mesmo, pelo travessão de forma a integralizar a oração a sua principal. O propósito é tornar a nova estrutura adequada às propriedades sintáticas prototípicas de uma oração subordinada que forma um período composto. Com base na Gramática Tradicional, uma possível reescritura do exemplo (1) seria então:

(1’) “[...] represen/tante operário, que disse falar/ em nome dos empregados em/ construção civil. Referindo-se/ ao candidato de origem militar,/ êsse cidadão construiu a segui/nte frase:/ – Lott, por pior que seja, é/ melhor que Jânio – o que não deixa de ser um/ consôlo para o Sr. Lott”.

Devemos destacar que, ao reescrever a cláusula “desgarrada”, estamos substituindo a configuração de uma cláusula por uma outra e, nesse caso, prejudicando a expressividade do autor do texto. Para transmitir os efeitos desejados na modalidade oral, como, por exemplo, o de ênfase, o locutor poderia utilizar outros recursos não textuais como os movimentos gestuais e expressões faciais e, até mesmo, recursos do sistema linguístico como a entonação, prosódia, em uma conversação face a face. Entretanto, estes recursos não são os mesmos que dispomos em um texto escrito e as sugestões de mudanças acabam por prejudicar o objetivo comunicativo pretendido pelo escrevente: a focalização.

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Com base nos problemas antes apresentados, este artigo visa a utilizar os resultados obtidos em pesquisas linguísticas desenvolvidas no ensino superior em atividades a serem aplicadas no ensino médio, de modo que alunos e professores de língua materna possam refletir sobre a estrutura “desgarrada” e seu cotexto de uso sem interpretá-la como “erro” ou “desvio”. Adotamos o aporte teórico funcionalista para melhor descrevermos a cláusula relativa apositiva “desgarrada” e elaborarmos os exercícios para uma possível aplicação em turmas dos segundo e terceiro anos do ensino médio com as respectivas sugestões de respostas.

Este artigo está estruturado da seguinte maneira: além desta Introdução, destinada a apresentar o tema a ser estudado, temos, na próxima seção, uma revisão da literatura sobre as orações adjetivas explicativas em algumas gramáticas e em alguns livros didáticos; em seguida, as relativas apositivas “desgarradas” sob um olhar funcional; posteriormente, apresentaremos os dados obtidos no decorrer de três séculos de análise; dedicamos uma seção ao fenômeno do “desgarramento” das cláusulas relativas apositivas em sala de aula com algumas atividades e sugestões de resposta. Por fim, encerramos o artigo com as considerações finais e referências.

1. ADJETIVAS EXPLICATIVAS NAS GRAMÁTICAS TRADICIONAIS E NOS LIVROS DIDÁTICOSSegundo a GT, que segue a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), tratando-se do período composto em

língua portuguesa, há somente duas formas de articulação de orações: subordinação e coordenação. A coordenação relaciona orações independentes sintaticamente dispostas uma ao lado da outra com ou sem conector; já a subordinação relaciona as orações dependentes sintaticamente de uma outra ou de um termo dela, de modo que uma fica encaixada na outra ou em um de seus constituintes, ou seja, há uma relação de hierarquia sintática entre a oração principal e a oração subordinada. A adjetiva explicativa é um tipo de oração – juntamente com a adjetiva restritiva – que pertence ao grupo das orações subordinadas. Com base na GT, que se pauta pela NGB, as orações adjetivas explicativas devem ser encabeçadas por um pronome relativo, que estabelece a conexão entre a oração principal ou entre um termo desta e a oração subordinada adjetiva. O rótulo “adjetiva” é atribuído a essas orações graças ao comportamento semelhante à classe de palavras “adjetivo” que elas apresentam.

Para a revisão das orações adjetivas explicativas, selecionamos três gramáticas de linha tradicional: Cunha e Cintra (2001), Bechara (2004) e Rocha Lima (2004). Tal escolha foi motivada pela alta procura e/ou recomendação bibliográfica destas em qualquer área que envolva o ensino de língua portuguesa, como escola, concurso público, ENEM etc. Vejamos, no Quadro (1) a seguir, as definições das adjetivas explicativas no âmbito destas gramáticas de linha tradicional:

Quadro 1 Oração adjetiva explicativa no âmbito da Gramática Tradicional.

GRAMÁTICAS DEFINIÇÃO

Bechara (2004, p. 466-467)

"alude a uma particularidade que não modifica a referência do antecedente e que, por ser mero apêndice, pode ser dispensada sem prejuízo total da mensagem."

Cunha e Cintra (2001, p. 604)

"acrescentam ao antecedente uma qualidade acessória, isto é, esclarecem melhor a sua significação, à semelhança de um aposto. Mas, por isso mesmo, não são indispensáveis ao sentido essencial da frase."

Rocha Lima (2004, p. 271)

"é o termo adicional, que encerra simples esclarecimento ou pormenor do antecedente - não indispensável para a compreensão do conjunto."

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De acordo com os gramáticos, a oração adjetiva explicativa, por se apresentar como um adendo, de caráter parentético, é perfeitamente dispensável, sintaticamente, sem prejuízo do todo oracional. Cunha e Cintra (2001) acreditam que, semanticamente, a oração adjetiva explicativa não pode ser removida do período, pois o autor a pronunciou com um propósito informacional. O mesmo ponto de vista pode ser encontrado em Rocha Lima (2004).

Vejamos, no Quadro (2) a seguir, as definições das adjetivas explicativas presentes em alguns livros didáticos:

Quadro 2 Oração adjetiva explicativa nos livros didáticos.

LIVRO DIDÁTICO DEFINIÇÃO

D’Ávila (1997, p.210)

"quando acrescentam uma qualidade ao nome a que se referem, esclarecendo melhor a sua significação. Não são indispensáveis ao sentido básico da oração. Normalmente vêm separadas das orações principais por vírgula."

Cereja e Magalhães (1999, p.286)

"são as que acrescentam ao antecedente uma informação que já é de conhecimento do interlocutor, assim, generalizam ou universalizam o sentido do antecedente. Na escrita, vêm entre vírgulas."

Sacconi (2001, p.382)

"modificam um termo de sentido amplo e genérico, enfatizando a sua maior característica, ou uma de suas características. Vêm sempre entre vírgulas, que marcam a necessária pausa respiratória entre o termo modificado e o resto da oração principal."

Faraco(2003, p. 321)

“a sentença adjetiva está dando apenas uma informação suplementar.”

Sarmento (2005, p.414)

"é aquela que acrescenta uma explicação acessória à palavra antecedente. Na escrita, é separada por vírgula(s)."

De Nicola(2005, p. 97)

“acrescenta ao termo antecedente uma informação que lhe é inerente ou que é conhecida; é sempre marcada por uma pausa pronunciada; na linguagem escrita, aparece isolada por vírgulas.”

Abaurre; Abaurre; Pontara(2008, p.304)

"têm a função de acrescentar alguma explicação ou informação suplementar a um termo já suficientemente definido e delimitado. Essas orações são geralmente separadas da oração principal por meio de vírgulas."

Alguns livros didáticos compartilham do mesmo raciocínio do gramático Bechara (2004), como D’Ávila (1997) e Sarmento (2005), conforme apontam as definições apresentadas no Quadro 2. Já autores como Cereja e Magalhães, (1999), Sacconi (2001), Faraco (2003), De Nicola (2005) e Abaurre; Abaurre; Pontara (2008) preferem trabalhar com a ideia de uma informação complementar e/ou suplementar; deste modo, não desconsideram a importância da oração adjetiva explicativa para a construção textual.

Cumpre destacar que os gramáticos utilizam apenas o critério semântico para definir as adjetivas explicativas. Além disso, elas não recebem o mesmo grau de atenção dispensado às orações adjetivas restritivas, tendo em vista que, geralmente, rótulos como “acessórios”, “dispensáveis” e “apêndice” são usuais para descrever as explicativas, além da recorrente informação de que devem se materializar entre vírgulas. Entretanto, esses dois aspectos (semântico e pontuação) por si só não são suficientes para definir essas orações (cf. Souza: 2009; 2010).

Como já se esperava, não há menção ao fenômeno do “desgarramento” em nenhuma das gramáticas selecionadas na seção de Sintaxe do período composto, já que estamos trabalhando com a articulação de cláusulas. Esse panorama não impede, portanto, o estudo destas cláusulas em sala de aula no sentido de compreender com mais profundidade como elas funcionam em uso real, ou seja, como essas estruturas se comportam no discurso e na língua viva.

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Não podemos deixar de questionar o uso de adjetivos como “acessórios” e/ou “dispensáveis” para caracterizar as adjetivas explicativas e, muito menos, as “desgarradas”, pois estas configuram um todo significativo. É necessário levar em conta que a utilização dessas estruturas serve a objetivos comunicativos específicos na produção textual, seja oral, seja escrita, e o que passa a ser “principal” (usando os termos da tradição) é o próprio conteúdo veiculado na cláusula “desgarrada”. Assim, concordamos com Castilho (2002) que a nomenclatura “principal” não se refere ao conteúdo mais importante do período, mas à oração que tem uma outra como seu constituinte. Em uma interação verbal, segundo Antunes (2003, p. 147), “o sujeito seleciona o que quer dizer, inclusive quantitativamente, para dizer apenas o que é relevante num determinado contexto; e o que é relevante é exatamente aquilo que não pode deixar de ser dito, pois se o for, faz falta”.

2. ADJETIVAS EXPLICATIVAS (“DESGARRADAS”) SOB UM OLHAR FUNCIONALComo vimos na seção anterior, a gramática tradicional, utilizada em larga escala nas instituições de ensino,

não aborda o nosso objeto de estudo, pois as cláusulas “desgarradas” contrariam o que se prescreve para o período composto por subordinação. Não há, assim, novidade em relação à caracterização dada às orações adjetivas explicativas nos livros didáticos, pois a base teórica desses livros é justamente a gramática tradicional. Se tal análise não é suficiente, então, como dar conta das estruturas desgarradas perfeitamente compreendidas pelos falantes de língua portuguesa? Descartar sua análise com a justificativa de esta não se encaixar nas definições propostas? Embora não seja uma tarefa simples, pode-se conjugar a visão da GT com a da perspectiva funcionalista, linha teórica que se pauta nas manifestações clausais provenientes do uso e com a qual concordamos.

Segundo essa vertente teórica, no estudo da língua, deve haver interação entre o nível morfossintático e os níveis semântico e pragmático, todos inseridos nos cotextos e contextos reais de uso. Portanto, a perspectiva funcionalista vê a língua como um sistema dependente do meio social, pois se acredita que as funções externas à língua influenciam na sua organização interna. Por esse motivo, não há razão para analisar sentenças inventadas ou fora de seu contexto interacional.

Para explicar o fenômeno do “desgarramento”, levaremos em consideração que a articulação das orações não pode ser explicada unicamente pela dicotomia subordinação (processo pelo qual as orações estão dispostas hierarquicamente, pois uma exerce função sintática na outra e a subordinada não subsiste sozinha por ser dependente da principal) e coordenação (processo que liga orações de mesma natureza sintática e que são independentes, pois uma não exerce função sintática sobre a outra). Como explicar o fenômeno do “desgarramento” a partir desses dois conceitos? Assim, consideramos que as cláusulas em língua portuguesa podem estar distribuídas em três categorias distintas: subordinação-hipotaxe-parataxe1.

Nesse formato, as cláusulas estariam dispostas em um continuum de acordo com o grau de [encaixamento] sintático e [dependência] semântica, flexibilizando melhor as relações entre elas. Para tanto, adota-se a noção de gradiência para análise do período composto, em que as unidades linguísticas estão dispostas em um continuum de maior grau de dependência sintática e semântica até chegar ao ponto “zero” de integração. Utilizando esta tríade, a hipotaxe melhor descreveria a relação entre tais orações adjetivas explicativas e a oração principal, pois a relação sintática existente entre a principal e subordinada seria marcada com [-encaixamento], pois a relação é mais frouxa, enquanto a relação semântica seria [+dependência], pois o vínculo se dá justamente pelo significado. Deste modo, não podemos mais pensar em subordinação e, por esse motivo, não utilizaremos mais o rótulo “oração subordinada

1 C.f. Matthiessen & Thompson (1988) e Hopper & Traugott (1993).

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adjetiva explicativa”, mas o rótulo “cláusula hipotática relativa apositiva”, visto estarmos adotando o funcionalismo. Assim, teríamos uma combinação entre uma cláusula núcleo e uma cláusula hipotática satélite.

Como vimos na Introdução, o nosso interesse não está nas cláusulas relativas apositivas prototípicas, mas nas “desgarradas” da cláusula núcleo. Sendo assim, os estudos desenvolvidos por Decat (1993, 2011, 2014) e Souza (2016a, b, c) mostram que as relações semânticas e pragmáticas que emergem dessas estruturas são fundamentais para a compreensão do fenômeno. A cláusula hipotática relativa apositiva desgarrada envolve um conteúdo de explicação e avaliação, propriedades semânticas que mostram seu caráter de adendo, comentário, portanto, mais marginal na construção da sentença. Além disso, o uso ‘desgarrado’ dessas estruturas serve para atender à estratégia de focalização de informação, visto que, por meio delas, busca-se realçar, destacar, enfatizar o conteúdo transmitido, propiciando a criação, também, de um texto mais vivo, mais personalizado, mais autoral, enfim, em que o autor, de fato, consegue se posicionar como sujeito de sua escrita.

O conceito de “unidade informacional” de Chafe (1980) é imprescindível para a compreensão do fenômeno do desgarramento. A unidade informacional está relacionada à consciência humana, pois esta só consegue dispor de uma quantidade muito restrita do montante ilimitado de informações que se pode ter. Além disso, a consciência possui uma memória de curta duração para a fala, pois a sua atenção repousa brevemente sobre uma informação disponível. Por esta razão, ela move-se por ‘jatos de linguagem’, isto é, não flui continuamente sobre uma informação. Assim como ocorre com a consciência, a fala espontânea humana é muito parecida, já que também não é produzida por um fluxo contínuo de produção verbal, mas por uma série de breves jatos de linguagem, pois o discurso é evidentemente intermitente. Portanto, a fala verdadeiramente espontânea é composta por “blocos de informação” ou “unidades informacionais” que correspondem a uma cláusula simples, i.e., expressões linguísticas de focos de consciência que podem funcionar sintaticamente sozinhas providas de conteúdo semântico próprio. Uma forma consistente para marcar um bloco de informação ou uma unidade informacional é a marcação do contorno entonacional de final de cláusula, pois este contorno indica o final do bloco informacional. Com base nos apontamentos de Chafe (1980), Silvestre e Rodrigues (2017) analisaram o comportamento entoacional da cláusula núcleo e de algumas cláusulas relativas apositivas desgarradas.

Segundo as autoras, a cláusula núcleo é caracterizada por um contorno entonacional e a cláusula relativa apositiva “desgarrada” por outro, havendo uma pausa longa entre o final de uma cláusula e o início da outra (SILVESTRE e RODRIGUES, 2017, p. 223). Nesse sentido, o contorno entonacional está intimamente ligado à pontuação no que se refere à modalidade escrita, pois o ponto final marca uma pausa mais longa em comparação à vírgula (marcação de uma pausa breve). Por esta razão, todos os seis formatos possíveis, com base na proposta de Decat (2011), apareceram nos textos precedidos de um ponto final: (a) [. Que]; (b) [. O que/qual]; (c) [. N (Prep) que]; (d) [. N + Esp + que]; (e) [. Onde]; e (f ) [. Cujo].

Ainda quanto à forma, não podemos deixar de mencionar o papel do pronome relativo. Esse conector, além de unir duas cláusulas ou uma cláusula a um SN e exercer função sintática no interior da cláusula margem, também retoma o SN referente/antecedente e o substitui, realizando assim, um movimento de retomada (anáfora). Em virtude desse comportamento do conector, toda cláusula relativa apositiva “desgarrada” será ancorada no discurso, já que sempre haverá um elemento referente disponível, identificável no cotexto, portanto, o “desgarramento” de uma cláusula relativa sempre será cotextual2.

2 Nova tipologia para os tipos de cláusulas “desgarradas” (SILVESTRE e RODRIGUES, 2017).

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Em resumo, pode-se afirmar que, no Funcionalismo, as cláusulas relativas apositivas “desgarradas” são estruturas hipotáticas que, combinadas com um SN antecedente, que não está inserido numa cláusula núcleo, servem para atender a intenções pragmáticas presentes no discurso. São “desgarradas” porque constituem um bloco de informação à parte, isolado, que funciona pragmaticamente com o objetivo de enfatizar uma informação no discurso. Tomando-se por base tais comentários, acredita-se que os professores de língua materna não podem excluir essa estrutura do leque de opções de usos que a língua portuguesa oferece, pelo contrário, os professores precisam discutir seus usos e fazer seus alunos refletirem sobre ele também.

3. OS DADOS EM SINCRONIAS PASSADASOs corpora escolhidos por Souza (2016a) englobaram três grandes amostras da variedade brasileira, todas

do domínio jornalístico e publicadas na mídia escrita carioca, totalizando 1.883 textos. Para atestar que o “desgarramento” das cláusulas relativas apositivas não é fruto de nosso tempo, selecionaram-se cinco gêneros textuais (anúncios, notícias, carta de leitores, carta de opinião e editoriais), abarcando os anos de 1808 a 2004. Todos os textos estão disponíveis nos sites dos projetos PEUL, VARPORT e PHPB.

Apresentaremos, a seguir, alguns dos resultados de Souza (2016a) sobre a constatação do desgarramento ao longo do tempo – de 1808 a 2004 – para justificarmos não só a existência do fenômeno em sincronias passadas, mas também a necessidade de seu estudo em sala de aula na atualidade. Isso se justifica uma vez que o professor de língua portuguesa deveria se ater muito mais às práticas de linguagem e, sobretudo, da língua em uso – visando a interação sociocultural – do que priorizar a visão normativa, que privilegia apenas um de seus usos.

Souza (2016a) encontrou um total de 38 dados de cláusulas relativas apositivas “desgarradas” em 1.883 textos que analisou, conforme demonstra a tabela 1, que se divide em três partes, uma para cada Amostra (VARPORT, PHPB e PEUL). Cada amostra está subdividida por gênero e século. Na amostra VARPORT, há 12 ocorrências, destacando-se nesta o gênero anúncios com 5 dados; na amostra PHPB, 7 ocorrências, destacando-se o gênero carta de leitores, com 4 casos; na amostra PEUL 19 ocorrências, destacando-se os 11 dados do gênero artigo de opinião.

Tabela 1 Resultado geral dos dados (SOUZA: 2016a, p. 113).

VARPORT

Gênero Século XIX Século XX Século XXI Total

Anúncios 2 3 / 5

Editoriais 0 2 / 2

Notícias 0 5 / 5

Total 2 10 / 12

PHPB

Gênero Século XIX Século XX Século XXI Total

Anúncios 0 0 / 0

Editoriais 0 3 / 3

Carta de Leitores 2 2 / 4

Total 2 5 / 7

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PEUL

Gênero Século XIX Século XX Século XXI Total

Artigo de Opinião / / 11 11

Editoriais / / 5 5

Carta de Leitores / / 3 3

Notícias / / 0 0

Total / / 19 19

TOTAL: 38

Ratificando os resultados da tabela 1, apresentamos o Gráfico (1) a seguir para demonstrar que o uso das cláusulas relativas apositivas “desgarradas” vem aumentando ao se compararem as três sincronias passadas. Juntando-se os resultados das Amostras VARPORT e PHPB para o século XIX, tem-se quatro dados; ao somar os resultados das Amostras VARPORT e PHPB, para o século XX, alcançamos quinze dados; a Amostra PEUL, representativa do século XXI, em apenas três anos (2002, 2003 e 2004), totaliza sozinha dezenove dados.

Gráfico 1 Frequência de dados ao longo dos séculos analisados (SOUZA: 2016a, p. 115).

Durante a coleta/análise de dados, Souza (2016a) verificou que as cláusulas desgarradas foram utilizadas pelos seus autores para dar maior força argumentativa ao discurso, de modo que o efeito pragmático identificado por ela nos dados foi sempre a ênfase, realce de alguma informação. Geralmente, o conteúdo semântico encontrado representava uma “opinião” do falante no contexto e/ou contexto. Também houve casos nos corpora de ocorrências em que o conteúdo semântico apresentava um “comentário” do falante sobre o discurso ou ao qual se acrescentava uma nova informação por meio de um “adendo”. Sendo assim, seria natural encontrar essas cláusulas em textos em que o autor tivesse mais liberdade para se colocar no discurso de forma pessoal/autoral. Graças aos variados gêneros jornalísticos utilizados nos corpora da pesquisa, Souza (2016a) encontrou dados em todos os gêneros selecionados. É importante ressaltar que as classificações utilizadas pela autora como “opinião”, “comentário” e “adendo” justificam-se graças à intenção pragmática mais evidente pelo cotexto, já que, em muitos casos, é comum observar a combinação de duas intenções comunicativas, como um comentário-avaliativo. Vejamos alguns exemplos:

(2) As autoridades de San Antonio não desistiram. Têm se dado ao trabalho de acompanhar o noticiário que chega até lá, vindo do Rio de Janeiro, e têm feito coro e torcida para a bandidagem, aplaudindo a violência e esperando que a cidade se torne um caos. Esperando que a situação econômica do Brasil se

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Adjetivas explicativas e o “desgarramento” em sala de aula Karen Pereira Fernandes de Souza e Violeta Virginia Rodrigues

complique de tal forma, que o país não tenha os tais milhões de dólares que seriam necessários, para o investi-mento em instalações desportivas exigidas pelos Jogos. Torcem contra o Rio de Janeiro da mesma forma como ainda torcem contra Santo Domingo, na República Dominicana, onde mais proximamente serão realizados os Jogos de 2003.

Enfim, o governo da cidade que foi derrotada. exatamente porque se julgava auto-suficiente, ainda espera o milagre de vencer a vencedora em um campo que é a última esperança de quem não sabe perder: o tapetão. Restou às autoridades de San Antonio esta única esperança. [O que é muito triste].”

(PEUL, editorial de jornal, século XXI. Jornal do Brasil, 21/10/2002)

No exemplo (2), a cláusula em destaque, o que é muito triste, é uma relativa apositiva “desgarrada”, que é encabeçada pelo conector [. O que]. Como se pode ver, o intuito desta é reforçar a avaliação que o autor faz da situação, ao deixar a sua opinião demasiadamente evidente. Vale ressaltar que, neste exemplo, [. O que] é invariável e a cláusula destacada tem como referente um sintagma oracional completo, já apresentado no cotexto, Restou às autoridades de San Antonio esta única esperança, com o qual estabelece uma relação anafórica. Vejamos outro exemplo:

(3) O enorme desafio é continuar a avançar. As conquistas da última década devem ser preservadas, o que não impede a constatação de que ainda há muito a realizar.

A década de 90 registrou vitórias importantes. De acordo com o Censo 2000, realizado pelo IBGE, a mortalidade infantil caiu 38% entre 1991 e 2000. Em 1992, 18,2% das crianças entre 7 e 14 anos não freqüentavam a escola. Agora, o acesso ao ensino fundamental foi universalizado. A taxa de analfabetismo dos maiores de 15 anos caiu de 18,3% para 13,8%, e as matrículas no ensino superior tiveram acréscimo de quase 30% entre 1994 e 1998. [Os que vivem abaixo do nível de pobreza são 30% (eram 43% em 1994)]. Mais de 13 milhões ingressaram no mercado consumidor.”

(PEUL, artigo de opinião, século XXI. O Globo, 28/10/2002)

Em (3), há um outro caso de cláusula relativa apositiva “desgarrada”: os que vivem abaixo do nível de pobreza são 30% (eram 43% em 1994). Este exemplo se inicia com um articulador de formato [. Os que] variável, pois há concordância com o sintagma nominal implícito “aqueles indivíduos”; “aqueles cidadãos”. Esta cláusula também faz remissão a um fato mencionado anteriormente no cotexto, graças à função anafórica estabelecida pelo articulador. Desta maneira, há um retorno às conquistas da década de 90, de acordo com o Censo 2000 e o autor aproveita a oportunidade para lançar mão do recurso do “desgarramento” com o objetivo de enfatizar a transmissão de um comentário de que houve um decréscimo no percentual daqueles que viviam abaixo do nível da pobreza. Vejamos mais um exemplo:

(4) Os delegados da 3a e 4a circums/cripções urbanas estão exigindo/ dos proprietarios das casas de/ commodos um livro para registro/ dos nomes das pessoas que nel/las forem habitar./ [...]

Se a exigencia dos delegados/ daquellas duas circumcripções/ baseia-se na necessidade da poli/cia ter conhecimento do pessoal/ que nellas mora para certificarem-/se de que no meio delle existe ou/ não algum criminoso, essa exi/gencia não produzira resultado/ pratico, porquanto não é acredi/tavel que um individuo cujos/ precedentes autorisem a vigilan/cia da policia sobre a sua pessoa,/ vá escrever no livro exigido o seu/ verdadeiro nome, entregando-se/ assim á acção policial./

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Demais, os gatunos, os ladrões/ e toda a casta de criminosos não/ têm por costume, como bem sabe/ a policia, hospedar-se em casa de/ commodos./

[Os que aqui se acham, residem/ em habitações proprias ou occul/tam-se em logares de ante-mão/ escolhidos e ignorados muitas/ vezes dos srs.delegados]./

[Os que vêm do estrangeiro pro/curando esta cidade para theatro/ das suas façanhas, não se abole/tam senão em hoteis caors, afim de/ parecerem pessoas de considera/ção e de importancia, para mais/ facilmente conseguirem os seus/ fins cri minosos]./

Vê-se, por estas razões, que a/ exigencia do livro de registro de/ nomes das pessoas moradoras em/ casas de commodos não tem justifi/cativa./

(VARPORT, notícias, século XX. Jornal do Brasil, 14/05/1902)

No exemplo (4), há, no texto, duas cláusulas relativas apositivas que estão “desgarradas” de seus referentes (os gatunos, ladrões e toda a casta de criminosos) e ambas são encetadas pelo articulador [. O que] variável, são elas: (i) os que aqui se acham, residem em habitações próprias ou ocultam-se em lugares de antemão escolhidos e ignorados muitas vezes dos srs. Delegados; (ii) os que vêm do estrangeiro procurando esta cidade para teatro das suas façanhas, não se aboletam senão em hotéis caros, afim de parecerem pessoas de consideração e de importância, para mais facilmente conseguirem os seus fins criminosos.

Na notícia antes transcrita, as duas cláusulas negritadas se apresentam em forma de parágrafo, totalmente desvinculadas de seu referente nominal, ou seja, verifica-se nitidamente uma quebra entre a relação núcleo-satélite. Percebe-se que a forma autônoma como se apresentam essas cláusulas confere mais ênfase, mais realce, aos esclarecimentos do escritor em informar os lugares onde se refugiam os ladrões brasileiros e o porquê da escolha desses lugares, na primeira cláusula; na segunda cláusula, o autor faz o mesmo ao falar dos ladrões estrangeiros. Estas cláusulas retomam o referente de forma anafórica e se configuram como adendo, porque as observações feitas pelo escritor se apresentam como informações adicionais e funcionam como argumentos para não se continuar com a prática dos livros de cômodo, já que em nada auxiliam na segurança dos estabelecimentos.

Em resumo, mostramos, com base em Souza (2016a), os resultados dos usos das cláusulas relativas apositivas “desgarradas” em três diferentes sincronias representativas do PB. Segundo revela a análise da autora, é possível evidenciar que, à medida que o tempo passa, cresce o número de ocorrências das desgarradas de acordo com a amostra escolhida. Sendo assim, comprova-se com esse número de dados que essas estruturas já se faziam presentes na variedade do Português Brasileiro desde o século XIX3, não sendo uma novidade do início do século XXI. Consequentemente, a cláusula desgarrada já estava à disposição dos usuários como um dos recursos sintáticos de focalização das informações por ele utilizadas.

4. O “DESGARRAMENTO” EM SALA DE AULAGóis (1943), de forma indireta, já observava o fenômeno do desgarramento nas orações subordinadas adjetivas

explicativas e nas orações subordinadas adverbiais, mas o tratava como uma “verdadeira anomalia gramatical”. Segundo este gramático, só os “autores demasiado liberais” tinham licença para utilizarem esse recurso estilístico. A

3 O século XIX é o período considerado, por muitos pesquisadores como o marco do surgimento do Português Brasileiro (PB).

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justificativa apresentada por ele atrela-se ao conceito normativo de “Subordinação”: importa ao período composto por subordinação a presença de uma oração principal e sua subordinada.

Com base em Góis (1943), nota-se a vinculação do uso das desgarradas a uma anomalia gramatical, que em gramáticas normativas e livros didáticos utilizados em estabelecimentos de ensino na atualidade, se e quando presentes, equivaleriam a “erro gramatical”. Percebe-se, ainda, que, adotando-se a noção de estilo, licencia-se o uso de tais cláusulas por escritores mais liberais, numa postura bastante preconceituosa. Tendo em vista que o espaço escolar, no que se refere ao ensino de português, muitas vezes, desconsidera a variação e mudança inerentes a todas as línguas, privilegiam-se alguns usos em detrimentos de outros.

Assim, a Escola “tende a esconder a relação entre língua e grupos sociais, sobretudo entre norma culta e padrão e classe social privilegiada” (TRAVAGLIA, 1997, p.66). Neste caso, o objetivo da Escola é ensinar as formas “corretas” atendo-se às mais privilegiadas da Língua Portuguesa, descartando as formas consideradas “erradas” com a justificativa do “bem falar e escrever”. Neste sentido, as formas estigmatizadas não são contempladas e, levando em conta a gramática normativa, o fenômeno do “desgarramento” não é objeto de análise.

Adotando uma perspectiva de análise diferente em termos de ensino, Bakhtin (2015) mostra que o professor de língua materna tem o dever de mostrar aos alunos o que se ganha e o que se perde utilizando uma forma em lugar de outra, quando a língua dispõe de duas ou mais maneiras de transmitir a mesma mensagem. O autor defende a utilização da abordagem estilística em sala como fundamental, pois ela irá ajudar o desenvolvimento da criatividade e de uma linguagem própria do aluno. Assim, em seu artigo direcionado a professores, ele demonstra como se faz uma análise estilística de períodos compostos por subordinação sem conjunção, que podemos também aplicar/adaptar ao ensino do desgarramento.

Motivadas pelo estudo de Bakhtin (2015), a recomendação que aqui se faz é que o professor de língua materna tome ciência de que o fenômeno do “desgarramento” ocorre. Atendo-nos apenas ao caso das hipotáticas relativas apositivas “desgarradas”, faz-se necessário esclarecer ao professor e, consequentemente, ao aluno que o uso da “desgarrada” desvinculado da cláusula núcleo serve para atender à estratégia de focalização de uma determinada informação. Portanto, por meio do “desgarramento”, busca-se dar mais destaque, ênfase, realce ao conteúdo de uma informação. Adotar esse ponto de vista significa acatar a premissa de que as cláusulas relativas apositivas “desgarradas” não aparecem por acaso na construção de um texto. Os usos das cláusulas desgarradas são motivados e podem envolver os diversos níveis de análise linguística (sintático, semântico, prosódico, pragmático, discursivo e ortográfico). Sendo assim, como professores de língua materna, devemos mostrar aos alunos as suas relações/valores dentro do texto como mais um dos recursos linguísticos disponíveis para focalização em língua portuguesa (mais detalhes sobre as estratégias de focalização, cf. BRAGA, 2001; BRAGA, OLIVEIRA, BARBOSA, 2014).

Junte-se a isso ainda o fato de que os professores de língua materna devem oferecer/mostrar aos alunos a maior quantidade de possibilidades que a língua nos permite utilizar em um mesmo contexto de uso. Compartilhamos a ideia de que é necessário que os estudantes tenham domínio de variados recursos linguísticos para que, sozinhos, eles consigam selecionar e aplicar adequadamente estruturas linguísticas em situações sociocomunicativas diversas – sejam elas de fala ou de escrita. Tal fato se baseia em uma das recomendações do manual de Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Língua Portuguesa:

construir habilidades e conhecimentos que o capacitem a refletir sobre os usos da língua(gem) nos textos e sobre fatores que concorrem para sua variação e variabilidade, seja a linguística, seja a textual, seja a pragmática. Nesse trabalho de análise, o olhar do aluno, sem perder de vista a complexidade da atividade de linguagem em estudo, deverá ser orientado para compreender o funcionamento sociopragmático do texto – seu contexto de emergência,

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produção, circulação e recepção; as esferas de atividade humana (ou seja, os domínios de produção discursiva); as manifestações de vozes e pontos de vista; a emergência e a atuação dos seres da enunciação no arranjo da teia discursiva do texto; a configuração formal (macro e microestrutural); os arranjos possíveis para materializar o que se quer dizer; os processos e as estratégias de produção de sentido. O que se prevê, portanto, é que o aluno tome a língua escrita e oral, bem como outros sistemas semióticos, como objeto de ensino/estudo/aprendizagem, numa abordagem que envolva ora ações metalinguísticas (de descrição e reflexão sistemática sobre aspectos linguísticos), ora ações epilinguísticas (de reflexão sobre o uso de um dado recurso linguístico, no processo mesmo de enunciação e no interior da prática em que ele se dá), conforme o propósito e a natureza da investigação empreendida pelo aluno e dos saberes a serem construídos. (MEC, 2006, p.32-33)

Em outras palavras, o aluno deverá ser capaz de compreender e produzir textos de forma autônoma, para que consiga reconhecer a multiplicidade de usos linguísticos em situações de interação que leve em conta um continuum que abranja contexto de usos formal bem como mais informais (cf. MARCUSCHI, 2001).

Cumpre mencionar que a motivação para a feitura desta seção surgiu a partir da caracterização indireta atribuída ao fenômeno do “desgarramento” como um “erro de estrutura”, uma “anomalia sintática”, como “erro de pontuação”, de acordo com a abordagem prescritiva de ensino da língua materna. Tal fato impacta diretamente na maneira como se ensina o período composto nas escolas, mais especificamente, as orações subordinadas adjetivas. Portanto, vimos a necessidade de aliar os resultados da pesquisa científica ao ensino, objetivo principal deste artigo. Assim, esperamos que as discussões apresentadas anteriormente sobre as cláusulas relativas apositivas desgarradas possam auxiliar os professores a utilizarem outras linhas teóricas que melhor expliquem/definem as estruturas linguísticas que são utilizadas/empregadas no dia a dia quando observamos o uso real da língua pelos falantes.

Por isso, na próxima subseção, apresentamos algumas propostas de atividades que podem ser aplicadas em sala de aula com alunos de 2º e 3º anos do Ensino Médio. A escolha destes se justifica pelo fato de já estarem mais amadurecidos para reflexões no uso/produção da língua portuguesa; além disso, o estudo do período composto começa a ser visto nessas duas fases do ensino médio. Elaboramos propostas de exercícios com base em um texto argumentativo extraído da coluna Tendências & Debates, publicados em 2014 no jornal Folha de São Paulo adaptado às nossas necessidades e às dos alunos. A proposta contém uma listagem de exercícios de interpretação textual e uma comparação entre as adjetivas restritivas e as adjetivas explicativas, da abordagem tradicional, e a inclusão do fenômeno do desgarramento das cláusulas hipotáticas relativas apositivas referente ao texto selecionado em sua versão adaptada.

Propostas de atividades

Leia o texto abaixo e responda as perguntas que lhe seguem:

O PAÍS TOMOU MEDIDAS PARA EVITAR UM NOVO APAGÃO?

Menos intervenção

Em 2003, as autoridades do PT afirmaram que apagões e racionamentos “nunca mais” ocorreriam. A realidade tem desmentido os petistas. De 2011 ao dia 4 de fevereiro de 2014, já ocorreram 181 apagões acima de 100 MW e 11 superiores a 1.000 MW. Nestes dois primeiros meses de 2014, com o registro de altas temperaturas, a situação se agravou: os reservatórios de água caíram ao pior nível desde 2002 e o consumo de energia bateu recordes. O que é alarmante.

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Adjetivas explicativas e o “desgarramento” em sala de aula Karen Pereira Fernandes de Souza e Violeta Virginia Rodrigues

O que explica esse cenário de tantos apagões? Com certeza não se pode atribuir exclusivamente à falta de chuvas, às temperaturas elevadas nem aos raios. As principais causas são uma política intervencionista, a falta de planejamento e o desrespeito às regras de mercado. De olho nas eleições de 2014, o governo editou a medida provisória nº 579 em setembro de 2012, que impôs às empresas uma redução de tarifas num momento em que o preço da energia crescia com o uso das térmicas.

A tarifa artificialmente baixa tinha como objetivo agradar os consumidores e controlar a inflação. As indústrias, que seriam as principais beneficiárias, no fundo foram enganadas, mas quem ganhou mesmo foram os consumidores residenciais. O que acabou por estimular o desperdício. Seria preciso, então, que o governo lançasse o quanto antes um plano de uso racional de energia. Entretanto, de forma equivocada, ele confunde plano com racionamento.

A insistência em realizar leilões nacionais e com a presença de todas as modalidades de energia concorrendo entre si levaram a um mau aproveitamento da nossa diversidade de fontes energéticas. Essa diversidade e a dispersão regional levariam a um melhor gerenciamento dos reservatórios das hidrelétricas, que perderam poder de regularização nos últimos anos pelo fato de o governo ter cedido às pressões ambientalistas e, então, passado a permitir apenas usinas a fio de água (de cisternas pequenas). O governo não soube transformar a vantagem que a natureza nos deu em uma vantagem econômica e competitiva frente a outros países. 15% do parque eólico brasileiro, por exemplo, está parado por falta de linhas de transmissão. Onde deveria haver mais investimento.

O governo deveria incentivar a cogeração a gás natural e a biomassa, que são formas mais eficientes. Um consumo médio da cogeração a gás de aproximadamente 2,4 milhões de metros cúbicos por dia, por exemplo, equivale a uma geração de 450 MW. O que economizaria para o país R$ 2,5 bilhões por ano.

O PT teve mais de uma década para modernizar e aumentar o nível de segurança do setor de energia. Entretanto, políticas centralizadoras e populistas tornaram o sistema ainda mais frágil e antiquado. Em vez de, todos os anos, ficar esperando a chuva e temperaturas amenas, o governo precisa implementar o quanto antes políticas descentralizadoras e práticas de mercado. Só assim para que apagões de fato “nunca mais” ocorram.

ADRIANO PIRES, 56, é diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE)TEXTO ADAPTADO (Tendências e Debates. Folha de São Paulo, 15/02/2014)

1. O texto de Adriano Pires antes transcrito é formado por seis parágrafos. Identifique a ideia central (núcleo) do texto.

2. O texto em análise pertence ao gênero artigo de opinião, visto que o autor apresenta um ponto de vista (tese) e o defende por meio de argumentos. Qual é a tese defendida pelo autor do texto?

3. Chama a atenção a pergunta motivadora feita pelo jornal ao autor: O PAÍS TOMOU MEDIDAS PARA EVITAR UM NOVO APAGÃO? A resposta já aparece no título do texto: Menos intervenção. Quais foram os argumentos apresentados pelo autor para esta negação?

4. Os vocábulos que iniciam as orações retiradas do texto e destacadas a seguir podem vir ou não precedidos de uma preposição e são chamados de pronomes relativos. São assim chamados porque retomam um substantivo que é seu antecedente. Diga com que vocábulo cada uma das orações se relaciona em cada caso.

(a) “As indústrias, [que seriam as principais beneficiárias], no fundo foram enganadas, mas quem ganhou mesmo foram os consumidores residenciais.” (cf. terceiro parágrafo)

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(b) “De olho nas eleições de 2014, o governo editou a medida provisória nº 579 em setembro de 2012, [que impôs às empresas uma redução de tarifas num momento] [em que o preço da energia crescia com o uso das térmicas.]” (cf. segundo parágrafo)

(c) “Nestes dois primeiros meses de 2014, com o registro de altas temperaturas, a situação se agravou: os reservatórios de água caíram ao pior nível desde 2002 e o consumo de energia bateu recordes. [O que é alarmante.]” (cf. primeiro parágrafo)

5. As orações apresentadas na questão anterior recebem o nome de adjetivas e podem tanto apontar, individualizar, caracterizar o substantivo com o qual se relacionam quanto expressar um comentário subjetivo do falante sobre ele. Nesse comentário, muitas vezes, se avalia, faz um parênteses, um acréscimo de informação. Identifique, nas sentenças (a), (b) e (c), antes apresentadas, se as orações adjetivas se comportam como caracterizadoras dos substantivos ou como comentário sobre eles.

6. Compare a posição das orações adjetivas nas sentenças (a), (b) e (c) e a pontuação usada em relação aos três períodos e identifique semelhanças e/ou diferenças entre elas. Diga se algum aspecto chamou sua atenção após compará-las.

7. As orações adjetivas em (a) e (b) são chamadas de adjetivas explicativas porque têm esse caráter de adendo, um comentário sobre o substantivo antes mencionado. No entanto, em (c), embora o comentário também exista, a adjetiva se separa do substantivo por ponto final e não por vírgula. Ao observar as semelhanças e diferenças entre as três sentenças, você considera a separação sintática existente na letra (c) prejudicial ao que o escritor desejava transmitir? Por quê?

8. Há no texto outras orações adjetivas semelhantes à estrutura apresentada na sentença (c). Indique-as e diga:

a) o substantivo com que se relacionam;

b) o objetivo comunicativo no cotexto em que foram usadas.

9. Compare a adjetiva usada em (c) com a adaptação a seguir:

“Nestes dois primeiros meses de 2014, com o registro de altas temperaturas, a situação se agravou: os reservatórios de água caíram ao pior nível desde 2002 e o consumo de energia bateu recordes, [o que é alarmante.]”

Que diferenças/semelhanças você observa entre elas do ponto de vista de uso no texto? Justifique sua resposta.

Sugestão de respostas

Resposta 1 – O texto aborda as questões de energia elétrica no Brasil, sobre a falta de ação do Governo e suas atitudes equivocadas para se evitar um novo apagão.

Resposta 2 – O autor se manifesta contrário em relação às medidas tomadas pelo Governo graças a uma política intervencionista, falta de planejamento e desrespeito às regras do mercado.

Resposta 3 – Alguns argumentos apontados que sustentam a opinião do autor são:

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a. o governo editou a medida provisória nº 579 em setembro de 2012, impondo às empresas uma redução de tarifas num momento em que o preço da energia crescia com o uso das térmicas;

b. a tarifa artificialmente baixa acabou por estimular o desperdício nos consumidores residenciais;

c. realização de leilões nacionais com a presença de todas as modalidades de energia concorrendo entre si, não aproveitando os recursos naturais oferecidos pela natureza;

d. o governo deveria ter incentivado a cogeração a gás natural e a biomassa por serem formas mais eficientes.

Resposta 4 – a) as indústrias; b) a medida provisória nº 579; c) os reservatórios de água caíram ao pior nível desde 2002 e o consumo de energia bateu recordes.

Resposta 5 – Em todos os casos, as orações adjetivas exprimem um comentário sobre o substantivo referente.

Resposta 6 – Diferenças: Em relação ao posicionamento das estruturas negritadas, a sentença da letra (a) está posicionada no meio do período; a da letra (b) está posicionada no final do período; a da letra (c) está posicionada em uma outra estrutura, surge independente. Em relação à pontuação, na letra (a), a estrutura aparece entre vírgulas; na letra (b) a estrutura é iniciada por uma vírgula e é encerrada com um ponto final; na letra (c), a estruturas se inicia e termina com um ponto final. Semelhanças: todas são iniciadas por um pronome relativo; todas têm o verbo flexionado; todas estão relacionadas a um elemento já dado no texto (referente); todas exprimem um comentário sobre o referente.

Resposta 7 – Não, não é prejudicial, uma vez em que se coloca ênfase ao conteúdo destacado por um ponto final. Em outras palavras, a letra (c) contêm um propósito comunicativo, uma intenção de ênfase, de destaque. Ela tem o propósito de chamar a atenção do leitor para o conteúdo transmitido por ela.

Resposta 8 – sentença (i): “O que estimulou o desperdício”. Referente: “A tarifa artificialmente baixa tinha como objetivo agradar os consumidores e controlar a inflação e quem ganhou mesmo foram os consumidores residenciais”. Objetivo: comentário avaliativo.

Sentença (ii): “Onde deveria haver mais investimento”. Referente: “15% do parque eólico brasileiro, por exemplo, está parado por falta de linhas de transmissão”. Objetivo: comentário avaliativo.

Sentença (iii): “O que economizaria para o país R$ 2,5 bilhões por ano”. Referente: “Um consumo médio da cogeração a gás de aproximadamente 2,4 milhões de metros cúbicos por dia, por exemplo, equivale a uma geração de 450 MW”. Objetivo: comentário explicativo.

Resposta 9 – Ambas as sentenças trazem o mesmo significado, mas há uma grande diferença entre a primeira e a segunda sentenças. A primeira, levando em conta a forma como é apresentada (com a quebra realizada pelo ponto final), há um destaque, uma proeminência, uma ênfase para o conteúdo disposto nessa sentença, diferentemente da segunda, que, em uma leitura rápida ou mesmo atenta, fica sem esse efeito.

5. CONSIDERAÇÕES FINAISAs descrições das orações adjetivas explicativas na seção de sintaxe do período composto das gramáticas

tradicionais e dos livros didáticos desconsideram o fenômeno do “desgarramento”, uma vez que o mesmo contraria a noção de dependência sintática da oração adjetiva a uma principal ou a um termo desta no âmbito do processo sintático da subordinação.

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Adjetivas explicativas e o “desgarramento” em sala de aula Karen Pereira Fernandes de Souza e Violeta Virginia Rodrigues

Acreditamos, no entanto, que o desgarramento deva ser apresentado como um recurso linguístico à disposição do falante/escrevente, uma vez que seu uso atende a um dos objetivos comunicativos do usuário da língua, nesse caso, um fim específico: a focalização.

À luz do funcionalismo linguístico, apresentamos a descrição das cláusulas relativas apositivas desgarradas, de modo a mostrar aos professores de língua materna como é a articulação semântica dessa cláusula desgarrada com a cláusula núcleo e/ou SN da cláusula núcleo, uma vez que estão desconectadas sintaticamente desta/deste; a intenção do falante ao usar essa estrutura para focalizar o conteúdo da mensagem – graças à ruptura marcada pela pausa longa, na fala, e o ponto final, na escrita; o movimento de retomada sempre existente nessa estrutura, caracterizando-o como um caso de desgarramento cotextual – uma vez que o pronome relativo fica ancorado em um referente já dado no discurso –; a semântica presente na cláusula em questão pode ser de avaliação, retomada e/ou adendo – também pode apresentar uma combinação de dois significados – além disso, traz uma carga autoral, uma maior vivacidade ao texto.

Pudemos mostrar alguns resultados obtidos por Souza (2016a). Apresentamos o aumento do uso dessa estrutura ao longo de três sincronias distintas em textos de mesmo domínio discursivo e de grande circulação na sociedade carioca. Também analisamos três exemplos dentro de seus respectivos cotextos para mostrar ao leitor a importância desses recursos na construção textual. Assim, pudemos aliar a pesquisa científica ao ensino, pois queríamos mostrar aos professores de língua materna como eles poderiam trabalhar essas estruturas em sala de aula, ao trazer propostas práticas de exercícios com sugestões de correção. O intuito é fazer o aluno refletir sobre os usos da língua, sem descartá-las como sugere alguns manuais e, ao mesmo tempo, considerar todo o cotexto e contexto de uso disponíveis.

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