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MODISMOS TEÓRICOS E HABITUS DE PENSAMENTO: EQUÍVOCOS DO DISCURSO DA EDUCAÇÃO * Magali Alonso de Lima Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FFP/SG Trabalhando há muitos anos no campo 1 da educação, em diferentes instituições, com distintos problemas de investigação e com abordagens epistemológicas, sociológicas e antropológicas, venho nesses últimos anos, ou seja, de 1990 para cá, preocupada com as perspectivas teóricas hegemônicas, as “problemáticas obrigatórias” 2 e com quem são os destinatários privilegiados da produção do campo da educação. Para tal, desejamos investigar, a título de problema, que o “recente” diálogo (de 1970 para cá) do campo da educação com as ciências sociais e/ou humanas nos fez perceber que nossas teorias, nossos esquemas globalizantes e tecnicistas já não davam conta das explicações exigidas pelo cotidiano da prática docente. Buscamos, através destas ciências, um novo olhar para nossas inquietações e nossos projetos pedagógicos e educacionais. Entretanto, observamos que se, de um lado, “mal entramos” nesse diálogo, de outro, já estamos achando que os conteúdos disciplinares e/ou campos de conhecimento não necessitam ser vistos com especificidades. Este fato, em nosso entender, tem gerado, dentre outras coisas, apropriações conceituais equivocadas das ciências sociais, pois, uma vez descontextualizadas da matriz histórica onde foram produzidas, criam “modismos” teóricos e certos habitus 3 de pensamento. A partir daí, o que se percebe nessa produção e apropriação deste conhecimento no campo da educação de 1990 para cá? Algumas questões ou inquietações podem ser levantadas. A primeira delas diz respeito à adesão a um paradigma teórico – a chamada “Teoria Crítica”, por meio dos pensadores da Escola de Frankfurt –, criando “senhas obrigatórias” como denúncia ao Estado 4 e ao papel da escola pública como reprodutora das desigualdades sociais necessárias à manutenção da ordem capitalista para participação no campo (Costa, 1994). * Este artigo sintetiza as quatro questões norteadoras de meu projeto de doutorado na Universidade Federal de São Carlos - UFSCar/SP, sob orientação do Professor Doutor Joaquim Gonçalves Barbosa, intitulado “PROBLEMÁTICAS OBRIGATÓRIAS” NA PRODUÇÃO E APROPRIAÇÃO DO CONHECIMENTO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO. 1 “Um campo, e também o campo científico, se define entre outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputa e aos interesses próprios de outros campos (não se poderia motivar um filósofo com questões próprias dos geógrafos) e que não são percebidos por quem não foi formado para entrar neste campo (cada categoria de interesses implica a indiferença em relação a outros interesses, a outros investimentos, destinados assim a ser percebidos como absurdos, insensatos, ou nobres, desinteressados). Para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem o conhecimento e reconhecimento das leis imanentes do jogo dos objetos de disputas etc”. (Bourdieu, 1974, p. 89) (grifos nossos) 2 Problemática obrigatórias – “ (...) O que os indivíduos devem à escola é sobretudo um repertório de lugares-comuns, não apenas um discurso e uma linguagem comuns, mas também terrenos de encontro e acordo, problemas comuns e maneiras comuns de abordar tais problemas comuns. Embora os homens cultivados de uma determinada época possam discordar a respeito das questões que discutem, pelo menos estão de acordo para discutir certas questões. É sobretudo através das problemáticas obrigatórias nas quais e pelas quais um pensador reflete que ele passa a pertencer à sua época, podendo-se situá-lo e datá-lo. Assim como os lingüistas recorrem ao critério da intercompreensão a fim de determinar as áreas lingüísticas, também poder-se-ia determinar áreas e gerações intelectuais e culturais através de um levantamento dos conjuntos de questões obrigatórias que definem o campo cultural de uma época. (...) É preciso não confundir o consenso na dissensão (cujas raízes situam-se na tradição escolar) que constitui a unidade objetiva do campo intelectual de uma dada época – ou seja, a participação na atualidade intelectual – com uma submissão à moda. O que torna contemporâneos certos autores que se encontram separados sob inúmeros outros ângulos são as questões consagradas a respeito das quais eles se opõem e em relação às quais organiza-se pelo menos um aspecto de seu pensamento” (Bourdieu, 1974, p. 207) (grifos nossos). 3 Para Bourdieu, habitus significa um “(...) sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explicitamente que funciona como um sistema de esquemas geradores; é gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para este fim.” (Bourdieu, 1983, p. 94) 4 A questão da denúncia será tratada em separado, mais adiante, neste item, como mais uma de nossas inquietações.

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MODISMOS TEÓRICOS E HABITUS DE PENSAMENTO:EQUÍVOCOS DO DISCURSO DA EDUCAÇÃO*

Magali Alonso de LimaProfessora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FFP/SG

Trabalhando há muitos anos no campo1 da educação, em diferentes instituições, comdistintos problemas de investigação e com abordagens epistemológicas, sociológicas eantropológicas, venho nesses últimos anos, ou seja, de 1990 para cá, preocupada com asperspectivas teóricas hegemônicas, as “problemáticas obrigatórias”2 e com quem são osdestinatários privilegiados da produção do campo da educação.

Para tal, desejamos investigar, a título de problema, que o “recente” diálogo (de 1970 paracá) do campo da educação com as ciências sociais e/ou humanas nos fez perceber que nossasteorias, nossos esquemas globalizantes e tecnicistas já não davam conta das explicações exigidaspelo cotidiano da prática docente.

Buscamos, através destas ciências, um novo olhar para nossas inquietações e nossos projetospedagógicos e educacionais. Entretanto, observamos que se, de um lado, “mal entramos” nessediálogo, de outro, já estamos achando que os conteúdos disciplinares e/ou campos de conhecimentonão necessitam ser vistos com especificidades. Este fato, em nosso entender, tem gerado, dentreoutras coisas, apropriações conceituais equivocadas das ciências sociais, pois, uma vezdescontextualizadas da matriz histórica onde foram produzidas, criam “modismos” teóricos e certoshabitus3 de pensamento.

A partir daí, o que se percebe nessa produção e apropriação deste conhecimento no campoda educação de 1990 para cá?

Algumas questões ou inquietações podem ser levantadas. A primeira delas diz respeito àadesão a um paradigma teórico – a chamada “Teoria Crítica”, por meio dos pensadores da Escola deFrankfurt –, criando “senhas obrigatórias” como denúncia ao Estado4 e ao papel da escola públicacomo reprodutora das desigualdades sociais necessárias à manutenção da ordem capitalista paraparticipação no campo (Costa, 1994). * Este artigo sintetiza as quatro questões norteadoras de meu projeto de doutorado na Universidade Federal de SãoCarlos - UFSCar/SP, sob orientação do Professor Doutor Joaquim Gonçalves Barbosa, intitulado “PROBLEMÁTICASOBRIGATÓRIAS” NA PRODUÇÃO E APROPRIAÇÃO DO CONHECIMENTO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO.1 “Um campo, e também o campo científico, se define entre outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dosinteresses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputa e aos interesses próprios de outros campos (não se poderia motivarum filósofo com questões próprias dos geógrafos) e que não são percebidos por quem não foi formado para entrar neste campo (cadacategoria de interesses implica a indiferença em relação a outros interesses, a outros investimentos, destinados assim a ser percebidoscomo absurdos, insensatos, ou nobres, desinteressados). Para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas epessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem o conhecimento e reconhecimento das leis imanentes dojogo dos objetos de disputas etc”. (Bourdieu, 1974, p. 89) (grifos nossos)2 Problemática obrigatórias – “ (...) O que os indivíduos devem à escola é sobretudo um repertório de lugares-comuns, não apenasum discurso e uma linguagem comuns, mas também terrenos de encontro e acordo, problemas comuns e maneiras comuns deabordar tais problemas comuns. Embora os homens cultivados de uma determinada época possam discordar a respeito das questõesque discutem, pelo menos estão de acordo para discutir certas questões. É sobretudo através das problemáticas obrigatórias nasquais e pelas quais um pensador reflete que ele passa a pertencer à sua época, podendo-se situá-lo e datá-lo. Assim como oslingüistas recorrem ao critério da intercompreensão a fim de determinar as áreas lingüísticas, também poder-se-ia determinar áreas egerações intelectuais e culturais através de um levantamento dos conjuntos de questões obrigatórias que definem o campo culturalde uma época. (...) É preciso não confundir o consenso na dissensão (cujas raízes situam-se na tradição escolar) que constitui aunidade objetiva do campo intelectual de uma dada época – ou seja, a participação na atualidade intelectual – com uma submissão àmoda. O que torna contemporâneos certos autores que se encontram separados sob inúmeros outros ângulos são as questõesconsagradas a respeito das quais eles se opõem e em relação às quais organiza-se pelo menos um aspecto de seu pensamento”(Bourdieu, 1974, p. 207) (grifos nossos).

3 Para Bourdieu, habitus significa um “(...) sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explicitamente quefunciona como um sistema de esquemas geradores; é gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins aos interessesobjetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para este fim.” (Bourdieu, 1983, p. 94)4 A questão da denúncia será tratada em separado, mais adiante, neste item, como mais uma de nossas inquietações.

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Tal adesão, cremos, tem excluído outros problemas de investigação e outros referenciaisteóricos considerados “menores”. Como sugere Bourdieu (1974), tais habitus, nesse caso,funcionam “dispensando de pensar”, pois tornam-se “automatismos verbais e hábitos depensamento”, gerando muitas vezes “modismos” ou “profissão de fé” (Costa, 1994) emdeterminada escola de pensamento.

Para Bourdieu,

Os automatismos verbais e os hábitos de pensamento têm por função sustentar opensamento, mas também podem, nos momentos de “baixa tensão” intelectual,dispensar de pensar. Embora devam auxiliar a dominar o real com poucos gastos,podem também encorajar aos que a eles recorrem para fazer economia da referênciaao real.Muito provavelmente, poder-se-ia definir para cada época, além de um lote de temascomuns, uma constelação particular de esquemas dominantes e um número de “perfisepistemológicos” (tomando-se esta noção em um sentido ligeiramente diferente dosentido dado por Bachelard) correspondente às escolas de pensamento. (...) Semdúvida, o fato mais essencial aponta que os esquemas depositados sob a forma deautomatismos somente são apreendidos quase sempre por intermédio de um retornoreflexivo, sempre difícil, sobre as operações já efetuadas. Logo, podem reger eregular as operações intelectuais sem que sejam conscientemente apreendidos edominados. Um pensador participa de sua sociedade e de sua época, primeiro atravésdo inconsciente cultural captado por intermédio de suas aprendizagens intelectuais e,em especial, por sua formação escolar. Em outros termos, as escolas de pensamentopoderiam conter pensamentos de escola de modo mais freqüente do que possui.(Bourdieu, 1974, p. 209-210).

Ao fazer a leitura para apreciação, de mais de 500 textos e/ou resumos de trabalho em umevento no Rio de Grande do Sul (na qualidade de coordenadora da comissão científica), Costaidentifica que:

Muitos desses textos expressavam nítidas tentativas de forçar uma realidade paraenquadrar-se em supostos padrões de aceitabilidade, configurando um certo“modismo”. Tal postura, além de ser profundamente discutível sob o ponto de vistaepistemológico, é indicativa de conhecimento parcial e/ou superficial da teoria,gerando aplicação inadequada da mesma. (Costa, 1994, p. 17)

Assim, diz ela, compara-se a escola pública com a particular como se todos os contextosinstitucionais, as condições sociais e a posição dos alunos e professores fossem homogêneos.Diante dessa “postura ingênua”, sugere Costa (1994):

Numa apreciação imediata do constatado, uma pergunta insinuou-se: não deverá issoser atribuído ao fato de que em meio à tendência crítica hoje dominante entre ospesquisadores brasileiros – preocupados com a marginalidade com que os governosvêm tratando a escola pública – quem não usa as palavras mágicas escola públicaestá banido da discussão? (...) Todo pesquisador que não faz profissão de fé em umatendência teórica dominante está desqualificado para participar do debate. Consideroessa uma questão que merece ser abordada com maior amplitude e profundidade.(Costa, 1994, p. 17) (grifos nossos)

Assim, observamos uma forma ingênua ou primária que leva muitos pesquisadores, apesarde se utilizarem da linguagem da chamada “teoria crítica”, a cair em condutas positivistas.

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É preciso, nessa perspectiva, compreender o que Bourdieu (1974) chama de “uma hierarquiade objetos legítimos”:

Assim, em cada época de cada sociedade, há uma hierarquia dos objetos de estudolegítimos que consegue impor-se de maneira tanto mais total por não haver anecessidade de ser explicitada, uma vez que ela aparece como se estivesse depositadanos instrumentos de pensamento que os indivíduos recebem no curso de suaaprendizagem intelectual. O que se costuma designar como a hipótese de Sapir eWorf aplica-se perfeitamente à vida intelectual. As palavras e sobretudo as figuras depalavras e as figuras de pensamento características de uma escola de pensamentomodelam o pensamento, assim como o expressam. Os esquemas lingüísticos eintelectuais determinam muito mais o que os indivíduos apreendem como digno deser pensado e o que pensam a respeito, pois atuam fora do alcance das tomadas deconsciência crítica: “o pensamento segue uma rede de caminhos abertos no interiorde uma linguagem particular, uma organização capaz de orientar de modosistemático na direção de certos aspectos da inteligência ou de certos aspectos darealidade, descartando sistematicamente outros aspectos valorados por outraslinguagens.” (Bourdieu, 1974, p. 212-213) (grifos nossos)

Nessa direção é que nossa pesquisa pretende caminhar, procurando perceber o quanto os“automatismos verbais e os hábitos de pensamento” acadêmicos criam ou produzem “problemáticasobrigatórias” e/ou “modismos” através de um “consenso no dissenso”, hierarquizando assim“objetos de estudo legítimos” no campo da educação, frutos de uma relação mal construída com asciências sociais.

Uma segunda questão ou inquietação decorrente de nosso problema de investigação nos fazindagar: será que, ao sairmos da lógica tecnicista pragmatista do escola-novismo e buscarmos umaintervenção na lógica do Estado, não temos “aceito” a lógica da burocracia do Estado como a“lógica” de nossas investigações? Segundo Warde (1990), sim, pois:

Contraditoriamente, temos avançado, e muito, na compreensão crítica das relaçõesentre educação e Estado; já tecemos severas críticas à hipertrofia do Estado sobre asociedade e suas conseqüências para a educação, e, no entanto, o Estado continua aser nosso interlocutor preferencial, de tal modo que a lógica do Estado (melhor seriadizer, a lógica da burocracia do Estado) determina, e muito, a lógica de nossasinvestigações. (Warde, 1990, p. 72)

É curioso observarmos que da lógica tecnicista pragmática caímos em outro tipo depragmatismo. Ainda segundo Warde (1990):

Tomando essa contradição de outro ângulo, é curioso constatar a visão estreitamentetécnica e administrativa que herdamos dos intelectuais-dirigentes escola-novistas,mantendo em nossa área uma tônica técnico-administrativa, de um tal jeito queparece-nos estar sempre produzindo com vistas à aplicabilidade, à pragmática denossas idéias ou que precisamos sempre justificar que, apesar das aparências emcontrário, o que estamos produzindo tem, em última instância, uma utilidade social.Não é casual que tenhamos substituído, no discurso, o critério de relevânciacientífica (em razão de sua dubiedade política e ideológica) pelo ainda maisduvidoso critério de relevância social. Continuamos pragmatistas, mas agora emnome do coletivo! (Warde, 1990, p. 73)

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Conjugamos com Warde (1990) quando ainda se indaga: “Temos almejado produzir ciênciaou política de intervenção ou, ainda, já estamos visando sinteticamente às duas?” (Warde, 1990, p.72)

Essas considerações de Warde (1990) têm sido apontadas a partir da crítica que faz ao fatode que estaríamos na chamada “4ª fase” (Cunha, 1979) da produção do conhecimento no campo daeducação, ou seja, aquela inaugurada em 1971 e que se caracterizaria pelo papel preponderantedesempenhado pelos programas de pós-graduação.

Na direção de uma crítica ao pragmatismo na utilização de nossas produções acadêmicas,sugere Neves (1992):

Concluindo, o resultado da pesquisa não pode ter destinação imediata, mas mediadapor múltiplos interesses, fugindo assim ao controle de quem o formulou. Opragmatismo não pode ser o fio condutor da produção do saber se se tem a pretensãode que ele seja apropriado sabe lá por quem e por quais motivos”(Neves, 1992, p. 20)(grifo nosso)

Esse pragmatismo leva, muitas vezes, à utilização da produção acadêmica para soluçõesimediatistas de determinados problemas e, na maioria das vezes, em nada auxiliando “na prática”.

Antes de mais nada a formulação da tal questão (a apropriação do conhecimento pelasociedade) se associa à construção de um projeto político de transformação(mudança de estruturas de distribuição do poder) da sociedade à imagem esemelhança do projeto ideológico de determinados segmentos de professores. Portrás dela está a crença no saber e na razão. E mais, de que a produção de saber devecomandar a organização da sociedade. Contém assim uma perspectiva autoritária einocente. Autoritária porque pressupõe que alguns cidadãos, da postura de cientistasou produtores de conhecimento, sabem o que é melhor ou podem elaborar a boasociedade. Inocente porque desconhece ou minimiza o jogo de forças sociais, de lutae concorrência entre interesses diversos que preside um processo de transformaçãoda sociedade ou os desdobramentos inintencionais e imprevistos de açõesintencionais e planejadas. Faz supor que os interesses de uns sejam bons para todos.Nesses termos articula angústia e prepotência de um lado, e de outro a frustração ouo ressentimento. Alimenta o sonho renovado de uns e a desistência de outros.(Neves, 1992, p. 1-2) (grifos nossos)

Uma terceira questão ou inquietação frente ao diálogo do campo da educação com asciências sociais diz respeito às apropriações conceituais descontextualizadas da matriz teórica deonde foram geradas. Essa “prática” não está, hoje, presente apenas no campo da educação, ela podeser percebida também em outros campos. Senão vejamos:

Analisando esta breve história da utilização de conceitos como classes sociais,ideologia, pessoa, individualismo e identidade na antropologia brasileira atual,chega-se a uma conclusão algo desconcertante. É que, ao mesmo tempo em que osantropólogos se politizam na prática de campo, através de seu engajamento crescentenas lutas travadas pelas populações que estudam, despolitizam os conceitos com osquais operam, retirando-os da matriz histórica na qual foram gerados e projetando-osno campo a-histórico da cultura. Mas escolhem justamente aqueles conceitos queoriginalmente possuíam uma dimensão política muito clara. No fundo, o que estamosfazendo é operar os conceitos de tal modo que, evitando o tratamento direto daproblemática social e política que neles está contida, preservamos uma alusão a essaproblemática que, afinal de contas, é essencial para a compreensão da realidadebrasileira.

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Acredito que existe, no próprio método de trabalho de campo, uma “armadilhapositivista”, embutida no processo de identificação subjetiva com as populaçõesestudadas, que promove os deslizes semânticos (Durham, 1997, p. 32).

Essa utilização descontextualizada tem gerado críticas dos alunos de pedagogia e de outraslicenciaturas (da UFF e UERJ, por exemplo), no que diz respeito à repetitividade de textos docampo da educação em diferentes disciplinas: didática, pesquisa, “prática pedagógica”, estrutura efuncionamento do ensino, psicologia, política e sociologia da educação por exemplo. Tal crítica falaexatamente desse lugar: como conceitos de um campo são operacionalizados em outro e utilizadosgenericamente, como se não tivessem sido gerados histórica e especificamente naquele determinadocampo.

Além do mais, todos podem tudo. Transitam-se (docentes) da psicologia para a política, dahistória para a epistemologia, da didática para a antropologia, etc., como se fossem capazes de detertamanho conhecimento. Entretanto, pensamos que, para um campo recém-crítico de si próprio,ainda é um pouco cedo para desatrelar-nos das chamadas ciências sociais através de seus “campos”ou “conteúdos disciplinares”.

Uma quarta questão se coloca frente a essa utilização, em nosso entender, equivocada, dasciências sociais no campo da educação. Parece-nos que tal “profissão de fé” e tal “pragmatismo”remetem a uma outra questão, qual seja, a função da denúncia que os intelectuais brasileiros têmdirecionado sobre o papel da universidade, ou melhor, da apropriação da produção doconhecimento nela produzido.

Kant de Lima e Varella (1990), em seu artigo Saber jurídico, cidadania e diferença noBrasil: questões de teoria e método em um perspectiva comparada, demonstram que “a maior parteda reflexão sobre o Direito que se exerce no Brasil hoje caminha por duas vias aparentementeexcludentes: ou a via apologética ou a via da denúncia” (Kant de Lima e Varella, 1990, p. 2).

Assim, dizem eles:

Acresce ainda que o pensamento da denúncia, ao se reproduzir exaustivamente aponto de chegar a uma posição quase predominante em nossas academias, reafirma osaber como poder. No afã de tudo denunciar oferece o lugar da denúncia como acaução necessária que faltava para se erigir em um poder legítimo e portantoinquestionável. A partir de então, todos os que buscam a consagração devem trilhar ocaminho da denúncia: um caminho “evidente” por si próprio e de que ninguém podeduvidar sob pena de sofrer a sanção que se aplica aos desviantes. Destarte, opensamento da denúncia está para assumir o papel que denunciava: o saber comoinstrumento de conversão da diferença em desvio, de instituição das normas queconferem a normalidade, consagram o mesmo e indigitam o que é diferente de si.(Kant de Lima e Varella, 1990, p. 44) (grifos nossos)

No campo da educação presenciamos semelhante situação, ao introjetarmos a lógica doEstado em nossas pesquisas; ao homogeneizarmos todas as escolas públicas; ao igualarmos escolapública com escola particular; ao privilegiarmos estudos de lei, caindo em um “velho legalismo”,etc.

Entretanto, assim como Kant de Lima e Varella (1990), “É preciso que se diga de modoclaro e insofismável que não temos nada a objetar ao discurso da denúncia; denúncia da ideologia,ou, como cada vez mais em nosso tempo de denúncia do poder que se perfaz nas diversas formas desaber. Achamos que esse discurso não é de mais, é de menos, pois nele ainda subsiste o estratagemaque permite salvar o denunciante.“(...) O que é preciso mais uma vez dizer é que não sobra, masfalta, radicalismo aos intelectuais da denúncia.” (Kant de Lima e Varella, 1990, p. 41-42) (grifosnossos)

Demonstrando como esse pragmatismo está presente nas próprias ciências sociais (pelomenos em alguns campos), Cardoso (1997) preocupa-se também com a questão da “politização do

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saber”, sob forma de denúncia do status quo, comprometendo-se a questão metodológica dotrabalho de pesquisa. Diz ela:

A reflexão metodológica no campo das ciências sociais vem tomando um rumobastante curioso. A discussão sobre o papel do investigador, seu envolvimento e asconseqüências disto para a pesquisa são enfatizadas, ao mesmo tempo que se diminuio espaço do debate propriamente metodológico. Quase tacitamente estamosaceitando o ecletismo como um bom caminho para o conhecimento, e qualquerpergunta sobre as limitações impostas por este ou aquele método é impertinente. Umindisfarçado pragmatismo (muitas vezes confundido com politização) dominou asciências sociais contemporâneas e desqualificou como ocioso o debate sobre oscompromissos teóricos que cada método supõe. Concentra-se o interesse narelevância do tema estudado e na forma pela qual o investigador se engaja no estudo.Um pesquisador capaz de uma “boa” interação com as minorias ou grupos popularesserá sempre um porta-voz de seus anseios e carências, logo, da sua “verdade”. Ocritério para avaliar as pesquisas é principalmente sua capacidade de fotografar arealidade vivida. Sua função é tornar visível aquelas situações de vida que estãoescondidas e que, só por virem à luz, são elementos de denúncia do status quo.(Cardoso, 1997, p. 95)

Essa discussão cruza com as colocações de Neves (1992), já indicadas em outro momentodo texto, quando diz que para muitos grupos dentro da universidade a produção de saber contémuma perspectiva “autoritária” e “inocente”.

Segundo Chizzotti (1991), a produção da pesquisa no campo da educação tem geradodissertações ou teses tautológicas, ou seja, “aquelas que nada dizem de novo, não trazem qualqueresclarecimento sobre a realidade que se propõem a tratar: redundam no óbvio. Refletem evidênciase pronuciam-se sobre verdades já demonstradas”; solipsistas, “esgotam todas as suas fases nopróprio sujeito que a produz. O resultado circula ao redor desse sujeito, e é ele seu únicoconsumidor”; trabalhos replicados, “que redundam no mesmo tema, com o mesmo aparato teórico-metodológico, para chegar às mesmas conclusões. Não são cópias, nem se confundem com as tesestautológicas. Aqui o autor crê estar afirmando novidade, por falta de uma atenção prévia ao que jáaconteceu ou acontece na área que estuda”; e as compilações descritivas, ou seja, “nelas a revisãoda literatura se limita a enumerar e compendiar resumos sintéticos do que existe sobre o tema”(Chizzotti, 1991, p. 33).

Essas questões ou inquietações aqui indicadas tornam-se hipóteses norteadoras para leiturada produção acadêmica do campo da educação de 1990 até nossos dias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo : Perspectiva, 1974.BOURDIEU, P. Questões de sociologia. Rio de Janeiro : Marco Zero, 1983.CARDOSO, R. Aventuras de antropólogos em campo ou como escapar das armadilhas do método.

In: CARDOSO, R. (Org.). Aventura antropológica. São Paulo : Paz e Terra, 1997.COSTA, M. C. V. Pesquisa em educação : concepções de ciências, paradigmas teóricos e produção

de conhecimentos. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 90, p. 15-20. ago. 1994.CHIZZOTTI, A. A pós-graduação e a relevância da produção acadêmica. Cadernos ANPED, São

Paulo, n. 3, p. 29-34, 1991.CUNHA, L. A. Os (des)caminhos da pesquisa na pós-graduação em educação. In: SEMINÁRIO

SOBRE A PRODUÇÃO CIENTÍFICA NOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EMEDUCAÇÃO. Brasília/MEC, 1979, p. 3-15.

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DURHAM, E. A pesquisa antropológica com populações urbanas : problemas e perspectiva. In:CARDOSO, R. (Org.). A aventura antropológica. São Paulo : Paz e Terra, 1997. p. 17-38.

KANT DE LIMA, R., VARELLA, A. Saber jurídico, cidadania e diferença no Brasil : questões deteoria e método em uma perspectiva comparada. Cadernos do ICHF/UFF. Niterói, n. 41, 1990.

NEVES, D. P. Produção e apropriação do conhecimento na universidade. SEMINÁRIO DEPESQUISA EM EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO, ESE/UFF, 1992. Mimeogr.

WARDE, M. O papel da pesquisa na pós-graduação em educação. Cadernos de Pesquisa. SãoPaulo, n. 73, p. 68-75, maio 1990.