Modelo Para Paper - Performatividade Do Corpo

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Performatividade do corpo ps-humano: de Narciso a PigmalioMnica Amado orientada por Paulo Bernardino (PhD) Mestrado em Criao Artstica Contempornea Universidade de Aveiro [email protected] Na investigao da performatividade do corpo importa registar o seu processo, os seus mecanismos, os seus movimentos, as suas aces. As questes que relacionam o corpo performativo com a sua estrutura visvel e invisvel, exterior e interior, vivida ou em potencial, (des)materializam-no e contribuem para a sua (des)construo, atribuem-lhe valor e significado, objectivando-o e subjectivando-o simultaneamente. A anlise apresentada no se refere ao corpo, na sua condio de suporte artstico do discurso das suas capacidades, assumido pela Body Art, mas a um corpo performativo que desenvolve uma aco, e se manifesta enquanto matria e enquanto meio expressivo de uma linguagem hbrida e multidisciplinar. Tomando por base as parbolas mitolgicas de Narciso e Pigmalio, o estudo prope uma anlise de performances contemporneas situadas num corpo potencializado pela tecnologia. As proposies no sentido de transpor os limites fsicos e a ordem natural possibilitam uma viso ontolgica prospectiva de um novo corpo, um corpo ps-humano. Palavras-chave: arte, cincia, corpo, performance, ps-humano, tecnologia 1. INTRODUO dotando-o de padres pr-estabelecidos e exigidos pela sociedade, mas optimizando igualmente a sua performance, de acordo com as expectativas actuais e futuras. Para uma noo actual do corpo contribuem diversas reas artsticas e cientficas, que problematizam questes relacionadas com a manipulao do corpo biolgico atravs da tecnologia. A ideia de convivncia, progressivamente mais facilitada, com materiais artificiais e dispositivos tecnolgicos, mais ou menos simples, como culos, lentes de contacto, prteses e implantes auditivos, dentrios, oculares, mamrios, e outras peas de substituio para as mais variadas funes, remete-nos para o facto de o nosso corpo ser um corpo biotecnolgico. Donna Haraway (1991) refere a conexo que ocorre entre o corpo e os aparatos tecnolgicos de que dispomos, das tecnologias de comunicao biotecnologia, o que nos torna cyborgs, seres hbridos, e nos distingue dos nossos antepassados. 2. CORPO-MQUINA

Remontando figura mitolgica de Narciso, interpretada desde a antiguidade como uma parbola para o amor-prprio, McLuhan (McLuhan e Zingrone 1997:154) compara o mito ao fascnio que a tecnologia produziu no homem, cuja auto-admirao se reflecte nas extenses de si prprio que para si criou. Segundo um outro mito da antiguidade, Pigmalio esculpiu uma esttua de marfim que superava em beleza e perfeio qualquer mulher real. Do mito de Pigmalio emerge um corpo perfeito imagem dos nossos sonhos e desejos, um corpo-objecto a ser moldado e modificado. Enquanto o mito de Narciso fala da duplicao do corpo, a mais antiga prtese da histria do corpo segundo Baudrillard (1991:123), o mito de Pigmalio pressupe a sua (re)construo. A construo desse novo corpo responde ao desejo contemporneo de transformao,

A simbiose do homem com a mquina, presente no imaginrio da fico cientfica h vrias dcadas, tornase progressivamente mais real mediante as descobertas cientficas e os avanos tecnolgicos. Em 1926 Fritz Lang, no seu filme Metrpolis, questionava o efeito da inter-relao entre o natural e o mecnico e a ameaa de extino ou substituio do humano pela mquina. No filme, o robot Maria (Figura 1) corporificava o poder de seduo da tecnologia, que, em ltima instncia, levaria os trabalhadores sua autodestruio.

Figura 1 Fritz Lang, Metrpolis, 1926, filme, 153 min.

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Os ideais de eficcia e produtividade da era mecnica retratados no filme Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin, foram representados pela personagem de um operrio (Figura 2), sujeito presso do trabalho industrial, que adopta o ritmo das mquinas com as quais trabalha. De forma robotizada o corpo torna-se to disciplinado ou to dcil que se mistura e confunde com roldanas e engrenagens, perdendo as suas caractersticas de interveno autnoma. Configura o corpo dcil a que se refere Foucault (1999: 119).

Figura 2 Charles Chaplin, Tempos Modernos, 1936, filme, 87 min.

Uma das caractersticas fundamentais da arte performativa, desde as primeiras manifestaes na dcada de 1920, e que se mantm actual, o seu carcter experimental. Os manifestos futuristas trouxeram para o campo da arte as alteraes cientficas e tecnolgicas verificadas na sociedade da poca (Walther 1999:577), despertando assim o interesse pela velocidade das mquinas e a potencialidade da tecnologia. RoseLee Goldberg estabelece a mesma analogia quando refere: Artists, as well as computerusers in all disciplines, hover on the edge of a fastpaced new culture, just as the Futurists did at the beginning of the century, when they tried to incorporate the machine aesthetic in their work (2004:31). Para Goldberg, a performance um meio em constante evoluo, sendo inevitvel que os artistas que o utilizam faam uso das potencialidades das novas tecnologias e as interpretem de forma surpreendente. A incorporao de aparatos tecnolgicos e meios electrnicos na performance redimensionaram o espao e a presena do corpo, possibilitando a integrao de novos meios de expresso. A interaco entre arte performativa e tecnologia foi surgindo no perodo compreendido entre 1920 e 1960, atravs do contributo de propostas artsticas diversificadas, desde a Bauhaus a Rauschenberg, Antonin Artaud, John Cage, Merce Cunningham, Allan Kaprow, Grupo Fluxus, entre outros. Segundo Renato Cohen (2007:109), a performance uma releitura contempornea do

Modernismo, utilizando uma linguagem hbrida, uma mixed-midia. A performance utiliza, desta forma, uma linguagem de soma, tendo vindo a experimentar, semelhana de outras linguagens artsticas, elementos provenientes de diversas reas, como se pode verificar nas palavras de Warr (2000:40): the period since 1960 has been characterized by an increasingly dominant recognition of the conditioning of the contemporary subject through the violent effects of new technologies of representation, communication and medical intervention. Processos sensoriais, mentais e de locomoo podem ser restaurados ou desenvolvidos atravs de dispositivos artificiais, como comprova a utilizao, em cirurgias, de microchips intracorporais, controlados externamente, ou ainda a criao de determinados rgos ou tecidos, como retinas artificiais, por exemplo, que permitam a um cego voltar a ver. Jerry Jalava, designer e programador de softwares filands, perdeu parte do seu dedo num acidente de mota e recebeu uma prtese com uma pen-drive. Jalava relata este caso no seu blog1: it is not attached permanently in to my body, it is removable prosthetic which has USB memorystick inside it [] when Im using the USB, I just leave my finger inside the slot and pick it up after Im ready. A tecnologia ao servio de reas cientficas relacionadas com o corpo humano possibilita a criao de dispositivos altamente sofisticados, especializados e eficazes. Projectos como estes podem ser considerados ensaios de evoluo ps-humana, uma expresso usada por Mark Dery (2000: 218), e alguns encarnam literalmente o pressuposto determinista de Marshall McLuhan: The technological tendency to do more and more with less and less could now be exceeded only by putting the information directly into the human nervous system. If an age of brain transplants lies ahead, it may become possible to supply each new generation with brain prints taken live and directly from the intellects of the age (McLuhan e Zingrone 1997:297). Numa perspectiva mais radical, a concepo de um corpo ps-humano para a artista contempornea Natasha Vita-More (2004), implica a substituio total do nosso hardware actual: Primo Posthuman, as a future body prototype [] From electronic prosthetics and cochlear implants to neurological pharmaceuticals, we are realizing the full potential of human form, its skeletal system and the brain, with innovative technologies that will reduce the vulnerability of our body and mental processes. A sua proposta um modelo de corpo robtico (Figura 3), um corpo perfeito, que pode receber uploads de conscincia e memria humana atravs de um microchip colocado no crebro. A artista defende ainda que as tecnologias1

http://protoblogr.net/ (acedido Novembro 15, 2010)

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emergentes NBIC: nanotecnologia, biotecnologia, tecnologias de informao aliadas s cincias cognitivas e s neurocincias, alargam a possibilidade para o melhoramento do humano, quer ao nvel da cognio quer ao nvel da sua fisiologia, para superar a doena e sustentar a vida, ampliando a existncia pessoal no tempo e prolongando a vida do corpo com base em plataformas semi e no-biolgicas (Vita-More 2009).

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CORPO ESTENDIDO

Figura 3 Natasha Vita-More, Primo Posthuman, 2004, Computao grfica.

Natasha Vita-More presidiu ao Extropy Institute, extinto em 2006 e fundado pelo seu marido Max More no princpio da dcada de 1990. Os extropianos2 integram o movimento filosfico transhumanista, que formula possibilidades de criao de formas de vida eterna tornando o corpo descartvel. O cientista Hans Moravec, que tambm integrou este movimento, defende que as mquinas evoluiro num processo de autoconscincia a curto prazo: Ns seres humanos, evolumos a um ritmo tranquilo, com milhes de anos de permeio entre cada mudana significativa, enquanto as mquinas alcanaram progressos semelhantes em apenas algumas dcadas (1992:154). Os transhumanistas formulam princpios baseados em valores humanistas, considerando o uso da tecnologia como um meio para o aperfeioamento pessoal numa perspectiva de auto-determinao. Partindo do pressuposto de que uma explorao racional das potencialidades da tecnologia possibilita, efectivamente, uma melhoria da condio humana, observvel pela investigao e pela consequente aplicao bem sucedida, em reas como a Biologia ou a Medicina, autores como Mark Dery (2000) e Erik Davis (1998) apontam, no entanto, para o exagero e para o carcter especulativo das propostas transhumanistas, neodarwinescas, dada a semelhana com o universo literrio cyberpunk.

McLuhan, numa entrevista dada revista Playboy em 1969, afirma que qualquer inovao tecnolgica pode ser considerada uma extenso ou auto-amputao do corpo, que exige novas relaes e equilbrios entre os rgos e outras extenses do corpo: all media, from the phonetic alphabet to the computer, are extensions of man that cause deep and lasting changes in him and transform his environment. Such an extension in an intensification, an amplification of an organ, sense or function, and whenever it takes place, the central nervous system appears to institute a self-protective numbling of the affected area, insulating and anesthetizing it from conscious awareness of whats happening to it. Its a process rather like that which occurs to the body under shock or stress conditions (McLuhan e Zingrone 1997:237). Um dos pontos centrais da sua teoria consiste na mudana de perspectiva ocorrida pela introduo de novos meios de comunicao, e, por conseguinte, de novas extenses. O corpo cria dependncia a cada nova extenso, como se esta tivesse sempre feito parte dele a narcose de Narciso a que se referia McLuhan. Tom Wolfe (McLuhan 2009:18), escreve na introduo ao livro Compreender-me - Conferncias e Entrevistas, de McLuhan, que o autor deve parte do seu trabalho aos manuscritos de Teilhard de Chardin3, que referem a rdio e a televiso como tecnologias no exteriores ao corpo, contribuindo para a evoluo do sistema nervoso. Partindo destas consideraes, McLuhan constri a sua teoria de que o meio a mensagem, explicando que no a tecnologia que muda as pessoas, mas o ambiente criado pela mediao que atravs dela ocorre. Dos primeiros artefactos e instrumentos que o homem criou, at aos meios de comunicao elctricos e a tecnologias mais recentes, tudo, segundo McLuhan, pode ser considerado como extenso do seu corpo fsico e do sistema nervoso desde a era elctrica, dando origem a um sistema sensorial exterior e interior, recuperando a oralidade e a tactilidade, que haviam sido relegadas para segundo plano com a inveno da imprensa, que intensificava o sentido visual. Apesar de o corpo ser estendido em sentido metafrico, a extenso interfere na conscincia que se tem dele. O corpo adquire uma nova conscincia de materialidade, sobretudo ao diluir as suas fronteiras. De fora para dentro, o corpo recebe aparatos tecnolgicos, cada vez mais pequenos e imperceptveis, de dentro para fora o corpo passa por um processo de3

O termo refere-se ordem de um sistema (o corpo humano), por oposio lei da entropia.

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Teilhard de Chardin (1881-1955) foi um padre jesuta francs, tendo-se destacado tambm enquanto filsofo, paleontlogo, e telogo.

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virtualizao, estendendo o sistema sensorial e perceptivo para alm dos seus limites. Pierre Lvy (1999) refere que o corpo virtualizado se torna permevel, numa aluso reversibilidade moebiana.4 A lgica da reversibilidade foi igualmente expressa por Baudrillard: Os media carregam consigo o sentido e o contra-sentido, manipulam em todos os sentidos ao mesmo tempo [] veiculam a simulao interna ao sistema e a simulao destruidora do sistema, segundo uma lgica absolutamente moebiana e circular (1991:110). A circularidade e a reversibilidade a que se refere Baudrillard vo ao encontro da teoria mcluhaniana, na medida em que meio e mensagem se confundem e se diluem num ciclo discursivo, apelando a vrios sentidos simultaneamente. 4. CORPO FRAGMENTADO

A dessacralizao e a dissecao do corpo ocorrem, em grande parte, a partir da prtica do mdico belga Andr Vsale (1514-1564), que efectuou a dissecao de cadveres humanos para o estudo da anatomia, transformando o corpo num objecto de estudo cientfico. A dissecao do corpo, proibida at ao sc. XIV, sem ser por motivos mdico-legais (Gil 1997:139), mostrava-nos o corpo enquanto cadver Em nome de uma transparncia generalizada, o desejo de saber, que a medicina supostamente prosseguiria, transforma-se num desejo de ver (Silva 1999:21). O corpo vivo, anteriormente opaco visto do exterior, torna-se visvel e mostra o seu funcionamento. A abertura e o acesso ao seu interior tornaram-se possveis pela via tecnolgica. Essa viso da carne, dos tecidos, entranhas e reentrncias do corpo coloca-nos, atravs dos novos meios tcnicos, em contacto com a vida que flui e pulsa, consistindo numa dissecao tecnolgica do corpo, que permite ver e sentir a sua fragilidade exposta. A descoberta de novas tecnologias de visualizao potencia a visibilidade do corpo, como refere Sally OReilly: Before the Renaissance the exploration of human insides was taboo; then, following the scientific revolution and the establishment of empirical scientific methods, fayed corpses, anatomical drawings and models based on autopsy and dissection

became acceptable. With the advent of the X-ray, ultrasound, keyhole surgery and endoscopic cameras, it is now possible for our sinews and organs to be made visible without the need to sacrifice life itself (2009:130). As imagens mdicas permitem uma nova compreenso do corpo e possibilitam formas de visualizao no-invasiva de rgos, ossos, tecidos e outras estruturas do corpo, como questiona Pierre Lvy: Qu es lo que hace visible el cuerpo? Su superficie: el pelo, la piel, el brillo de la mirada. Sin embargo, las imgenes mdicas permiten ver el interior del cuerpo sin atravesar la piel sensible, ni eccionar vasos ni cortar tejidos. Se diria que hacen surgir otras pieles, dermis enterradas, superficies insospechadas que afloran desde el fondo del organismo (1999:29). O corpo exposto por imagens mdicas um corpo digitalizado, fragmentado. E os instrumentos de fragmentao mostram partes do corpo objectivadas, codificadas e dissociadas do corpo inteiro ao qual pertencem, como observa OReilly: Digital imaging technology [] can totally reconfigure the human body to a vast, albeit virtual, extent, throwing into confusion the apparent certitudes of perception, and particularly the authoritative assertion that an image corresponds to a real object or scenario (2009:125).

Figura 4 Mona Hatoum, Corps tranger, 1994, videoinstalao

Una vez virtualizado, el cuero se vuelve permeable. [] El organismo es puesto del revs como si fuera un guante. El interior pasa al exterior mantenindose, de todos modos, dentro Pierre Lvy, Qu s lo virtual?, 1999, 29. Lvy, numa analogia tira de Mobis refere: Otra de las caractersticas associadas a menudo com la virtualizacin, adems de la territorializacin, es el paso del interior al exterior y del exterior al interior. Este efecto Moebius se desarrolla en diversos mbitos: en las relaciones entre pblico y privado, prprio y comn, subjetivo y objetivo, mapa y territorio, autor y lector, etc (Ibid., 24). August Mobis (1790-1868), matemtico e astrnomo alemo.

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A videoinstalao Corps tranger (1994) de Mona Hatoum (Figura 4) um exemplo dessa confuso de percepo, onde a artista exibe o interior do seu corpo, atravs de cmaras endoscpicas e colonoscpicas, ao som da sua respirao e da pulsao do seu corao. As imagens so projectadas num ecr circular, colocado no cho de um espao cilndrico. A abstraco conseguida pelas imagens do corpo aproxima-se s de um cenrio de uma viagem extraterrestre, como descreve OReilly (2009:132).

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CORPO (RE)CONSTRUDO

A interveno no corpo deixa de ocorrer apenas por motivos de sade e/ou doena, cortando-se e costurando-se o corpo, profanando um territrio considerado sagrado. A artista-performer contempornea Orlan coloca nas suas mos o destino do seu corpo, submetendo-se a nove cirurgias-performance, entre 1990 e 1993, que transformaram a sua imagem (Figuras 5 e 6).

decorrentes dos mecanismos de desejo e de identidade. Para a construo do seu processo de identidade, algo a que a artista chamou de auto-reconhecimento, Orlan construiu como auto-retrato uma personagem hbrida, que combina personagens a quem reconheceu valor de representao no contexto histrico onde se encontram. OReilly refere The face, as a focal point of notions of idealized beauty and socialized identity, is arguably the most reconfigured body part in invasive beauty treatments, which Orlan renders absurd by remodelling her forehead after Leonardo da Vincis Mona Lisa, her lips after Franois Bouchers Europa or her chin after Botticellis Venus (2009:137). As cirurgiasperformance de Orlan propem o corpo como um ready-made, um objecto passvel de ser modificado. Inscrito na sua carne fsica ou na sua carne virtual, o trabalho de Orlan altera o papel do corpo natural como signo de identidade, documentado pela desconstruo progressiva da imagem do seu corpo, o que a aproxima de Pigmalio e a afasta de Narciso, ou a leva a interpretar o mito subjectivamente, construindo o reflexo.

Figuras 5 e 6 Orlan, The Reincarnation of Saint Orlan, 1990, performance

Orlan leva at s ltimas consequncias uma prtica corrente na construo da beleza feminina, tanto no final do sc. XX como na actualidade. Importa, no entanto, referir que os seus propsitos nada tm a ver com cnones de beleza ou juventude. Nem sequer procura submeter o corpo a experincias extremas de dor. E, nesse sentido, o seu trabalho afasta-se da linguagem da Body Art. O facto de esta artista se submeter s cirurgias com recurso a anestesia local no s comprova a sua opo pela ausncia de dor, como tambm lhe permite desenvolver a performatividade do acto cirrgico e do processo de modificao que com ele ocorre. Desta forma, Orlan questiona a relao do sujeito com a sua imagem e com o seu corpo. A artista defende assim, que o sujeito pode ter uma interveno activa perante o seu modelo corporal, invertendo o que a natureza imps. O corpo, enquanto produto da interveno humana, enfatiza comportamentos consumistas e auto-destrutivos

Figura 7 Orlan, Refigurao Autohibridizao,Srie Pr-columbiana, n5, 1998. Cibachrome, 150 x 100 cm.

A tecnologia facilita e torna acessveis novas configuraes da pele, como sugere Eduardo Kac (1998:239): manipulamos a representao de nossa pele por meio da imagem digital, de tal forma que podemos transformar-nos na imagem de ns mesmos que desejarmos. Orlan desenvolveu uma srie de fotografias digitais (Figura 7) a que chamou Autohibridizaes pr-colombianas (1998), africanas (2002) e amerndias (2005), que inserem a imagem do seu rosto em imagens de mscaras e esttuas votivas destas trs civilizaes, procurando questionar o efeito de mutao produzido pela hibridizao tnica e cultural e a

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transformao virtual, antecipando talvez e experimentando, atravs do simulacro, as consequncias de futuras alteraes genticas e da utilizao da biotecnologia na espcie humana. 6. CORPO (BIO)TECNOLGICO

O corpo biotecnolgico um espao que acolhe elementos estranhos sua condio estritamente orgnica. A tecnologia deixa de ser uma mera extenso do homem, para ser incorporada na sua prpria estrutura, cola-se-lhe pele, ultrapassa a sua fronteira e passa para o seu interior. O corpo biotecnolgico tornase assim um corpo sem limites ontolgicos definidos. O performer e artista contemporneo Stelarc manipula o corpo atravs de cirurgias, prteses robticas e programas interactivos de computador. Dozois considera que as suas performances multimdia resultam de uma abordagem que visa a amplificao do corpo humano e refere: Na sua opinio, o corpo humano est obsoleto e ultrapassado, e deve ser posto a par das novas tecnologias e dos novos espaos virtuais para que seja assegurada a sua viabilidade e a sua imortalidade (1999:24). No percurso de Stelarc, em torno do conhecimento ps-humano, encontramos diferentes abordagens ao corpo: el cuerpo h actuado com tecnologa que le era acoplada (la Third Hand accionada por seales EMG), tecnologa que le era insertada ( la Stomach Sculpture, un mecanismo autoiluminado, que emita sonidos, se abra y se cerraba, se extenda y se retraa, y actuaba en la cavidad estomacal) y conectada a la red (com lo que personas que se encontraban en otros lugares podan acceder al cuerpo y activarlo por control remoto). El cuerpo h sido aumentado, invadido, y ahora se convierte en anfitrin no slo de la tecnologa, sino tambin de agentes remotos (1998:132).

Dery (2000:208-9) compara o artista em performance a um cyborg, um exemplo da simbiose homem-mquina em que nos estamos metaforicamente a converter. A tentativa de ampliao do corpo levou o artista a estend-lo, a adaptar-lhe partes mecnicas e a dot-lo de capacidades que este no possui naturalmente (Figura 8). O artista contemporneo Eduardo Kac desenvolve o projecto Time Capsule (1997), implantando um microchip de identificao no seu prprio tornozelo, de carcter definitivo no seu corpo (Figura 9).

Figura 9 - Eduardo Kac, Time Capsule, 1997

Figura 8 - Stelarc, Amplified Body, Laser Eyes and Third Hand, 1990

O artista contemporneo Eduardo Kac desenvolve o projecto Time Capsule (1997), implantando um microchip de identificao no seu prprio tornozelo, de carcter definitivo no seu corpo (Figura 9). O artista refere que uma obra-experincia que se encontra algures entre um evento-instalao, uma obra fsica de local especfico, na qual o local ao mesmo tempo o corpo do artista e um banco de dados localizado nos Estados Unidos, e uma transmisso simultnea na TV e na Web (Kac 1998: 237). Este registo efectuado em animais para a sua identificao e eventual recuperao de animais perdidos. Kac foi o primeiro ser humano a efectuar este procedimento: Registo-me tanto como animal como como proprietrio usando o meu prprio nome (Ibid., 238). O artista tornou possvel a insero de elementos electrnicos de carcter permanente no corpo humano, sem ser para fins teraputicos, e o armazenamento de memria artificial. Noutro projecto igualmente polmico, Kac desenvolve a coelha transgnica Alba. O projecto original, GFPK9, consistia na incluso de uma protena de medusa (Aequorea Victoria) no ADN de um embrio canino, o que tornaria o co fluorescente, emanando luz verde, em contacto com certas condies ambientais. O artista desenvolveu o projecto com um animal mais comum no contexto de laboratrio, o coelho, dando origem ao

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GFP Bunny5 (2000). A coelha albina tornou-se fluorescente ao encontrar-se num ambiente com uma determinada iluminao (luz azul). Entre 2003 e 2008, Eduardo Kac desenvolveu o projecto Histria Natural do Enigma, criando uma nova espcie de flor a Edunia que combina o ADN do artista com o ADN de uma petnia. A Edunia (Figura 10) uma espcie hbrida que evidencia veias vermelhas nas suas ptalas, resultantes da utilizao do gene retirado do sangue do artista.

Figura 10 Eduardo Kac, Histria Natural do Enigma, flor transgnica, 2003/2008. Edunia, plantimal com o ADN do artista expresso nas veias vermelhas da flor.

Apesar de ainda no se produzirem organismos humanos geneticamente modificados, Francis Fukuyama (2002:24-5) aponta como a maior ameaa da biotecnologia a capacidade de modificao da natureza humana, que consequentemente nos remeter a um estado ps-humano. 7. CONCLUSO

enquanto sujeito, utiliza a tecnologia como meio, enquanto instrumento expressivo de um corpo modificado, mas, se a opo de interveno sobre o corpo individual, as implicaes que da ocorrem tm um efeito colectivo na construo do corpo pshumano. O desejo de transcendncia das capacidades humanas, embora encontre um espao de reflexo renovado na contemporaneidade, a partir das interseces entre arte, cincia e tecnologia, foi retratado igualmente noutras pocas, como por exemplo no mito de caro ou nas palavras de Zaratustra6, que perguntava como se poderia superar o homem. Nietzsche (1844-1900) escreveu esta obra 24 anos aps ter sido publicada a concepo evolucionista de Darwin (1809-1882). No seu livro A Origem das Espcies, o cientista defende que a seleco natural se faz pelo desenvolvimento da capacidade de adaptao e de sobrevivncia de um ser ao meio. Nietzsche, ao afirmar que o homem supervel, utiliza a metfora da ponte, referindo que a humanidade se encontra num estdio intermdio de transio entre a sua forma primitiva e a sua superao, o alm-dohomem, e que esta s ser possvel atravs da vontade e do poder, aumentando o alcance das suas capacidades. O homem alm-do-homem nietzscheniano parece recuperar o humanismo renascentista, que considerava o homem ilimitado nas suas capacidades. Se, no sentido literal, o termo ps-humano compreende qualquer alterao da natureza humana, em diferentes graus, o que se torna relevante na construo do paradigma ps-humano o facto de a natureza humana constituir um objecto de experimentao, atravs do cruzamento de linguagens e de metodologias, questionando os seus limites, mas sem perder o referente. O ps-humano, apesar de suceder ao humano, no significa nem nunca ser o no-humano.

Na perspectiva ps-humanista do aperfeioamento do corpo, criou-se a possibilidade de transgresso ontolgica, ao permitir a introduo de qualidades humanas nas mquinas e de qualidades artificiais no corpo humano. Esta situao aborda questes de perda de identidade e de subjectividade, colocando em discusso o surgimento de uma nova subjectividade para o corpo tecnologicamente aperfeioado. O desejo de manipulao, controlo e domnio sobre o prprio corpo, ampliando as suas funes, capacidades e sentidos, transforma-nos em escultores como Pigmalio, obstinados em fabricar o corpo perfeito, optimizado na sua performance. O performer utiliza o corpo na sua aco como forma de se manifestarKac foi impedido pelo laboratrio francs que o auxiliou na concretizao do projecto, a levar a coelha para morar com a sua famlia, o que originou uma campanha de mobilizao da opinio pblica em prol da liberdade de Alba.5

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Eu vos anuncio o Super-homem. O homem s existe para ser superado. Que fizestes para o superar? At agora todos os seres criaram alguma coisa que os supera, e vs quereis ser o refluxo desta grande mar e regressar ao animal em vez de superar o homem? Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra (Lisboa: Guimares Editores, s.d.), 12.

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