MODELANDO A INFÂNCIA: A INFLUÊNCIA DOS COLÉGIOS JESUÍTAS E DAS ESCOLAS DE CARIDADE NA...

11
MODELANDO A INFÂNCIA: A INFLUÊNCIA DOS COLÉGIOS JESUÍTAS E DAS ESCOLAS DE CARIDADE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DIDÁTICA Simone Ballmann de Campos Pedagoga, Psicopedagoga e Mestre em Educação e Cultura. Coordenadora pedagógica no Centro Educacional Menino Jesus e no Instituto Catarinense de Pós-Graduação. E-mail: [email protected] RESUMO: Desde o século XVI os Colégios Jesuítas e as Escolas de Caridade exerceram influência na institucionalização da didática, da disciplina, do método, do currículo escolar e também na visão homogeneizadora da infância. O presente artigo sugere que os educadores conheçam a gênese da escolarização para que identifiquem a função que esses modelos escolares exercem no universo educacional e, em conseqüência, ressignifiquem constantemente suas concepções. PALAVRAS-CHAVE: Didática. Escolarização. Disciplina. MODELING CHILDHOOD: JESUITS AND CHARITY SCHOOLS INFLUENCE IN THE INSTITUTIONALIZATION OF DIDACTICS ABSTRACT: Since the 16 th century, the Jesuits schools and the Charity Schools have influenced the institutionalization of the didacticism, of the discipline, of the method, of the school curriculum and also in a vision homogenized of childhood. The present article suggests that the educators become acquainted with the genesis of education, so that they can identify their function in the educational universe and, in consequence, constantly resignify its conceptions. KEYWORDS: Didactics. Education. Discipline. INTRODUÇÃO São inúmeras as experiências escolares que vivenciaram um sistema de ensino que esquadrinhava lugares, tempos e comportamentos a serem seguidos, sob pena de punição. Mas a escola nem sempre existiu e, se considerarmos a evolução da humanidade como parâmetro, o seu surgimento, enquanto local de acesso ao conhecimento, é mais recente do que parece, e é necessário conhecê-lo para que se compreenda qual a função, como educadores, que pretendemos desempenhar.

description

Pedagogia nos tempos da Colônia.

Transcript of MODELANDO A INFÂNCIA: A INFLUÊNCIA DOS COLÉGIOS JESUÍTAS E DAS ESCOLAS DE CARIDADE NA...

  • MODELANDO A INFNCIA:

    A INFLUNCIA DOS COLGIOS JESUTAS E DAS ESCOLAS DE

    CARIDADE NA INSTITUCIONALIZAO DA DIDTICA

    Simone Ballmann de Campos

    Pedagoga, Psicopedagoga e Mestre em Educao e Cultura. Coordenadora pedaggica no Centro Educacional Menino Jesus e no Instituto Catarinense de Ps-Graduao.

    E-mail: [email protected]

    RESUMO: Desde o sculo XVI os Colgios Jesutas e as Escolas de Caridade exerceram influncia na institucionalizao da didtica, da disciplina, do mtodo, do currculo escolar e tambm na viso homogeneizadora da infncia. O presente artigo sugere que os educadores conheam a gnese da escolarizao para que identifiquem a funo que esses modelos escolares exercem no universo educacional e, em conseqncia, ressignifiquem constantemente suas concepes. PALAVRAS-CHAVE: Didtica. Escolarizao. Disciplina.

    MODELING CHILDHOOD: JESUITS AND CHARITY SCHOOLS

    INFLUENCE IN THE INSTITUTIONALIZATION OF DIDACTICS

    ABSTRACT: Since the 16th century, the Jesuits schools and the Charity Schools have influenced the institutionalization of the didacticism, of the discipline, of the method, of the school curriculum and also in a vision homogenized of childhood. The present article suggests that the educators become acquainted with the genesis of education, so that they can identify their function in the educational universe and, in consequence, constantly resignify its conceptions. KEYWORDS: Didactics. Education. Discipline.

    INTRODUO

    So inmeras as experincias escolares que vivenciaram um sistema de ensino que

    esquadrinhava lugares, tempos e comportamentos a serem seguidos, sob pena de punio.

    Mas a escola nem sempre existiu e, se considerarmos a evoluo da humanidade como

    parmetro, o seu surgimento, enquanto local de acesso ao conhecimento, mais recente do

    que parece, e necessrio conhec-lo para que se compreenda qual a funo, como

    educadores, que pretendemos desempenhar.

  • Modelando a Infncia: a influncia dos colgios jesutas e das escolas de caridade na institucionalizao da didtica

    45

    LINHAS, Florianpolis, v. 9, n. 2, p. 44 54, jul. / dez. 2008.

    Refletir sobre como acontece a construo do conhecimento na instituio de ensino e,

    principalmente, na sala de aula deve fazer parte da tarefa do professor. As continuidades e

    descontinuidades que ajudaram a produzir a escola atual e as formas de ensino que ela

    preconiza no podem ser naturalizadas no cotidiano.

    A anlise de alguns elementos da cultura escolar do sculo XVI ao XVIII, como a

    formao dos Colgios e das Escolas de Caridade, mostra que eles podem ser

    considerados responsveis pela institucionalizao da disciplina, do mtodo, do currculo e de

    uma viso peculiar de infncia. Assim, por meio deste estudo pretende-se tambm identificar

    como a escola pode servir de instrumento na homogeneizao da infncia e, em conseqncia,

    dos indivduos.

    O presente artigo est dividido em dois momentos que em seu conjunto evidenciam os

    principais motivos que possibilitaram a expanso da escolarizao pela Europa e tambm nos

    territrios descobertos pelos europeus no mesmo perodo. O primeiro momento, intitulado

    Sculo XVI: o surgimento de um novo tempo educacional, destaca o fosso que se erige

    entre o ensino at ento oferecido pela Faculdade de Artes e mestres artesos e a criao dos

    Colgios, cujos traos fundamentais foram delimitados principalmente pela Ratio

    Studiorum dos jesutas. Salienta-se tambm a ecloso de um dualismo escolar durante o

    sculo XVIII quando, junto aos Colgios que elitizavam o ensino, emergem as Escolas de

    Caridade. No segundo momento, que possui como ttulo Entra em cena a Didtica, reala-se

    uma distino entre Pedagogia e Didtica a partir da utilizao dos mtodos de ensino.

    A relevncia deste estudo acontece por possibilitar a identificao de permanncias

    dos processos de escolarizao que se institucionalizaram a partir do sculo XVI e por

    question-las para verificar se a sua utilizao condizente com os pressupostos educacionais

    atuais, que primam pela interdisciplinaridade e pelo respeito s diferenas individuais entre os

    alunos.

    SCULO XVI: O SURGIMENTO DE UM NOVO TEMPO EDUCACIONAL

    O modelo escolar atual possui uma histria peculiar que faz aluso ao ensino que

    passou a dominar na Europa do incio do sculo XVI, quando a educao sofreu uma rpida e

    fantstica transformao, durante um perodo marcado por rupturas sociais, guerras religiosas

    e pestes catastrficas. Era poca das Grandes Navegaes, que expandiram o ethos europeu ao

    mundo at ento desconhecido.

  • Simone Ballmann de Campos

    LINHAS, Florianpolis, v. 9, n. 2, p. 44 54, jul. / dez. 2008.

    46

    A educao transmitida por meio da Faculdade de Artes e dos mestres artesos em

    suas oficinas passou a ser oferecida pelos colgios (alguns deles provenientes das hospitias)

    que adotaram um perfil caracterstico entre si e se proliferaram com espantosa rapidez na

    Europa e, em seguida, no Novo Mundo, elitizando o ensino ao darem preponderncia s belas

    letras, ao latim e ao grego, sem responder s necessidades profissionais precisas.

    O jovem da poca encontrou a contramo do caminho educacional feito at ento. Na

    Frana, por exemplo, se antes os estudantes iam at seu mestre, a reforma feita pelo Cardeal

    de Estouteville, em 1452, imps que escolhessem um colgio e a ele se vinculassem at que

    finalizassem seus estudos. Anteriormente ao surgimento dos colgios, o aluno que

    freqentava a Faculdade de Artes possua um tempo dividido em perodos adaptveis ao seu

    ritmo. O curso estaria concludo quando ele e seu mestre considerassem que a formao j era

    suficiente e lhe fosse concedida uma licena para que tambm exercesse a funo de mestre.

    De acordo com Petitat (1994, p.79), um fosso erigiu-se com o surgimento dos

    colgios, quando o tempo passou a ser dividido em perodos anuais, que subdividiram as

    matrias em dias e horas, num tempo que passou a ser controlado por relgios e sinetas. Os

    alunos passaram a ter um tempo regulamentado para assimilar as matrias, entregar trabalhos

    e realizar exames. Dessa maneira, nova noo de tempo associou-se tambm a noo de

    avaliao.

    Tanto Petitat (1994) quanto Varela (1992) afirmam que os colgios das congregaes,

    os colgios protestantes e aqueles que eram dependentes das universidades

    instrumentalizaram traos fundamentais entre si: gradao sistemtica das matrias, programa

    centrado no latim e no grego, controle contnuo dos contedos adquiridos, superviso e

    disciplina.

    Claude Baduel, amigo de Calvino, ao inaugurar um colgio em Nmes, em 1540,

    publicou um opsculo onde exps os novos pressupostos pedaggicos da poca:

    At o momento no tivemos qualquer preocupao quanto ordem mais conveniente dos contedos a serem ministrados, e misturamos e confundimos tudo. Estes hbitos viciados sero banidos da nova escola, na qual seguir-se- um mtodo mais apropriado aos diversos graus de desenvolvimento da criana e natureza das matrias que ela deve estudar(...) A escola se dividir em classes de acordo com a idade e o desenvolvimento dos alunos (Petitat, 1994, p.78-9).

    Iniciou-se, pois um estudo, ainda que embrionrio, sobre o desenvolvimento infantil e

    procurou-se distribuir as crianas em graus e classes, adaptando os contedos escolares a cada

  • Modelando a Infncia: a influncia dos colgios jesutas e das escolas de caridade na institucionalizao da didtica

    47

    LINHAS, Florianpolis, v. 9, n. 2, p. 44 54, jul. / dez. 2008.

    nvel. Julia (2001, p. 22) e Varela (1992, p. 72) afirmam que se tornou imprescindvel ter um

    conhecimento biopsicolgico sobre as crianas que abrangesse tanto o nvel intelectual como

    a natureza de cada uma delas, a fim de saber como agir apropriadamente com elas. Esses

    pressupostos adquiridos pelos professores determinaram o aparecimento das cincias

    pedaggicas, para as quais a escola serviu de laboratrio e, concomitantemente, deram ao

    mestre o poder de avaliar. Todavia, a diferenciao das crianas em graus e classes tinha

    tambm o objetivo de facilitar a disciplina, pois a classe tornava-se lugar de uma atividade

    coletiva marcada por regulamentos e pela classificao permanente dos alunos. A cultura

    escolar desemboca aqui como remodelamento dos comportamentos, na profunda formao do

    carter e das almas que passa por uma disciplina do corpo e por uma direo das

    conscincias (JULIA, 2001, p. 22).

    A pedagogia progressista preconizada pelos tericos da Reforma4 e da Contra-

    Reforma5 estendeu-se Europa Catlica sobretudo por intermdio dos jesutas que, aps

    algumas dcadas de experincia em seu trabalho, elaboraram um cdigo de referncia para

    toda a Companhia, a Ratio Studiorum6, que levou cerca de 50 anos (1548-1599) para chegar

    sua verso definitiva.

    Na Ratio Studiorum evidenciava-se a seleo severa de contedos e textos,

    buscando isent-los de elementos contraditrios f catlica. Alm disso, recorria-se s

    mincias na organizao e emulao (prmios, recompensas, competies no interior da

    classe) e obedincia como virtude fundamental.

    Sendo assim, a forma de disciplinamento dos corpos, o mtodo, a organizao,

    tornaram-se to importantes quanto os contedos ensinados. Esses elementos, por sua vez,

    estavam subjugados s estruturas de poder dentro dos colgios.

    Os colgios, gerenciados por jesutas, oratorianos, beneditinos, protestantes ou por

    universidades, deram margem para que em algumas cidades francesas do sculo XVIII um

    menino em cada cinco ou seis estivesse neles matriculado (Petitat, 1994). Porm, alm de no

    atenderem s camadas sociais nas mesmas propores, a cultura desenvolvida nos colgios,

    ao enfatizar o disciplinamento do corpo e o desenvolvimento de boas maneiras, seguindo os

    manuais de civilidade preconizados por Erasmo, servia para aqueles que aspiravam a

    tornarem-se nobres e a cultivar o modo de vida dos nobres, portanto desde o seu incio a

    escola oportunizou que o capital cultural da elite predominasse.

    Enquanto a paixo pelas belas-letras atingia as camadas sociais abastadas, tanto a

    Igreja Catlica como a Protestante procuraram implementar escolas primrias por toda a

  • Simone Ballmann de Campos

    LINHAS, Florianpolis, v. 9, n. 2, p. 44 54, jul. / dez. 2008.

    48

    Europa. Por meio da alfabetizao buscaram catequizar e incutir a ideologia do trabalho.

    Lutero, ao traduzir a Bblia para o alemo, abriu espao para o uso do idioma vernculo no

    ensino elementar. Assim, a escolarizao das camadas populares teve incio nas parquias e

    junto s sociedades religiosas e de caridade onde, alm dos princpios da religio crist, os

    alunos aprenderiam at mesmo a ler e escrever (Petitat, 1994, p.109), transmitindo-lhes com

    isso, alguns conhecimentos necessrios para seu destino de trabalhadores (Petitat, 1994,

    p.109).

    Dessa maneira, deflagrou-se por toda a Europa, na segunda metade do sculo XVIII,

    um dualismo escolar, onde a escola elementar gratuita se solidificou ao lado das classes

    iniciais dos colgios e das regncias latinas. Esse dualismo oportunizou baixa nobreza e

    burguesia o acesso aos colgios e ao latim, enquanto os mais pobres utilizavam as lnguas

    vernculas para realizar seus estudos nas Escolas de Caridade.

    Varela (1992) destaca a educao desenvolvida pelos escolpios8 na Espanha, que

    adotaram a Ratio Studiorum dos jesutas para um ensino que, a princpio, limitava-se ao

    doutrinamento dos meninos pobres, mas se expandiu aos mais ricos sob a premissa de que

    todos so filhos de Deus. J o ensino elementar gratuito na Frana teve seus pressupostos

    iniciais definidos por Dmia. Entretanto, foi J. B. de La Salle o grande emancipador das

    Escolas de Caridade francesas. Os lassalistas iniciaram seu trabalho em 1670, e em 1789

    possuam 36 mil alunos distribudos em 121 estabelecimentos. Essa expanso fenomenal

    deve-se,

    (...) a uma reflexo e uma prtica pedaggica que so o verdadeiro incio do ensino primrio moderno... No documento Conduta das Escolas Crists, de importncia equivalente da Ratio Studioium para os jesutas, La Salle fixa horrios, designa os contedos a serem ensinados, subdivide-os em diferentes nveis, define os princpios da repartio dos alunos de acordo com os conhecimentos adquiridos, as condies para a passagem de um nvel para o seguinte, indica os exerccios escolares a serem cumpridos, a disciplina e as sanes, e desce aos menores detalhes, relativamente s atitudes e personalidade dos mestres, aos quais prodigaliza conselhos e regras de conduta (Petitat, 1994, p.10).

    Por meio do mtodo de ensino denominado simultneo, que oportunizava ao professor

    instruir um grupo de estudantes enquanto os outros faziam os seus deveres escolares, os

    lassalistas buscavam a homogeneizao do saber de seus alunos. Os exames e exerccios

    peridicos, cujos resultados eram anotados em fichas individuais, a emulao e, ainda, a

  • Modelando a Infncia: a influncia dos colgios jesutas e das escolas de caridade na institucionalizao da didtica

    49

    LINHAS, Florianpolis, v. 9, n. 2, p. 44 54, jul. / dez. 2008.

    recompensa ou a punio, de acordo com o desempenho obtido, faziam parte do cotidiano

    escolar.

    Inovando tambm no aperfeioamento docente, os lassalistas garantiram uma slida

    formao aos professores (irmos) ao fundar as Escolas Normais. A qualidade de seu ensino

    fez com que muitos burgueses preferissem entregar seus filhos educao gratuita. Contudo,

    ao verificarem que os hbitos de higiene e o linguajar dos mais pobres (populacho) no

    eram condizentes com os preceitos elitistas, os burgueses procuraram outras escolas e

    ratificaram o processo de segregao social e espacial. Mesmo assim, as Escolas de Caridade

    garantiram uma alfabetizao em massa, que alm de instruir, infiltrou-se nas residncias

    francesas educando por meio de um projeto de inculcao de contedos religiosos e valores

    morais com o intuito de educar para a f, os bons costumes e o trabalho, complementando ou

    corrigindo uma educao familiar considerada insuficiente. Vale salientar, porm, que tanto a

    educao oferecida pelos lassalistas como por outros estabelecimentos disseminadores da

    Reforma e da Contra-Reforma teve o intuito de melhorar a condio das crianas pobres, sem

    tir-las, contudo, da condio de pobreza. O pobre, durante o sculo XVI, precisava ser

    controlado por meio do trabalho, para que a ociosidade no se tornasse sinnimo de revolta ou

    ameaa de poder.

    Afastar as crianas das ms influncias, tir-las da rua, vista como uma escola de insubordinao e de malandragem, um dos objetivos das escolas de Caridade que, sob este ngulo, no correspondem ao nome. A instituio gratuita, mas as elites municipais que sustentam as confrarias dedicadas educao esperam ter em retorno uma juventude e uma sociedade mais bem policiadas. Retirar as crianas e adolescentes da rua, encaminh-los para um trabalho disciplinado, separar a criana do mundo adulto, inculcando o respeito pela ordem, so objetivos que de acordo com os sentimentos dominantes poca concentram-se nas escolas elementares de caridade e combinam com a imagem da pobreza e dos pobres como um universo parte e ameaador (Petitat, 1994, p. 119).

    Varela (1992), em consonncia com Petitat (1994), afirma que o ensino destinado aos

    mais pobres no tinha por finalidade facilitar o acesso cultura, seno reiterar esteretipos e

    valores morais em oposio aberta s suas formas de vida, impondo-lhes, alm disso, hbitos

    de limpeza, regularidade, compostura e obedincia. Tanto catlicos como protestantes

    incitavam veementemente o amor ao trabalho.

    A instituio escolar no sculo XVIII, que por um lado dicotomizava o currculo e os

    espaos, destinando aos pobres uma alfabetizao diferente da dos mais abastados,

    caracterizando uma distino entre as classes sociais e reproduzindo relaes de poder e de

  • Simone Ballmann de Campos

    LINHAS, Florianpolis, v. 9, n. 2, p. 44 54, jul. / dez. 2008.

    50

    dominao entre as mesmas, por outro, possua algo que unia a vertente popular e a elitista: as

    jornadas entremeadas por oraes e por mximas morais e a organizao pedaggica (horrio

    escolar, superviso permanente, emulao entre os alunos, rigoroso controle e progressiva

    acumulao dos programas) que visava tanto a instituio de hbitos quanto a eficcia

    didtica na aprendizagem.

    ENTRA EM CENA A DIDTICA

    A instituio dos colgios durante o sculo XVI possibilitou uma distino entre a

    pedagogia e a didtica. As prticas pedaggicas, ou seja, prticas duradouras de formao de

    crianas que socializavam a transmisso de saberes foram sendo gradualmente

    desqualificadas e substitudas por pressupostos didticos, que viam o ensino como instruo.

    A reorganizao dos textos, para fins quer pedaggicos quer didticos, significou que o aprendizado e/ou o ensino tornaram-se metodizados... A metodizao proporcionou um atalho ao aprendizado, assim como, seguir uma seqncia metodizada era seguir um currculo. Desse modo, o trao definidor de um currculo no era seu contedo derivado dos textos, mas seu carter metdico (Hamilton, 2001, p. 56).

    Essa metodologia, associada disciplina, tornou-se fabricadora de identidades e vises

    de mundo pela forma como selecionava e ordenava o conhecimento escolar. Os dispositivos

    didticos, tais como a delimitao e controle do tempo, o estmulo freqente ao trabalho

    escolar, a emulao, o uso de prmios e castigos, o sistema de avaliao que garantiam as

    formas dos contedos escolares, contribuam tambm para a modelagem dos indivduos.

    Essas estratgias utilizadas para fazer o conhecimento transitar no interior das escolas so

    fatores que indicam a inteno, explcita ou implcita, de produzir identidades escolares que

    constituem hbitos mentais e esquemas interpretativos singulares.

    A diferenciao entre pedagogia e didtica, ou entre educao e escolaridade, emergiu

    graas a uma microfsica do poder colocada em prtica por meio das disciplinas, mtodos

    que permitem o controle minucioso das operaes do corpo, que realizam a sujeio constante

    de foras e lhes impem uma relao de docilidade (Foucault, 1988, p.126).

    A disciplina inaugura o tempo de um novo olhar, ou um novo olhar para os objetos: o olhar s insignificncias, s coisas pequenas, ao detalhe. A mincia, se se quer investi-la de poder, o menor dos gestos, a mais nfima ao, se se quer control-los para torn-los teis, requerem, agora, novas visibilidades que produziro novas racionalidades (Beltro, 2000, p. 38).

  • Modelando a Infncia: a influncia dos colgios jesutas e das escolas de caridade na institucionalizao da didtica

    51

    LINHAS, Florianpolis, v. 9, n. 2, p. 44 54, jul. / dez. 2008.

    Tanto a Ratio Studiorum como os Exerccios Espirituais (jesuticos), a Conduta das

    Escolas Crists (lassalistas) e a Didtica Magna (de Comenius, 1657) ilustram a substituio

    gradual da pedagogia pela didtica (Hamilton, 2001, p. 66-7; Petitat, 1994, p. 110; Beltro,

    2000, p. 36). O surgimento da escolarizao no foi uma conjetura linear e evolucionria, pois

    resultou da interao de idias e prticas desordenadas que combinadas deram origem aos

    pressupostos divulgados por inovadores como Comenius (1592-1691), consultor educacional

    de diversos governos e que defendia uma educao crist, que inclusse contedos cientficos

    demarcados por mtodos que tinham por base a premissa de fazer o aluno aprender mais e

    melhor em menos tempo.

    Aos poucos a disciplina da diligncia pessoal foi se convertendo na virtude do dever

    pblico. Assim, junto com a disciplina erigida na escola, que ao docilizar os corpos tornavam-

    os instrumentos teis para a Igreja e para o Estado em ascenso, a partir do sculo XIX a

    disciplina, enquanto tcnica de exerccio de poder (Dallabrida, 2001, p. 150), expandiu-se

    para as outras instituies sociais: a priso, a fbrica, o hospital, o quartel, a famlia..., tendo o

    panoptismo9 como principal trao dessa sociedade disciplinar em emergncia.

    Os mecanismos de poder, apesar de ressignificados e atualizados, podem ser

    evidenciados hoje quando na escola se repetem rotinas de homogeneizao, de pensamento e

    de ao.

    De acordo com Pazeto (2003, p. 184), toda ao educativa parte integrante de um

    processo mais amplo e complexo, (...) a individualidade intrnseca globalidade. Em

    contrapartida, Teixeira (2002, p. 271), afirma que:

    (...) mesmo quando submetidas s normas centralizadoras do sistema, determinantes de uma organizao administrativa igual para todas, as escolas so capazes de manter diferenas, apresentando caractersticas derivadas de sua prpria sociabilidade. Como grupo social, a instituio escolar busca adequar e adaptar as normas comuns s suas condies especficas e constri sua prpria cultura.

    Diante de tais consideraes, possvel dizer que os profissionais da educao

    precisam observar a questo pedaggica, a partir do macro e do micro, e desnaturalizar10 a lei,

    observando que o que colocado como posto, dado, institudo... foi construdo, por isso

    tem a possibilidade de ser alterado por meio de uma educao que considere o vir a ser, o

    instituinte. Assim, a instituio escolar torna-se um lugar com espao para ousar, para a

    criatividade, a solidariedade, as diferenas, a relatividade da verdade, as resistncias, enfim a

    construo e reconstruo do saber e do ser.

  • Simone Ballmann de Campos

    LINHAS, Florianpolis, v. 9, n. 2, p. 44 54, jul. / dez. 2008.

    52

    CONSIDERAES FINAIS

    Considerando o que foi exposto, pode-se destacar que aps o surgimento dos colgios

    os pressupostos tericos da Reforma e Contra-Reforma serviram de mola propulsora no

    desenvolvimento da escolarizao ao enfatizarem uma educao em massa, concomitante com

    a educao da elite. Este processo estabeleceu um dualismo escolar que inculcou, atravs do

    ensino, valores e hbitos de civilidade distintos, de acordo com a classe social de procedncia

    do aluno. Nesse contexto, emergiram vrios manuais metodolgicos como a Ratio

    Studiorum e a Conduta das Escolas Crists, que ao unirem disciplina e mtodo, criaram

    distines entre escolarizao e educao: a escolarizao assumiu a funo de docilizar os

    corpos, beneficiando a manuteno do poder vigente, enquanto a educao perdeu

    caractersticas preconizadas anteriormente pelos mestres das Faculdades de Artes e

    preceptores, que se apoiavam num conhecimento amplo e visavam a formao universal do

    ser, tornando-o sujeito em seus atos e no apenas um indivduo dcil.

    Ao compreender as vicissitudes que engendram a maquinaria escolar11 e procuram

    automatizar o processo de ensino-aprendizagem, o professor atual ter mais clareza para

    reformular sua metodologia com base em evidncias encontradas em sua prtica, dentro da

    perspectiva macro-micro, e ressignificar suas concepes para dar margem ao instituinte, ao

    livre exerccio do pensamento, possibilidade de questionar a natureza do seu ensino.

    Ns vivemos um momento na histria em que a escola deve desatar o n existente

    entre os paradigmas por ela incorporados e o pluralismo do pblico que recebe, preparando a

    criana para a era da informao, na qual mais que decorar contedos preciso aprender a

    verificar os fatos, escolher caminhos, trabalhar a coletividade, a colaborao, a liberdade, a

    ousadia, o desejo de inovar e de viver.

    Notas 1 Descontinuidade: A utilizao de descontinuidade anacroniza a histria, exigindo que os historiadores abandonem o tempo vetorizado da histria e faam um incessante trabalho de diferenciao, que se apia na diferena entre um presente e um passado(Certeau, 1982, p.47 apud Dallabrida, 1998, p.84). 2 Faculdade de Artes: Ensino baseado no self-government, onde os estudantes vo at os professores e organizam seus estudos de acordo com sua individualidade. 3 Hospitias: casas de estudantes que remontam ao sculo XIII e que aos poucos se transformam em estabelecimentos de ensino (Petitat, 1994, p.77).

  • Modelando a Infncia: a influncia dos colgios jesutas e das escolas de caridade na institucionalizao da didtica

    53

    LINHAS, Florianpolis, v. 9, n. 2, p. 44 54, jul. / dez. 2008.

    4 Reforma: At o incio do sculo XVI, a Igreja conseguiu manter-se unida, utilizando seu enorme poder econmico e poltico para vencer os lderes religiosos que tentavam reform-la.Contudo, em 1517, um monge chamado Martinho Lutero ousou discordar profundamente da doutrina catlica e conseguiu provocar a maior ruptura j ocorrida no interior da Igreja. Este movimento iniciado por Lutero ficou conhecido como Reforma Protestante e teve como principais motivos a necessidade de uma nova moral religiosa e a formao das monarquias nacionais, pois o crescimento do poder nacional (rei) esbarrou na fora do poder universal (papa) http://www.brasilescola.com/historiag/reforma. 5 Contra-Reforma: Antes mesmo do incio do protestantismo, inmeros catlicos, como o humanista Erasmo de Roterdam, criticaram os enormes abusos praticados pelo clero e mostraram que era necessrio reformar a Igreja Catlica com urgncia. Entretanto, os grupos de leigos e religiosos catlicos s deram incio a um trabalho de intensa reorganizao interna da Igreja quando o protestantismo comeou a se expandir com velocidade crescente por vrios pases europeus. Esse trabalho, que tinha o objetivo de ampliar o nmero de adeptos do catolicismo e impedir o avano do protestantismo, foi chamado de Reforma http://www.brasilescola.com/historiag/contra-reforma. 6 Ratio Studiorum: Cdigo educativo composto por 467 regras, produzido aps meio sculo de reflexo e sistematizao de prticas educativas e implantado pelos jesutas em 1599, principalmente nos Colgios Europeus dirigidos pela Companhia de Jesus (Dallabrida, 2001a, p.136-8). 7 Erasmo (1466-1530) foi escritor em lngua latina e um dos mais importantes humanistas. Publicou o primeiro Novo Testamento em grego, impresso em 1516, e teve bastante contato com Lutero, uma das principais figuras do seu tempo. Os tradutores humanistas, que eram pagos, injetaram conscientemente novas incertezas na doutrina crist. 8 Escolpios: congregao religiosa que dominou a educao espanhola no sculo XVI. 9 Panoptismo: vigilncia permanente. 10 Desnaturalizar: uma transformao historiogrfica significativa em que o historiador deixa de trabalhar com o objeto dado para pensar as prticas sociais que o engendram (Dallabrida, 1998, p.81). 11 Maquinaria: Conjunto de estratgias e prticas disciplinares postas em prtica dentro e fora da sala de aula. Implica o controle do tempo e do espao, rgidas hierarquia, emulao e competio entre os alunos, individualizao das carreiras escolares e incitamento atividade permanente dos alunos (Dallabrida, 2001a, p.142).

    REFERNCIAS

    BELTRO, I.R. Corpos dceis, mentes vazias, coraes frios - didtica: o discurso cientfico do disciplinamento. So Paulo: Imaginrio, 2000. DALLABRIDA, N. O elogio da descontinuidade: Michel Foucalt e a historiografia. In: Fronteiras: Revista de Histria. Florianpolis, n .6, 1998, p. 79-93. . A fabricao escolar das elites: o Ginsio Catarinense na Primeira Repblica. Florianpolis: Cidade Futura, 2001. . Moldar a alma plstica da juventude: a Ratio Studiorum e a manufatura de sujeitos letrados e catlicos. In: Revista de Educao UNISINOS, v. 5, n. 8, 2001a, p. 133-50. FOUCAULT, M. Microfsica do poder. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

  • Simone Ballmann de Campos

    LINHAS, Florianpolis, v. 9, n. 2, p. 44 54, jul. / dez. 2008.

    54

    HAMILTON, D. Notas de lugar nenhum: sobre os primrdios da escolarizao moderna. In: Revista Brasileira de Histria da Educao. Campinas: Autores Associados, jan/jun 2001,45-73. JULIA, D. A cultura escolar como objeto histrico. In: Revista Brasileira de Histria da Educao. Campinas: Autores Associados, jan/jun 2001, p. 9-44. PAZETO, A. Gesto da educao na perspectiva institucional e coletiva. In: Os desafios na gesto do projeto poltico pedaggico: implementao e avaliao - Anais do XV Simpsio Catarinense de Administrao da Educao. Joaaba, 2003. PETITAT, A. Produo da escola/ produo da sociedade. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1994. TEIXEIRA, L.H.G. Cultura organizacional e projeto de mudana em escolas pblicas. Campinas: Autores Associados, 2002. VARELA, J.; ALVAREZ-URIA, F. A maquinaria escolar. In: Teoria & Educao: Porto Alegre, 6, 1992, p. 68-95.

    Recebido: Abril/2004 Aprovado: Dezembro/2004