MODA E LÓGICA DA OBSOLESCÊNCIA NA … · A partir da segunda metade do século XX, a aceleração...

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1 MODA E LÓGICA DA OBSOLESCÊNCIA NA ARQUITETURA COMERCIAL DE PORTO ALEGRE – ESTUDO DE CASO Camila Blatt Mirapalhete 1. INTRODUÇÃO Dos campos do conhecimento humano a arquitetura talvez seja o mais presente no espaço da convivência coletiva e individual. Ao longo da história da humanidade transformou-se em peça fundamental na formação do habitat da espécie, isso na construção das cidades e na exposição dos cidadãos às suas práticas e concepções. Ela se comunica com seus usuários permanentemente, de forma não verbal, porém vívida e influenciadora. A casa, o abrigo, é uma necessidade básica do ser humano. Fundamental para sua sobrevivência. Atende a necessidade de estar bem protegido, seguro. Porém, além do abrigo, a espécie humana encontrou o lar e, a partir daí, já não sendo somente resposta a necessidades, a arquitetura passa a ser um objeto de desejo. Nestes anseios a humanidade sempre procura o belo, mesmo que este belo seja um conceito passageiro. Estando ela hoje sendo edificada em meio a uma nova civilização, onde as trocas simbólicas representam não mais um artifício da indústria e sim um modus operandi, uma civilização que não mais consome o que a indústria simplesmente produz, mas sim a informação que este produto gera, a arquitetura acaba entrando num novo processo de consumo. Ela pertence ao grupo das mercadorias da “sociedade espetacular”, onde a busca por novas experiências deixa de lado a tradição enquanto a possibilidade de escolha gera um homem muito mais volúvel, flexível e até sedento por contínuas mudanças. E é nesta eterna e cada vez mais rápida procura pelo novo, pelo atual e em alguns casos pelo fashion, que a moda, em sua efemeridade, passa a reger o comportamento humano e seus frutos, seu palco e finalmente sua arte, arquitetura e cidade. Por isso, o estudo de como uma população entende e se apropria do espaço arquitetônico se torna fundamental. É de extrema importância saber quais as mensagens do arquiteto e qual a leitura feita pelo usuário, qual o impacto desta obra no bairro ou cidade e finalmente, qual o prazo de validade dado pelo fenômeno da moda para a mudança no modo de percepção deste usuário a respeito do espaço projetado. Tendo em vista esses parâmetros surge a indagação maior e aqui tomada como questão-problema, objeto de estudo: seria a

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    MODA E LGICA DA OBSOLESCNCIA NA ARQUITETURA COMERCIAL DE

    PORTO ALEGRE ESTUDO DE CASO

    Camila Blatt Mirapalhete

    1. INTRODUO

    Dos campos do conhecimento humano a arquitetura talvez seja o mais presente no

    espao da convivncia coletiva e individual. Ao longo da histria da humanidade

    transformou-se em pea fundamental na formao do habitat da espcie, isso na construo

    das cidades e na exposio dos cidados s suas prticas e concepes. Ela se comunica com

    seus usurios permanentemente, de forma no verbal, porm vvida e influenciadora.

    A casa, o abrigo, uma necessidade bsica do ser humano. Fundamental para sua

    sobrevivncia. Atende a necessidade de estar bem protegido, seguro. Porm, alm do abrigo, a

    espcie humana encontrou o lar e, a partir da, j no sendo somente resposta a necessidades,

    a arquitetura passa a ser um objeto de desejo. Nestes anseios a humanidade sempre procura o

    belo, mesmo que este belo seja um conceito passageiro.

    Estando ela hoje sendo edificada em meio a uma nova civilizao, onde as trocas

    simblicas representam no mais um artifcio da indstria e sim um modus operandi, uma

    civilizao que no mais consome o que a indstria simplesmente produz, mas sim a

    informao que este produto gera, a arquitetura acaba entrando num novo processo de

    consumo. Ela pertence ao grupo das mercadorias da sociedade espetacular, onde a busca

    por novas experincias deixa de lado a tradio enquanto a possibilidade de escolha gera um

    homem muito mais volvel, flexvel e at sedento por contnuas mudanas. E nesta eterna e

    cada vez mais rpida procura pelo novo, pelo atual e em alguns casos pelo fashion, que a

    moda, em sua efemeridade, passa a reger o comportamento humano e seus frutos, seu palco e

    finalmente sua arte, arquitetura e cidade.

    Por isso, o estudo de como uma populao entende e se apropria do espao

    arquitetnico se torna fundamental. de extrema importncia saber quais as mensagens do

    arquiteto e qual a leitura feita pelo usurio, qual o impacto desta obra no bairro ou cidade e

    finalmente, qual o prazo de validade dado pelo fenmeno da moda para a mudana no modo

    de percepo deste usurio a respeito do espao projetado. Tendo em vista esses parmetros

    surge a indagao maior e aqui tomada como questo-problema, objeto de estudo: seria a

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    arquitetura, em sua dimenso local e urbana, utilizada como palco para o fenmeno da moda,

    tambm sujeita as suas obsolescncias e necessidade de substituies?

    Para confirmar a hiptese, utilizou-se os projetos comerciais da rea hoje mais

    submetida a tais padres na cidade de Porto Alegre: a Rua Padre Chagas no Bairro Moinhos

    de Vento.

    Este trabalho se divide entre pesquisa bibliogrfica, onde mais profundamente so

    estudados os fenmenos sociais, e a coleta de dados. A escolha da Rua Padre Chagas abre a

    possibilidade de exemplificar a interferncia das prticas capitalistas sobre a apropriao do

    espao arquitetnico em sua esfera macro, abordando uma rua que h mais de uma dcada se

    mantm como endereo da moda na capital gacha, e em sua escala micro, nas lojas que so

    constantemente reformadas e modificadas ou substitudas por novos estabelecimentos

    comerciais com mesmo perfil, produto e pblico alvo. Analisar uma fatia da cidade possibilita

    tambm observar as prticas deste morador ou usurio, sua identificao com o lugar e sua

    motivao de uso, sua relao enfim, com a moda e suas conseqncias.

    2. ELEMENTOS CONCEITUAIS DA DEFINIO DE MODA

    A moda, atual fenmeno de reproduo social, ajuda a revelar comportamentos tanto

    na esfera individual como coletiva. Ao contrrio do que possa parecer, ela no suprime

    identidades, mas ajuda a apont-las. um fenmeno que ergue-se sobre a novidade, o

    consumo e a ritualidade. Na velocidade da mdia, uma moda rende outra. Fenmeno de

    massas, o poder de escolha da classe mdia torna-se a iluso de livre escolha das classes

    inferiores.

    No lanamento de novas tecnologias, com o valor agregado que nelas vem embutido,

    apenas aquele com alto poder aquisitivo pode se tornar consumidor. As novidades

    tecnolgicas no caso da arquitetura no dizem respeito apenas s novidades decorativas e

    possveis de serem questionadas como necessidade. Novas tecnologias podem ser encontradas

    nas necessidades construtivas, porm por seu valor de troca, transformam-se em objeto de

    distino social.

    A partir da segunda metade do sculo XX, a acelerao do capitalismo, o aumento do

    consumo, o avano e as novas descobertas tecnolgicas, impuseram a necessidade de novas

    reflexes acerca do fenmeno. Durante muito tempo a questo da moda viu-se atrelada idia

    especfica de distino de classes sociais. Certamente, a roupa e outras manifestaes, como a

    arte e a arquitetura, podem assumir essa funo distintiva. Alm disso, nos mostra a

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    possibilidade de expressar signos atravs de invlucros e a atual liberdade de escolha e

    individualidade dos cidados.

    Na arquitetura podemos entender sua utilizao como diferenciadora e identificadora

    desde quando o homem passa a apropriar-se no mais do ambiente natural como casa.

    Podemos identificar a adoo de elementos estticos e ornamentos em residncias j nas vilas

    romanas, onde era comum a adoo de colunas nas fachadas residenciais, com sentido de

    diferenciao e demarcao de classe.

    Conforme afirma Lipovestsky, no podemos falar em moda nas sociedades tribais,

    antigas e medievais. De uma maneira variada, predomina nestas o valor atribudo

    permanncia, tradio. Fato decisivo que impede a formao do gosto pela mudana, da

    exaltao ao tempo presente e da legitimao da ao individual sobre o mundo. A diviso do

    trabalho no modo de produo capitalista em toda sua extenso, aspectos econmicos, sociais,

    poltico e culturais, so a base social mais profunda e essencial do processo de

    individualizao.

    2.1 A moda segundo Baudrillard o objeto-signo

    A arma para possibilitar e manter as relaes de consumo e diferenciao social

    intitulada por Baudrillard, como o objeto-signo.

    O valor encontrado no objeto-signo no est to somente em seu valor de uso e nem

    no seu simbolismo, mas sim nas caractersticas que o diferenciam dos demais objetos, o que

    conferiria ao seu usurio os mesmos atributos. por causa do que representa que o objeto

    consumido, por sua capacidade de qualificar e diferenciar o consumidor, por seu poder de

    agregar status. As mercadorias so sempre e imediatamente produzidas como signos e,

    inversamente, os signos so sempre e imediatamente produzidos como mercadoria.

    Neste novo sistema comportamental, a moda aparece como rtulo e timer nesse

    processo de reduo semiolgica que culmina no consumo do objeto-signo.

    O modelo nada mais que a forma original, algo passvel de cpia e disposto na forma

    perfeita, uma inspirao. O modelo ento, que antecede srie, serve a uma pequena minoria,

    enquanto a larga camada social liga-se, devido aos signos estabelecidos, s reprodues em

    larga escala deste prottipo. A arquitetura comercial um dos mecanismos utilizados para a

    rotulao de um produto ou marca. O projeto do ponto de venda pode definir o pblico alvo

    atravs das informaes no verbais passadas por seu design, iluminao e de todas as suas

    decises projetuais. Pode transformar um produto em exclusivo, ou popular, utilizando-se

    apenas de mensagens subliminares como a quantidade de produtos expostos.

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    O consumo do signo, como tambm forma de comunicar a personalidade de quem

    consome, vem sempre cercado do ver e ser visto. No s as vestimentas comunicam, mas

    tambm o lugar que freqentado e a forma de se apropriar do espao.

    2.2 A moda segundo Gilles Lipovetsky Satisfao Pessoal

    Para Lipovetsky o aumento do nmero de ofertas possibilitou uma maior possibilidade

    de escolhas. Existe um estmulo ao autoconhecimento, pesquisa de gostos pessoais,

    costumes, personalidade e opo por caminhos mais individuais, com escolhas mais relativas

    s prprias caractersticas. Para ele, a qualidade mais atrativa no bem de consumo o seu

    valor de uso, apenas aliado a sua imagem, esta vindo apenas como complemento. Os

    interesses individuais como a sensao, o hedonismo e a autonomia preponderam sobre as

    preocupaes com o social.

    Sendo assim, o valor de uso que liga o indivduo s coisas, e no seu valor

    simblico. Porm, como o uso e a obsolescncia na sociedade de consumo atual se d em

    ritmo acelerado, as escolhas mudam constantemente. justamente esta hiperescolha, as

    mltiplas opes de seduo, aliada a inconstncia que geram o processo da moda e o

    constante descarte daquilo que foi h pouco eleito como indispensvel.

    Poderamos explicar assim, por exemplo, a multiplicidade de estilos no design de

    mobilirios existente hoje disposio, e a substituio freqente por novas peas. Isso gera

    um mercado da decorao com espao para ruas especializadas no assunto, reunindo um

    elevado nmero de lojas lado a lado.

    2.3 A moda segundo Mike Featherstone O estilo de vida

    Conforme o autor, trs linhas distintas (econmica, sociolgica e psicolgica) regem o

    conceito de cultura do consumo. A primeira a concepo de que a cultura de consumo tem

    como premissa a expanso da produo capitalista das mercadorias, que originou a uma vasta

    acumulao de cultura material na forma de bens e locais de compra e consumo. Em segundo

    lugar, h a concepo mais estritamente sociolgica onde a satisfao e o status dependem da

    exibio e da conservao das diferenas. Sob esta linha, pessoas usam as mercadorias para

    criar vnculos ou distines sociais. E em terceiro lugar, a questo psicolgica, que

    considera os prazeres emocionais, sonhos e desejos do imaginrio cultural consumista,

    produzindo diversos tipos de excitao fsica e prazeres estticos.

    Featherstone trata a cultura de consumo como o lugar onde o individuo expressa-se,

    seja atravs da roupa, do carro, do local de consumo, dos comportamentos que adota e das

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    opes que faz. Desta forma esta cultura denota individualidade e auto-expresso e

    identificao com um estilo de vida.

    O local de consumo diz muito sobre o consumidor e coloca-o dentro de um grupo

    diferenciado de pessoas que em determinado momento possuem a mesma preferncia ou

    hbito. Se analisarmos o comportamento de diversas pessoas que transitam em diferentes

    tardes pela rua Padre Chagas do Bairro Moinhos de Vento, encontraremos hbitos e

    preferncias muito prximas. Estas semelhanas de hbitos os colocam em determinado grupo

    com o mesmo estilo de vida. interessante porm, analisar at que ponto todas as pessoas que

    participam destes rituais realmente possuem este estilo de vida ou apenas o admiram e

    almejam.

    Deste modo a popularizao de endereos da moda pode ser fatal para sua concepo

    como tal. Para que uma rua ou rea da cidade permanea em evidncia entre o mesmo grupo

    de pessoas e no seja invadido por aquelas que tem como inteno se apropriar do mesmo

    estilo de vida, seria necessrio o equilbrio entre o ostracismo e a divulgao destes pontos de

    venda, aliado a constante manuteno interna destas lojas.

    O termo ps-modernismo se apia na negao do moderno, no afastamento percebido

    das caractersticas decisivas do moderno.. Novas formas de tecnologia e informao tornam-

    se fundamentais para a passagem de uma ordem social produtiva para uma reprodutiva, na

    qual as simulaes e modelos cada vez mais constituem o mundo, de modo a apagar a

    distino entre realidade e aparncia.

    3. OBSOLESCNCIA, CONSUMO E MODA

    notrio que com o passar dos dias aceleramse as inovaes tecnolgicas em todas

    as reas produtivas. Essa introduo de novos bens de consumo e servios de extrema

    importncia para a economia de um modo geral: para o consumidor final, indstria e

    comrcio.

    A moda uma das prticas chave para este sistema de dependncia economia-

    comportamento. Muitas vezes, quando finalmente uma pessoa aprende a aceitar o uso de

    determinado modelo tecnolgico, o mesmo se torna obsoleto quando h o lanamento de uma

    nova tendncia no trimestre seguinte, muito mais avanada e socialmente aceita. E atravs

    disso que sobrevive a indstria da moda, garantindo sua continuidade com sua efemeridade

    interna.

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    Guy Debord criou a definio sociedade do espetculo para intitular o mesmo

    fenmeno j definido como sociedade de consumo, sociedade da abundncia, ps-

    moderna ou miditica. Este novo ttulo, segundo o autor, relaciona-se diretamente

    etimologia da palavra latina espectaculum, que significa ao mesmo tempo, vista e aspecto

    de um ser e ainda jogos pblicos. Estes dois significados resumem o conceito do autor: as

    relaes que se do entre o que visto coletivamente com o que vivido particularmente. A

    sociedade do espetculo produziria bens no com a finalidade de saciar as necessidades de

    seus cidados, mas com o objetivo de acumular capital. Esta teoria amplia a imagem de

    mercadoria-fetiche, aquela que contemplada nas vitrines, para a mercadoria espetculo,

    cuja utilidade residiria somente nesta sua contemplao.

    4. ARQUITETURA COMERCIAL COMO MODA

    A arquitetura, desde os primrdios da civilizao e mais atualmente, desde a ascenso

    do modo de produo capitalista, sempre serviu de meio de representao das civilizaes ou

    sistemas sociais hegemnicos.

    Poderia se afirmar que o arquiteto italiano Antnio SantElia, na dcada de 20,

    realizou uma obra vasta e fundamental para a arquitetura atual. Porm a obra de SantElia no

    pode ser considerada como arquitetnica, pois, constituda de representaes

    bidimensionais, apenas projeto no executado e, arquitetonicamente, obras marginais. Logo,

    produo arquitetnica necessita diretamente da inverso de grandes capitais.

    A arquitetura facilmente se enquadra na definio de mercadoria espetacular, pois

    apesar de ser uma obra artisticamente conceituada, depende de capital. Logo simples

    mercadoria do modo de produo capitalista. Ainda que no seja uma mercadoria venda nas

    lojas de departamento, trata-se de um produto que antes era socialmente compreendido como

    algo puramente esttico, e que, agora, posto na condio de mercadoria consumida como

    mediao.

    5. O PROCESSO DO CONSUMO SOCIAL DA ARQUITETURA COMERCIAL

    A arquitetura no poderia simplesmente ser definida como mercadoria, porm ela se

    enquadra perfeitamente na definio de mercadoria espetacular.

    Sendo o espetculo a escolha feita na produo e seu consumo corolrio, ou seja, o

    consumo no s do produto em si, mas de todas as informaes provenientes dele, podemos

    pensar a arquitetura contempornea como produo e no simplesmente a partir de um carter

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    ideal que a tornasse objeto de fruio esttica. Teremos que pens-la como a produo de

    um objeto, que, entrando no sistema econmico, passa a existir como valor-de-troca.

    Tanto a arquitetura institucional, as sedes para abrigar empresas privadas, como as

    construes para as elites, entre projetos residncias e comerciais, representam uma grande

    inverso de capital, seja por seus acabamentos ou por suas opes funcionais e estticas e esta

    possibilidade de opes nos remete ao modo de produo capitalista. E o prprio projeto

    arquitetnico, por sua vez, estabelece uma rgida hierarquia profissional que se mostra no

    canteiro de obras, com toda uma diviso social do trabalho entre arquitetos, mestre-de-obras e

    pedreiros. Alm disso, o material utilizado quase sempre o produto transformado pela

    produo industrial: argamassa, tijolos, concreto, peas cermicas, esquadrias etc. Encontra-

    se, em cada canteiro de obras arquitetnicas, uma indstria de dimenses razoveis. Sendo

    assim encontramos uma natureza da arquitetura como produo industrial, o que equivale a

    dizer que, de certa forma, a arquitetura pode ser considerada uma mercadoria.

    Debord, em seu texto sobre a mercadoria espetacular salienta que cidade ao mesmo

    tempo o lugar, o instrumento e o teatro dramtico da civilizao do capital, e, neste ponto,

    debruou-se a questo do urbano. Para ele a cidade, que j foi objeto de fruio por parte de

    estetas modernos, retirando algum prazer na contemplao ativa de objetos arquitetnicos no

    panorama social at o sculo XIX, hoje se apresenta como mercadoria espetacular e coloca

    em questo a existncia de um novo personagem urbano, o espectador. Aquele que

    passivamente contempla a cidade tornada mercadoria do espetculo o faz, como aquele que,

    diante de um aparelho de televiso, contempla as imagens de um evento esportivo cujo fim

    no o evento em si, mas os gadgets e demais produtos que se estabelecem na longa cadeia

    de consumo das imagens produzidas por ele.

    Um exemplo de produto espetacular confere sentido ao museu Guggenheim em

    Bilbao. No possvel pens-lo to somente como arte se analisadas as estratgias

    geopolticas das cidades europias neste sculo. O museu faz parte de uma poltica econmica

    e sendo assim compreende-se a arquitetura de Frank O. Gehry. No site oficial do museu

    encontramos o texto que ressalta : O projeto de instalar em Bilbao uma sede do Museu

    Guggenheim de Arte Moderna e Contempornea deve ser inscrito em uma moldura precisa: as

    intervenes lanadas pelas administraes bascas para revitalizar a estrutura econmica do

    Pas Basco e sustentar a ambio de colocar o centro metropolitano de Bilbao no corao do

    eixo Atlntico. Entre as motivaes no encontramos a arquitetura em si e sim a arquitetura

    como veculo para cadeia do espetculo. O motivo a poltica de revitalizao econmica e

    no os princpios estticos. Esta poltica inclusive justifica a obra do arquiteto americano, uma

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    vez que no caberia nada alm de sua obra com arquitetura espetacular e miditica para este

    fim. A imagem do museu vira o capital.

    Assim encontramos a arquitetura comercial como produto a ser consumido e no s

    suporte para consumo. Uma loja pode ser projetada e construda, gerando indstria e

    necessitando da inverso de capital, ser publicada em revistas especializadas, e ser consumida

    por leigos e profissionais, ainda poderia tornar-se imagem icnica em algum filme, poderia

    ser a tela de projeo para imagens de algum outro monumento em algum evento, e quando se

    tornar obsoleta por sua localizao ainda pode gerar a necessidade de outra edificao nova e

    todo processo de consumo novamente.

    A cidade grande o grande cenrio da modernidade, que comea a ser planejada

    arquitetnica e urbanisticamente a partir do sculo XIX. As caractersticas fundamentais dos

    moradores destes novos centros urbanos desde aquela poca vm sendo : o individualismo e a

    ausncia de laos comunitrios.

    J naquele sculo, o escritor Baudelaire, ressaltava a submisso da arte, no seu caso a

    literatura, em relao ao mercado. Em sua obra, ele identifica e descreve a cidade atravs de

    cenas cotidianas, e nesse contexto que surge o flneur, um ser que perambula pela cidade e

    se perde na massa annima.

    Atravs do olhar do flneur, pelos caminhos da cidade que ele percorre, vemos no

    somente o que v, mas o que construmos a partir do que ele mostra. Entre os lugares que ele

    freqenta, est o mercado onde vai observar as modas. Mais que observ-las, nelas ele

    constata o encontro entre o novo e o velho. Pois e ao mesmo tempo em que a moda o motivo

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    que a mercadoria-fetiche encontra para ser adotada, tambm nela que vemos a ao do

    tempo, a busca pelo atual.

    6. ESTUDO DE CASO: RUA PADRE CHAGAS

    O espao arquitetnico e da cidade quando bem planejado ou apropriado, tem o poder

    de incluir ou excluir fatias populacionais com interesses prximos em determinadas

    atividades. Atravs das formas do projeto, dos materiais, do conforto trmico, dos

    acabamentos o arquiteto pode alcanar variadas intenes de projeto, criar as mais diversas

    reflexes. O projeto bem sucedido aquele onde se consegue captar algo do imaginrio da

    populao que ir conviver com ele depois de pronto.

    Podemos destacar o bairro Moinhos de Vento em Porto Alegre como exemplo de

    bairro marcado pela seleo social a partir da arquitetura, tanto das lojas como aspectos

    paisagsticos da rua. possvel nele tambm estudar a obsolescncia destes padres seletores

    e a necessidades de revitalizaes internas para no perder o publico almejado e conquistado

    por tais caractersticas.

    A rua Padre Chagas, localizada no corao do bairro Moinhos de Vento, em Porto

    Alegre, pode ser considerada um shopping a cu aberto e por outro parmetro apresenta

    caractersticas alienantes de um cassino temtico. Transforma o espao urbano atravs de

    simbolismos em espao prprio para os de poder aquisitivo. Podemos encontrar at elementos

    decorativos sem nenhuma funo arquitetnica original, mas com necessidade apenas como

    presena de decoraes j existentes no imaginrio coletivo desta classe.

    Nesta rua podemos identificar claramente a fuso entre a imagem e o real, o

    cenogrfico e o verdadeiro. Utilizada para levar a crer na cidade do espetculo, numa

    estilizao superficial e apropriao das caractersticas arquitetnicas existentes no bairro,

    como o casario antigo e as ruas arborizadas, em prol dos lucros e benefcios. Torna-se local

    prprio para consumo, porm valorizando o contexto cotidiano e a imagem do conjunto

    residencial que lhe agrega ar de rua temtica, onde o tema seria uma rua de um bairro

    charmoso.

    O bairro, dentro de uma classificao entre os bairros desta cidade, pode ser

    reconhecido como o bairro residencial da elite porto alegrense desde o incio do sculo XX.

    Nele encontra-se um conjunto arquitetnico dividido entre casares predominantemente

    eclticos, alm de outros exemplares da arquitetura moderna que so considerados patrimnio

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    da cidade. Diversas destas edificaes esto listadas e protegidas pela legislao municipal

    para preservao como patrimnio histrico e cultural. Esses exemplares arquitetnicos so

    assumidos, tanto pela municipalidade como por rgos como associao de moradores, como

    smbolo e caracterstica principal desta rea, isto que lhe agrega charme.

    Lado a lado a estas edificaes, permeando todo o tecido urbano do bairro,

    encontramos edificaes atuais, seguindo desde o estilo neoclssico ao moderno e assumindo

    modismos funcionais e estticos caractersticos da comercializao de imveis para

    consumidores de alta renda.

    O grande aumento deste tipo de edificao no bairro se deu no ano de 1999 devido a

    vigncia de um novo plano diretor, atravs do qual houve mudanas no potencial construtivo

    e a conseqente verticalizao de suas edificaes.

    A rua Padre Chagas concentra um dos melhores plos de servios, compras,

    gastronomia, entretenimento e lazer de Porto Alegre. O bairro, por seu casario, tranqilidade,

    segurana e opes de lazer lembra uma cidade desacelerada em relao ao resto da capital.

    Isso interfere nas condies de vida de sua populao.

    O comrcio do bairro, na grande maioria dos empreendimentos, tem a inteno e porte

    para atender a todo o municpio e no s a populao local. Estes consumidores caracterizam-

    (16) Edificaes novas

    permeando tecido urbano

    conservado

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    se em sua maioria como jovens, de alto poder aquisitivo, com alta escolaridade e nvel

    cultural elevado.

    O bairro, dentro do panorama geoeconmico de Porto Alegre propicia o comrcio de

    luxo e pblico alvo de alto padro social, no s por suas prprias caractersticas econmicas

    como por sua localizao entre outros bairros com populao de alto poder aquisitivo. Alm

    disso, possui fcil acesso e completa rede de transporte pblico.

    A rua Padre Chagas, o foco do estudo, est localizada no corao do bairro e divide

    sua ocupao entre usos comerciais e residenciais. Caracteriza-se por seus passeios pblicos

    arborizados e ocupados parcialmente por mesas pertencentes a restaurantes e cafs. Os

    casares antigos, que em alguns quarteires so encontrados lado a lado, muitas vezes

    restaurados e ocupados de maneira a respeitar a sua arquitetura, lembram ruas europias,

    atingindo em cheio um pblico interessado em fugir dos problemas urbanos de nossas grandes

    cidades. A rua possui o apelido de calada da fama entre os moradores da capital.

    Rendimento mdio, em salrios mnimos (SM), dos responsveis por domiclios

    dos bairros de Porto Alegre 2000 (censo IBGE).

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    Em qualquer empresa o investimento na imagem se tornou to importante quanto o

    realizado em pesquisa ou maquinrio. Na organizao espacial das cidades, a importncia das

    imagens vem, cada vez mais, ganhando a mesma fora que no campo empresarial. A indstria

    do patrimnio histrico um exemplo de um comportamento empresarial aplicado

    urbanidade. Aponta para a tematizao e explorao de caractersticas naturais da cidade

    como gatilho para definio da imagem local, operao tambm chamada por citymarketing.

    Nesse contexto, e analisando a forte imagem que a rua Padre Chagas e o Bairro

    Moinhos de Vento possuem dentre a populao local, podemos chegar ao cerne da campanha

    para transformar a rua na calada da fama. Imagem alavancada pelo prprio comrcio, na

    busca pelos consumidores com estilo de vida ligado ao consumo, moda e beleza. Podemos

    afirmar assim, que a inscrio da rua Padre Chagas no mundo do turismo e do consumo lhe

    confere uma imagem planejada pelo marketing, cuja estratgia tornar visvel a convivncia

    harmnica entre os elementos da cultura tradicional (pela espetacularizao dos prdios

    histricos e ruas arborizadas) e os signos da modernidade (pela integrao de seu comrcio ao

    mercado mundial de artigos de luxo).

    Mapa do bairro

    com destaque na

    cor vermelha

    para as ruas de

    maior

    concentrao

    comercial.

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    (01) (02)

    (01) Detalhe da placa de obra, ano de 2003, sinalizado a construo de uma nova

    edificao. (02) Detalhe do empreendimento j pronto, ainda no ano de 2003.

    (03)

    (03) Foto atual com loja j instalada. Chamo a ateno para a tentativa de seguir linhas

    historicistas em edificao datada de 2003. Apesar do recuo de ajardinamento, necessrio

    por ser uma edificao nova, o prdio assemelha-se a uma edificao restaurada. Isso

    demonstra a preocupao com imaginrio criado sobre a rua. O prdio ento torna-se

    cenrio na tentativa de satisfazer este imaginrio.

    O consumo deste tecido urbano proveniente de meados do ltimo sculo e com bom

    estado de conservao e bela arborizao entra diretamente na cadeia do consumo do produto

    espetacular. A rua ento moda dentre os moradores da cidade, ajuda a vender a imagem de

    suas lojas sofisticadas, para os mesmos moradores desta cidade, e as lojas, por sua vez,

    vendem os produtos que sustentam a industria da moda na capital.

    Assim podemos observar nas ruas do bairro e em principal na rua em destaque na

    pesquisa, rituais tpicos do ver e ser visto (flaneur) do consumo conspcuo, no s pelo

    poder do objeto signo a ser adquirido, mas tambm pelo status do local de compra e

    mecanismo de procura deste objeto para consumo.

  • 14

    O maior segredo envolvido neste sistema de inter-relao e dependncia entre rua,

    comrcio e consumidor, como este tringulo, calado sobre a base da efemeridade, continua

    com ares e potncia de novidade aps uma dcada de sua ascenso exatamente como tal.

    Pegamos para analise de datas e dados as lojas de vesturio feminino da rua Padre

    Chagas. Atravs dos dados coletados e analisados no grfico abaixo,notamos que dentre a

    amostra, num total de 16 lojas, apenas uma tem como ano de abertura uma data anterior ao

    ano 2000. E dentre a mesma amostra, 30% das lojas foram instaladas no ano de 2005. Porm,

    no constatamos uma variao significativa no nmero total de lojas instaladas na rua, o que

    sugere que no lugar onde foram abertas lojas nos ltimos anos j havia lojas que fecharam ou

    mudaram de endereo. Esta contnua renovao interna rua, esta movimentao de

    endereos e novas lojas podem conferir frescor ao seu comrcio interno.

    0

    1

    2

    3

    4

    5

    Numero de lojas instaladas

    Anteriores a 2000

    2000

    2001

    2002

    2003

    2004

    2005

    2006

    2007

    7. CONCLUSO

    Num tempo onde a construo de identidades e reconhecimento social dos indivduos,

    cada vez mais, tem relao com suas prticas de consumo, a dimenso simblica se

    transforma numa necessidade vital existncia humana. Assim os indivduos desenvolveram

    formas complexas de utilizar os objetos para produzir sentido, se identificarem e se

    relacionarem socialmente atravs deles.

    Frente a essa concluso conceitual, a tentativa de caracterizao de estilos de vida de

    uma determinada populao, como o caso dos residentes e freqentadores do Bairro

    Moinhos de Vento, passa pela mercadorizao do prprio espao urbano como bem de

    consumo. Sua espetacularizao comunica os padres de consumo e abordagem cultural de

    seus usurios.

    Pode-se dizer que a seletividade social sempre esteve implcita na campanha de

    marketing promovida pelos comerciantes do Moinhos de Vento, ao apostar na criao de um

    estilo de vida prprio do habitante e freqentador de um bairro impar, a Calada da Fama.

    Tanto sua localizao dentro da cidade (prximo a bairros de alta renda), como suas

    Numero de lojas

    instaladas no

    Bairro Moinhos

    de Vento de

    acordo com o

    ano.

  • 15

    caractersticas naturais (arborizao conservada) e construdas (seus casares remanescentes),

    contribuem para o enobrecimento da rea e a conseqente seleo de seus usurios.

    Apontamos para a maior das marcas vendidas pela rua e bairro: a marca Calada da

    Fama. atrado por este ttulo, e pela mensagem conseqente, lugar de gente bonita, que o

    comerciante hoje, se submete a pagar os altos aluguis a fim de se instalar na rua Padre

    Chagas. tambm esta estratgia de marketing que atrai o pblico, o flneur, que faz do

    passeio por este espao, um exerccio de lazer e entretenimento. Apesar disso, este endereo

    no uma garantia de sucesso e lucros.

    Para estar instalado em uma rua, que vende seu espao sob o signo da moda, beleza e

    fama, o estabelecimento comercial necessita, em primeira instncia, atender este pblico e seu

    imaginrio. Estas lojas esto submetidas ao julgamento de um pblico, que alm de ser

    acostumado com obsolescncias recorrentes e famintos por novidades estticas e tecnolgicas,

    possui conhecimento e alto nvel de exigncia.

    a submisso deste comrcio ao novo ethos social que traz a necessidade de

    renovaes constantes no ponto de venda. a possibilidade da loja estar sempre sendo

    consumida como produto espetacular.

    Assim, encontramos um sistema de renovaes constantes e interdependentes: a rua se

    torna moda travs de campanha de marketig, esta campanha atrai lojas que vendem produtos

    submetidos a obsolescncias rotineiras, estes produtos por sua vez, atraem um pblico

    acostumado com mudanas e em busca de constantes novidades. Assim, estes pontos

    comerciais acabam utilizando-se de renovaes arquitetnicas e decorativas para manter a

    vitalidade e interesse. Essas peridicas mudanas, que ocorrem tanto na troca de proprietrios

    (comum devido aos altos alugueis) como em reformas de lojas ou modificaes em seus

    atendimentos, traz ares constantes de inovao e frescor para rua e bairro.

    Analisando as entrevistas com os gerentes das lojas da rua Padre Chagas,

    identificamos semelhanas no s em suas caractersticas arquitetnicas, mas tambm em sua

    estratgia de atendimento, o que interfere no leiaute desses pontos de venda.

    Considerando as datas das reformas dessas lojas e as caractersticas arquitetnicas por

    elas adotadas, constatamos uma tendncia, localizada no perodo temporal dos ltimos cinco

    anos. Encontramos a busca pela cor branca no mobilirio e demais acabamento, linhas retas e

    puras tanto em sua configurao interna como externa. Isto estaria ligado diretamente ao

    pblico atendido e ao grupo cujo estilo de vida almejado para consumidor. Um pblico que

    busca sofisticao e requinte disfarados de desprendimento.

  • 16

    No leiaute dessas lojas encontramos a tentativa de envolver o consumidor em um jogo

    de troca de sentidos no ato de comprar. A imagem da inteno de venda passa a ser

    sufocada, e ressaltada a seduo atravs do atendimento diferenciado. Notamos a relao

    entre consumidor e vendedor como entre iguais, uma relao amigvel onde a venda

    disfarada por conversas a respeito de assuntos da rotina desse pblico. Este tipo de

    comportamento estimulado, na arquitetura dessas lojas, atravs de reas de estar que

    permeiam os expositores de produtos.

    Notamos ainda a constante preocupao com as decises projetuais tomadas em lojas

    da Europa e Estados Unidos. Sazonalmente, gerentes e proprietrios das lojas do bairro,

    viajam ao exterior em busca da linguagem adotada pelos lojistas estrangeiros em relao

    disposio dos produtos, cores e iluminao das lojas. Esta preocupao estimulada devido

    ao pblico freqentador do bairro ter como caracterstica o gosto por viagens e consumo de

    mdia (revistas) estrangeira.

    Em meio a todas as transformaes de um perodo de globalizao, a cidade e a sua

    arquitetura passam a ser tambm protagonistas na discusso sobre a Ps-modernidade. Ela

    no pode ser afastada destas transformaes uma vez que tambm cultura. Esta por sua vez,

    alm de uma espcie de extenso da economia, passou a ser encarada como uma mercadoria,

    passvel de ser vendida e comprada, como qualquer objeto ou servio. Assim, a arquitetura,

    acaba sendo juntamente com todas as outras mercadorias espetaculares, expostas

    velocidade e tica da moda.

  • 17

    8. REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS

    BAUDRILLARD, Jean. Para uma crtica da economia poltica do signo.

    Paris:Gallimard, 1972.

    DEBORD, Guy. A sociedade do espetculo, Paris:Buhet-Chastel, 1967. Disponvel

    em: < http://www.ebooksbrasil.com/eLibris/socespetaculo.html> , acessado em 30 de junho

    de 2007

    FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e ps-modernismo. So

    Paulo:Studio Nobel, 1995.

    LIPOVETSKY, Gilles. O imprio do efmero: a moda e seu destino nas sociedades

    modernas. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.