MODA E LÓGICA DA OBSOLESCÊNCIA NA … · A partir da segunda metade do século XX, a aceleração...
Transcript of MODA E LÓGICA DA OBSOLESCÊNCIA NA … · A partir da segunda metade do século XX, a aceleração...
-
1
MODA E LGICA DA OBSOLESCNCIA NA ARQUITETURA COMERCIAL DE
PORTO ALEGRE ESTUDO DE CASO
Camila Blatt Mirapalhete
1. INTRODUO
Dos campos do conhecimento humano a arquitetura talvez seja o mais presente no
espao da convivncia coletiva e individual. Ao longo da histria da humanidade
transformou-se em pea fundamental na formao do habitat da espcie, isso na construo
das cidades e na exposio dos cidados s suas prticas e concepes. Ela se comunica com
seus usurios permanentemente, de forma no verbal, porm vvida e influenciadora.
A casa, o abrigo, uma necessidade bsica do ser humano. Fundamental para sua
sobrevivncia. Atende a necessidade de estar bem protegido, seguro. Porm, alm do abrigo, a
espcie humana encontrou o lar e, a partir da, j no sendo somente resposta a necessidades,
a arquitetura passa a ser um objeto de desejo. Nestes anseios a humanidade sempre procura o
belo, mesmo que este belo seja um conceito passageiro.
Estando ela hoje sendo edificada em meio a uma nova civilizao, onde as trocas
simblicas representam no mais um artifcio da indstria e sim um modus operandi, uma
civilizao que no mais consome o que a indstria simplesmente produz, mas sim a
informao que este produto gera, a arquitetura acaba entrando num novo processo de
consumo. Ela pertence ao grupo das mercadorias da sociedade espetacular, onde a busca
por novas experincias deixa de lado a tradio enquanto a possibilidade de escolha gera um
homem muito mais volvel, flexvel e at sedento por contnuas mudanas. E nesta eterna e
cada vez mais rpida procura pelo novo, pelo atual e em alguns casos pelo fashion, que a
moda, em sua efemeridade, passa a reger o comportamento humano e seus frutos, seu palco e
finalmente sua arte, arquitetura e cidade.
Por isso, o estudo de como uma populao entende e se apropria do espao
arquitetnico se torna fundamental. de extrema importncia saber quais as mensagens do
arquiteto e qual a leitura feita pelo usurio, qual o impacto desta obra no bairro ou cidade e
finalmente, qual o prazo de validade dado pelo fenmeno da moda para a mudana no modo
de percepo deste usurio a respeito do espao projetado. Tendo em vista esses parmetros
surge a indagao maior e aqui tomada como questo-problema, objeto de estudo: seria a
-
2
arquitetura, em sua dimenso local e urbana, utilizada como palco para o fenmeno da moda,
tambm sujeita as suas obsolescncias e necessidade de substituies?
Para confirmar a hiptese, utilizou-se os projetos comerciais da rea hoje mais
submetida a tais padres na cidade de Porto Alegre: a Rua Padre Chagas no Bairro Moinhos
de Vento.
Este trabalho se divide entre pesquisa bibliogrfica, onde mais profundamente so
estudados os fenmenos sociais, e a coleta de dados. A escolha da Rua Padre Chagas abre a
possibilidade de exemplificar a interferncia das prticas capitalistas sobre a apropriao do
espao arquitetnico em sua esfera macro, abordando uma rua que h mais de uma dcada se
mantm como endereo da moda na capital gacha, e em sua escala micro, nas lojas que so
constantemente reformadas e modificadas ou substitudas por novos estabelecimentos
comerciais com mesmo perfil, produto e pblico alvo. Analisar uma fatia da cidade possibilita
tambm observar as prticas deste morador ou usurio, sua identificao com o lugar e sua
motivao de uso, sua relao enfim, com a moda e suas conseqncias.
2. ELEMENTOS CONCEITUAIS DA DEFINIO DE MODA
A moda, atual fenmeno de reproduo social, ajuda a revelar comportamentos tanto
na esfera individual como coletiva. Ao contrrio do que possa parecer, ela no suprime
identidades, mas ajuda a apont-las. um fenmeno que ergue-se sobre a novidade, o
consumo e a ritualidade. Na velocidade da mdia, uma moda rende outra. Fenmeno de
massas, o poder de escolha da classe mdia torna-se a iluso de livre escolha das classes
inferiores.
No lanamento de novas tecnologias, com o valor agregado que nelas vem embutido,
apenas aquele com alto poder aquisitivo pode se tornar consumidor. As novidades
tecnolgicas no caso da arquitetura no dizem respeito apenas s novidades decorativas e
possveis de serem questionadas como necessidade. Novas tecnologias podem ser encontradas
nas necessidades construtivas, porm por seu valor de troca, transformam-se em objeto de
distino social.
A partir da segunda metade do sculo XX, a acelerao do capitalismo, o aumento do
consumo, o avano e as novas descobertas tecnolgicas, impuseram a necessidade de novas
reflexes acerca do fenmeno. Durante muito tempo a questo da moda viu-se atrelada idia
especfica de distino de classes sociais. Certamente, a roupa e outras manifestaes, como a
arte e a arquitetura, podem assumir essa funo distintiva. Alm disso, nos mostra a
-
3
possibilidade de expressar signos atravs de invlucros e a atual liberdade de escolha e
individualidade dos cidados.
Na arquitetura podemos entender sua utilizao como diferenciadora e identificadora
desde quando o homem passa a apropriar-se no mais do ambiente natural como casa.
Podemos identificar a adoo de elementos estticos e ornamentos em residncias j nas vilas
romanas, onde era comum a adoo de colunas nas fachadas residenciais, com sentido de
diferenciao e demarcao de classe.
Conforme afirma Lipovestsky, no podemos falar em moda nas sociedades tribais,
antigas e medievais. De uma maneira variada, predomina nestas o valor atribudo
permanncia, tradio. Fato decisivo que impede a formao do gosto pela mudana, da
exaltao ao tempo presente e da legitimao da ao individual sobre o mundo. A diviso do
trabalho no modo de produo capitalista em toda sua extenso, aspectos econmicos, sociais,
poltico e culturais, so a base social mais profunda e essencial do processo de
individualizao.
2.1 A moda segundo Baudrillard o objeto-signo
A arma para possibilitar e manter as relaes de consumo e diferenciao social
intitulada por Baudrillard, como o objeto-signo.
O valor encontrado no objeto-signo no est to somente em seu valor de uso e nem
no seu simbolismo, mas sim nas caractersticas que o diferenciam dos demais objetos, o que
conferiria ao seu usurio os mesmos atributos. por causa do que representa que o objeto
consumido, por sua capacidade de qualificar e diferenciar o consumidor, por seu poder de
agregar status. As mercadorias so sempre e imediatamente produzidas como signos e,
inversamente, os signos so sempre e imediatamente produzidos como mercadoria.
Neste novo sistema comportamental, a moda aparece como rtulo e timer nesse
processo de reduo semiolgica que culmina no consumo do objeto-signo.
O modelo nada mais que a forma original, algo passvel de cpia e disposto na forma
perfeita, uma inspirao. O modelo ento, que antecede srie, serve a uma pequena minoria,
enquanto a larga camada social liga-se, devido aos signos estabelecidos, s reprodues em
larga escala deste prottipo. A arquitetura comercial um dos mecanismos utilizados para a
rotulao de um produto ou marca. O projeto do ponto de venda pode definir o pblico alvo
atravs das informaes no verbais passadas por seu design, iluminao e de todas as suas
decises projetuais. Pode transformar um produto em exclusivo, ou popular, utilizando-se
apenas de mensagens subliminares como a quantidade de produtos expostos.
-
4
O consumo do signo, como tambm forma de comunicar a personalidade de quem
consome, vem sempre cercado do ver e ser visto. No s as vestimentas comunicam, mas
tambm o lugar que freqentado e a forma de se apropriar do espao.
2.2 A moda segundo Gilles Lipovetsky Satisfao Pessoal
Para Lipovetsky o aumento do nmero de ofertas possibilitou uma maior possibilidade
de escolhas. Existe um estmulo ao autoconhecimento, pesquisa de gostos pessoais,
costumes, personalidade e opo por caminhos mais individuais, com escolhas mais relativas
s prprias caractersticas. Para ele, a qualidade mais atrativa no bem de consumo o seu
valor de uso, apenas aliado a sua imagem, esta vindo apenas como complemento. Os
interesses individuais como a sensao, o hedonismo e a autonomia preponderam sobre as
preocupaes com o social.
Sendo assim, o valor de uso que liga o indivduo s coisas, e no seu valor
simblico. Porm, como o uso e a obsolescncia na sociedade de consumo atual se d em
ritmo acelerado, as escolhas mudam constantemente. justamente esta hiperescolha, as
mltiplas opes de seduo, aliada a inconstncia que geram o processo da moda e o
constante descarte daquilo que foi h pouco eleito como indispensvel.
Poderamos explicar assim, por exemplo, a multiplicidade de estilos no design de
mobilirios existente hoje disposio, e a substituio freqente por novas peas. Isso gera
um mercado da decorao com espao para ruas especializadas no assunto, reunindo um
elevado nmero de lojas lado a lado.
2.3 A moda segundo Mike Featherstone O estilo de vida
Conforme o autor, trs linhas distintas (econmica, sociolgica e psicolgica) regem o
conceito de cultura do consumo. A primeira a concepo de que a cultura de consumo tem
como premissa a expanso da produo capitalista das mercadorias, que originou a uma vasta
acumulao de cultura material na forma de bens e locais de compra e consumo. Em segundo
lugar, h a concepo mais estritamente sociolgica onde a satisfao e o status dependem da
exibio e da conservao das diferenas. Sob esta linha, pessoas usam as mercadorias para
criar vnculos ou distines sociais. E em terceiro lugar, a questo psicolgica, que
considera os prazeres emocionais, sonhos e desejos do imaginrio cultural consumista,
produzindo diversos tipos de excitao fsica e prazeres estticos.
Featherstone trata a cultura de consumo como o lugar onde o individuo expressa-se,
seja atravs da roupa, do carro, do local de consumo, dos comportamentos que adota e das
-
5
opes que faz. Desta forma esta cultura denota individualidade e auto-expresso e
identificao com um estilo de vida.
O local de consumo diz muito sobre o consumidor e coloca-o dentro de um grupo
diferenciado de pessoas que em determinado momento possuem a mesma preferncia ou
hbito. Se analisarmos o comportamento de diversas pessoas que transitam em diferentes
tardes pela rua Padre Chagas do Bairro Moinhos de Vento, encontraremos hbitos e
preferncias muito prximas. Estas semelhanas de hbitos os colocam em determinado grupo
com o mesmo estilo de vida. interessante porm, analisar at que ponto todas as pessoas que
participam destes rituais realmente possuem este estilo de vida ou apenas o admiram e
almejam.
Deste modo a popularizao de endereos da moda pode ser fatal para sua concepo
como tal. Para que uma rua ou rea da cidade permanea em evidncia entre o mesmo grupo
de pessoas e no seja invadido por aquelas que tem como inteno se apropriar do mesmo
estilo de vida, seria necessrio o equilbrio entre o ostracismo e a divulgao destes pontos de
venda, aliado a constante manuteno interna destas lojas.
O termo ps-modernismo se apia na negao do moderno, no afastamento percebido
das caractersticas decisivas do moderno.. Novas formas de tecnologia e informao tornam-
se fundamentais para a passagem de uma ordem social produtiva para uma reprodutiva, na
qual as simulaes e modelos cada vez mais constituem o mundo, de modo a apagar a
distino entre realidade e aparncia.
3. OBSOLESCNCIA, CONSUMO E MODA
notrio que com o passar dos dias aceleramse as inovaes tecnolgicas em todas
as reas produtivas. Essa introduo de novos bens de consumo e servios de extrema
importncia para a economia de um modo geral: para o consumidor final, indstria e
comrcio.
A moda uma das prticas chave para este sistema de dependncia economia-
comportamento. Muitas vezes, quando finalmente uma pessoa aprende a aceitar o uso de
determinado modelo tecnolgico, o mesmo se torna obsoleto quando h o lanamento de uma
nova tendncia no trimestre seguinte, muito mais avanada e socialmente aceita. E atravs
disso que sobrevive a indstria da moda, garantindo sua continuidade com sua efemeridade
interna.
-
6
Guy Debord criou a definio sociedade do espetculo para intitular o mesmo
fenmeno j definido como sociedade de consumo, sociedade da abundncia, ps-
moderna ou miditica. Este novo ttulo, segundo o autor, relaciona-se diretamente
etimologia da palavra latina espectaculum, que significa ao mesmo tempo, vista e aspecto
de um ser e ainda jogos pblicos. Estes dois significados resumem o conceito do autor: as
relaes que se do entre o que visto coletivamente com o que vivido particularmente. A
sociedade do espetculo produziria bens no com a finalidade de saciar as necessidades de
seus cidados, mas com o objetivo de acumular capital. Esta teoria amplia a imagem de
mercadoria-fetiche, aquela que contemplada nas vitrines, para a mercadoria espetculo,
cuja utilidade residiria somente nesta sua contemplao.
4. ARQUITETURA COMERCIAL COMO MODA
A arquitetura, desde os primrdios da civilizao e mais atualmente, desde a ascenso
do modo de produo capitalista, sempre serviu de meio de representao das civilizaes ou
sistemas sociais hegemnicos.
Poderia se afirmar que o arquiteto italiano Antnio SantElia, na dcada de 20,
realizou uma obra vasta e fundamental para a arquitetura atual. Porm a obra de SantElia no
pode ser considerada como arquitetnica, pois, constituda de representaes
bidimensionais, apenas projeto no executado e, arquitetonicamente, obras marginais. Logo,
produo arquitetnica necessita diretamente da inverso de grandes capitais.
A arquitetura facilmente se enquadra na definio de mercadoria espetacular, pois
apesar de ser uma obra artisticamente conceituada, depende de capital. Logo simples
mercadoria do modo de produo capitalista. Ainda que no seja uma mercadoria venda nas
lojas de departamento, trata-se de um produto que antes era socialmente compreendido como
algo puramente esttico, e que, agora, posto na condio de mercadoria consumida como
mediao.
5. O PROCESSO DO CONSUMO SOCIAL DA ARQUITETURA COMERCIAL
A arquitetura no poderia simplesmente ser definida como mercadoria, porm ela se
enquadra perfeitamente na definio de mercadoria espetacular.
Sendo o espetculo a escolha feita na produo e seu consumo corolrio, ou seja, o
consumo no s do produto em si, mas de todas as informaes provenientes dele, podemos
pensar a arquitetura contempornea como produo e no simplesmente a partir de um carter
-
7
ideal que a tornasse objeto de fruio esttica. Teremos que pens-la como a produo de
um objeto, que, entrando no sistema econmico, passa a existir como valor-de-troca.
Tanto a arquitetura institucional, as sedes para abrigar empresas privadas, como as
construes para as elites, entre projetos residncias e comerciais, representam uma grande
inverso de capital, seja por seus acabamentos ou por suas opes funcionais e estticas e esta
possibilidade de opes nos remete ao modo de produo capitalista. E o prprio projeto
arquitetnico, por sua vez, estabelece uma rgida hierarquia profissional que se mostra no
canteiro de obras, com toda uma diviso social do trabalho entre arquitetos, mestre-de-obras e
pedreiros. Alm disso, o material utilizado quase sempre o produto transformado pela
produo industrial: argamassa, tijolos, concreto, peas cermicas, esquadrias etc. Encontra-
se, em cada canteiro de obras arquitetnicas, uma indstria de dimenses razoveis. Sendo
assim encontramos uma natureza da arquitetura como produo industrial, o que equivale a
dizer que, de certa forma, a arquitetura pode ser considerada uma mercadoria.
Debord, em seu texto sobre a mercadoria espetacular salienta que cidade ao mesmo
tempo o lugar, o instrumento e o teatro dramtico da civilizao do capital, e, neste ponto,
debruou-se a questo do urbano. Para ele a cidade, que j foi objeto de fruio por parte de
estetas modernos, retirando algum prazer na contemplao ativa de objetos arquitetnicos no
panorama social at o sculo XIX, hoje se apresenta como mercadoria espetacular e coloca
em questo a existncia de um novo personagem urbano, o espectador. Aquele que
passivamente contempla a cidade tornada mercadoria do espetculo o faz, como aquele que,
diante de um aparelho de televiso, contempla as imagens de um evento esportivo cujo fim
no o evento em si, mas os gadgets e demais produtos que se estabelecem na longa cadeia
de consumo das imagens produzidas por ele.
Um exemplo de produto espetacular confere sentido ao museu Guggenheim em
Bilbao. No possvel pens-lo to somente como arte se analisadas as estratgias
geopolticas das cidades europias neste sculo. O museu faz parte de uma poltica econmica
e sendo assim compreende-se a arquitetura de Frank O. Gehry. No site oficial do museu
encontramos o texto que ressalta : O projeto de instalar em Bilbao uma sede do Museu
Guggenheim de Arte Moderna e Contempornea deve ser inscrito em uma moldura precisa: as
intervenes lanadas pelas administraes bascas para revitalizar a estrutura econmica do
Pas Basco e sustentar a ambio de colocar o centro metropolitano de Bilbao no corao do
eixo Atlntico. Entre as motivaes no encontramos a arquitetura em si e sim a arquitetura
como veculo para cadeia do espetculo. O motivo a poltica de revitalizao econmica e
no os princpios estticos. Esta poltica inclusive justifica a obra do arquiteto americano, uma
-
8
vez que no caberia nada alm de sua obra com arquitetura espetacular e miditica para este
fim. A imagem do museu vira o capital.
Assim encontramos a arquitetura comercial como produto a ser consumido e no s
suporte para consumo. Uma loja pode ser projetada e construda, gerando indstria e
necessitando da inverso de capital, ser publicada em revistas especializadas, e ser consumida
por leigos e profissionais, ainda poderia tornar-se imagem icnica em algum filme, poderia
ser a tela de projeo para imagens de algum outro monumento em algum evento, e quando se
tornar obsoleta por sua localizao ainda pode gerar a necessidade de outra edificao nova e
todo processo de consumo novamente.
A cidade grande o grande cenrio da modernidade, que comea a ser planejada
arquitetnica e urbanisticamente a partir do sculo XIX. As caractersticas fundamentais dos
moradores destes novos centros urbanos desde aquela poca vm sendo : o individualismo e a
ausncia de laos comunitrios.
J naquele sculo, o escritor Baudelaire, ressaltava a submisso da arte, no seu caso a
literatura, em relao ao mercado. Em sua obra, ele identifica e descreve a cidade atravs de
cenas cotidianas, e nesse contexto que surge o flneur, um ser que perambula pela cidade e
se perde na massa annima.
Atravs do olhar do flneur, pelos caminhos da cidade que ele percorre, vemos no
somente o que v, mas o que construmos a partir do que ele mostra. Entre os lugares que ele
freqenta, est o mercado onde vai observar as modas. Mais que observ-las, nelas ele
constata o encontro entre o novo e o velho. Pois e ao mesmo tempo em que a moda o motivo
-
9
que a mercadoria-fetiche encontra para ser adotada, tambm nela que vemos a ao do
tempo, a busca pelo atual.
6. ESTUDO DE CASO: RUA PADRE CHAGAS
O espao arquitetnico e da cidade quando bem planejado ou apropriado, tem o poder
de incluir ou excluir fatias populacionais com interesses prximos em determinadas
atividades. Atravs das formas do projeto, dos materiais, do conforto trmico, dos
acabamentos o arquiteto pode alcanar variadas intenes de projeto, criar as mais diversas
reflexes. O projeto bem sucedido aquele onde se consegue captar algo do imaginrio da
populao que ir conviver com ele depois de pronto.
Podemos destacar o bairro Moinhos de Vento em Porto Alegre como exemplo de
bairro marcado pela seleo social a partir da arquitetura, tanto das lojas como aspectos
paisagsticos da rua. possvel nele tambm estudar a obsolescncia destes padres seletores
e a necessidades de revitalizaes internas para no perder o publico almejado e conquistado
por tais caractersticas.
A rua Padre Chagas, localizada no corao do bairro Moinhos de Vento, em Porto
Alegre, pode ser considerada um shopping a cu aberto e por outro parmetro apresenta
caractersticas alienantes de um cassino temtico. Transforma o espao urbano atravs de
simbolismos em espao prprio para os de poder aquisitivo. Podemos encontrar at elementos
decorativos sem nenhuma funo arquitetnica original, mas com necessidade apenas como
presena de decoraes j existentes no imaginrio coletivo desta classe.
Nesta rua podemos identificar claramente a fuso entre a imagem e o real, o
cenogrfico e o verdadeiro. Utilizada para levar a crer na cidade do espetculo, numa
estilizao superficial e apropriao das caractersticas arquitetnicas existentes no bairro,
como o casario antigo e as ruas arborizadas, em prol dos lucros e benefcios. Torna-se local
prprio para consumo, porm valorizando o contexto cotidiano e a imagem do conjunto
residencial que lhe agrega ar de rua temtica, onde o tema seria uma rua de um bairro
charmoso.
O bairro, dentro de uma classificao entre os bairros desta cidade, pode ser
reconhecido como o bairro residencial da elite porto alegrense desde o incio do sculo XX.
Nele encontra-se um conjunto arquitetnico dividido entre casares predominantemente
eclticos, alm de outros exemplares da arquitetura moderna que so considerados patrimnio
-
10
da cidade. Diversas destas edificaes esto listadas e protegidas pela legislao municipal
para preservao como patrimnio histrico e cultural. Esses exemplares arquitetnicos so
assumidos, tanto pela municipalidade como por rgos como associao de moradores, como
smbolo e caracterstica principal desta rea, isto que lhe agrega charme.
Lado a lado a estas edificaes, permeando todo o tecido urbano do bairro,
encontramos edificaes atuais, seguindo desde o estilo neoclssico ao moderno e assumindo
modismos funcionais e estticos caractersticos da comercializao de imveis para
consumidores de alta renda.
O grande aumento deste tipo de edificao no bairro se deu no ano de 1999 devido a
vigncia de um novo plano diretor, atravs do qual houve mudanas no potencial construtivo
e a conseqente verticalizao de suas edificaes.
A rua Padre Chagas concentra um dos melhores plos de servios, compras,
gastronomia, entretenimento e lazer de Porto Alegre. O bairro, por seu casario, tranqilidade,
segurana e opes de lazer lembra uma cidade desacelerada em relao ao resto da capital.
Isso interfere nas condies de vida de sua populao.
O comrcio do bairro, na grande maioria dos empreendimentos, tem a inteno e porte
para atender a todo o municpio e no s a populao local. Estes consumidores caracterizam-
(16) Edificaes novas
permeando tecido urbano
conservado
-
11
se em sua maioria como jovens, de alto poder aquisitivo, com alta escolaridade e nvel
cultural elevado.
O bairro, dentro do panorama geoeconmico de Porto Alegre propicia o comrcio de
luxo e pblico alvo de alto padro social, no s por suas prprias caractersticas econmicas
como por sua localizao entre outros bairros com populao de alto poder aquisitivo. Alm
disso, possui fcil acesso e completa rede de transporte pblico.
A rua Padre Chagas, o foco do estudo, est localizada no corao do bairro e divide
sua ocupao entre usos comerciais e residenciais. Caracteriza-se por seus passeios pblicos
arborizados e ocupados parcialmente por mesas pertencentes a restaurantes e cafs. Os
casares antigos, que em alguns quarteires so encontrados lado a lado, muitas vezes
restaurados e ocupados de maneira a respeitar a sua arquitetura, lembram ruas europias,
atingindo em cheio um pblico interessado em fugir dos problemas urbanos de nossas grandes
cidades. A rua possui o apelido de calada da fama entre os moradores da capital.
Rendimento mdio, em salrios mnimos (SM), dos responsveis por domiclios
dos bairros de Porto Alegre 2000 (censo IBGE).
-
12
Em qualquer empresa o investimento na imagem se tornou to importante quanto o
realizado em pesquisa ou maquinrio. Na organizao espacial das cidades, a importncia das
imagens vem, cada vez mais, ganhando a mesma fora que no campo empresarial. A indstria
do patrimnio histrico um exemplo de um comportamento empresarial aplicado
urbanidade. Aponta para a tematizao e explorao de caractersticas naturais da cidade
como gatilho para definio da imagem local, operao tambm chamada por citymarketing.
Nesse contexto, e analisando a forte imagem que a rua Padre Chagas e o Bairro
Moinhos de Vento possuem dentre a populao local, podemos chegar ao cerne da campanha
para transformar a rua na calada da fama. Imagem alavancada pelo prprio comrcio, na
busca pelos consumidores com estilo de vida ligado ao consumo, moda e beleza. Podemos
afirmar assim, que a inscrio da rua Padre Chagas no mundo do turismo e do consumo lhe
confere uma imagem planejada pelo marketing, cuja estratgia tornar visvel a convivncia
harmnica entre os elementos da cultura tradicional (pela espetacularizao dos prdios
histricos e ruas arborizadas) e os signos da modernidade (pela integrao de seu comrcio ao
mercado mundial de artigos de luxo).
Mapa do bairro
com destaque na
cor vermelha
para as ruas de
maior
concentrao
comercial.
-
13
(01) (02)
(01) Detalhe da placa de obra, ano de 2003, sinalizado a construo de uma nova
edificao. (02) Detalhe do empreendimento j pronto, ainda no ano de 2003.
(03)
(03) Foto atual com loja j instalada. Chamo a ateno para a tentativa de seguir linhas
historicistas em edificao datada de 2003. Apesar do recuo de ajardinamento, necessrio
por ser uma edificao nova, o prdio assemelha-se a uma edificao restaurada. Isso
demonstra a preocupao com imaginrio criado sobre a rua. O prdio ento torna-se
cenrio na tentativa de satisfazer este imaginrio.
O consumo deste tecido urbano proveniente de meados do ltimo sculo e com bom
estado de conservao e bela arborizao entra diretamente na cadeia do consumo do produto
espetacular. A rua ento moda dentre os moradores da cidade, ajuda a vender a imagem de
suas lojas sofisticadas, para os mesmos moradores desta cidade, e as lojas, por sua vez,
vendem os produtos que sustentam a industria da moda na capital.
Assim podemos observar nas ruas do bairro e em principal na rua em destaque na
pesquisa, rituais tpicos do ver e ser visto (flaneur) do consumo conspcuo, no s pelo
poder do objeto signo a ser adquirido, mas tambm pelo status do local de compra e
mecanismo de procura deste objeto para consumo.
-
14
O maior segredo envolvido neste sistema de inter-relao e dependncia entre rua,
comrcio e consumidor, como este tringulo, calado sobre a base da efemeridade, continua
com ares e potncia de novidade aps uma dcada de sua ascenso exatamente como tal.
Pegamos para analise de datas e dados as lojas de vesturio feminino da rua Padre
Chagas. Atravs dos dados coletados e analisados no grfico abaixo,notamos que dentre a
amostra, num total de 16 lojas, apenas uma tem como ano de abertura uma data anterior ao
ano 2000. E dentre a mesma amostra, 30% das lojas foram instaladas no ano de 2005. Porm,
no constatamos uma variao significativa no nmero total de lojas instaladas na rua, o que
sugere que no lugar onde foram abertas lojas nos ltimos anos j havia lojas que fecharam ou
mudaram de endereo. Esta contnua renovao interna rua, esta movimentao de
endereos e novas lojas podem conferir frescor ao seu comrcio interno.
0
1
2
3
4
5
Numero de lojas instaladas
Anteriores a 2000
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
7. CONCLUSO
Num tempo onde a construo de identidades e reconhecimento social dos indivduos,
cada vez mais, tem relao com suas prticas de consumo, a dimenso simblica se
transforma numa necessidade vital existncia humana. Assim os indivduos desenvolveram
formas complexas de utilizar os objetos para produzir sentido, se identificarem e se
relacionarem socialmente atravs deles.
Frente a essa concluso conceitual, a tentativa de caracterizao de estilos de vida de
uma determinada populao, como o caso dos residentes e freqentadores do Bairro
Moinhos de Vento, passa pela mercadorizao do prprio espao urbano como bem de
consumo. Sua espetacularizao comunica os padres de consumo e abordagem cultural de
seus usurios.
Pode-se dizer que a seletividade social sempre esteve implcita na campanha de
marketing promovida pelos comerciantes do Moinhos de Vento, ao apostar na criao de um
estilo de vida prprio do habitante e freqentador de um bairro impar, a Calada da Fama.
Tanto sua localizao dentro da cidade (prximo a bairros de alta renda), como suas
Numero de lojas
instaladas no
Bairro Moinhos
de Vento de
acordo com o
ano.
-
15
caractersticas naturais (arborizao conservada) e construdas (seus casares remanescentes),
contribuem para o enobrecimento da rea e a conseqente seleo de seus usurios.
Apontamos para a maior das marcas vendidas pela rua e bairro: a marca Calada da
Fama. atrado por este ttulo, e pela mensagem conseqente, lugar de gente bonita, que o
comerciante hoje, se submete a pagar os altos aluguis a fim de se instalar na rua Padre
Chagas. tambm esta estratgia de marketing que atrai o pblico, o flneur, que faz do
passeio por este espao, um exerccio de lazer e entretenimento. Apesar disso, este endereo
no uma garantia de sucesso e lucros.
Para estar instalado em uma rua, que vende seu espao sob o signo da moda, beleza e
fama, o estabelecimento comercial necessita, em primeira instncia, atender este pblico e seu
imaginrio. Estas lojas esto submetidas ao julgamento de um pblico, que alm de ser
acostumado com obsolescncias recorrentes e famintos por novidades estticas e tecnolgicas,
possui conhecimento e alto nvel de exigncia.
a submisso deste comrcio ao novo ethos social que traz a necessidade de
renovaes constantes no ponto de venda. a possibilidade da loja estar sempre sendo
consumida como produto espetacular.
Assim, encontramos um sistema de renovaes constantes e interdependentes: a rua se
torna moda travs de campanha de marketig, esta campanha atrai lojas que vendem produtos
submetidos a obsolescncias rotineiras, estes produtos por sua vez, atraem um pblico
acostumado com mudanas e em busca de constantes novidades. Assim, estes pontos
comerciais acabam utilizando-se de renovaes arquitetnicas e decorativas para manter a
vitalidade e interesse. Essas peridicas mudanas, que ocorrem tanto na troca de proprietrios
(comum devido aos altos alugueis) como em reformas de lojas ou modificaes em seus
atendimentos, traz ares constantes de inovao e frescor para rua e bairro.
Analisando as entrevistas com os gerentes das lojas da rua Padre Chagas,
identificamos semelhanas no s em suas caractersticas arquitetnicas, mas tambm em sua
estratgia de atendimento, o que interfere no leiaute desses pontos de venda.
Considerando as datas das reformas dessas lojas e as caractersticas arquitetnicas por
elas adotadas, constatamos uma tendncia, localizada no perodo temporal dos ltimos cinco
anos. Encontramos a busca pela cor branca no mobilirio e demais acabamento, linhas retas e
puras tanto em sua configurao interna como externa. Isto estaria ligado diretamente ao
pblico atendido e ao grupo cujo estilo de vida almejado para consumidor. Um pblico que
busca sofisticao e requinte disfarados de desprendimento.
-
16
No leiaute dessas lojas encontramos a tentativa de envolver o consumidor em um jogo
de troca de sentidos no ato de comprar. A imagem da inteno de venda passa a ser
sufocada, e ressaltada a seduo atravs do atendimento diferenciado. Notamos a relao
entre consumidor e vendedor como entre iguais, uma relao amigvel onde a venda
disfarada por conversas a respeito de assuntos da rotina desse pblico. Este tipo de
comportamento estimulado, na arquitetura dessas lojas, atravs de reas de estar que
permeiam os expositores de produtos.
Notamos ainda a constante preocupao com as decises projetuais tomadas em lojas
da Europa e Estados Unidos. Sazonalmente, gerentes e proprietrios das lojas do bairro,
viajam ao exterior em busca da linguagem adotada pelos lojistas estrangeiros em relao
disposio dos produtos, cores e iluminao das lojas. Esta preocupao estimulada devido
ao pblico freqentador do bairro ter como caracterstica o gosto por viagens e consumo de
mdia (revistas) estrangeira.
Em meio a todas as transformaes de um perodo de globalizao, a cidade e a sua
arquitetura passam a ser tambm protagonistas na discusso sobre a Ps-modernidade. Ela
no pode ser afastada destas transformaes uma vez que tambm cultura. Esta por sua vez,
alm de uma espcie de extenso da economia, passou a ser encarada como uma mercadoria,
passvel de ser vendida e comprada, como qualquer objeto ou servio. Assim, a arquitetura,
acaba sendo juntamente com todas as outras mercadorias espetaculares, expostas
velocidade e tica da moda.
-
17
8. REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS
BAUDRILLARD, Jean. Para uma crtica da economia poltica do signo.
Paris:Gallimard, 1972.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetculo, Paris:Buhet-Chastel, 1967. Disponvel
em: < http://www.ebooksbrasil.com/eLibris/socespetaculo.html> , acessado em 30 de junho
de 2007
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e ps-modernismo. So
Paulo:Studio Nobel, 1995.
LIPOVETSKY, Gilles. O imprio do efmero: a moda e seu destino nas sociedades
modernas. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.