Moçambique e a Reinvenção da Emancipaçã Sociao l · saúde pré-medicina moderna passam a ser...

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Moçambique e a Reinvenção da Emancipação Social Boaventura de Sousa Santos Teresa Cruz e Silva organização

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Moçambique e a Reinvenção da Emancipação Social

Boaventura de Sousa Santos Teresa Cruz e Silva

organização

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Moçambique e a Reinvenção da Emancipação Social

Boaventura de Sousa Santos Teresa Cru^ e Silva (organizadores)

Centro de Formação Jurídica e Judiciária

Maputo , 2004

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Ficha T é c n i c a

título: Moçambique e a Reinvenção da Emancipação Social

organizadores: Boaventura de Sousa Santos Teresa Cruz e Silva

editor: Centro de Formação Jurídica e Judiciária n° de registo: 4 3 6 5 / R L I N L D / 2 0 0 4

arranjo gráfico e impressão: C I E D I M A , Sari

tiragem: 1000 exemplares

Maputo, 2004

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«Quando não há problemas, estamos de boa saúde, sem azar nem nada»: para uma concepção emancipatória

da saúde e das medicinas1

Maria Paula G. Meneses

Introdução

E m vários trabalhos produzidos no continente africano, o acto de localização

de saberes dos «outros» é o momento crucial na produção de uma relação de

desigualdade, pois que a partir de então as formas de protecção e recuperação da

saúde pré-medicina moderna passam a ser caracterizadas como terapias

tradicionais, de âmbito local (Ngubane, 1981; Hewson, 1998). Quando as

parteiras tradicionais, os curandeiros e a medicina verde são concebidos como os

principais componentes da «medicina tradicional» ( W H O , 1996), na realidade o

que está em curso é uma simplificação extrema do conceito de saúde, onde não

são tidas em atenção as especificidades históricas, económicas, políticas e culturais

por detrás do desenvolver dos conhecimentos sobre saúde (Meneses, 2000).

E m Moçambique, na maioria dos trabalhos abordando a temática da

«medicina tradicional», o discurso predominante confere à ciência moderna u m

1 Este capítulo nunca poderia ter aparecido sem a colaboração inestimável de vários terapeutas tradicionais em Moçambique, que pacientemente me introduziram em vários universos de saber. Gostaria de agradecer em especial o apoio de Maciane F. Zimba, Carolina Tamele e Pedro Cossa, que sempre encontraram tempo e disposição para falar comigo, oferecendo conselhos e apreciando uma versão preliminar deste trabalho. O texto beneficiou enormemente das discussões com Boaventura de Sousa Santos. A Teresa Cruz e Silva o meu obrigada pela apresentação a vários terapeutas tradicionais; agradeço a Nanette Barkey pelas discussões tidas sobre o tema; aos meus «camaradas» de grupo, um agradecimento pelos comentários feitos ao texto. O meu obrigado igualmente a colegas de várias instituições moçambicanas que me ajudaram na realização da pesquisa (Universidade Eduardo Mondlane, Ministério da Saúde, Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural, de entre muitos), bem como a Zefanias Matsimbe e António Langa, cuja ajuda se revelou preciosa em vários momentos deste trabalho. A Félix Khosa, o meu agradecimento pelo auxilio na correcção de expressões em xirhonga; a ajuda de Bento Sitói, meu colega de Faculdade, foi imprescindível na tradução de vários termos médicos e de doenças para e de xichangane. Finalmente, gostaria de referir que parte da informação discutida neste texto proveio de projectos paralelos e/ou anteriores, contando com financiamento da SAREC e da Fundação Ford.

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estatuto hegemónico de conhecimento, protegido e definido pelo Estado na

qualidade de «saber oficial».2 Pelo contrário, às formas de conhecimento nativas é

atribuído u m carácter secundariamente situacional (Marrato, 1995; Tsenane, 1999;

Instituto Nacional de Estatística, 1999). A procura de uma definição de «medicina

tradicional», que vá para além da diversidade e da heterogeneidade das práticas e

saberes terapêuticos, está inscrita na ordem social resultante do processo de

colonização do próprio conhecimento; o que constitui estas práticas em objecto é

simplesmente a negação do seu reconhecimento pelo Estado (Santos, 1995).

A hipótese alternativa que gostaria de discutir neste trabalho está centrada no

argumento de que as formas e as práticas de saber ditas «tradicionais» detêm

realmente u m estatuto de saber legítimo, o qual é reafirmado pela grande

afluência de pacientes a estes terapeutas. Apesar das repetidas tentativas de

epistemicídio3 de que estas formas de saber sobre saúde têm sido alvo, tal facto

poderá ajudar a explicar a enorme vitalidade e persistência dessas práticas, quer no

período colonial, quer nos dias de hoje. Mas muitos outros aspectos têm de ser

explorados. O que será uma medicina alternativa? Alternativa em função de quê e

de quem? O que deverá ser considerado conhecimento legítimo? E legítimo na

óptica de quem? Para que o saber se transforme em solidariedade, que garanta a

libertação e a igualdade de cada cultura, é preciso dar a essa cultura, ao «outro», o

estatuto de sujeito.4

O tema central deste capítulo — a interrogação sobre a relação dicotômica

entre saberes locais e globais, vista através do prisma da evolução da medicina

«tradicional» — está ainda pouco explorado enquanto objecto de pesquisa. A s

reflexões aqui apresentadas são fruto de u m projecto de pesquisa a decorrer há

mais de 18 meses na cidade de Maputo , especialmente no Bairro da Polana-

Caniço (parte da chamada zona suburbana da cidade).

Trata-se de uma região extraordinariamente complexa e de grande riqueza

cultural, onde estão presentes vários sistemas de saúde, que frequentemente se

cruzam e interpenetram. Esta pluralidade de sistemas médicos (MacCormack,

1986) não é fácil de avaliar, pois que diferentes percepções individuais e de

distintos grupos sociais sobre a saúde, b e m estar, sobre o mal, estão presentes,

resultando numa trama imensamente rica que se traduz em formas de

intermedicina. 5

2 Assunto que será analisado ao longo do texto na perspectiva sugerida por Boaventura de Sousa Santos (2000), que se refere a este fenómeno como um «Iocalismo globalizado». 3 A morte de um conhecimento local perpetrada por uma ciência alienígena (Santos, 1998:208). 4 Esta temática é abordada igualmente por T. Xaba (2000), num texto que discute criticamente o impacto negativo da medicina científica moderna sobre os conhecimentos médicos indígenas sul-africanos. 5 Aqui sigo a proposta teórica de Boaventura de Sousa Santos sobre a interlegalidade (Santos, 1987; Santos, 2003), ampliando-a e projectando-a, para além do espaço da justiça, ao espaço da saúde.

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N u m mundo onde a produção de diferenças culturais é permanente, este

processo actua como catalisador de espaços atravessados por relações políticas

e económicas de desigualdade. P o r isso, neste trabalho, o aspecto inicial da

discussão centra-se no questionamento das razões da construção desta

diferença. Q u e m é o «outro», aquele que produz e preserva outras formas de

saber?

Para avaliar as percepções existentes em relação aos distintos sistemas médicos

presentes foram realizadas entrevistas a praticantes da medicina tradicional, a seus

pacientes e elementos envolvidos na elaboração das políticas de saúde no País (a

nível do Governo e de várias organizações não-governamentais), entre outros. 6

Este estudo incluiu entrevistas abertas e em profundidade a cerca de 30 pessoas,

cujas idades variam entre os 22 anos e mais de 60 anos. N a maioria dos casos as

pessoas foram entrevistadas separadamente. Grande parte das informações aqui

apresentadas e discutidas provêm de entrevistas realizadas a «médicos

tradicionais» da nova direcção da A M E T R A M O , os quais partilharam comigo

quase numa rotina quotidiana, reflexões sobre as suas práticas e sabedorias, os

seus problemas, dúvidas e incertezas.

1. Medicina, medicinas...

E m várias das conversas c o m uma das terapeutas tradicionais, esta afirmou

que «tem doença nossa, tradicional, mas lá na escola [Faculdade de Medicina]

não sabe o que é isto. Mas nosso quando tem problemas que não sabe resolver,

manda no hospital». 7 Estas palavras sublinham a afirmação de vários autores

sobre como a doença, o mal, são explicados: as etiologias são a expressão

directa de normas e representações que sustentam os edifícios sociais (as

transgressões a proibições, as manifestações de espíritos ancestrais, as

agressões de feiticeiros, etc. ( D o z o n , 1987, Hess, 1994).

N u m país c o m o Moçambique, c o m uma matriz sociocultural extremamente

complexa, é inquestionável a existência de uma amálgama de subculturas

médicas, cada uma c o m as suas próprias características e estruturas, embora

para a biomedicina estas sejam descritas como uma entidade homogénea,

resultando, por ignorância, na referência a uma medicina tradicional de carácter

único e geral (Nords t rom, 1991; Jurg, 1992; Frel imo, 1999). Estes estereótipos,

emergentes em situações coloniais, persistem ainda nos dias de hoje.

6 Por a investigação estar centrada no sul de Moçambique, a faixa de população envolvida é falante principalmente de xirhonga ou de xichangane. As palavras e expressões locais que surgem no texto assinaladas são destas línguas. De referir igualmente que em vários casos, quer com terapeutas tradicionais, quer com pacientes, as entrevistas foram conduzidas nestas línguas. 7 Tamele, G , entrevista pessoal. Junho-Julho, 2000.

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T a l como se discutirá ao longo do texto, em Moçambique desde há muito

que se detectam evidencias da germinação de sistemas médicos híbridos. Esta

hibridização inclui mesmo o modelo médico moderno, criando espaço para a

sua actuação. Vista desta perspectiva, a vitalidade das medicinas tradicionais é

u m espelho das dificuldades de uma biomedicina que parece não conseguir

alcançar os seus objectivos. A hibridização dos conhecimentos terapêuticos

constitui uma diversidade entremeada de apropriações transformadas, e não

cristalizadas no espaço e no tempo, como tantas vezes sugerem os «valores

tradicionais».8

C o m o ponto de partida, a análise desta pluralidade de sistemas médicos é

feita utilizando cautelosamente as variáveis oficial/não-oficial,

t radicional/moderno. Este cuidado aqui referido decorre da situação de

intermedicina, da permanente mistura e cruzamento de decisões que originam

uma multiplicidade de situações híbridas.

A dicotomia oficial/não-oficial é definida pelo Estado, sendo este quem

estabelece, pelo direito, no seio da multiplicidade do pluralismo terapêutico

presente em Moçambique, uma distinção mais ou menos explícita entre o que é

legal e o que é ilícito, senão mesmo ilegal. N o caso da medicina, tudo o que é

reconhecido como medicina oficial é alvo de apoio por parte do Estado. Toda a

medicina que não é reconhecida como «estatal» é tolerada, mas continua sendo

mais frequentemente ignorada, porque pouco permeável a imposições e controlo

por parte da biomedicina.

A formalização, em curso, da medicina tradicional, é a causa da sua fragilidade,

sendo esta tentativa de normativização reflexo da natureza do próprio Estado em

Moçambique. Vista da perspectiva da medicina moderna, a medicina tradicional

surge como abrangendo vários saberes, como a biologia e a química (i.e., as

plantas usadas como remédios e os extractos/compostos activos que delas é

possível extrair), a biomedicina (o tratar, o curar do corpo), a justiça (o resolver de

problemas, de conflitos que encontram no corpo doente a sua expressão), e a

religião (as explicações para as crenças descritas em função de um aparato

conceptual mágico-religioso). A redução da complexidade dos saberes a uma lista

de áreas científicas, através da compartimentação e da normativização do

conhecimento, é a expressão mais visível da formalização do Estado.

E por isso que, no campo «tradicional», as instituições que tomam conta da

doença, que estão encarregues de curar, são simultaneamente políticas,

8 Relativamente a Africa, muito tem sido escrito sobre o lugar do «tradicional» nas actuais discussões epistemológicas. Como referências sugere-se: Hobsbawm, 1988; Copans, 1990; Gentili, 1999; O'Laughlin, 2000; Santos, 2003. Noutros contextos políticos, o debate entre o «moderno» e o «tradicional» tanto é visto como um espaço conflitual que pode resultar no germinar de novas realidades (caso da índia — Vlsvanathan, 2000), como é visto como constituindo o elemento que forma espaços de diferença e de contraste (Florez, 2000, Xaba, 2000).

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terapêuticas, jurídicas e religiosas; neste sentido, abarcam uma extensa área de

competências e funções que submetem a eficácia do tratamento a uma eficácia

mais envolvente, colocando em jogo os poderes tutelares, as estruturas

normativas e simbólicas, as relações de força, de saberes e de poderes (Fisiy e

Geschiere, 1990 e 1996; Geschiere, 1995; Fisiy e Goheen , 1998; C o m a r o f f e

Comaroff, 1999).

Este ponto requer uma avaliação cuidadosa da variável

tradicional/moderno, na perspectiva da origem c do desenvolver das medicinas

em Moçambique. Para uma modernidade assente em experiências

eurocêntricas, o apelo ao qualificativo «tradicional» nas práticas médicas é feito

para referir valores colectivos existentes desde «sempre», reforçando o estatuto

de objecto de quem os produz. E m Moçambique, a tradicionalização dos

saberes locais surge assim em paralelo e em oposição à emergência, a partir de

finais do século X I X , do paradigma biomédico. E m função dos anseios sociais

dos pilares desta dicotomia, tanto pode ser o tradicional uma invenção do

moderno, como o moderno uma criação do tradicional. Nas palavras de C .

Tamele, «a medicina tradicional é esta nossa, não escrevemos, não é como lá na

universidade. M a s nós estudamos muito para saber curar, sabemos coisas que

na escola não ensinam». 9

A medicina moderna aparece apenas como mais uma prática terapêutica

nesta região, sem constituir, ainda hoje, u m concorrente verdadeiro às restantes

medicinas, 1 0 que mantêm a sua vitalidade. O denominador c o m u m reside na

vantagem que estas medicinas «tradicionais» paradoxalmente possuem, por não

constituírem u m domínio autónomo, fechado n u m corpo de regras, saberes,

práticas e especialistas. D e facto, as chamadas «medicinas tradicionais» estão

imbricadas em muitos outros sectores da vida social — neste sentido, elas

obrigam ao redimensionamento dos conceitos de «doença» e «mal», que

ultrapassam a categoria de infelicidade, e que se traduzem em aspectos de

ordem cognitiva, simbólica e institucional próprios à sociedade.

A questão pr imordial que se coloca, conforme já referido, é a de

compreender c o m o se desenvolveram as dinâmicas de hibridização destas

medicinas. Este universo traduz a coexistência, no campo social, entre as

instituições terapêuticas que tratam a doença e o mal em geral enquanto, em

9 Tamele, C , entrevista pessoal. Maio de 2000. 1 0 Verifica-se ainda que as religiões importadas (cristã, muçulmana) têm vindo a gerar movimentos sincréticos, cuja especificidade reside no facto de o seu trabalho religioso incluir funções terapêuticas. Este facto contribui assim para aumentar a gama de recursos terapêuticos disponíveis. Entre as «medicinas tradicionais» e estes movimentos sincréticos não há uma resolução de continuidade; outrossim, constituem exemplo de uma enorme diversidade de recursos terapêuticos que mantêm a sua actualidade na manutenção das ordens e na resolução das crises (Schoffeleers, 1991; Honwana, 1996; Cruz e Silva, 2000).

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simultâneo, tratam a sociedade. O s «tratamentos» visam garantir quer a

reprodução e a manutenção da ordem - normas e representações — quer a sua

perturbação (tensões, conflitos, infelicidades colectivas). Neste processo reside

o cerne da autovalorização das medicinas tradicionais e m Moçambique.

2. A invenção da medicina tradicional

A doença, como símbolo de desajuste, de desequilíbrio individual e social, é

pois, como qualquer outro símbolo, alvo de representações ambíguas e fluidas,

construídas como práticas de conhecimento e exercício de poder (Appadurai,

1999; Santos, 1995 e 2000). N u m mundo onde a imposição hegemónica de

conhecimento-ciência está em todo o lado, canibalizando outras formas de

conhecimento, uma das batalhas principais incide sobre o que se quer saber (ou

ignorar), como representar este saber, e para quem.

E m Moçambique, a procura de uma definição de «medicina tradicional», para

além da diversidade e da heterogeneidade das práticas terapêuticas, está inscrita na

ordem social resultante do processo de colonização do próprio saber — o que

constitui estas práticas em objecto é simplesmente a negação do reconhecimento

peló Estado 1 1 e seus organismos. 1 2 Esta abordagem implica a criação do «outro»

pelo não saber, pela sua inclusão no mundo natural, e exclusão do mundo

civilizado (Liengme, 1844-1894; Maugham, 1906; Pina, 1940; Silva Tavares, 1948;

Santos Reis, 1952). Os conhecimentos sobre saberes e práticas terapêuticas vão

sendo decompostos em função da sistemática classificatória da ciência moderna.

Esta compartimentação de saberes vai permitir a apropriação, por parte do

sistema colonial, dos princípios farmacológicos de produtos conhecidos pelos

terapeutas locais, conforme atestam vários comentários de sábios portugueses em

missão de serviço em Moçambique: «Os remédios empregados pelos doutores

indígenas são numerosos, por eles largamente utilizados em múltiplas doenças e,

às vezes, com assinalado êxito. N a flora indígena muito há a estudar e,

possivelmente, algumas coisas a aproveitar» (Santos Júnior e Barros, 1952: 615).

E m simultâneo, ao se localizar o saber e posteriormente restringir o

conhecimento apenas ao seu conteúdo simbólico, as comunidades ganham uma

aura de exotismo, possuindo interesse como mercadoria para o turismo étnico,

bem como para o estudo antropológico desta diferença (Meneses, 2000). A o

identificar o saber local com o «sagrado» desvia-se o foco da acção para longe dos

autores, ao mesmo tempo que se reinscrevem continuamente as barreiras entre o

1 1 Inicialmente pelo Estado colonial, mas mantendo-se a prática no periodo pós-independência, i.e., após 1975. 1 2 Ministérios, Faculdade de Medicina, de Direito, etc.

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mesmo e o outro, barreiras estas que sustentam o conhecimento como colonização.

Os extractos de trabalhos que apresento em seguida são exemplo da

continuidade subterrânea de u m discurso onde a oposição entre medicina e magia

é reinscrita através da divisão entre biomedicina e medicina tradicional. Ontem,

tal como hoje, a «medicina tradicional» surge associada ao saber localizado,

nativo, indígena (Batalha, 1985; Green, 1996; Green et aí., 1999).

O feiticeiro não oferece nada de extraordinário. E um preto como os outros (...) tendo apenas a esperteza bastante para se impor à sua consideração incurindo-lhes um respeito misterioso por seus processos clínicos, faculdades divinatórias e recursos para resolver várias dificuldades da vida. (...) Mas no geral não passa de um intrujão (Cruz, 1910:140).

Neste extracto é ainda exemplar o modo hostil como o sistema colonial avalia

negativamente as práticas médicas, ao tentar estabelecer uma equivalência entre o

feiticeiro e médico tradicional.

Feito o diagnóstico em que se desprezam sempre os simptomas físicos, os doentes são encaminhados [pelos «médicos negros»] assim se trate de males causados por espíritos de deuses, feiticeiros, de poluição pelos mortos (...) Contudo, o «médico negro» não é, no geral, um charlatão, actua consciente e confiante na sua ciência (Swalbach e Swalbach, 1970).

Outro aspecto característico da medicina moderna é a sua fraca abertura em

relação a outras possíveis formas de diagnóstico, que, por serem diferentes, não

são reconhecidas em pé de igualdade enquanto meios auxiliares de detecção dos

males.

Há curandeiros que efectivamente curam com base em certos medicamentos obtidos a partir de raízes, plantas, etc., mas o curandeirismo espiritista é, sob todos os pontos de vista, negativo e obscurantista por excelência (Castanheira, 1979:12).

[A medicina tradicional é] o conjunto de conhecimentos empíricos, desorganizados, deturpados do seu conteúdo pelo processo de transmissão oral e muitas vezes revestidos de práticas obscurantistas, tais como ritos, etc. [E função do GEMT 1- 1] depurar os conhecimentos existentes de todas as ideias obscurantistas de que geralmente se encontram impregnados e assim promovê-las a conhecimentos científicos, a fim de os utilizar em benefício de todo o Povo (Serviço de Nutrição, 1981: 3-5).

Os dois últimos extractos, que reportam ao período pós-independência,

ilustram bem a tentativa de imposição do saber moderno pela anulação das

práticas que não actuavam de acordo c o m os ideais de desenvolvimento moderno

preconizados pelo partido Frelimo (desde então no poder) e pelo Estado.

1 3 Gabinete de Estudos de Medicina Tradicional, fundado no Ministério da Saúde com o objectivo de promover a ligação com a medicina tradicional (Serviço de Nutrição, 1981). Em conversa rnantida, em Abril de 2000, com A. Agostinho (bioquímica), responsável pelo GEMT, ficou clara a continuidade da política do Estado em relação à medicina tradicional.

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Finalmente, o extracto que se segue, e tentando fazer u m apreciação mais

específica da diferença entre a medicina moderna e a medicina tradicional, reforça

a ideia da dualidade das práticas, apoiando implicitamente a subordinação do

tradicional ao moderno.

Nas culturas tradicionais [da Africa Austral14], o processo de cura assenta no princípio de desequilíbrio, resultando em problemas mentais ou de natureza física. Pelo contrário, a ciência médica assenta num dualismo cartesiano, na separação da mente do corpo; (...) a ênfase é colocada no curar do corpo, na eliminação do sofrimento físico (Hewson, 1998: 1029).15

A o mediar entre a prática da acção e a intenção de quem selecciona o

conteúdo das representações, é possível produzir fenómenos que constituem

realidades distorcidas, o que justifica a preservação da oposição nós/outros, de

cariz marcadamente geocêntrico (Goody, 1979; Barth, 1995; Santos, 2000). A

força hegemónica da ciência moderna produz pois a localização de saberes, os

quais tanto podem ser causa de discriminação, como fonte de resistência a essa

globalização. Mas como se percebem a si mesmos os médicos tradicionais? O

localismo surge como forma de segurança e afirmação de uma especificidade

própria, de u m saber que lhes pertence e que por isso mesmo lhes permite

negociar, e conquistar mesmo, espaços de poder.

Para os médicos tradicionais, a sua «medicina» é a que acontece «nos lugares

daqui».1 6 O s próprios pacientes estabelecem uma distinção muito clara entre os

limites e a aplicação da biomedicina e da medicina tradicional, distinção feita

em função do contexto de produção/reprodução de conhecimentos sobre o

b e m e sobre o mal.

3. Os médicos tradicionais e a medicina tradicional - o conceito de s a ú d e 1 7

3.1. «Ter saúde é ter boa vida...»

Para a maioria da população da cidade de Maputo , e mesmo no sul do País,

o conceito de saúde é bastante amplo, referindo-se implicitamente à existência

de u m balanço social, noção esta que não é exclusiva a Moçambique nem a

África, pois que presente em várias culturas dando origem a distintos sistemas

médicos.

«Ter uma vida boa» é a expressão que melhor resume o que se entende por

1 4 A autora trabalhou sobre a África do Sul e Moçambique. 1 5 A tradução é minha. 1 6 Zimba, M.F., entrevista pessoal. Agosto de 2000. 1 7 Na perspectiva da biomedicina, a saúde deve ser compreendida no contexto mais amplo do desenvolvimento de um país, de uma região, de uma dada comunidade (WH0,1996)

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ter boa saúde. V i d a boa traduz-se em «ter uma casa b e m construída, ter comida bastante, ter dinheiro para a roupa, para sabão, para as crianças i rem à escola, para o hospital»; «sentimos bem quando não há problemas, temos comida, a família está bem». 1 9 A expressão destes sentimentos sugere que para se estar bem de saúde é necessário realizar em si mesmo u m equilíbrio essencial, estar em paz c o m a família (incluindo os antepassados), c o m os vizinhos, c o m o próprio corpo (incluindo a higiene), estar convenientemente alimentado (o que na actualidade inclui ter emprego que garanta o sustento) e protegido de males, sejam estes naturais ou «enviados». A inveja suscitada pelo facto de alguém produzir bastante na machamba, de alguém ter u m b o m emprego, pode fazer c o m que u m familiar ou amigo recorra a u m terapeuta tradicional para, através de feitiços, procurar apoderar-se desses bens, desse «bem-estan>, molestando quem os possui: «As pessoas agora sofrem muito de azar e mor r em mesmo por causa de feitiços, sem ser o destino delas». 2 0

Estas concepções sobre o papel dos médicos tradicionais requerem uma análise mais complexa da chamada «medicina tradicional», uma reavaliação quer da ética, quer dos princípios éticos subjacentes às interpretações que projectaram a produção conceptual sobre esta medicina.

3.2. Medicina e feitiçaria

U m a discussão sobre as delimitações éticas de u m sistema médico que se estende muito para lá dos limites estabelecidos para a biomedicina exige o alargamento da discussão ao campo da chamada feitiçaria.

Conforme anteriormente mencionado, o processo de negação do saber da medicina tradicional passou pela identificação da imagem deste terapeuta à do feiticeiro. 2 1 Mas trata-se de actores bem distintos, como o afirmam quer pacientes, quer praticantes da medicina tradicional:

Há diferença entre curandeiro e feiticeiro. O curandeiro cura e o feiticeiro mata. O feiticeiro conhece remédios para matar. Enquanto que nós, os curandeiros, curamos porque é essa nossa obrigação (...) os espíritos obrigam assim, senão castigam.22

Para acabar c o m esse azar, c o m a má sorte, é preciso a ajuda do médico tradicional, ponto de auxílio no restabelecimento do equilíbrio. Mas o médico

1 S Fabião, A., entrevista pessoal. Abril de 2000. 1 9 Boane, A., entrevista pessoal. Março de 2000. 2 0 Salomão, P., entrevista pessoal. Julho de 2000. 2 1 Outro fenómeno de desacreditação assenta no uso da palavra «curandeiro», palavra esta que, para muitos dos praticantes da medicina tradicional na cidade de Maputo, é sinónimo de feiticeiro. Assim, e para reivindicarem um espaço de representação e de poder semelhante ao dos praticantes da biomedicina, exigem para si a designação de «médico tradicional». 2 2 M. , Suzana, entrevista pessoal. Fevereiro de 2000.

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tradicional também pode ser maliciosamente utilizado:

As feitiçarias vêm da ambição e do ódio entre as pessoas. (...) Há plantas e animais venenosos que, mal orientados, podem causar o mal. (...) Há raízes malandras. (...) Há responsáveis que nos contactam para lhes ajudar a resolver problemas lá no governo, mesmo quando querem mais força para governar. Há plantas que ajudam a resolver problemas sociais e complicações no serviço.23

N o tempo presente, a procura constante do médico tradicional torna-se

mais visível, pois que são inúmeras as pessoas em busca de sucesso -

promoções, riqueza, negócios, etc. —, mas a quem os recursos quer da

sociedade moderna, quer da tradicional não têm sorrido.

A própria classificação e sistematização das doenças identificadas como

possíveis de ser tratadas pelos terapeutas tradicionais entrevistados na cidade

de Maputo é bem diferente da utilizada pela biomedicina. A o lado de

epilepsias, sarnas, tuberculose, «dor-de-olhos», emergem outras patologias

como «conflitos conjugais», «feitiçaria», «azan> e «espíritos maus». N o sector

tradicional da sociedade, se as coisas não caminham bem, quando a produção

não é boa, quando «há azan>, o médico tradicional é consultado para procurar

localizar e explicar a fonte deste problema, para dar remédios para eliminar a

fonte do mal (evitando-a mesmo de futuro), ou ainda para restaurar a ligação

aos antepassados.

Quanto à questão da feitiçaria, a sua face visível para análise assenta

essencialmente nas acusações, nos boatos sobre a questão (Tique, 2000), o que

coloca inúmeros problemas quanto à avaliação da sua permanência e eficácia.

Já que crimes desta natureza as autoridades e os tribunais não atendem por falta de provas materiais (...), as pessoas morrem, caem doentes, ficam paralíticas por causa destas barbáries dantescas, por causa desses feiticeiros que reinam e proliferam nas nossas povoações. E a lei ignora isso, chegando ao ponto de defendê-los. Qual é a diferença que existe entre um assassinado pela feitiçaria e outro por uma punhalada ou baleado? Não é o mesmo crime? Só porque o primeiro é feito, sei lá em silêncio e espiritual? Ou existe um medo nos homens da lei ao se distanciarem desse problema sério da natureza tradicional com o receio de se descobrir que afinal de contas os feiticeiros «pululam» mesmo até nos órgãos da justiça? (Phaindanne, 2000).

N u m primeiro momento urge observar a pertinência da oposição entre o

saber científico e as representações locais no discurso sobre o «outro». E m b o r a

nos dias de hoje esta ideia persista em muitos trabalhos, o que importa é

identificar a quem estas situações beneficiam, como é que a feitiçaria está

directamente relacionada c o m a reprodução ou ruptura da ordem sociaL A

persistência do fenómeno de acusações de feitiçaria, ao transportar consigo uma

enorme ambiguidade - porque ligada a qualquer forma de poder - demonstra ser

2 3 Extracto de uma entrevista a Arruda Safar Gina, médica tradicional. Jornal Domingo, de 13 de Janeiro de 1991.

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essencial ao funcionamento social, fornecendo u m poder suplementar que pode

mesmo servir para fins construtivos. Ass im, a feitiçaria deverá ser percebida como

compondo a possibilidade de resistir às mudanças e às desigualdades

continuamente emergentes, podendo suscitar também tentativas de apropriação

de novos recursos.

Há gente que fica mesmo rica, cheia de dinheiro de familiares, de colegas de trabalho. Para serem chefes, para desenrascar mais a vida, vão no curandeiro. O médico bate as pedras,24

chama os antepassados para ajudarem, para aumentar a força desse ambicioso, contra o <¿nimigo» dele. Ninguém depois pode mudar nada, se não encontrares um médico tradicional ainda mais forte ainda que esse que fez o remédio para a pessoa enriquecer e ter mais força no trabalho, ser um chefe maior (...). Eu vim aqui só porque quero estar bem com a minha família, fazer «vacina», senão tudo vai correr esquisito no serviço, há muita inveja...25

A tenacidade c o m que a feitiçaria i r rompe na sociedade moçambicana faz

c o m que as concepções do poder e do seu exercício tenham implicações

específicas, pois que estas situações são simétricas em termos de sentimentos

de força (protecção — médico tradicional) e impotência (inveja — feitiçaria). A

medicina tradicional oferece os meios para açambarcar o poder; ao mesmo

tempo ela reflecte sentimentos de impotência, pois que parece servir para

ocultar as fontes do poder. E m sociedades onde o papel das redes familiares é

extremamente forte, a feitiçaria e o apelo ao médico tradicional para a

promoção social demonstram quão ligados estão estes dois fenómenos, que

serão adiante analisados em mais detalhe.

O discurso sobre a feitiçaria não é exclusivo a Moçambique (Geschiere,

1995; Englund , 1996; Mappa , 1998; C o m a r o f f & Comaroff , 1999), nem tão

pouco ao continente africano (Taussing, 1987; Escobar & Pardo, 2000).

Porém, na região onde este estudo tem lugar, a feitiçaria actua c o m o u m

espelho privilegiado que permite ampliar a manipulação do «tradicional» no

jogo de construção de uma «outra modernidade».

Os discursos sobre feitiçaria não exprimem uma resistência ao

desenvolvimento moderno; outrossim, constituem reflexos de uma luta

constante p o r uma vida melhor. Porque a medicina tradicional se constitui

como u m sistema aberto, formalmente delimitada apenas a nível dos estatutos

de uma associação conforme será adiante discutido, inúmeras são as

possibilidades de explicação para os problemas e dilemas que a vida coloca.

Isto torna possível uma interacção antropofágica de distintos elementos, os

quais fazem parte do projecto de constituição de uma «outra modernidade»

(Ong, 1996; Santos, 2003). Neste sentido, as acusações de feitiçaria, longe de

reforçar uma alteridade radicalmente diferente decorrente de u m exotismo

2 4 I.e. os tinholo, os ossículos divinatórios usados como meio auxiliar de diagnóstico pelo médico tradicional. 2 5 Augusto, L , entrevista pessoaL Maio de 2000.

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estranho, são u m discurso de luta sobre problemas que afectam a família, a comunidade, a sociedade.

D o breve conjunto de opiniões acima apresentado, o que parece emergir de específico é o facto de, num contexto de procura de solução para u m mal, os conceitos de conflito e desequilíbrio social constituírem o eixo central em torno do qual se processa o tratamento e a cura da pessoa que está enferma. E neste espaço social que predomina a figura do médico tradicional.

3.3. Quem é o médico tradicional?

E m b o r a existam várias designações para os terapeutas tradicionais, a designação mais comummente utilizada é a de «nyanga». 2 6 O nyanga é aquele que cura, o que conhece a força dos remédios e como curar c o m o auxílio do saber de espíritos ancestrais.

N u m texto que procura dar voz e relevo a distintos actores, necessário é que os médicos tradicionais se apresentem a si mesmos, delimitando a sua especificidade e áreas de contacto c o m os terapeutas modernos.

U m aspecto interessante é o facto de todos os médicos tradicionais se eferirem ao período inicial da sua «chamada» pelos espíritos dos antepassados

Dara aprenderem a ser médicos, como u m período muito difícil, rodeado de dor e sofrimento:

Eu estava na África do Sul a trabalhar nas minas, e depois fiquei muito doente, não conseguia trabalhar. (...) Depois vim para Moçambique, consultei um médico que me disse que eu tinha espíritos que queriam sair (...). Fiz o curso e fiquei médico tradicional. Aprendi muito, porque não é só espíritos, é saber tratar com plantas, ajudar as pessoas.27

Para eu ter estes espíritos que hoje me ajudam a ser curandeira, fiquei muito doente, mesmo muito doente, quase três anos que não fiz nada, não ia na machamba, nem comida aguentava tomar. Levaram-me ao hospital (...). Então disseram que tinha espíritos e mandaram-me para aprender a ser curandeira.28

A selecção do futuro médico tradicional acontece através de u m mecanismo de ruptura conturbada (física e espiritual 2 9) c o m a sua família e comunidade, mecanismo este que parece estar fora do controlo do candidato a terapeuta. Enquanto decorre o processo de percepção do seu novo papel social, o candidato sofre de inúmeros males físicos e psicológicos, emergentes sem uma

2 6 No sul de Moçambique o termo njanga é traduzido como curandeiro, ou médico tradicional (Galvão da Silva, [1790]1955, Simões Alberto, 1965, etc). O njangarume corresponderá ao ervanário, ou seja, o terapeuta que trata com a ajuda de plantas, não contando com a força dos espíritos para o ajudar a solucionar males (Temba, 1992). 2 7 Zimba, F.M., entrevista pessoaL Junho de 2000. 2 8 Macie, H., entrevista pessoaL Fevereiro de 2000. 2 9 Pois que durante o processo de formação a pessoa fica isolada da família, mantendo com esta poucos ou nenhuns contactos, mesmo se tiver filhos e/ou marido/esposa.

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razão plausível (e por isso sem cura) dentro do paradigma da biomedicina. O

mal estar que não é explicado actua como palavra-chave de acesso a u m

universo distinto de sabedorias, as quais constituem o garante do poder de

decisão do médico quanto ao desenlace de problemas críticos que terá de

enfrentar na sua prática terapêutica. 3 0 Este ritual de ruptura acontecerá também

sempre que u m problema de maior seriedade acontecer e requerer maior

seriedade e conhecimento: «Depois, mesmo quando estamos a trabalhar e os

espíritos saem, dói muito, fico c o m os braços e as pernas fechados, nem

consigo me mexer, xeü, nada mesmo. Custa mesmo quando eles saem na

gente». 3 1 Ta l c o m o referido por inúmeros médicos tradicionais, os espíritos

ancestrais 3 2 apropriam-se momentaneamente do corpo do terapeuta para

apoiarem o médico no diagnóstico da enfermidade, no detectar das suas

origens, bem como na selecção dos remédios necessários para a debelar.

O período de aprendizagem de u m «thwasana» 3 3 prolonga-se normalmente

de dois a cinco anos, podendo ser mais longo. Sob orientação dos

antepassados que o escolheram para dar continuidade aos seus saberes, o

candidato selecciona o «b'ava» 3 4 c o m que vai aprender a tornar-se n u m

terapeuta qualificado:

E duro estudar para ser curandeiro. Temos de aprender muita coisa. Temos que aprender a saber o que é que causa o problema, saber as plantas que curam, saber as diferentes doenças, e como curá-las, com que plantas, animais, muitas coisas. E preciso ter muito cuidado para não cometer erros. Aprendemos a conhecer e depois nas reuniões conversamos com os colegas.35

Não é simples aprender a ser-se médico tradicional: os princípios éticos

com a pessoa humana estão patentes no cuidado em se evitarem erros e no

segredo profissional sobre os males de que padecem as pessoas, entre outros

aspectos.

A doença é algo fora do normal que se instala no corpo e que por isso se faz

sentir. O incómodo, a dor, são sinónimos de uma alteração profunda do

equilíbrio. 3 6 É , pois, preciso tratar, localizar a origem do problema (física ou

30 y e r também Honwana, 1996 e Temba, 2000, esta última avaliando a questão dos médicos tradicionais na perspectiva de género. 3 1 Tamele, C , entrevista pessoal. Maio de 2000. 3 2 Uma das características mais reafirmadas em vários dos textos em relação ao «conhecimento tradicional» parece residir no carácter ancestral deste saber, reconhecido e mantido através de gerações, através do apoio dos «antepassados» (Florez, 2000; Xaba, 2000). 3 3 Estudante de medicina tradicional. 3 4 Trata-se de um termo respeitoso que se utiliza para fazer referência a alguém muito estimado e com grande sabedoria, em suma, um notável da comunidade. No contexto presente, refere-se a um médico tradicional experiente (homem ou mulher), que ministra cursos. 3 5 Cossa, P., entrevista pessoal. Junho de 2000. 3 6 Por isso o facto de muitas doenças serem explicadas como «sente a cabeça», «dói a perna».

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espiritual) e restabelecer a normalidade. O mal pode ser derivado de não se cumprirem as regras sociais (caso das «timhamba» 3 7), de os mortos não terem sido correctamente enterrados, do contágio c o m objectos impuros, e ainda fruto da acção dos espíritos maus (os «valoyi» 3 8).

Muitas vezes as pessoas vêm aqui ter comigo, me consultar, porque fizeram maldades e porque as coisas estão a correr mal, porque há azar na sua vida. Depois, há muitos homens com doenças que apanham das mulheres, agora há muito problema desse aqui no Maputo, mesmo SIDA [embora se escuse a responder se pode tratar o SIDA]. Eu depois bato as pedras. As vezes sai logo a resposta, às vezes não. Cada vez é cada vez. Mas só assim consigo saber bem mesmo o que a pessoa tem. (...) Outros casos é preciso «kufemba»39, para ver os espíritos que o doente tem. Eles vão dizer o que é que eles querem. São problemas que aconteceram e não resolveram. Quando houve a guerra, lá na zona de Gaza morreu muita gente, mesmos dos nossos mataram. Então agora, a pessoa está a passar e ele sai, o espírito, e fica dentro de ti, a precisar de resolver o problema dele. A pessoa fica doente mesmo, vai emagrecendo, emagrecendo, e ninguém no hospital pode ajudar. Só o médico tradicional pode, tem de fazer tratamento para deixar esses espíritos saírem e dar a eles o que eles querem para ficarem felizes.40

A causa do mal define-se, pois, através da localização, palpável ou não, visível ou não, olfactiva o u não, de u m objecto estranho, que se introduziu no corpo de uma pessoa. Para aliviar o mal é preciso recorrer a remédios — aos «mirhri» 4 1 - o que permite atingir de novo o estado de saúde. O remédio pretende sarar a carne, a dor que faz sentir esse pedaço da pessoa, e ao mesmo tempo restaura a confiança do indivíduo em si mesmo. O nyanga cuida do corpo, sara as feridas, elimina os padecimentos do organismo utilizando os conhecimentos que tem sobre a natureza e, e m simultâneo, trata as perturbações da cabeça e do espírito, causadas pelos desajustes socioeconómicos, por traumas profissionais.

3 7 Missas para assegurar a manutenção de uma ligação aos antepassados. 3 8 Plural de nqyi. O noyí é um espírito com poder para fazer mal, podendo mesmo provocar problemas à distância por interposta pessoa, através da qual actua. Normalmente os valoyi actuam à noite, introduzindo corpos estranhos no corpo de uma pessoa, a qual vai definhando até morrer, de dia o espírito pode actuar através de elementos que «contaminou». O noyi pode ainda utilizar alguém que ele «abriu» e em cujo corpo se meteu, tornando-o seu escravo. Podem as pessoas ser transformadas em animais, como leopardos, hienas, serpentes, ou serem forçadas a trabalhar nos campos para o espírito, ou ainda a roubarem as coisas para o espírito (Muthemba, 1970; Polanah, 1987; Honwana, 1996). 3 9 I.e., «farejao> os espíritos maus, para os agarrar, já que são a origem do mal, do problema. O espírito só pode ser localizado pelo odor, por isso se «fareja» a alma dos antepassados insatisfeitos, ou a dos valoyi. 4 0 Tamele, C , entrevista pessoal Março de 2000. 4 1 Plural de murbi, que significa plantas, e num sentido mais lato se refe aos medicamentos.

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3.4. Sobre as doenças

O s médicos tradicionais são os terapeutas que melhor parecem saber lidar c o m as doenças ditas «tradicionais», i.e., doenças c o m uma pesada carga emocional, pois que trabalham c o m o corpo e c o m os espíritos, espíritos esses que «ocupam o corpo» e causam diversos problemas aos pacientes. O nyanga desempenha, assim, uma tarefa dupla: divinatória e curativa, assente numa concepção mais ampla da doença, percebida a dois níveis: como fenómeno social — como uma alteração profunda da vida quotidiana — e enquanto fenómeno físico — c o m o manifestação de acontecimentos no corpo de uma pessoa. A função divinatória procura tratar as causas que originaram o mal, prescrevendo meios para a solucionar. A função curativa procura eliminar os sintomas físicos. Estas duas funções são complementares, pois concorrem para o restabelecimento pleno do doente. Para o médico tradicional, curar significa remover todas as impurezas o u desequilíbrios da vida do paciente, pelo que cada tratamento termina normalmente c o m uma cerimónia de purificação, prevenindo contra situações semelhantes de futuro.

N a sociedade moçambicana, tal c o m o noutras sociedades, a feitiçaria actua como elemento regulador das pressões sociais dissonantes (Meneses, 2000; Santos, 2003). Q u e m tem muito dinheiro, poder, é porque o t omou de outra pessoa, apoiado por alguém. Q u e m morre, quem sofre «azares», é porque está «doente», tem problemas c o m o sucesso, há alguém que não quer que ele se diferencie; pode também tratar-se de alguém tentando romper a ligação ao micro-universo de pertença social. P o r exemplo, a infertilidade é por vezes interpretada como sendo causada por alguém que não quer que a mulher «prenda» o marido, o que em última instância implica a anulação de u m casamento, do reforço dos laços familiares e comunitários. Para a resolução deste problema há que recorrer a todos os meios, incluindo o recurso a outras medicinas que não «tradicionais»:

Quando uma mulher não concebe, nós tratamos e quando passa um mês, aconselhamos a ir ao hospital para fazer o controle. Depois volta e fazemos um tratamento para «segurar» a gravidez, o bebé na barriga da mãe. Tudo é importante, o hospital, os nossos remédios. Aí não há problemas.42

O s médicos tradicionais reconhecem a sua incapacidade para resolver a totalidade dos casos que se lhes apresentam e, frequentemente, após várias tentativas frustradas de sarar o problema, sugerem que o doente vá consultar terapeutas praticando outras medicinas, incluindo a biomedicina, simbolizada pelo hospital. A pluralidade de sistemas médicos produz pois esta possibilidade de recurso simultâneo a várias formas de «tratamento», permitindo a

4 2 Yussufo, M. , entrevista pessoal. Dezembro de 1999.

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delimitação de u m problema c o m expressão física. E m paralelo actua

igualmente o sistema de punição e de regulamentação do mal. São duas faces

de uma mesma moeda — o mal físico e o mal sociaL as tensões, os conflitos

individuais e os comunitários, n u m sistema ainda em transição (e

frequentemente em ruptura) para uma sociedade de acumulação capitalista

individual.

A percepção sobre a doença, as tentativas para a curar ou para a evitar, têm de

ser entendidas e discutidas em função de cada u m dos sistemas de conhecimento

presentes — o da biomedicina e os das medicinas tradicionais existentes — pois que

as noções de causalidade (etiologia) por vezes não são coincidentes. O médico

tradicional, tal como os seus pacientes, não distingue necessariamente entre curar

e tratar, entre sintomas objectivos e subjectivos, entre dados clínicos mensuráveis

ou não mensuráveis, questões essenciais à prática da biomedicina. O médico

tradicional está interessado em resolver o problema, em controlar os sintomas,

em restaurar as funções físicas e as relações sociais afectadas. C o m o diz M . F.

Zimba, «quando a cabeça não trabalha, o corpo é que sofre», resumindo o

pressuposto principal do seu trabalho como médico tradicional. E m b o r a muitas

outras formas de medicina advoguem igualmente o princípio de que a causa da

doença está na ruptura do equilíbrio e da harmonia da pessoa, para a biomedicina

quando o corpo está bom, a desordem foi debelada. Entre os médicos

tradicionais entrevistados, a questão que surgiu sempre foi a de que a harmonia

ou o bem-estar da pessoa é reflexo do bem estar do seu grupo, da sua rede de

amizades e familiar, e que a doença altera a relação entre as pessoas. Neste

sentido, ao estudar um determinado caso, o nyanga promove a reintegração do

indivíduo num jogo de interesses solidários com o grupo, procurando manter a

pressão dos conflitos emergentes, sendo detentor de um conhecimento que cria e

desenvolve continuamente, para assegurar a manutenção do grupo. C o m o diria

Lewis Carroll (1977), temos de manter-nos em contínuo movimento para que o

grupo se mantenha como está.

Outro facto a ter em atenção é o da contaminação, no sentido em que

frequentemente a doença (se resultante de contágio de espíritos «insatisfeitos»)

caso não seja bem curada, poder afectar outras pessoas do grupo. O não

cumprimento das obrigações para com os antepassados pode resultar na anulação

da protecção destes à pessoa, ao grupo familiar e mesmo à comunidade, uma vez

que os espíritos dos antepassados permanecem parte integrante da estrutura

familiar. O retorno da ligação interrompida é reclamado através da erupção do

mal provocado pela ausência de defesa por parte dos guardiães ancestrais, facto

que de novo remete para a feitiçaria como sistema regulador dos desequilíbrios

sociais.

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A forte dinâmica de actuação do médico tradicional contrasta c o m o projecto

do Ministério da Saúde 4 3 sobre a colaboração c o m os praticantes da medicina

tradicional, como parte da sua política de saúde (Jurg et al., 1991; Frelimo, 1999).

O quadro da saúde pública desenvolvido pelo Estado após a independência,

coloca ênfase especial no sector preventivo. Pretende-se, assim, alcançar a maioria

da população do país, rural ou peri-urbana, através do estabelecimento de urna

vasta rede de unidades e de agentes sanitarios de base capazes de prestar cuidados

de saúde elementares, bem como de promover a saúde pela educação e pela

melhoria das condições de higiene. O resultado de tais políticas depende, em

primeiro lugar, da participação das populações a quem se destina tal política.4 4 E

por isso que a Organização Mundial de Saúde ( W H O , 1978) tem vindo a

recomendar a inclusão dos «praticantes tradicionais de saúde» nos sistemas

nacionais de saúde. U m a vez que esta política concebe as populações como

parceiros desta campanha, e não apenas como receptores passivos, torna-se

necessária a recuperação dos elementos que desde há muito se encontram

directamente ligados a tais práticas dentro das comunidades — os terapeutas locais.

Esta justificação tem vindo a ser utilizada pelo Estado para legitimar o seu

interesse pela medicina dita tradicional, embora não seja suficiente para esclarecer

as ambiguidades subjacentes que pesam quer sobre a noção de valorização da

«medicina tradicional», quer sobre as experiências práticas que são recomendadas.

A o promover um discurso que defende a integração da medicina tradicional

dentro da medicina moderna, o Estado e a própria O M S (Jurg, 1992; Monekoso,

1994; Wor ld Bank, 1994; Aregbeyen, 1996; W H O , 1996; Friedman, 1996)

pretendem retirar aos terapeutas tradicionais o controlo sobre o tratamento — nos

seus varios matizes — da maioria da população. A o defender a formalização da

«medicina tradicional» em função da medicina moderna, a primeira é circunscrita

a um conjunto de conhecimentos empíricos — plantas medicinais, farmacopeias, e

«savoir-faires» — técnicas corporais, epidemiologías (Tomé, 1979; Marrato, 1995;

Lambert, 1997). O saber do médico tradicional só é válido como complementar à

biomedicina; o terapeuta tradicional é visto como aquele que precisa de ser

treinado, mas que não participa no treino dos biomédicos (Nordstrom, 1991;

Cunningham, 1995). Este facto tem produzido u m certo ressentimento

condescendente entre os médicos tradicionais: «não guardamos rancor a eles [í.e.,

praticantes da medicina moderna] mas queremos também reconhecimento, tem

4 1 Entidade do Estado que mais directamente se relaciona com a medicina tradicional. 4 4 Sendo aqui de referir que em Maputo, em termos de assistência hospitalar no quadro da medicina moderna, a relação é de 1 médico por cada 48-50 mil habitantes, enquanto a relação médico tradicional/paciente é de 1 para cada 1000 a 1500 pacientes, situação bastante semelhante à de outros países da região.

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que respeitar a nós [...] queremos trabalhar c o m eles, mas também ensinar aquilo

que a gente sabe, não é só as plantas».45

Todos estes aspectos sugerem que se deve avaliar mais profundamente as

importâncias e as legitimidades dos saberes.

4. A importância da medicina tradicional

4.1. Entre a legitimação e a legitimidade

Impõe-se uma análise rápida do papel do actor privilegiado que é o Estado,

árbitro que se atribui u m estatuto especial, ao elaborar as regras e, em simultâneo,

participar no jogo. A o estudar quem são os actores autorizados e /ou favorecidos

pelo Estado, que saberes são tolerados ou reprimidos, que actuações

reconhecidas, ou, mesmo, o que se ignora, é possível obter uma noção mais forte

e profunda das lógicas de acção do Estado. Isto implica ir mais longe, requerendo

a análise dos campos de força em função do reconhecimento social das diferentes

categorias de praticantes de saúde, num jogo complexo entre a concorrência e a

complementaridade (Fassin & Fassin, 1988).

Para o Estado, hoje, tal como ontem, a delimitação do que é saber e magia, do

que é considerado oficial e do que não o é, é feita em função de práticas

normalizadas que este mesmo Estado controla. N u m a perspectiva de legitimação

racional que se impõe c o m o sistema colonial, só quem estudou nos centros

formalizados de saber é que está autorizado a praticar medicina. Terá sido esta

uma das razões de fundo que levou, no início da década de 1990, muitos dos

médicos tradicionais a constituírem-se em associação — a A M E T R A M O —, facto

que será discutido na secção seguinte deste texto.

O s utentes legitimam os praticantes de cuidados de saúde que consultam,

sejam eles treinados na biomedicina ou na chamada medicina tradicional.

Normalmente associa-se espontaneamente a legitimidade tradicional ao nyanga, e

a racional ao médico moderno, este último em função dos seus diplomas. A

aceitação relativamente a estes terapeutas depende e é garantida pela lealdade de

quem os reconhece e os valoriza como herdeiros de sabedoria. A permanente

procura destes terapeutas assegura a sua legitimidade, o reconhecimento da sua

competência neste campo de conhecimento. Entre os próprios terapeutas, a

legitimidade é reforçada pela pertença e partilha de u m saber ancestral,

recuperado nas «visitas» dos espíritos.

O compromisso de procurar curar o paciente, bem como a conduta moral do

médico tradicional, acabam tendo reflexo no seu sucesso como terapeuta;

«Quando tem trabalho bom, tem que ser conhecido. A s pessoas sabem que eu

4 5 Zimba, M.F., Tamele, C , Cossa P., entrevista colectiva. Setembro de 2000.

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posso curar doenças, vêm de longe [...]. Ouviram falar que existe u m curandeiro no Maputo que cura esta e aquela doença. E assim que se sabe que eu sei curar bem, porque curei a muita gente». 4 6

U m a das formas mais notórias de desclassificação da medicina tradicional pela medicina moderna passa pela caracterização da anterior como prática ilegal de saber, da sua negação pela ausência de procedimentos «científicos» como a experimentação, ou de noções sobre epidemias e contágios (Polanah, 1967-68, 1987; Junod , [1917] 1996). Todos estes factores confi rmam a caracterização «local» da medicina tradicional, a partir de uma visão «científica» moderna. E m contraste, o trabalho c o m os médicos tradicionais tem demonstrado que há u m aturado processo de pesquisa e busca de novos remédios e soluções, bem c o m o a troca de informações entre estes terapeutas, onde não é estranha a experimentação, fenómeno que nem sequer é recente:

O meu avô, que foi um médico afamado no seu tempo, ensinou-me a curar desde pequenino. (...) Quando o meu avô faleceu, eu, dedicando-me ao estudo que ele legara, fui fazendo várias experiências e (...) convencido da utilidade desses remédios, fiz tratamentos de doenças que surgiram dentro da nossa família. Assim fui sendo conhecido desde há muitos anos como doutor (...) e fui salvando muitas pessoas de uma morte certa, adquirindo mais prática do meu trabalho e, devido à minha paciência e tenacidade, granjeei bastante fama (Madão, [1921] 1971: 9).

Desta breve análise histórica ressalta que a medicina tradicional, sem que o

Estado actual saiba bem o que esta faz, parece deter a capacidade de se ir

ajustando, n u m complexo jogo de aceitação e rejeição, a novos sistemas

terapêuticos, procurando negociar posições e manter o seu reconhecimento,

enquanto a biomedicina busca ainda vias e meios para impor as suas

competências.

4.2. A vitalidade da medicina tradicional

A s várias tentativas de supressão da medicina tradicional, ou pelo menos de delimitação da sua prática aos «sujeitos» indígenas, não civilizados, implicaram redimensionamentos da actuação destes praticantes, acções estas que constituem u m exemplo da extraordinária capacidade desta medicina em se adaptar e se apropriar dos mecanismos criados pelo Estado e m benefício dela (Meneses, 2000). Este tipo de interferência tem provocado crises periódicas de vulnerabilidade.

C o m a implantação do sistema colonial, o Estado português tentaria eliminar estes terapeutas, desclassificando a sua actividade como se tratando de casos de superstição, de magia, etc. (di Celerina, 1846; Cunha, 1883; Junod ,

4 6 Zimba, M.F., entrevista pessoal. Abril de 2000.

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[1917] 1996; Silva Tavares, 1948). C o m o consequência, e c o m especial

incidência durante os anos 1920 e 1930, vários «curandeiros» foram presos e

condenados ao degredo. Todavia, rapidamente, mercê da ausência de médicos

e enfermeiros nos territórios, o Estado colonial aceitou a presença de

curandeiros, po r não ter alternativa ao sistema de cuidados de saúde presente

no terreno:

A medicina indígena tem sido tolerada e deverá continuar a sê-lo, enquanto a assistência médica não puder chegar plenamente a todos os povoados do interior (...). Se a medicina gentílica deve ser tolerada em determinados pontos da Colónia, não será lógico usar do máximo rigor punitivo para os infortúnios clínicos dos ngangas não reincidentes. Além disso eles, de certo modo, devem ser considerados pessoas úteis no seu meio social, porque, à falta de melhor medicina, a que exercem não é de todo abominável (Gonçalves Cota, 1946: art. 68).

Fruto da fragilidade do sistema colonial português, os médicos tradicionais

vão mesmo solicitar e obter autorização formal (por parte do Estado) para

actuar como terapeutas em locais onde não existiam praticantes da medicina

moderna o u onde a confiança nestes não era grande.

N o período imediatamente posterior à independência (anos 70-80), o

primeiro movimento dos terapeutas tradicionais em Moçambique foi no

sentido de obterem mais espaço público de actuação. D e entre os objectivos

solicitados po r u m grupo de médicos tradicionais à Comissão de reestruturação

dos serviços de saúde do Gove rno de Transição, 4 8 referia-se a necessidade de

criar uma Esco la de Medic ina Tropica l , para formar mais terapeutas

tradicionais. Es te pedido foi recusado, já no período pós-independência,

[PJorque as práticas médicas tradicionais resumem-se a conhecimentos empíricos mesclados de obscurantismo. O reconhecimento oficial de uma organização de curandeiros

4 7 Mais censurada e perseguida era a prática da ordália, que passou a ser proibida em função dos ditames da justiça portuguesa. Vários dos artigos do projecto do Código Penal dos Indígenas propunham a punição de práticas consideradas de feitiçaria/magia: «O mágico ingénuo, sincero na sua arte, pratica um verdadeiro crime de envenenamento, mas consentido pela vítima, pois esta presta-se espontaneamente à prova da ordália, convencida de que a sua inocência triunfará de qualquer prova (...) a actuação do adivinho assume uma natureza de julgamento. Ele supõe-se o investigador dos feitiços que atingem os seus clientes e o juiz criminal dos feiticeiros. Ora, qualquer indígena sabe que não há hoje na Colónia outra justiça senão a exercida pelas autoridades portuguesas. (...) O respeito pelos costumes dos indígenas (...) é estabelecido nas nossas leis como um princípio fundamental da nossa política colonial, mas restrito a usos e costumes que não sejam contrários nem à moral, nem as ditames da humanidade, nem aos direitos de soberania do Estado» (Gonçalves Cota, 1946, art. 21). Ao banir o julgamento pela ordália, o Estado colonial reforçou a posição dos feiticeiros, cuja actuação não poderia mais ser identificada e julgada por este tipo de provas. Assim, ao sancionar a prática de feitiçaria, o Estado colonial abria também legalmente a possibilidade do feiticeiro acusar o seu ex-acusador, i.e., a sua vítima, de tentativa de assassinato (ver sobre o assunto Fisiy e Geschiere, 1990). 4 8 Agradeço a informação a L. Meneses.

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significava a institucionalização do obscurantismo. (...) Isto implicava a prática de medicina privada, que então não era legal.49

Porque importava «recuperar o conhecimento, mas não o H o m e m , pois que a atitude deste é obscurantista», 5 0 e fruto da pressão exercida por vários praticantes da medicina tradicional junto a órgãos do G o v e r n o e do partido Frel imo, a Direcção Nac iona l de Medic ina Preventiva no Ministério da Saúde foi encarregada de criar os instrumentos necessários para se proceder à recolha e pesquisa de plantas utilizadas pelos praticantes de medicina tradicional (Castanheira, 1979; T o m é , 1979). N u m a altura em que o campo de actuação dos curandeiros era severamente limitado, a recolha de plantas e a discussão sobre a sua utilidade juntamente c o m o G E M T e o I N I A 5 1 constituíam uma das poucas possibilidades para a continuação da sua prática c o m u m carácter de semi-legalidade.

E m b o r a tivessem esperado maior abertura em relação às suas actividades, «já que o país agora era nosso», 5 2 quer os médicos quer os magistrados do período pós-independência, em função da sua educação ocidental e dos objectivos políticos da altura, olhavam a feitiçaria e as práticas dos curandeiros como u m fenómeno vergonhoso, que deveria ser abandonado como condição para a construção de u m conhecimento novo, livre de misticismo e de obscurantismo. D e novo, no pós-independência, o Estado surgiu como aliado dos feiticeiros, ao manter a proibição da prática da ordália e a legitimação da sua aplicação pelas autoridades e instituições tradicionais. 5 3 Se no período colonial ainda algumas formas de actuação dos médicos tradicionais eram permitidas, agora a sua proibição instaurou-se, perseguindo-se todos os que eram considerados curandeiros (i.e., mesmo os que curavam pessoas e resolviam casos de feitiçaria). Neste ambiente abertamente hostil , os «terapeutas tradicionais» passaram a ser apelidados de obscurantistas, de detentores de mentalidades retrógradas (Castanheira, 1979; Tomé, 1979; Machel , 1981; Serviços de Nutrição, 1981), sendo punidos e mesmo condenados. 5 4

Nas palavras de M . F . Z i m b a , este foi realmente u m período muito difícil, e só a formação de u m grupo de médicos tradicionais poderia alterar tal situação:

4 9 Martins, H. (primeiro ministro da saúde de Moçambique), entrevista pessoal Março de 2000. 50 Ibidem. 5 1 Instituto Nacional de Investigação Agronómica. 5 2 Zimba, M E , entrevista pessoal, Abril de 2000. 5 3 Isto equivalia à proibição da detecção e punição de personagens considerados como detentores de um conhecimento mau, fonte de instabilidade social, e por isso nocivos à comunidade (ver nota 53). 5 4 Muitos teriam sido enviados para campos de trabalho, situados em locais longínquos, os chamados «Campos de reeducação».

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Eu desde há muito tempo que fui falar com Machel [primeiro presidente de Moçambique], para ele ajudar a organizar-nos. Era preciso organizar, para poder trabalhar bem, não ser perseguido. (...) Depois ele mandou-me falar com Hélder Martins [então Ministro da Saúde]. Este não queria (...), ameaçou fuzilar, mas eu continuei (...). Depois conseguiu-se e fez-se o Gabinete de Apoio à Medicina Tradicional. Eu trabalhei muito com Leonardo Simão [médico, actual ministro dos Negócios Estrangeiros] lá no Ministério, no gabinete. Depois deixei de trabalhar lá. Agora estou em casa a trabalhar.55

N o final da década de 80, e c o m a introdução das políticas neo-liberais, a abertura em relação à medicina tradicional alargou-se até que, em 1991, foi liberalizada a prática de toda a medicina privada. Isto tornou possível a constituição da A M E T R A M O — a Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique.

5. A A M E T R A M O

5.1 A formação da Associação

Depois da independência nacional, ao mesmo tempo que os médicos tradicionais viam a sua prática severamente cerceada, começam a ser contactados pelos juízes populares 5 6 para resolverem questões de feitiçaria, azares, etc.

Isto sempre foi assim, mesmo no tempo colonial. Logo no tempo da Frelimo [i.e., no período imediato do pós-independência], quando havia problemas com feitiçaria, o tribunal fazia guia de marcha para os curandeiros resolverem os problemas de azar, feitiçaria. Agora já mandam menos [casos], não sabemos porquê. Agora são as próprias pessoas que vêm nos solicitar para desmascarar os feiticeiros.57

Seria a capacidade do médico tradicional (reconhecida a nível da comunidade) de actuar como medianeiro na resolução de problemas que terá levado, em grande medida, o Estado a tentar controlar estes terapeutas, usando como mecanismo a formação de uma Associação.

A A M E T R A M O é, pois, u m encontro de vontades centrífugas, simultaneamente uma tentativa de controlo por parte do Estado (e mesmo de alguns partidos políticos) e u m espaço de reivindicação plural dos médicos tradicionais. Neste sentido, para os tinyanga, a Associação é imprescindível como espaço de legitimação racional, ao sentirem o risco constante presente na sua área de actuação profissional, reprimida po r um Estado que defende e promove a biomedicina, discriminando a medicina tradicional:

5 5 Zimba, M . F., entrevista pessoal Junho de 2000. 5 6 Instância básica então existente para a resolução de questões conflituais a nível da comunidade. 5 7 Zimba, M.F. e Cossa, P., entrevista colectiva. Agosto de 2000.

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Temos o problema das detenções dos nossos médicos, quando morre um paciente em tratamento tradicional. Isso não se verifica quando o paciente morre no hospital, o médico não fica detido.53

[Queremos a] legalização da prática da medicina tradicional para que possa ser exercida abertamente e deixar de ser encarada apenas como objecto de negócio. (...) O que nós queremos é sermos autorizados a trabalhar dentro da lei, em paralelo com a medicina moderna. O curandeiro deve deixar de ser venenoso (...), por isso a nossa preocupação maior de momento é vencer a velha mentalidade sobre as actividades dos curandeiros. Escangalhar o passado para modernizar o nosso trabalho.59

E m paralelo, a Associação é necessária para a certificação da sua actividade,

onde os seus dirigentes, através do formalismos burocrático-legais (emissão de

cartões, diplomas, etc.) «reconhecem os verdadeiros curandeiros», separándo­

os dos charlatães. Ta l como defendem os seus estatutos, a A M E T R A M O

pretende estender o método de certificação e oficialização dos médicos

tradicionais ao país inteiro, 6 0 para que possam trabalhar c o m mais segurança,

participando na luta pela melhoria da saúde do povo moçambicano. Conforme

a A M E T R A M O tem vindo a declarar repetidas vezes, «gostaríamos de

trabalhar mais estreitamente c o m o Gabinete de Estudos da Medic ina

Tradicional do Ministério da Saúde, no Instituto Nac iona l de Saúde, b e m como

com outras instituições que se dediquem a actividade de prevenção e cura de

doenças». 6 1

Finalmente, e como defendem os membros da A M E T R A M O , a

formalização desta associação prende-se c o m a necessidade de reforço da

capacidade organizativa dos médicos tradicionais, por forma a granjear mais

5 8 Entrevista de João Silva Zitha, da direcção da AM ETRAMO ao MediaFax de 19 de Abril de 2000. Em caso de morte de um seu paciente, o médico tradicional é julgado pelo código penal por crime de assassínio. Em princípio os médicos não são culpados da morte dos seus pacientes, se esta ocorrer fruto da incapacidade do hospital e/ou do conhecimento e meios disponíveis. 5 9 Palavras de Banú Idrisse (Presidente da A M E T R A M O até Abril de 2000), em entrevista ao jornal Domingo em 13 de Janeiro de 1991. 60 pelos estatutos, pode candidatar-se a membro efectivo da AMETR AMO qualquer pessoa que «venha exercendo a profissão de praticante de médico tradicional há mais de dois anos, com qualidade e idoneidade comprovada por duas testemunhas que sejam maiores de trinta e cinco anos e membros efectivos da Associação [...]. Caberá a estas testemunhas, que devem habitar na mesma zona onde o candidato a membro trabalha como médico tradicional, e que deverão ser capazes de avaliar o seu desempenho e testemunhar das suas aptidões e saberes terapêuticos, a partir da avaliação de vários casos comprovados de curas, comprovação esta que é legitimada pelos próprios pacientes». Uma vez demonstrada a sua aptidão, o médico tradicional recebe um cartão de membro, e passa a pagar as suas quotas anualmente. Todavia, quando os inquiri sobre a possibilidade de um praticante de acupunctura poder ingressar na AMETRAMO, a pergunta provocou surpresa, pois que o conceito de «medicina tradicional» se aplica num sentido muito restrito e específico — é o que é prática corrente valorizada e legitimada pelos locais... 6 1 Extracto de uma mensagem da direcção da A M E T R A M O , por altura da comemoração do segundo aniversário da celebração da escritura jurídica da Associação (01 de Setembro de 2000).

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apoio e assegurar o seu estatuto social e profissional, limitando a concorrência

por parte de outros terapeutas. D e facto, para além da competição e o não

reconhecimento pela medicina oficial, surge agora u m outro dado novo — a

competição po r parte de médicos tradicionais estrangeiros. 6 2 «Vamos pedir

explicação sobre a entrada de médicos tradicionais estrangeiros no país. E se

bem que esses médicos tenham autorização, vamos exigir ao G o v e r n o para os

tais, antes de se apresentarem ao executivo, que tenham o parecer da

Associação». 6 3 Para os médicos tradicionais, quanto mais ameaçado está o seu

espaço de actuação, quanto mais enfraquecida está a sua legitimidade

tradicional, mais forte é a necessidade de recorrer a u m reconhecimento oficial,

recorrendo-se a estruturas «legais» para reprimir o «tradicional dos outros».

Para grande parte dos seus membros porém, o objectivo central da

A M E T R A M O - a constituição de u m espaço de reivindicação social pelo

reconhecimento e promoção da medicina tradicional — não tinha sido alcançado

durante a primeira década da sua existência.6 4 Isto explica a realização, em A b r i l

de 2000, em ambiente bastante conturbado, da primeira Assembleia Geral desta

Associação. A actual direcção da A M E T R A M O , agora encabeçada por M . F.

Z i m b a — uma das pessoas que afirma mais ter lutado pela constituição desta

associação - ganhou as eleições realizadas durante esta Assembleia. 6 5 Se bem que,

no discurso oficial, as críticas mais severas à anterior direcção se prendam com a

sua inoperância face aos objectivos de luta da Associação, outras razões existem

para explicar os desentendimentos no interior da A M E T R A M O . A s lutas pelo

poder são mais profundas, surgindo por vezes à superfície a questão do prestígio

e do poder que a detenção destes saberes confere. Outro dos problemas prende-

se com a manipulação de fundos, pois que a anterior direcção foi várias vezes

acusada por membros da A M E T R A M O de não conseguir justificar a utilização

do montante que recolheu durante o seu mandato (Manjate, 2000). Finalmente,

Z imba clama ter liderado desde cedo a luta pela constituição desta associação,

justificando assim a sua posição de destaque no seu seio. Para este dirigente, a

grande crítica apontada à anterior direcção da associação assenta na falta de

empenho na promoção da medicina tradicional: «A Banú [antiga presidente] não

fez nada, nem sede de A M E T R A M O tínhamos...». 6 6 Para Z imba está claro que

a definição do campo de acção da medicina tradicional tem de ocorrer c o m

6 2 Incluindo os praticantes da medicina tradicional chinesa e de tratamentos ayurvédicos a actuar em Maputo, embora não sejam considerados pela A M E T R A M O «verdadeiros» médicos tradicionais. Assim, esta mensagem dirige-se especialmente a terapeutas tradicionais oriundos de outros países africanos. 6 3 Zitha,J.S., em entrevista dada ao MeãaFax de 19 de Abril de 2000. 6 4 A AMETRAMO foi fundada em 1982 e obteve reconhecimento legal em 1998. 6 5 E M . Zimba é agora Presidente da Assembleia Geral da A M E T R A M O . 6 6 Zimba, M.F., entrevista pessoal Maio de 2000.

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apoios em instâncias de legitimação exteriores ao seu campo de acção, incluindo o

regime judicial moderno e as outras medicinas, principalmente a biomedicina:

A AMETRAMO tem que ficar bem organizada, e todas as pessoas têm que saber que [a organização] existe. Temos de trabalhar com os outros médicos [biomedicina] para resolver problemas, para ajudar, para fazer essa ligação. Se não não funciona. Nós quando vemos que não resolve o problema, quando a doença não sai, tem casos que manda no hospital Eles [médicos modernos] não fazem isso.67

Embora sujeitos a algumas regras burocráticas (como a necessidade de ter

cartão de membro, o pagamento de quotas, etc), os membros da A M E T R A M O

estão ainda livres para responderem às dinâmicas alterações que continuam

ocorrendo. Até onde poderá a A M E T R A M O ir c o m a burocratização da

organização? Importa, pois, avaliar as rupturas e continuidades existente entre as

intenções do discurso e a prática quotidiana.

P o r exemplo, os estatutos da A M E T R A M O asseguram 6 8 a figura de

«Conselho Fiscal» c o m o u m dos órgãos directivos c o m funções de controlo

administrativo; 6 9 na prática, e como foi repetidas vezes reafirmado por

membros da actual direcção, a principal função do Conselho Fiscal é a de

«fiscalizar a actuação dos seus membros», 7 0 i.e., velar pela aplicação dos

princípios éticos da medicina tradicional.

N o plano formal, o reconhecimento dos médicos tradicionais parece passar

pela anulação da sua legitimidade tradicional, ao reduzir a sua acção terapêutica

a u m conhecimento «puro», de onde se ausenta a sua dimensão social. N a

prática porém, a legitimidade tradicional permanece, se bem que à primeira

vista menos visível. A o recorrer continuamente a estes terapeutas para resolver

os males de que são alvo, os pacientes reafirmam a legitimidade, o poder e a

confiança no saber do médico tradicional. O s próprios praticantes estão

conscientes do seu papel neste processo de controlo social, conforme já foi

referido anteriormente.

A organização dos médicos tradicionais é importante para a conquista de

novos espaços de reconhecimento oficial, num jogo duplo entre a legitimidade

tradicional e a racional, espelhando o aproveitamento, por parte da medicina

tradicional, dos espaços de poder criados pelo Estado. Z imba não necessita de

6 7 Zimba, M.F., entrevista pessoal, Março e Abril de 2000. 6 8 Por decalque de estatutos de outras associações a funcionar em Moçambique. 6 9 Artigo 25 dos Estatutos da AMETRAMO: «O Conselho Fiscal é um órgão independente de todos os órgãos da associação, com funções de controlo do documento dos estatutos, programa regulamento, deliberações de todos os órgãos da associação e observância da lei, pela mesma». Artigo 26: «E da competência do Conselho Fiscal fiscalizar todos os actos administrativos da associação, examinar as contas e escrituração dos livros de tesouraria; apresentar na Assembleia Geral ordinária o relatório de contas». 7 0 Zimba, M.F., entrevista pessoal, Março de 2000. Cossa, P., entrevista pessoal, Abril de 2000.

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cartão da A M E T R A M O para garantir a sua condição de médico tradicional: o número de pacientes e o respeito demonstrado ilustram melhor do que estes documentos «legais» a realidade do seu reconhecimento social, assente na legitimidade tradicional. Contrariamente ao que alguns autores parecem sugerir (Nathan & Strengers, 1995; Honwana, 1996; Xaba, 1999), a realidade aqui descrita indica que é a ausência de legitimidade que faz o charlatão. A q u i tanta falta de legitimidade tem u m médico tradicional sem clientes como u m centro de saúde sem meios ou um advogado que não consegue defender as suas causas.

O s discursos sobre a medicina tradicional e mesmo sobre a feitiçaria contêm u m subtexto que oferece explicações sobre as mudanças modernas e m presença. A reafirmação, por parte de muitos, do carácter tradicional da feitiçaria, ao actuar como obstáculo à mudança, também tem fundamento. U m exemplo será o da explicação sobre a origem de uma doença. Quem detém o saber e cura alguém, possui ligações ou conivências com as instâncias que regem as relações sociais. Assim, interpretar e curar uma «doença» pode significar exactamente o seu oposto (por exemplo, apoio em caso de roubos e seu encobrimento). Dependendo da perspectiva que se tem sobre a «cura», o terapeuta tradicional tanto pode curar, como pode também causar problemas a outrem (impedir promoções, por exemplo), ao concentrar todo o reforço ancestral apenas numa das partes em litígio. Por isso é que é necessária força e protecção para não se ser vítima de instâncias ancestrais que podem resultar em «azares», «má sorte», enfim, em ausência de saúde. U m mesmo discurso pode assim, num certo contexto, apresentar um conteúdo muito tradicionalizante, opondo-se ao desenvolvimento e à mudança. Noutros contextos, o mesmo discurso parece ligar-se muito bem com os novos elementos de desenvolvimento, do que resultam situações ambivalentes.

5.2. O Estado e a AMETRAMO

A avaliação do tradicional não deve ser vista apenas a partir do campo do formalismo legal exercido pelo Estado. Diversos terapeutas tradicionais referiram ser prática c o m u m o encontro c o m os seus mab'ava para avaliarem males sobre os quais t inham dúvidas, prática que hoje está a ser reforçada c o m a constituição da A M E T R A M O . 7 1

A A M E T R A M O não veio, pois, preencher um espaço totalmente vazio nas relações entre os terapeutas tradicionais. Durante as «mavandla»72 para a graduação dos «mathwasana» é frequente os terapeutas encontrarem-se para

7 1 Tamele, C , entrevista pessoaL Abril de 2001. 7 2 Vandla — assembleia, reunião (tít). Aqui refere-se a um grupo de terapeutas tradicionais que teve ou tem ainda o mesmo b'ava ou ainda a grupos mais alargados constituídos para a discussão de assuntos relativos à «saúde» de uma dada comunidade.

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debater questões que os afectam. A A M E T R A M O tem contribuído para reforçar

e ampliar estas ligações. Outro aspecto distinto é a constituição da A M E T R A M O

como u m espaço de reivindicação social pelo reconhecimento da medicina

tradicional. Neste caso, os membros da associação demonstram estar, não em

posição de fraqueza, mas de poder, investidos do peso social que representam. O

interesse da actual direcção em finalizar a legalização da A M E T R A M O , 7 ' ' bem

como ao actuar como representante dos interesses dos tinyanga do país na

reabilitação da medicina tradicional, contribui para a sua própria legitimação; o

poder que acompanha esta representação actua como garante do interesse e

como veículo para alcançar tal objectivo.

O paradoxo que muitos asseguram constituir u m impedimento ao

desenvolvimento — a persistência de valores «tradicionais» — não pode ser visto

como uma antinomia. A tradicionalidade apenas o é na medida em que se

distingue da modernidade pela diferença, mas alimentando-se continuamente

desta. Os encontros de múltiplas personagens dão-se a cada passo: o Estado

ignora o médico tradicional, enquanto os seus funcionários recorrem a este

frequentemente; as Faculdades de Medicina, de Direito, não contemplam estes

saberes, enquanto muitos dos enfermeiros e outro pessoal médico, advogados,

etc, não hesitam em consultar estes terapeutas. Este paradoxo apenas constitui a

aparência de uma contradição: a norma enunciada e imposta pelo Estado decorre

de um modelo legal e racional de legitimidade. Os agentes que constituem estas

instituições, pelo contrário, distanciam-se destes princípios quando actuando

como pacientes, obedecendo apenas às regras da prática. C o m o dizia um dos

doentes, «tudo vale, não se sabe se vai funcionar, mas um vai de certeza; não

podemos é arriscar». 4 Para o paciente, a questão de legitimação recua face à

emergência do mal, de um problema, do azar. O professor universitário, o

ministro, o advogado, quando consultam um médico tradicional para obter uma

solução ou a cura de um mal, procuram u m ponto de força e não legitimação.

Daqui a impossibilidade de dividir a sociedade em «tradicional» e «moderno», em

função da medicina, da procura de cura. O homem de negócios «civilizado» ou a

camponesa «tradicional» com o filho doente apresentam itinerários semelhantes,

7 3 Até meados de 2001 a AMETRAMO esteve em processo de transição de poderes (o que significa informação insuficiente sobre o número total de membros e sobre o seu estatuto social, origem étnica, etc); esta associação, porque fundada no sul do país, tem predominantemente falantes de xichangana e xironga. Nas palavras da primeira presidente da AMETRAMO, Banú Idrisse, «porque muitas das escolas e/ou centros de especialização aparentemente estarem nas províncias do sul, estas é que albergam mais médicos tradicionais» (entrevista ao Jornal Domingo de 13 de Janeiro de 1991) Todavia, isto pode ajudar a compreender porque é que pessoas de outras regiões do país, pertencentes a outros grupos «étnicos», não se sentem representadas nesta associação. Outro factor pode prende-se com as influências partidárias, por a AMETRAMO ser frequentemente conotada com afinidades à Frelimo. 7 4 Boane, A., entrevista pessoal. Março de 2000.

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apenas distintos nos meios financeiros envolvidos e, consequentemente, no

prestígio dos praticantes tradicionais consultados.

6. Onde reside a alternativa?

Voltando ao início do texto, a questão permanece: será que a medicina

tradicional é realmente alternativa à biomedicina? T o d o o quadro desenhado até

agora leva a sugerir que, no fundo, a luta da biomedicina por u m enquadramento

reducionista da medicina tradicional (apenas no sentido restrito dos remédios e

técnicas de saúde), bem como a resistência da biomedicina em aceitar o amplo

espectro de eficácia da medicina tradicional, é o reconhecimento da força desta

outra medicina, apelidada, por oposição, de tradicional. A razão mais forte que

explica a enorme vitalidade destas medicinas tradicionais parece assentar no facto

de as instituições «médicas tradicionais» tratarem a doença de u m dado paciente,

do mesmo modo com que resolvem problemas da sociedade, como sejam a

ordem (representações, normas) ou estabilização de problemas e conflitos

(tensões, azares colectivos, etc). São figuras da modernidade, mas de uma outra

modernidade, não imposta mas composta de compromissos c o m as ordens

anteriores. Longe de encarnar o imobilismo da tradição, a medicina tradicional

alimenta-se desta modernidade eminentemente problemática, apropriando-se de

todas as brechas e metamorfoses criadas pelo Estado para lhe atribuir novos

sentidos. A s medicinas tradicionais actuam como elementos reguladores de

ritmos sociais, pacificando as tensões e assegurando a reprodução dos tecidos

sociais.

O enfoque principal de interpretação consiste em demonstrar que a

modernidade não acabou e que ela não cessa de amplificar o ruído do tradicional.

Se o tratamento da doença passa necessariamente pela eficácia terapêutica de

procedimentos simbólicos e interpretativos, outras formas de intervenção

garantem-lhe uma maior amplitude. Para além do tratamento das diversas

manifestações de infortúnio (insucesso escolar, desavenças conjugais, problemas

financeiros), o médico tradicional opera também no campo preventivo,

garantindo aos seus pacientes meios de protecção contra diversas fontes de

agressão. Neste sentido, o médico tradicional assegura o desenvolvimento,

instalando-se no seio de uma modernidade que, pelas suas aspirações e estratégias

individuais, tenta romper com as lógicas anteriores. E por isso que a medicina

tradicional continua atraindo não apenas pacientes de zonas rurais, nem apenas

pessoas provenientes de camadas economicamente mais desfavorecidas;

outrossim, assiste-se cada vez mais a problemas e expectativas de pacientes

oriundos do meio urbano, em busca de tratamento, de protecção, de sucesso, de

algo que todos crêem ser possível e praticável. Pode-se, pois, legitimamente falar

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de uma forma de saber e de poder contra-hegemónico, onde esta «medicina»

representa as dinâmicas e os pólos de poder utilizados localmente.

Para responder à questão de início - será que a medicina tradicional é urna

alternativa à biomedicina? — creio ter conseguido demonstrar que é a capacidade

de se apoderar da modernidade e de a modificar consoante as suas necessidades

que faz acreditar na força deste campo de saber. A alternativa não reside nos

conhecimentos «outros», classificados de complementares, mas numa complexa

relação entre diferentes conhecimentos, todos eles legítimos na perspectiva de

quem a eles recorre e os consagra como forma de poder. A intermedicina é,

portanto, sinónimo de uma miríade de medicinas — urnas preferidas a nivel da

família, outras da comunidade, outras do trabalho e outras ainda no espaço

público da cidadania, o que lhe consagra u m carácter emancipatório.

O reconhecimento da A M E T R A M O por parte do Estado, através da sua

legalização, não se traduzirá afinal na tentativa vã de imposição de uma versão de

modernidade exógena à que se desenvolve no terreno? N o que concerne aos

poderes públicos, nacionais e internacionais, a aposta política parece ir no sentido

de valorizar e pseudo-legitimar a medicina tradicional, negando porém a

dimensão social desta medicina, ao reduzi-la, no seu campo de actuação, à sua

farmacopeia, aceitando-a apenas devido à sua implantação no terreno. A s

constantes tentativas por parte do Estado de «promover e valorizar» as medicinas

tradicionais como complementaridade alternativa à biomedicina, desembocam

num outro pólo de tensão e conflitos, fruto dos esforços para controlar

politicamente as comunidades onde este conhecimento é produzido. Todavia, o

reconhecimento da complexidade, da fluidez, e da ambiguidade dos meandros

que compõem o campo social da medicina tradicional torna esta tentativa de

controlo bastante difícil, senão mesmo impossível de alcançar. A o normar estes

processos, ao cristalizar o conhecimento sob formas escritas, repetidas e pouco

inovadoras, não se estará a pôr em causa a ambiguidade tão essencial à dinâmica

de transformação e apropriação criativa da modernidade pela medicina

tradicional?

O carácter emancipatório da intermedicinidade deriva do seu estatuto «em

construção», pelo qual a medicina tradicional experimenta uma travessia

conturbada no processo de produção de uma «outra» modernidade. Nesta

travessia, são ecos e registos do tradicional os que mais se destacam, porque

dissonantes da «modernidade clássica ocidental». A constelação de saberes

distintos que se vai constituindo entre as várias realidades terapêuticas possibilita

um reforço da sua actuação e da sua legitimidade e, em simultâneo, um maior

controlo mútuo. Este mosaico de conhecimentos heterogéneos emerge, assim,

como garante da permanência de u m diálogo aberto e em construção, como

forma de exercício democrático de saber/poder, o que lhe atribui a sua qualidade

emancipatória. Daí a necessidade de, a partir das formas de resistência locais,

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apresentar os distintos actores e os seus universos de luta, construir ligações entre estes actores, mobilizando-os e apoiando as sua campanhas por uma inclusão cada vez mais igualitária na diversidade de saberes, pela conquista de mais espaço de actuação, pela possibilidade do alargar dos campos de saber partilhados. Tal unidade assente na diferença constituirá u m dos pilares na elaboração de uma nova perspectiva global contra-hegemónica. 7 5 Este tipo de pesquisa tem obrigatoriamente de ser dirigido para uma intervenção política, para a transformação das sociedades actuais.

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Maciane F. Zimba e Carolina J. Tamele: os percursos e as experiências de vida

de dois médicos tradicionais moçambicanos

Maria Paula G. Meneses

Introdução

Este texto inicia-se c o m a narrativa pessoal que apresenta a vida, as

cosmovisões e as ideias sobre o mundo de Maciane Z i m b a , u m médico

tradicional • de Moçambique, actual presidente da A M E T R A M O (Associação

dos Médicos Tradicionais de Moçambique); inclui também a voz de Carolina

Tamele, esposa de Z i m b a e chefe do Departamento de Cultura desta

Associação, interpondo posições próprias, complementando situações ou

abrindo campo para outras intervenções. A entrevista conjunta que constitui

esta narrativa foi realizada ao longo de inúmeros encontros. Este trabalho

consiste em peças de informação recolhidas durante quase dois anos. A s

diferentes pessoas, locais e questões que fomos descobrindo e abordando

tornaram-se espaços de continuidade, constituídos através de uma relação de

amizade.

Sempre que possível, o texto segue as palavras dos entrevistados, embora as

perguntas de orientação estejam também presentes. A s histórias destes dois

actores espelham a luta e o movimento pendular do percurso histórico de

Moçambique, incluindo os desejos, visões, conflitos, entre a modernidade e o

tradicional, entre o Estado e as outras forças de moderação e controle social,

enfim, entre mundos aparentemente dissonantes e que partilham inúmeras

pontes de contacto, quer no período colonial, quer após a independência.

Porque não sou fluente em xichangane, e devido ao fraco domínio do

português pelos entrevistados — acrescido do facto de que «a nossa medicina é

feita nas nossas línguas», conforme expresso po r C . Tamele — as entrevistas

foram em muitos momentos realizadas em xichangane, língua falada no sul de

Moçambique. Para garantir a riqueza da transcrição das entrevistas contei com

o apoio de Zefanias Matsimbe. Mats imbe jogou também u m papel crucial na

tradução das entrevistas.

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Excertos de percursos: a minha vida como eu me lembro — a narração de Z imba

P - Papá Zimba, fale-nos um pouco do senhor... onde nasceu? Aqui no Maputo? Zimba - Não, não é aqui. Nasceu na Gaza, é de Bilene-Macie. É adulto assim

agora, é muito tempo que nasceu. E de 34 [1934] P - Papá Zimba ê casado?

Zimba - E casado, mas faleceu minha esposa. Tem duas mulher [risos]. Agora minha senhora é Carolina Tamele...

P - Quantos filhos têm? Alguns deles têm casa no seu terreno, moram lá, não é? Zimba — Tem muitos filho. É 10. Aqueles grande já casou, trabalha na Africa do

Sul. Tem casa aqui, mas está na Africa do Sul. Outros filhos ainda é criança, ainda vai na escola.

P - Papá Zimba, estudou alguma ve^foi a alguma escola? Zimba - Estudou um bocadinho no Bilene. Aqui no Maputo já, chegou a estudar,

acabou na segunda classe, a graça dos espírito1 deixaram... E u veio para Maputo no tempo mesmo da Caderneta Indígena, mesmo nesse tempo 2 [risos]. H i , primeiro chegou aqui trabalhar no Hotel, não lembra o nome. Fazia lavar as louças quê, quê, quê, arrumar as quartos... Depois eu voltei para a terra, em Gaza. A casa é lá, aqui era só para fazer o trabalho, não é? Quando chega ali eu foi depois na Africa do Sul, nas minas...

P - Foi para as minas...

Zimba. Sim, lá na África do Sul . . . fui nas minas, trabalhou dois anos nas minas.3

A l i já tiravam eu para fora [das minas] para eu trabalhar no solo. Y a . . . Os espíritos atacou muito quando eu estar na África do Sul. Esse espírito é manguni. 4 Nome desse espírito é Kondjani. Esse é o espírito que eu tem. Ele está no mato, muito muito lá no

1 Referência ao apoio dos espíritos dos antepassados. Esta relação entre os espíritos ancestrais e os membros vivos da comunidade é extraordinariamente importante. Pela natureza da ligação genealógica, os espíritos são um hóspede perpétuo da família, da comunidade, fornecendo protecção e benefícios em troca de oferendas periódicas que asseguram esta ligação. Cabe aos mais «velhos» (chefes, médicos tradicionais, etc.) manter este contracto de segurança e protecção. 2 O regime do Indigenato (que existiu até 1961), como sistema político imposto pelo Estado Colonial, assentava numa estrutura de identidade social, a qual, através do sangue ou por associação a uma linhagem particular, garantia os direitos básicos de residência e de cultivo de terras dentro de uma comunidade política mais alargada. As leis, estatutos e políticas que opunham o cidadão ao indígena definiam os cidadãos coloniais como aqueles que podiam mover-se livremente no território, contratar força de trabalho e adquirir propriedade, em oposição aqueles a quem isto não era possível — o indígena. Para se deslocar a qualquer local em Moçambique ou para fora dele, o indígena tinha de possuir uma Caderneta, indicando o seu destino, confirmado depois pela entidade patronal. 3 Ainda nos dias de hoje é comum aos homens jovens do sul de Moçambique migrarem para a África do Sul para trabalhar. Durante muito tempo esta mão-de-obra era canalizada especialmente para as minas de ouro do Rand. 4 I.e., do grupo dos Nguni, que a partir de meados do séc. XVII ocupam extensos territórios da região sul-central de Moçambique devido ao M'fékane.

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mato, no rio. É espírito do rio, da água. E agora quando eu voltei da África do Sul já está muito atacado. E u voltei [a Moçambique] quando eu estar um bocadinho cabeça maluca. O espírito saiu e eu sentia dor, dói muito... sentiu uma cabeça que não regula bem e quando estou lá na África do Sul, outro dia quando eu dormi, chegou quase um homem, um espírito e diz: «Volta para casa», mas eu não diz a ninguém, não percebia. Só tem uns seis dias que eu estava na África do Sul. Depois ainda ficou algum tempo a trabalhar na África do Sul, parece quatro meses, mas ficou pior, o espírito cada vez saía mais no meu corpo e eu ficou doente. Já não consegue trabalhar. Então aquele bóer lá, ele viu com olho e diz: «Você tem um espírito mas não sei como vai fazen>. E então começa a perguntar alguma coisa. E u diz que não sei o que está a se passar. Mas quando é um espírito, esse espírito quer que eu trabalha a fazer as coisas dele [do espírito]. Como vou fazer? O bóer diz: «Tem que voltar lá, na sua terra». Mas eu ficou lá, trabalhou lá, trabalhou, trabalhou, chega no contracto acabar e volta para casa. Quando eu voltou para casa, chegar aqui, o espírito está a sair. De novo. Logo que eu cheguei de volta, no Bilene. E u chegou lá, pronto, disse aos meus irmãos: «Estou aqui» e eles mandou vai no curso para ser curandeiro. E u estudou muito, foi «thwasàna»5 dois anos Chegou lá no curso em [19]52, [19]53 e em [19]54 acaba o curso. Dois anos... Depois fico a ser médico tradicional. Primeiro é começar a aprender a saber falar, mandau, manguni, que é a língua dos espíritos. Não é a língua que nós fala6, é outro. Depois, já em sessenta e qualquer coisa, veio na Maputo... Está aqui até agora.

« Q u e m vai ajudar a nos libertar, já que ouvimos dizer que o

curandeirismo não é permit ido?» As primeiras tentativas de organização

dos médicos tradiconais

P - Então, porque o papá Zimba é médico tradicional, trabalhou muito para fa%er METRAMO?

Zimba — Sim, eu sou agora presidente da A M E T R A M O , mas custou muito fazer Associação. Começou [19]74, [19]75 7...Mesmo antes da independência, mas custou muito. Mas antes era chamada Organização. Começamos a trabalhar, a falar com os curandeiros.. .Dávamos apoio se pediam...

P - Davam apoio? Como, com dinheiro também?

5 Estudante de medicina tradicional. 6 A língua materna quer de Zimba, quer de Carolina Tamele, é o xichangane, uma das línguas faladas no sul de Moçambique. A língua dos Nguni é predominantemente falada na África do Sul, no KwaZulu-Natal; o cindau (língua do grupo ndau) é falada na região centro de Moçambique. 7 Nesta altura, vários médicos tradicionais a operar no sul de Moçambique contactaram a Comissão de Reestruturação dos Serviços de Saúde do então Governo de Transição com dois objectivos principais. Pretendiam criar uma «Escola de Medicina Tradicional», e, a partir desta, formar uma organização de médicos tradicionais. Tal pedido foi recusado, pois que, a constituição de tal organização «significaria a institucionalização do obscurantismo dos curandeiros por parte do Governo» (Tomé, 1979).

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Zimba - Com o dinheiro que recolhia lá entre os curandeiros. Tinha quotas, mas era pouco, muito pequena, nessa altura contribuí cada um é cinco escudo [risos]. Tivemos a independência e chegou papá Samora [Machel] a trabalharmos na nossa organização. Com o tempo impediram a nós de fazer o nosso próprio trabalho. Quando os curandeiros vai no trabalho, chega lá milícia, roubava o dinheiro dele [do médico tradicional]. Eles dizia: «Nós estar a trabalhar, você não, vamos levar essas galinhas». Também no caminho, na estrada tem aqueles que fica de guarda, quer ver o povo, mandava parar machimbombo e sair todos, ver identificação [risos]. N o controlo da estrada8 quando encontra esse que é curandeiro - é pá! tem que comer tudo o que ele traz, todos os remédios. Ficava a obrigar para comer, ali mesmo na frente dele. Bastava tocar um pouco de «gosha»9 e havia logo os milícia que prendia quando ouviam e queimava os instrumento de trabalho dos curandeiro. Sofreu muito... Teve outros médicos que foi mandado em Lichinga, foi no Niassa...

P - Nos campos de reeducação?

Zimba - Nos campos de reeducação e muitos dele morreu lá mesmo, outros conseguiu voltar. Tentámos resolver este problema, mas nesse tempo o Partido Frelimo quis nos extinguir completamente, mas nós continuou a trabalhar, a fazer as nossas actividades. Eles [Frelimo] tomou essa decisão porque uns de nós se queixavam...

P - Era dentro de vocês que havia queixas? Não concordavam com a organização? Zimba - Houve queixa sim, queria organização, mas eles [outros médicos] dizia que

eu arranquei-lhes o lugar e... P -Quer dizer que nessa altura já era presidente da organização? Zimba - Era só os secretários... Quando nós viu que as nossas coisas estava a andar

mesmo mal procurei maneiras de falar com Jossefate Machel [irmão de Samora Machel]. E u falou com ele dos problemas dos curandeiro, que estavam a queimar os coisas que nós usa para trabalhar [utensílios de médico tradicional] e outros problemas, ele respondeu: «Eu não pode responder nada e nem o Presidente Samora pode palavra sobre isso; quem pode ter palavra sobre questões de tradição é o papá» [referia-se ao Moisés Machel, pai de Samora Machel]. Procuramos falar com Moisés e fomos encontrar ele lá mesmo em casa do filho Jossefate e nós falou muito com ele da nossa tradição, e ele disse: «Eu só ser pai do Presidente, não ser chefe; mas eu digo que mesmo os portugueses tentaram impedir que os médicos tradicionais trabalhasse, mas não conseguiram; o meu filho também não vai ser capaz de proibir isso. Mas eu não pode decidir nada sobre isso, isso só ele, Presidente, pode decidin>. Aí nós foi informado que Samora ia a Chilembene [em Gaza, sua terra natal] para apresentar a Graça [sua futura esposa] aos pais de Samora, e também para visitar sepultura da mãe dele... Foi próprio Moisés quem convidou a gente a ir a Chilembene e ajudou a nós. Chegou lá e depois o papá Moisés recebeu a nós e começou a explicar ao filho [Samora] o que nós queria; ele, o Presidente, mandou-nos aguardar. Quando chegou nossa vez fomos mandados para dentro de casa e aí Samora chegou com os seus

s Nos primeiros anos da independência era frequente a existência de controles de identificação em vários pontos das estradas do país. 9 Objectos de percussão feitos a partir de cabaças, utilizados pelo nyàngà.

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acompanhantes e quis saber qual era bem o nosso problema. E u estava com colega meu, que devia falar, mas não conseguiu falar com Samora por ter medo....

P- Medo de Presidente [risos].? Zimba - Medo do Presidente. Mas eu conseguiu falar com Samora, e eu disse que

estávamos a procurar a ele porque ele dizia: «Mesmo os leões que estava acorrentados estão livres; e todo o meu povo está livre». E u disse a ele: «Nós, os médico tradicional, filhos da tradição, que cuida dos espíritos da tradição, quem vai ajudar a libertar, se não for você? Quem é o Presidente que vai nos libertar, já que ouvimos dizer que o curandeirismo não é permitido?»

P- E porque ê que a Frelimo não deixava os médicos tradicionais trabalhar? Zimba - Dizia que depois dos brancos [portugueses] ter ido embora, agora nós é

que era os oportunistas. Éramos os próprios candongueiros [risos]. Depois de eu ter explicado tudo o que acontece, ele perguntou: «Já alguma vez ouviu eu a dizer abaixo os curandeiros? Também quando se diz abaixo alguma coisa não significa o fim, é para diminuir. Quero dizer a vocês que o curandeirismo não vai acabar, mas os que vacinavam os portugueses para eles conseguir chegar na Tanzânia e matar as pessoas da Frelimo sem ser visto, esses é que são nossos inimigos. Como já explicou tudo e veio cá ter comigo, eu autorizo - vão trabalhar!». Ele a mim perguntou se eu batia tilholo 1 0... e se eu era nyamusòro11. E u confirmou e então ele mandou-nos trabalhar, mas recomendou «não kotsolem, 1 2 não ajudem a abortar, não tirem a areia da pisada dos outros para matar...»

P - Não vos acusou de criarem confusão nas famílias? Zimba - Disso não, apenas disse que nós tinha que trabalhar só para curar as

pessoas. Nós agradeceu a resposta dele e ele perguntou se nós tinha mais alguma coisa para dizer. Nós disse não, não tinha mais nada, era só aquilo. Ele disse para irmos dizer ao Partido [Frelimo] que ele autoriza a continuação das nossa actividade. Aí eu disse: «Partido é seu filho, nós somos seus filhos; nós não tem força de palavras para falar no Partido; melhor ser o próprio chefe a dizer isso. Se é eu a dizer que o chefe autorizou sem que você [Presidente] dizer, eles pode até matar a nós». E Samora deu uma carta a nós, e disse para irmos entregar mo Partido. Quando nós voltou no Maputo eu reuniu com alguns [curandeiros] e disse que devia ir entregar a carta ao Partido, mas eles recusaram. Eles disseram: «Não podemos ir porque com isso que já nós viu no Partido, eles prendem a todos nós». Então eu fui sozinho no Partido para entregar a carta. Mesmo lá, quando encontrou o Sigaúque —era secretário dos todos os bairros e distritos da Maputo - ele, quando viu a carta chamou os amigos dele aí no Partido e esses perguntaram quem tinha me dado a carta. E u respondeu que quem entregou-me a carta assinou o seu nome; eles perguntaram se havia me queixado deles

1 0 Ossículos divinatórios usados como meio auxiliar de diagnóstico pelo médico tradicional. 1 1 Médico tradicional que trata apenas com o auxílio dos espíritos. Quem trata apenas conhecendo as qualidades e características de plantas e animais, é designado de «nyàngàrhume». 1 2 Fazer feitiço para o marido ficar sob controlo total da mulher sem se aperceber. No que refere às pegadas, em causa está o medo de um feitiço que possa perseguir as pessoas e fazer estas não encontrar o caminho, ou então ser perseguidas por espíritos maus [explicação posterior de Zimba]

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[do comité do partido da cidade]. E u respondeu que não, que nós só queria arranjar maneira de poder trabalhar como médico tradicional, sem problema, com liberdade. Eles aconselhou que devia mandar a carta para o Ministério da Saúde; nessa altura o Ministro era Hélder Martins e trabalhava muito com o Secretário [Geral do Ministério], Albino Maheche. Os do partido deram carro para acompanhar a mim até lá, e deixar a mim com Maheche, lá no Ministério. Ele viu a carta e entregou ao ministro Hélder Martins. O ministro procurou-me para falar comigo...

P - Noutro dia? Zimba - N o mesmo dia. Chamou através do Secretário Maheche. Quando eu

chega, o Ministro disse para eu sentar e perguntou onde eu tinha encontrado aquele papel [I.e., a carta]. E u diz: «Esse que escreveu assinou o nome. Tem a assinatura dele aí. Você está a ver a assinatura». «É o quê isso? E sua família ou quê?» pergunta do Ministro. «Não é família, é o nosso Presidente», eu diz [risos] «Então está bem», disse ele. Fez um bocadinho zangar para vingar. «Então vai fazer uma carta para vir aqui?»... foi essa pergunta dele; e ele disse que primeiro eu tinha que ir no notário, fazer requerimento, depois reconhecer assinatura e voltar no Ministério. Depois disse que ia mandar tudo de volta à pessoa que tinha dado aquela carta. Ele diz que ia dizer Samora que eu tinha que ser fuzilado...[risos]

P - E depois? Zimba - Então eu disse: «Quando ele fuzilar a mim não tem problema, está a

morrer enquanto trabalha.» Então fez os documento e mandou reconhecer no notário e mandar no Ministério. E u tratou tudo e fez fotocópia tudo e trouxe no ministério. O Ministro perguntou: «Voltou outra vez? Onde está ele? Vai chamar ele!» O Secretário Maheche veio dizer isso a mim. E u respondi: «Eu vai fazer o nosso documento aqui para ir ao Presidente. Se ele despachar que essa pessoa tem de morrer, morre mesmo». E u já tinha passado em água grande, este Ministro já era água pequena Samora devia matar a mim lá em Gaza, antes, não esse Ministro. O Secretário disse: «Não tem medo Sr. Zimba, aqui no Ministério não tem medicina tradicional, nem medicina privada. Samora quer um quarto para ter medicina tradicional para trabalhar connosco». «Então está bem», eu disse. Maheche a seguir disse: «Então vai acabar dois dias três dia e vem aqui com a sua família, dizer a eles para vir aqui. Se você vai ser fuzilado, vai ser despedir tudo». E eu disse que estava bem, que vou despedir. Acabou três dias e eu fui lá outra vez. Quando eu chega ali, Maheche disse: «O seu resposta já saiu, não há problema, aqui vou fazer um quarto para trabalhar a medicina tradicional, vou trabalhar consigo». Maheche foi comigo falar com Ministro. Hélder Martins bateu na mesa [risos...]: «Está bem, já despediu os seus familiares?)) E u disse sim. Então ele disse: «Albino, leva lá essa carta e vai para o seu gabinete». Maheche levou aquele documento para ir estudar no gabinete dele, já não tinha que fuzilar a ninguém. Ele disse para eu ir trabalhar lá no Ministério com médico Leonardo Simão... [actual Ministro dos Negócios Estrangeiros]. Aprendi com ele a medicina tradicional... Depois tiraram-nos para o Instituto Agronómico [Instituto Nacional de Investigação Agronómica] para nós aprender a recolher plantas.

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P - E foram muitos os médicos tradicionais que foram trabalhar no Ministério Zimba - Sim, era muitos curandeiro, porque eles disse para arranjar pessoas para

levar para lá, no Ministério.13 Era mais de 100... Mas antes disso, quando eu falou com Simão, ele quis saber onde é que nós fazia nossos encontros, e eu disse que reunia no Mazanga, lá na Avenida Acordos de Lusaka. A Jante Mondlane e outros, encabeçados por Leonardo Simão, vieram ver onde é e disse para registar as pessoas para aprender a recolher as plantas.

P- Essas pessoas eram todas médicos tradicionais? R- Sim, eram os curandeiros, era grupo de curandeiros. Senhora Carolina também

estava... P- Mas quem escolheu as pessoas? Zimba - E u é que escolheu. E u foi também para aprender, até publicou foto

naquela revista Tempo.. . P - E agora não tem medojá de falar desses tempos antigos, dos problemas? Zimba — Falar verdade não traz mortos de volta, mas falar assim traz liberdade

para eles, tira as culpas que muitos colocaram nos curandeiros e que afinal não era nada. É preciso contar as coisas, como eu conto, como eu senti. Todos gritava «Abaixa!», você também....

Antigamente cantava «abaixo os t inyàngà!» - os problemas pela voz de Carolina Tamele

P -A mamã Carolina também participou nesses reuniões com pessoas do Ministério da Saúde? Tamele — Sim, eu ser desse tempo. E u ter ficado nyàngà ainda muito nova, faz

muito tempo. P—Quando conheceu papá Zimbajá trabalhava como nyàngà? Tamele — Sim, foi graças a isso... nesse tempo eu já era adulto. E u apanhou essa

doença dos espírito em [19] 73a no Chókwé. E u é de lá, nasceu lá Lionde, em Gaza. Estudou lá com b'ava 1 4 dois ano. Não demorou muito. Demora quando aquele espírito está muito em trás...quando for mais avançado, não demora. E u explica como faz formação.

P - Então a mamã Carolina aprendeu as plantas, a ir buscá-las no mato... Tamele — Tudo, tudo aprende quando já vai buscando remédios no mato e assiste

a curar pessoas, até chega a altura que espírito sai e é ensinado a falar e a fazer as coisas de tratamento. Você tem doente mesmo mal, muito doente,; você dorme e o espírito vai te mostrar onde vais buscar as melhores plantas para fazer o medicamento para o doente ficar melhor. É o espírito que mostra. Vai lá, e está lá a planta. Ultima coisa é aprender acompanhar os espíritos à ndhúmbhà1 5 onde eu vai trabalhar, quando

1 3 Seria então formado o G E M T - Gabinete de Estudos de Medicina Tradicional, entidade no Ministério da Saúde encarregue da ligação com o campo da medicina tradicional. 1 4 Literalmente significa pai. Por extensão a palavra aplica-se aos adultos que se respeitam, como sendo os mestres que formam/ensinam os futuros tinyàngà. 1 5 Casa reservada ao cultos dos espíritos ancestrais, onde são realizadas as consultas.

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a pessoa já fica habilitada de fazer qualquer das tarefas de nyàngà. Tem cerimónia dele, quando acaba formação, chama «kuthwasa».

P - 0 que é «nthwasa»? Tamele - E tirar curso. Primeiro explica o espírito nguni e depois o espírito ndau.

Isso acontece no primeiro ano; no segundo aprende as plantas medicinais. Depois b'ava tem que ver que pessoa já aprendeu bem a agarrar espíritos fracos e fortes, porque com espírito mdau é onde há mais problemas. A pessoa pode pegar espíritos fortes e morrer aí mesmo. N o início os espíritos maltratava a mim, prendia o corpo todo. E u nessa altura era muito magrinha [risos]... Os espíritos é que fazia eu assim, porque eu primeiro negava, e quase ficou maluca.

P - E os espíritos andam sempre na família. Não é? Tamele — Sim, minha avó era nyàngà, própria mãe do meu pai. Ela tinha esses dois

espíritos, mas faleceu faz muito tempo. É esses espíritos que ajuda a mim agora. P - Mas fala que língua com esses espíritos? Tamele — Zimba já explicou...Fala manguni, fala mandau... E u não sabia, não é?

E u ser de Gaza, mas tem que prender aquele espírito e ele ensina a mim também a perceber e a falar, está a ver? E u pode responder quando sair aquele espírito. Mesmo ajudante de nyàngà tem que saber falar manguni, mandau. Tem que aprender, ser explicado essas línguas.

P - E como se chama esse ajudante? Todos tinyàngà têm ajudante? Tamele — Sim, tem que ter ajudante. Ajuda procurar plantas, a vestir nyàngà...

Chama nyawuthi. Nyawuthi tem que dizer ao nyàngà quando os espíritos manifesta, tem que saudar eles, quando sai no corpo do nyàngà, perceber mensagem deles quando espíritos fala; tem que saber como falar com eles e perceber mensagem deles. E difícil, tem que aprender a ajudar a nós!

P -E o nyawuthi tem espíritos também? Tamele — Não, é só algumas pessoa,1 6 só.. . Só sai no nyàngà.17 Lá na nossa terra,

Gaza, às vezes os valòyi1 8 pode estar escondido em cima de uma árvore mas o nyàngà tem que subir e o nyawuthi tem que subir também para ajudar o nyàngà a explorar, senão nyàngà pode morre lá em cima. Trabalhar com espírito é muito difícil.

P - Mas como já está acostumada efácil! Tamele - Nada. Apenas necessita paciência, porque outros espíritos são difíceis de

tratar, muito mesmo. Por isso há as pessoas que fica mais tempo na formação; pode acabar três, quatro anos para acabar curso.

P - Pensa que as pessoas hoje olham para os tinyàngà com mais respeito do que antigamente? Tamele — Sim, agora tem mais respeito. Tenho respeito por nosso trabalho.

Antigamente, tempo de Samora dizia «abaixo tinyàngà» P— Como? 0 que éque cantava? Pode falar sobre esses tempos de antigamente?

1 6 Os espíritos andam na família, não saem dela. 1 7 Porque não conta com o apoio dos espíritos ancestrais, o nyawuthi poderá, no máximo, no futuro, ficar nyàngàrhume. 1 8 Plural de nòyi. O nòyi é um espírito com poder para fazer mal, podendo mesmo provocar problemas à distância por intermédia pessoa através da qual actua.

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Tamele - O problema é que dizia nesse tempo [cantando em xichangane uma canção dos tempos do início da independência]: «Abaixo os tinyàngà porque provocam intrigas nas família; abaixo os tinyàngà porque quando batem tilholo, sempre se acusa a mãe de ser feiticeira;19 abaixo os tinyàngà porque provocam desordem [na sociedade]; os que trabalham com espíritos vão viver amanhã em Moçambique?; temos que ser fortes para o nosso país poder vencer todos os obstáculos e avançar; Abaixo os tinyàngà — abaixo!» Está a ver? Eles falavam de nós [referindo-se ao conteúdo das canções da revolução que ela acabou de cantar].

P - Mas eu não sabia que havia estas músicas de abaixo tinyàngà, não sabia. Vocês [médicos tradicionais] cantaram esta música?

Tamele - Eles cantavam porque nós não podia cantar a referirem-se a nós; mas eu fixava tudo e sabia que existia isso... que cantavam. Ouvia cantar nas reuniões...

P - Mas não podia cantar porquê? Tamele — Como ia cantar contra eu mesmo, contra própria minha pessoa? P — Foi por isso que começou a trabalhar para fa^er a associação dos tinyàngà? Tamele - Sim, eu começou faz muito tempo, 1977... Primeira coisa eu trabalhou

lá na Zixaxa, perto de Xipamanine, na zona da Vulcano [bairro da periferia de Maputo] onde estava a fazer reunião. Vinha tinyàngà de Gaza e outras partes e reuníamo-nos em casa do senhor Mathe. Este senhor falava muitas línguas, mesmo Inglês e Francês... Aqui o senhor Zimba estava com outra pessoa.... Estava com Mazanga, é esse nome dele. As reuniões então era na casa de Mazanga, no Bairro da Urbanização; nós era convidados.

P - Então, quer di%er que havia muitos grupos a funcionar na cidade do Maputo? Tamele - Era muita gente mas as pessoas separou-se porque chegou uma altura em

que a Frelimo negou que os tinyàngà trabalhasse, fizesse o seu trabalho livre... Foi o próprio Presidente Samora. Ele disse: «O espírito não escolhe idade para entrar nas criança. Dizer que esta é criança, não pode ser nyàngà, o espírito não vai escutar. Pode ser criança pequenina mas basta espírito querer, ele fica nela, e criança não vai poder ir à escola». Foi assim, que governo negou encontrar-se regularmente connosco. Faz muito tempo...

P - Mas perseguiam-vos mesmo, como di^ia a canção? Tamele — Sim, são os do Grupo Dinamizador, outros aquele que chama grupo de

O M M . Está a ver? Nesse tempo de Samora mesmo medicamento nosso era difícil vender. N o Xipamamnine vendia, mas escondido, vende pouco pouco nesse tempo. Então aí procuramos maneiras para nós encontrar com Samora porque os tinyàngà estava a sofrer, já não podiam tocar tingoma 2 0 e outros instrumentos para formar os tinyàngà. Ninguém, ninguém mesmo podia trabalhar de dia. . . Nós trabalhava só de noite, como se estivesse a roubar. Isso era muito aqui no Maputo, mas os curandeiros lá fora [zonas rurais] estava bem na vida, porque podia trabalhar sem problema, levavam cabritos, galinhas por trabalhar [como pagamento]. Mas para nós aqui era

1 9 Segundo Carolina Tamele, a mãe e a tia da casa os eram os mais acusados pelos tinyàngà de serem feiticeiros. 2 0 Plural de ngoma, grande tambor de pele utilizado para anunciar a actuação do médico tradicional e auxiliar na chamada dos espíritos.

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difícil; Como ia explicar o cabrito, a galinha de pagamento? Mas é assim que o nyàngà tem nome, é respeitado, oferece a ele muitas coisas. Tinha muitas dificuldades mesmo — se viajava [de Gaza] para Maputo, os mutundu 2 1 eram confiscado no controle do Bilene-Macia. Queimaram muitos mutundu nosso...e nós de Maputo íamos lhes socorrer na Macia. Nessa altura perguntavam se nós era tinyàngà, dizia que nós não fazia nada, era obscurantismo. Hoje, veja só, os da Frelimo vêm perguntar aos tinyàngà para saber se o congresso deles [a realizar-se em 2002] vai ter sucesso com este sistema de multipartidarismo, agora, com estas lutas, nesta falta de unidade. Eles não foram consultar a mais ninguém. Nós falou dos erros e do mal que a Frelimo fez nos tempos passados.

P - Assumiram os erros? Tamele - Assumiram! Foi fazer reunião connosco. Podem não mudar mas

ouviram. Nós mostramos a eles que devia ter trazido a Rádio e a Televisão para difundirem estas informações, para todas as pessoas saber o que vocês vêm cá pedir; segredo não é boa coisa. Eles quer hoje seguir tradição, mas eles esquecer que nós temos heróis nosso, tinyàngà que morreu quando foi presos, quando diziam depois da saída de exploradores brancos ficaram os tinyàngà como exploradores, e perseguiam a eles. Os tinyàngà foi comido por leões [referência à Operação produção2 2]; eles esqueceram isso E u disse: «Primeiro vocês perdeu a tradição... porque antes quando os portugueses era administrador ou governador, respeitava a tradição, trabalhava e colaborava com os chefe, com os régulo; por isso eles tinha sucesso na sua governação. Por que é que nós próprio, nós, os negros, não pode fazer isso? Desde que a Frelimo chegou, por que é que não nos chamava? A Frelimo chegou cá faz muito tempo, não foi? Chissano foi o primeiro a entrar como primeiro ministro da transição, mas ele não fez nada disso. Quando Samora cá chegou, os madoda 2 3

chamaram a ele e disse que ele devia saber que nos tempos ele ficou no mato onde havia cobras e leões. Esses animais eram perigosos, mas nunca fez mal à Frelimo, porque esse mato, onde gente da Frelimo andava, tinha tratamento feito pelos tinyàngà». Falei lá tudo isso. E u lembra que uma vez falámos com administrador nosso [moçambicano] que disse que não percebia porque a gente trabalhava escondido. Ele dizia que nós devia explicar o que nós sabe, que nosso conhecimento era muito importante, porque foi por causa da ajuda dos tinyàngà que não morreu muita gente na luta armada,24 porque no mato onde eles andava tinha leões e cobras, muitos. Mas como a Frelimo trabalhava bem nessa altura com os tinyàngà, como colaborava bem mesmo, nada aconteceu a eles... Sabe, essa gente da Frelimo esqueceu que esse mato onde morreu pessoas, onde os soldado colonial [portugueses] queimou casas das pessoas, precisa ser visitadas tradicionalmente. Quem devia organizar isso

2 1 Cesto característico, onde o médico tradicional guarda os seus instrumentos, etc. 2 2 Realizada em meados da década de 80, quando todas as pessoas consideradas «improdutivas», sem cartão de trabalho (o que significava a vinculação a um aparato normativo suportado pelo Estado) eram enviadas para fora da cidade, para zonas longínquas, para se dedicarem a actividades produtivas. 2 3 Os mais velhos, os mais experientes, que formam um conselho. 2 4 Referência ao período da Luta Armada pela independência (1964-1974)

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era esse nosso Governo, mas isso não acontece, só se visita apenas a Praça dos Heróis; e os que não chegaram até aqui - quem vai visitar eles? E u na reunião [retoma o assunto da reunião com dirigentes da Frelimo] disse: «A gente sabe que tem espíritos dos nossos antepassados em cada zona; cada zona tinha próprio chefe [tradicional]. Lá onde era enterrado um chefe, era enterrado também um nyàngà. Chefe, para ficar chefe, tinha que fazer cerimónias com o nyàngà. Todo aquele que tinha força, tinha poder de ser régulo ou chefe ou outro poder, tinha que passar pelo nyàngà para ficar forte. Mas vocês já não sabe disso porque venceu faz muito tempo, e já ganhou o país! Como explica Chissano tem tido paz na sua governação desde que é chefe, desde que subiu no poder?»

P - A mamã Carolina é da Frelimo? Tamele - Eu? Sim, sou, já vai mais de dez anos e alguma coisa. Começou no tempo

de Samora... P — Agora já não cantam mais «abaixo tinyàngà»? Tamele — Parece já esqueceu, mas eu não esqueceu a música [risos]. Mas nós na

A M E T R A M O tem Departamento Cultural, costuma cantar, dançar, quando chega presidentes, vai no aeroporto esperar e cantar.

P - E como surgiu a ideia da AMETRAMO? Tamele — H u m . . . A ideia surgiu porque quando entra a revolução não querer os

médicos tradicional. Outros curandeiros foram queimados na altura porque não queriam que existissem curandeiros. Nós teve de lutar para o governo — no tempo de Samora — para fazer a A M E T R A M O . Mas sempre teve muitos problemas... Estás a ver? Luta de poder teve muito mesmo.

« N o Tempo da Frelimo dizia que era preciso organizar para as coisas sair bem». A Assoc iação e as lutas pelo poder

P - Papá Zimba, então, que aconteceu depois de vocês irem recolher plantas e trabalhar lá no Ministério? Só ficaram assim? Não fe^ mais nada?

Zimba - Aprendemos a recolher e secar as plantas nós mesmo. Mas depois alguns dos meus colegas tentaram queixar de mim mas não conseguiram nenhuma maneira, não conseguiram queixar no Partido, nem no Ministério...

P - Acusavam-lhe de terfeito o quê? Zimba - Diziam que eu lhes subordinava e lhes dizia orientações não claras e fora

das orientações do Partido. Foram queixar ao Maheche, e ele disse ao Ministro que havia um problema apresentado pelos curandeiros... Esses queixosos falaram que eles são os primeiros a ir às reuniões, que eu queria sempre ficar na frente e tanta coisa outra...ele diz isto, isto, isto. Saiu reunião grande, com Samora, com Ministro. . . Maheche disse ao Falecido [Samora]: «não fala em português, fala changane para que todos pode entender; eu apenas é que devo falar em português a interpretar para o Ministro». Falaram muito, aqueles que tinham queixado. Quando acabou, Maheche disse: «Zimba, você agora foi acusado de muita coisa, é preciso responder os problemas». E u levantou e disse que não se queixavam contra mim mas contra ele [Maheche], «porque o que eles dizem você é que me disse...eu não tenho culpa porque eu digo-lhes as orientações que busco de si, de Ministro». Maheche traduziu

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para Ministro Hélder Martins [risos]. Aí o Ministro zangou muito e disse que se houvesse mais queixas desses curandeiros, ele mandava prender todos.

P - 0 Ministro zangou-se? Zimba — Sim, com aqueles que foram queixar.. .«porque o que nós o que queremos

que façam é o que Zimba diz aqui... Quando ele falou com o chefe [Presidente] vocês estavam onde? Quando ele pediu carta e quando o chefe deu a carta a ele, onde vocês estavam? Se quiserem ter unidade é melhor que trabalhem em coordenação com Zimba porque diferente disso não funciona... nós conhecemos apenas a ele [Zimba]. Vamos trabalhar um pouco em coordenação». E acabou a reunião assim.

P - Todos eles queriam ser chefes? Zimba - Sim queriam ser chefes. P - E depois. Como surge a AMETRAMO? Zimba — O Partido, agora começa a chamar outra vez esta da medicina tradicional.

Foi ele que deu esse nome, o partido. Ele é que ajudou a dar esse nome — A M E T R A M O , deu essa ideia no Partido. Quando o Partido compreendeu força dos curandeiros, convocou todos os curandeiros, todos para uma reunião e eu não fui dito nada, o meu distrito não me disse nada. Foi nessa reunião que se escolheu a senhora Banú Idrisse para Presidente da Associação...

P- Mudou o nome de organização para Associação? Zimba - Sim. Eles [Partido] queriam apoiar-nos para nos tornarmos uma

associação...Foi parece 1989 ou 1990... P - E daqui que começa a Associação? Zimba - Sim. Prontos, passou para Associação e era presidida pela Banú até à

Primeira Conferência [2000]. Depois houve tempo em que eu ficou próprio Secretário da Banú. Banú tinha amigos no Partido, e esses queixosos de curandeiros apoiaram a ela. Até queixaram que eu tinha «comido» dinheiro das contribuição dos curandeiro... Houve muitos problemas. E mandaram eu embora, tiraram de lá.. .Muito mesmo, queriam pôr a mim na cadeia... Nessa altura eu estava de férias, mas podiam ter procurado meus substitutos para localizar a mim. . . Mas não fez nada, só acusou. Então, do Partido, vieram falar comigo, para resolver problema. Fomos ter com as pessoas da A M E T R A M O . Quando chegámos nesse sítio, encontrou lá alguém também do Partido; a pessoa que me acompanhou falou: «Alguns estão a refilar, não querem Zimba como um dos dirigentes da associação, querem ser eles mesmo a dirigir». Falou muito todos, e o membro do Partido disse que não deviam pisar as ordens do Chefe, para não acabar com a Associação. Disse que eu devia trabalhar na A M E T R A M O . Assim eles recebeu a mim e disse para ser juiz da Associação e eu disse que não queria julgar . . .

P - Era para julgarproblemas dos curandeiros? Zimba - E u disse que não tinha condição de julgar problemas de curandeiros; tinha

que procurar outra saída. Eles disseram que tem que se fazer eleições entre eu e aquele que foi posto depois de mim, Zacarias Mangaze e assim nós fez eleições...

P - Era para ocupar que cargo? Zimba - Presidente do distrito. E u tive vinte e sete e ele zero valor [risos]; ele

[Mangaze] não teve nem um voto. Eu-então trabalhou no distrito fez quatro anos e depois foi transferido na cidade para substituir um presidente que havia lá. E isso, ele

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não foi tirado, os curandeiros membro fez eleições entre a cidade e o distrito e o povo [tinyàngà] escolheu a mim como Presidente. Mas eles, lá os chefes da A M E T R A M O de Maputo diminuíram meus votos para favorecer a Alcinda Hunguane. E u ficou calmo, ficou vice-presidente dela quase três anos e quando viram que ela não trabalhava bem tiraram-lhe para ser Comissário Executivo Nacional e eu ficou no lugar na cidade. Ficou a trabalhar na cidade...

P- 0 que é quefa^ia? Zimba - Era mobilizar os curandeiros... para ingressar na Associação, pagar as

quotas e ter cartão de membro. Trabalhou na cidade até noventa e seis, e desde noventa eu estava trabalhar [para a Associação] na cidade. V i que o povo [tinyàngà] chorava porque a Associação não se registava. Nós foi falar com a Presidente Banú e disse a ela que o povo [tinyàngà] chorava pelo registo da Associação, mas ela diz sempre que já mandou os papéis no advogado, para fazer estatutos... Esses papéis deu entrada em 1993, e ela nunca mais se preocupou... Como a mamã Carolina era Chefe da Cultura da cidade, falou ao Chissano. Foi grande confusão nessa altura. Chissano deu ordens Baptista Cosme [então Presidente do Conselho Municipal da cidade de Maputo] para saber do processo. O Cosme disse que Banú devia procurar o número de processo para lhe entregar [risos]. Fui informar os chefes da A M E T R A M O isto, mas eles não tinham o número, não sabia nada... O Secretário Geral não tinha e disse ao fiscal para ir comigo na Banú para ela me dar o número; a Banú não tinha número, e disse que número estava com advogados da Associação. E u perguntei: «Como é que procura informação sem número do processo»? Depois, um dia, no aeroporto, D . Carolina estava lá a dançar e o Presidente [Chissano] vinha de viagem; ele perguntou o número do processo ao Cosme. Baptista Cosme veio ter connosco e ralhou muito, disse que tinha dito para a gente entregar o número muito rápido, senão eu ia ficar preso, na cadeia...

P - A quem diga isso? Zimba - A mim. E u percebeu que havia grande problema, que porco estava

acordado. E u teve medo de ir sozinho nos advogados para pedir o número, não queria que diz que isso é traição... então levou comigo o secretário. Nós foi no Registo Comercial e soube que processo era de 1994, tinha sido devolvido no advogado por ter coisas em falta. Foi complicado, todos os documento tinha caducado, tinha acabado. O advogado disse que era preciso começar tudo outra vez. Ele telefonou para a Banú e ela disse que não reconhecia as pessoas que tinha ido no Registo, que eram infiltrados... O advogado ficou amedrontado, deu voltas, mas eu perguntou a ele: «Quer ser doutor bom ou doutor mentiroso, o que prefere?» E u disse a ele que quem quer o número é o Presidente, não a Banú e ameaçou a ele que eu vai dizer ao Presidente que ele está a negar de dar-me o número. Ele ficou muito assustado então o secretário dele passou a ajudar fazer muito rapidamente o Estatuto da Associação, para ter número do processo que precisa. Fizemos esses documentos todos... o Estatuto foi à Banú e ela concordou... E u todos os dia ia saber se tudo estava bem lá no Registo, até ao Ministério da Justiça. Demorou um pouco, mas Ministro da Justiça assinou e depois no Registo era preciso dez pessoa para assinar cópia do Estatuto. Nós arranjou sete pessoas com os documentos dele todos pronto, mas Banú soube e

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foi lá tirar todos esses documentos para colocar os de pessoas amigos dela. Prontos, fomos ver quando eles assinaram já.

P-E o papá Zimba, que organizou tudo, ficou de foral Zimba - Sim, eu apenas assisü; depois de organizar as coisas apareceram esses que

diziam que era dono da A M E T R A M O . . . Depois era preciso fazer eleição, escolher presidente de A M E T R A M O , porque agora já tinha Estatuto da Associação. Mas aquela mamã [i.e., Banú Idrisse] recusou, não fez nada, porque queria que fosse ela sempre a frente, só queria ser Presidente. Ela foi fazer queixa no Partido até, mas foi neutralizada. O povo [tinyàngà] exigia fazer assembleia mas ela negou, dizia que não podia, que estavam a desprezar, que não queria ela ser presidente por ser mulher. O povo [tinyàngà] desmentiu isso tudo e disse que apenas queria uma assembleia para escolher o chefe. Enquanto Banú foi chefe, não fez nada. Não deixou dinheiro das quotas, nada, nem mesmo uma esteira tinha a A M E T R A M O . Não tinha sede, nada nada.... Nessa altura [1999] o povo [tinyàngà] negaram que ela continuasse no poder e chegou-se ao ponto de se arranjar advogados, para organizar bem as coisas. Alice Mabota 2 5 ajudou a gente, para fazer a A M E T R A M O toda no papel... Disse que era preciso Assembleia Geral, para escolher Presidente. Banú não quis, arranjou confusão para boicotar todo nosso trabalho. Data da Assembleia foi ela quem indicou, mas depois no fim não queria fazer. Nós tinha algum dinheiro das contribuição e realizou a Assembleia em Abri l [2000] e eu ganhou as eleição. Ficou Presidente Nacional da Assembleia geral da A M E T R A M O .

P—E como foi na Assembleia Provisória, que fe^ na Beira, em 1991? Zimba — Foi muita gente também, 200-300 pessoas parece estava lá. Cada qual

pagou do seu bolso... P—E nesta assembleia de 2000 houve problemas? Di% que não vieram delegados do norte... Zimba — Foi na época das cheias... 2 6 E depois, como ia vir as pessoas do norte

sem dinheiro? Só tinha dinheiro para fazer a Assembleia, não havia para pagar as passagem...Para chamarmos os presidentes [representantes provinciais da A M E T R A M O ] de outros lugares, foi usando telefone, desde Gaza até Cabo Delgado.

P - E quem esteve então presente nessa Assembleia? Só os tinyàngà de Maputo? Zimba — Sim, e de Gaza. Os outros foi impossível chegar, não havia dinheiro c não

tinha estrada para chegar no Maputo. A pessoa de Inhambane quis vir, mas Banú impediu, porque Inhambane era base dela. Ela tem família dela lá...

P - E acabaram aí os problemas com a Banú? Zimba — Não. Teve grande problema com ela. Ela acusou nós de dizer que ela

roubou dinheiro da A M E T R A M O . Foi dizer que nós falou mal dela. Mas ela desviou muito dinheiro das quotas. Nós descobriu, falou com ela, mas Banú foi fazer queixa de nós no Tribunal. Nosso advogado ajudou, e agora em Junho, diz que processo acabou, diz que afinal essa Banú não tem razão.2 7

2 5 Presidente da Liga dos Direitos Humanos em Moçambique. 2 6 Em 2000 uma das maiores cheias atingiu o sul de Moçambique, tornando impossível o contacto por estrada entre o sul e a região centro-norte do País. 2 7 Foi indeferida a providência cautelar que Banú tinha apresentado no processo.

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P - E nesta nova administração da Associação, a Banú tem lugar? Zimba — Demos lugar a ela, de Conselheiro, mas rejeitou... Ela já nem vem nas

reuniões... Só quer estar no comando, como presidente Mas tem outros que já é muito antigo nessa luta de A M E T R A M O , e nós continua trabalho junto faz muito tempo...

P - Então agorajá não tem problemas com pessoas da AMETRAMO? Zimba — Continua. Nós arranjou sede, tem cartão novo, tem dinheiro no banco...

mas Estatuto nosso diz que cada ano precisa novos dirigentes. Então outros quer já mudar. U m ano só é pouco tempo para fazer muito trabalho. Ainda não conseguiu fazer reunião nas províncias toda, eleger lá Presidentes provincial. Só tem aqui em Maputo, em Inhambane, agora vamos avançar no centro e no norte... Xei! Grande discussão agora. Querem sentar neste lugar, ser presidente, mas não fez nada para isso. Tem uma senhora que quer ser chefe. Nós só começou a trabalhar ano passado, quando fez eleição, não chega para fazer muita coisa que nós pensa fazer. Essas pessoas que são chefe,28 mas tem trabalho dele para fazer, mas não faz. Quer ser chefe grande! Aqueles da direcção tem que trabalhar. Tempo de sentar só, só mandar, não pode, não permite. Todos médico tradicional vai ter que trabalhar, para trazer dinheiro na A M E T R A M O , pagar quota. Não pode ficar isolado. Senão eu vou ser presidente de quê? Chefe de quê? Sozinho.

«Fo i em 2000 que fizemos a primeira Assembleia Gerab>: a A M E T R A M O e os desafios actuais...

P - Agora quejá tem sede, tudo fato, qualé objectivo da AMETRAMO? Zimba - Parece esse é bom para todos os médicos tradicional estar engajado na

Associação. A Associação é ela que vai defender a todos os problemas dos médicos. P - Quais problemas? Zimba - Há um problema que — cura uma pessoa, outro

morre, morre na casa do curandeiro. Se acontece hospital, não prende. Com nosso médico, vai preso... Depois, outro diz que o curandeiro curou, que ele está bom, mas ele queria falar mal com aquele curandeiro. D iz que: «ele não curou bem, vou levar, quero regressar o meu dinheiro». Está a ver isso? [risos]. Outra vez curandeiro fez trabalho dele, tratou pessoa e levou dinheiro dele; depois essa pessoa vem reclamar, diz que não está bem curada. Quando a pessoa queixa na Associação, nós resolve esse problema. Há um problema que o curandeiro enfrenta da população . . . [a pessoa] vai a casa, diz que: «Há um feiticeiro» quê quê quê... agora vai no curandeiro ele vai explicar qual é feiticeiro aqui. Antigamente alguns tribunal culpava os curandeiro, dizia que eles entregar o remédio ou a droga para matar. Outros mandava nos curandeiro as pessoas para resolver problema de feitiço.2 9 Agora já tem Associação registada, é mais

2 8 Os contestatarios, na sua maioria, fazem parte dos órgãos directivos da A M E T R A M O . 2 9 0 paciente consulta o nyàngà para se aliviar das pressões, dos temores sociais que traz consigo. O nyàngà é, para além das doenças de foro «físico», capaz de identificar as tensões sociais, os desagravos e tensões, bem como as hostilidades antisociais que podem produzir mal estar, azar e mesmo morte na comunidade. A identificação de um feiticeiro, ou sob influência de espíritos maus significa identificar o ponto de ruptura do equilíbrio comunitário. Levá-lo(a)

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fácil... Está a ver? . . . E agora, quando fez esse trabalho [i.e., quando o curandeiro actua de modo errado, i.e., o seu trabalho é percebido como sendo «o mata], não sai bem, tem que defender essa pessoa. Essa é pessoa [o nyàngà], mas não fez bem. E isso que eu pede todos os curandeiros e as curandeiras [para] entre na associação, porque outras coisas fez mal por aí, diz que é a Associação, diz que é A M E T R A M O . Aqueles que está já engajado na A M E T R A M O diz: «Há um curandeiro que fez isto» quanto é aquele que ainda não está engajado, aquele que não sabe a ordem, ele não sabe a lei. E isso. 3 0

P - E na AMETRAMO têm ligações com outros partidos, como por exemplo a Renamo? Zimba - . Não, ainda não temos ligação, estamos para fazer essa ligação. Até há

pouco tempo era partido único, só tínhamos ligação com a Frelimo. Mas A M E T R A M O não é do partido Frelimo. O Renamo, o Dlakama não quer A M E T R A M O , não quer machangane, diz que machangane quando ele for Presidente devem ir para Gazankulo, na Africa do Sul. Nós não conhece, nasceu aqui. Agora ele diz para onde é que nós vamos? Nós nasceu aqui, não conhece Gazankulo. Para aonde vamos? Agora, Dlakama já está muito mal.

P - Mas ainda há colaboração do Partido e dos tribunais com a AMETRAMO? Tamele — Sim, há. Muito muito, são acusação de feitiçaria, tem homem que acusa

mulher dele de o querer fazer mal nele com drogas que apanhou num nyàngà... Temos que lutar para acabar com a confusão. Chama o nyàngà que aplicou ou receitou a droga, para explicar qual era o objectivo dele ao fazer aquilo... Nós podemos depois arranjar outro nyàngà para purificar o casal, e assim o casal vai continua viver e muito bem.

P - E se tem esse problema, quem resolve na AMETRAMO? Todosjuntos? Tamele — Tem Departamentos, cada qual tem seu trabalho. E u é chefe da Cultura,

o objectivo é de fazer as actividades culturais. Tem Departamento de Assuntos Jurídico para os problema dos curandeiros na sociedade. Tem outros departamentos, Acção Social também, da Mulher...

P - E se alguém fi^er coisas mas feitas, há castigo?

Zimba - Tem que ser castigado na A M E T R A M O . Não é com «xamboco»1 1 nada. Pagam multa quando fez mal. Tem nos estatutos, está previsto que se uma pessoa falhar tem de se ver se é a primeira vez, a segunda vez, terceira vez. N a parte da multa é de 50, 100 ou 200 mil meneais. Estás a ver, caso o erro for grave. Estamos a trabalhar a controlar com base nos estatutos. A A M E T R A M O fiscaliza.

A l i tem Conselho Fiscal que tem que fiscalizar as pessoas. Agora estamos a ver o que se passa com muitas pessoas. Por exemplo, você vai a um curandeiro porque quer fazer aborto, então se não sai bem, quem está mal é o curandeiro. A mulher vai dizer: «Fui a um curandeiro, ele me deu medicamento para tirar a grávida, mas não saiu bem». Vai logo no hospital, tem de esclarecer tudo até chegar nesse ponto. Então o

a confessar esse «momento anti-comunidade» é visto como um «esvaziamento» da culpa, do mal que essa pessoa traz dentro de si, restaurando o bem estar e as boas relações. 3 0 I.e., um nyàngà actuando erradamente, ou seja, percebido como actuando mal contra a maioria da família, da comunidade, muda de estatuto, passa a ser considerado «feiticeiro». 3 1 I.e., castigo físico.

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curandeiro tem de ir justificar: «Está a fazer aborto porquê? Sabe que é proibido!?» É daí que há problemas. Então os curandeiros têm que ir explicar na A M E T R A M O . As pessoas [doentes] apresenta queixa na A M E T R A M O . Conselho Fiscal trata desses problema, fiscaliza os curandeiro...

P- E quem controla dinheiro?

Zimba — A h , isso é com Departamento de Administração e Finança. Esses com Tesoureiro é que só trata com dinheiro. É assim.

P - E estas pessoas todas que estão na Assembleia, no Conselho de Direcção, são todos do Maputo, ou moram nas províncias?

Zimba — Tem Sabina Nhaca é de Gaza, já foi deputada da Frelimo. A Natália Massango é da província de Maputo, da Matola. Tem um senhor que mora em Moçambique, mas é malawiano, mora no Maputo. Vamos ter presidentes de lá nessas províncias, não têm que estar aqui no Maputo. Mas tem de ser membros nacionais.

P—O que é que o médico tradicional tem defa^erpara ser membro da AMETRAMO? Zimba - Preenche um papel, uma ficha e depois vai ser membro, outros ficam

honorário. Há alguns membros que já estão inscritos como membros honorários. Você também...

P - Como é que a Associação sabe que a pessoa ê bom curandeiro? Como sabe se é curandeiro? Zimba — Para A M E T R A M O , a pessoa tem de ter duas testemunhas, curandeiros

faz muito tempo, que vive no mesmo quarteirão que esse que quer ser membro. Funciona por bairros. Então eles é que vão especificar que esteve no curso durante quanto tempo, agora já está formado, tem que ser membro, tem que se registar. Só assim recebe cartão [de membro] dele

P - Há muitos curandeiros que moram na cidade de cimento? Zimba - Ha muitos, só que a maioria deles não são moçambicanos. Aqui há um

senhor, o Dr. Ébo, aparece na televisão. Aquele não é moçambicano. D iz que é membro da A M E T R A M O , mas é desconhecido pelos sócios da A M E T R A M O . Mas a A M E T R A M O não aceita por publicidade como ele fez. Fez umas escritas ali à frente da casa dele, médico tradicional diplomado, não sei quê, quê, quê. Aquilo ai a A M E T R A M O não aceita. Mesmo fazer publicidade no jornal, na rádio, não é aconselhável. Mesmo se for mesmo membro da A M E T R A M O . Porque se todos fizermos, acabámos um jornal cheio de curandeiros. Ele diz que é porque não é nacional que faz assim que é para lhe conhecerem, mas a A M E T R A M O não aceita, não é assim que se faz. Médico tradicional quando chega numa casa, ou aluga ou quê, então é através do batuque que sai o espírito e prontos, as pessoas já sabem que ali tem um curandeiro.

P — Esses médicos estrangeiros se calhar sabem tratar outras doenças... Zimba — Pode ser, não sabe Nós acha que deve estar mais unido, e estudar

maneiras de curar essas doenças pior de agora, malária, sida e outras doenças; alguns sabem tratar, mas tem que trocar experiências...

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A formação de redes

P — Então, quando os tinyàngà tem dúvidas, fala com colegas? Fa^ bandbla32? Zimba — Pode falar. E importante troca experiências sobre doenças... para pessoa

ficar bem curado. A M E T R A M O é importante. Tem dias encontros para discutir doenças, tratamentos...

Tamele - Nós fala muito, e trabalha em conjunto com outros médicos. Quando não consegue resolver um problema, fala com colega. N o bairro há sempre vários médico. Há união entre nós. Quando não consegue resolver o problema, leva o doente na casa do «b'ava». Quando vemos que é caso de hospital, então também mandamos procurar um médico lá. Quando desconfiamos malária, mandamos fazer a pica 3 3 lá no hospital para saber, mas ajudamos o doente com os nossos remédios. A nossa obrigação é ajudar aqueles que nos procuram. Quando acaba o curso, faz juramento, temos de cumprir. N o curso aprende a curar todas as doenças, mas a experiências numas certas doenças ganha-se com a experiência, discute e aprende com colegas.

P- E como é que era antigamente? Só os homens podiam ser b'ava ou as mulheres também eram? Zimba - É mesma coisa, é como agora. B'ava é forma de respeito; pode ser

homem ou mulher. Esse é problema de português... P - Mamã Carolina é b'ava? Tamele - Sim, sou b'ava para os alunos que eu tem, tem mulher, tem homem...

Nome deles é mathwasàna.34 B'ava é próprio professor que sabe conhecimentos dos antepassados. Posso ser b'ava homem ou mulher, está a ver? E u sou b'ava, é mulher... papá Zimba também é b'ava, mas já não faz formação.. . E u continua a ter aluno. Mesmo para os homens, se está a estudar, eu sou b'ava para eles. Quando pessoa acaba formação, quando faz a cerimónia kuthwàsa, depois vem procuram na minha casa, qualquer dúvida que tiverem vêm consultar. «B'ava Carolina, aconteceu assim, vinha pedir sua opinião». A eu fala, dá opinião, diz faz assim, faz assim.

P - Mas sabem quais são as principais doenças, quais os remédios que se usam, e as quantidades para tratar essas doenças? Ou cada um fa^ de sua maneira?

Zimba - Estamos a tentar, nesta nova direcção da A M E T R A M O . Estudar as doenças, como vai tratar as pessoas. Há muitas doenças que não se percebe bem, como o nome de S I D A . Ainda estamos a estudar para saber como vai essa S IDA. Antigamente tinha DTS , agora já mudou, temos a S IDA. Não é bem igual. Quando o doente de S I D A chega não fala que tem essa problema, mas quando bate tilholo vê que tem essa doença. O medicamento pode ajudar mesmo a SIDA. Vem muita gente com essa doença da Africa do Sul . . .

P — E como é a ligação com os médicos tradicionais da Africa do Sul? Soube que houve um encontro

3 2 Local de encontro, de reunião e de festa na aldeia. Por extensão, a bandhla designa actualmente as diferentes associações de pessoas com interesses comuns, como por exemplo, de tinyàngà. 3 3 I.e., faz-se uma análise ao sangue 3 4 Alunos de medicina tradicional.

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Zimba — É verdade, teve encontro grande, mais de 150 pessoa estava lá. Foi na fronteira, perto de Nkomatipoort. Veio próprio Doutor Nhlavana Masseko, ele é Presidente Internacional dos Médico Tradicional 3 5 em todo o mundo. Vieram e nós fomos lá também, fomos um grupo de 14 pessoas da direcção da A M E T R A M O . Custou muito para sair visto... Esses da embaixada da África do Sul recusa sempre, quando vê que pessoa é curandeiro... Mas reunião correu bem. Houve festa grande, matou mesmo duas vacas. Agora vão vir em Moçambique [Setembro 2001] para fazer conferência em Maputo, na nossa sede. Querem reunião para aprender a curara bem. Masseko diz que é preciso fazer acordo com todas as associações africanas de médico tradicional. Ele diz que já foi em muitos sítio no mundo, até na Europa. X e i , ele tem muito dinheiro, está podre de dinheiro mesmo. Está a ajudar a gente a fazer obra na sede da A M E T R A M O , lá no Xipamanine. Vamos ficar mesmo uma Associação. Va i ter secretária, para receber pessoas, tudo.

Tamele — E preciso contacto com esses médicos da África do Sul, mas ele precisa mais de nós. Quando saiu a reunião, disseram que quem saber curar melhor são os moçambicanos, têm que ser eles a ocupar o primeiro lugar a nível de todos os países. N a África do Sul, os médico tradicional não presta para nada! Tem gente dele que sai sempre para vir cá ser tratado, para ser dado poder para ser bom médico lá na África do Sul. Nós sabe bem bater tilholo para saber o quê que a pessoa tem. Lá também não trabalha bem com espíritos só sabem dar remédio sem consulta bem feita.

Zimba — Tem mesmo que conversar bem com esses médico sul-africano. Eles acabam os medicamentos para curar as pessoas lá e vem buscar cá em Maputo, em Gaza. Os que é médico de Moçambique e está na África do Sul, paga quota lá, não paga na A M E T R A M O . . . Não devia ser assim...

P—Quer di%er que aqui temos médicos com mais força dos espíritos, que conhecem mais? Tamele — Sim. Esse senhor Masseko estudou lá na África do Sul; ele apanhou lá o

trabalho dele para ser nyàngà. Mas tinha aquele esperto dele, que sabia precisar vir buscar os medicamentos cá em Moçambique. Ele aprendeu que espírito mandau precisa ter o remédio dele, o trabalho dele, então foi sair de lá [África do Sul] até norte [de Moçambique]. Lá no norte não apanhou nada, voltou mais outra vez até chegar lá Inhambane, Inhambane não apanhou nada, até chegar lá no Chókwè [Gaza]; é lá que apanhou bom espíritos e conhecimentos. Ele só tinha espírito do sul [nguni]...

P - Então onde estão os espíritos mais fortes? Tamele - Tudo o espírito da área de machangane tem força grande para ajudar os

curandeiros. Nós [tinyàngà] aqui no sul tem regras... Trabalha com dois espíritos, cada qual tem sua trabalho. O espírito ndau tem sua tarefa e o espírito nguni também tem sua tarefa. O espírito nguni tem como tarefa bater tilholo para saber qual a doença, saber problemas das pessoas; nós não trabalha como médico do hospital que pergunta onde sente dor, faz análise de sangue para saber o que a pessoa tem. 3 6 Nós

3 5 Ou seja, preside a uma associação sul-africana de médicos tradicionais. 3 6 A medicina tradicional e a biomedicina não partilham o mesmo sentido de saberes e por isso não seguem a mesma ordem de registo. Enquanto a primeira submete a eficácia terapêutica a um resultado mais vasto de ordem social, a segunda obedece a um modelo de objectivação científica, onde a etiologia, os sintomas e os tratamentos devem ser organizados como parte de

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usa o tilholo para dizer qual a doença e quando a gente percebe que doença é causada por nòyi, o espírito ndau trabalha para tirar esse espírito. Com kufemba 3 7, é possível fazer contacto com antepassados do doente. O espírito conversa com doente, dizer o que eles querem. Muitas vezes são coisas ou problemas que os antepassados morreram sem ter conseguido resolver; então estas coisas vêm e fica só numa única pessoa é por isso que é pesado.

P - Afinal há divisão entre os dois? Tamele — Sim, há divisão das tarefa. Por isso maioria dos médico tradicional tem

esses dois espírito. O nguni é que lança os tilholo e procura remédios; o espírito ndau tem como tarefa tirar os espíritos maus ou dos seus antepassados que se tenham zangado contra si por diversas razões. O espírito ndau pode te pôr a falar como os teus antepassados para encontrares a solução do seu problema.

P - E agora, vai cooperar com a Africa do Sul? Zimba — Vai , vai fazer encontro, para formação sobre S IDA. Essa doença é

mesmo problema grande.

Outras medicinas, novos espaços de interacção

P - Qual deve ser a atitude, posição da AMETRAMO em relação aos outros médicos tradicionais que estão aí? Tem os chineses, indianos...

Zimba — Pode ser muito bom porque vais trocar experiências, quando está engajado com os curandeiros de outros países. Eles vai dar aqueles saberes que ele cura, e depois vai juntar com os nós sabemos daqui, vai saber melhor.

Tamele — Sabe, eu acha que problema é porque nós não conhece essa médico, está a roubar nossa força...Se é médico tradicional, tem que vir na A M E T R A M O , ficar membro e trabalhar...

P - Agora há muitos doentes que vêm consultar a vocês? Zimba - Tem, mas muitos agora vão também nessas outras igrejas, muito muito na

igreja zione. P - Mas os ma^ione,™ por ve^es trabalham como se fosse curandeiros? Zimba - Sim, eles diz que sabe e consegue arrancar os espíritos dos mortos, como

nós. Mas nós trata de verdade, estudou; eles só usa água, outra vez óleo. E cobra muito mais do que nós. E depois tem essas outras igrejas brasileira. As pessoas pensa que eles são melhor que nós. Mas eles não sabe curar as nossas doenças.

Tamele - O que nós estamos a ver de errado é que está a aceitar cada vez mais a religião. Já há maus hábitos: há igrejas em que se reza com pessoas nuas mas essas

um universo autónomo, separado, que não se desenvolve senão a partir dos seus avanços e descobertas internas. 3 7 Quando os espíritos protectores do curandeiros tomam conta do corpo deste e cheiram, detectam, a presença dos espíritos maus. Quando se localiza o nòyi, este acto é sinalizado por um espirro - wetshí. 3 8 As religiões importadas (cristã, muçulmana) têm vindo a gerar, em Moçambique, vários movimentos sincréticos, cuja especificidade reside no facto de o seu trabalho religioso incluir funções terapêuticas. Este facto aumenta assim a gama de recursos terapêuticos disponíveis, constituindo um exemplo da pluralidade médica em presença.

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igrejas pedem licenças ao governo para trabalharem cá no país; existem tantos brasileiro que encheram o país; ele [o governo] não está a ver que eles só vem tirar dinheiro de Moçambique? Está cheio das pessoas, de brasileiros com suas igrejas; todo o l.ugar onde abrem enche-se de pessoa mas esta acompanha com dinheiro, não tem outra coisa; Se paga muito, paga bem, diz que cura tudo... [risos] Tem dia de semana próprio dele para tratar....

P - Está a falar da IURD?

Zimba — Sim, esta igreja. As coisas não estão bem. Os curandeiros não estão a trabalhar bem, então as pessoas fogem da nossa tradição, recorrem a essa igreja. As coisas não estão nada bem, nada bem... Essa igrejas dos mazione não é diferente com esse mesmo I U R D . E tudo o mesmo grupo. Não é que trabalha da mesma forma, mas pronto, da maneira como trabalha, estão na mesma panela. E isso. Não gostam mesmo dos curandeiros. Faz propaganda contra curandeiro nas missas. Eles aproveita nas cerimónias fúnebres dizer ao povo que não devem andar nos curandeiros, que os curandeiros não são bons, diz: «vocês deve seguir a religião, os curandeiros mata, os curandeiros são feiticeiros». Fala muito ao contrário. Com a presença de um curandeiro ali, as coisas não ficam bem, é uma vergonha [risos].

P - Vocês não sentem que isso é discriminação? Tamele - Sim, estão nos a descriminar. Vamos tentar falar com eles. Zimba - Agora já está registado nossa Associação. E u vai mandar chamar aqueles

todos, aqueles bichos dos mazione e falar com eles. P - E com a igreja católica como é que ê?

Zimba - Com a católica não tem problema. U m curandeiro entra mesmo à vontade na igreja.

P — Lá não complicam quando os tinyàngà entram na igreja católica? Tamele - Não faz mal; a católica não chateia. E u é católica, vai na igreja [responde

com força] Nunca diz que não tem tempo porque tem pessoas à espera de consulta. Isso eu

faz e resolve quando voltar da igreja. P — Então onde está a diferença? 0 que é que os mazionefa^empara impedir o vosso trabalho? Zimba - Os mazione não aceita que um curandeiro entre na igreja, para assistir à

cerimónia. Quando chega um curandeiro ali naquela igreja que quer ser um crente mesmo, mandam queimar o mutundu, tudo o que é do curandeiro. Depois há-de sair um profeta aí. De curandeiro passa a profeta, sim. Mesmo se esposa de zione tem espíritos, marido não deixa ficar fazer curso de curandeira. Deixam a pessoa continuar assim doente... Agora eu está a pensar em fazer reunião com os religiosos para haver um entendimento. Porque há vezes que eles utilizam o medicamento tradicional. Onde é que eles aprendem? Mas não são curandeiros... Como é que eles conseguem tirar uma raiz? Vacinar, dar remédios, fechar as casas para protecção, fazer tudo isso. Mas isso não é o trabalho deles. Só podem usar a palavra de Deus, óleo, cinza e água, mais nada, só.

Tamele — Depois, nós não pode nunca recusar um trabalho. Quando alguém pede ajuda, é porque somos precisados, e os nossos espíritos vão indicar qual o caminho certo. Não aceitar uma pessoa é uma grande falta de respeito com os nossos espíritos. Mesmo quando estamos com a família, se aparece um doente, deixamos tudo e ajuda-

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se a pessoa. Este é o nosso valor. Tem que ser assim. Quem não funciona assim é castigado pelos espíritos. E nós também ganhamos o nosso pão assim. Zione só atende lá na igreja dele.

P - Agora falar muito de que os filhos acusam as mães de serem feiticeiras para ficarem com a casa; é verdade?

Tamele — É verdade... infelizmente. Fala muito que filhos acusar as mães de serem feiticeiras para ficarem com a casa dela, com cabritos, galinha... Mas quem diz essas coisas é os mazione, e atira culpas para o nyàngà. É esse zione que arranja acusação contra a mãe dele. Tinyàngà foram os primeiros a existirem, muito tempo antes desses mazione, mas nessa altura não tinha essa acusação... Os mazione trabalha como tinyàngà, mas fala como pessoa que quer acabar o curandeirismo; eles faz receita de raiz, vacina os pessoa, purifica com sangue de cabritos e galinhas. Mas os mazione de antigamente não trabalhava assim... não exigiam pagamento; mas agora exigem entre três a cinco milhões de meticais, embora seja mazione. Muitas vezes, quando tratamento dele não funciona, nós bate tilholo e descobre que esse zione não fez nada para ajudar a família... só levantou confusão nos antepassados da família. Mas as pessoas quando vai queixar, nunca pensa que é zione; diz sempre que é o nyàngà, faz confusão. Depois lá na Associação, na polícia, quando pede para trazer esse nyàngà que causou confusão, afinal leva um zione...

P- E com os muçulmanos, há problemas? Zimba — Não, não tem, nem com os protestantes...

Continuidades ou rupturas?

P—E no tempo colonial, como era? Zimba - N o tempo colonial era mais ou menos; bastava o curandeiro não fazer

barulho. 3 9 Pagava imposto aos régulos, cinquenta escudos por ano e uma só vez. E u pagava isso. O régulo sabia quantos curandeira tinha lá, e quem estava a fazer curso. Caso eles achava que era um grande curandeiro pagava cem escudos. Dependia da quantidade de pessoa que lá ia nesses curandeiro, se tinha grande fama.

P- Mas no tempo colonial faliam grande bandhla? Zimba - Não, cada um fazia à sua vontade, não era preciso ter bandhla. P- Não haviam orientações que deviam ser ditas aos curandeiros tanto pelo governo como pelos

régulos?

3 9 Os tinyàngà representavam uma fonte de autoridade independente da administração colonial. Ontem, tal como hoje, em épocas problemáticas estes elementos reforçam a sua função política. No século passado actuavam por vezes contra a administração colonial, tentando aumentar as áreas sob seu controle; como consequência, o governo colonial impôs sanções legais, incluindo a prisão e o exílio, para quem desafiasse abertamente as normas do estado colonial. Posteriormente, quer durante a guerra de libertação nacional, quer durante a guerra civil, na luta pela supremacia, os tinyàngà obtiveram de novo um papel de relevo. Em época de conflito o nyàngà, ao restabelece as exigências e expectativas do colectivo sobre o individual, adquire uma enorme importância política; durante a guerra de libertação, colocaram-se por vezes no caminho do projecto político da FRELIMO.

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Zimba - Os régulos apenas queriam dinheiro de imposto...se a pessoa errava, falhava, era julgada e presa, se preciso ou então ficava livre. Se b'ava tinha mathwasàna, para eles não havia problemas, mas logo que ele chegasse na minha casa, eu tinha comunicar ao régulo ou madoda que tenho pessoa a cursar; eles diziam para eu trabalhar à vontade e quando chegar o momento de acabar o curso chamava a eles para virem ver, e prontos.

P - Mas diga-me uma coisa: há aqui uma mudança grande entre o que aconteceu depois da independência e depois da independência em relação aos tinyàngà...?

Tamele - O que eu vejo muito bem feito nos tinyàngà é a colaboração entre eles. N o tempo colonial não nos conhecíamos, cada um fazia suas coisas em sua casa... antes nós ajudava pouco um com outro para saber os remédios quando não estava a tratar bem uma pessoa que outro não conseguia. Cada dependia só de b'ava dele. Se b'ava estava longe, não tinha solução. Mas agora, eu pode comunicar com outro nyàngà, basta falar no telefone e pedir ajuda a ver o que se passa com o doente, como tratar...

P - O telemóvel é que resolve bem... frisos] Tamele - [Risos]... Posso também ir pessoalmente na casa do colega e ele dá a mim

os medicamentos que é preciso para meu doente...antes quando entrava na casa do outro nyàngà este dizia que eu queria enfeitiçar a ele e acusava de invejosa. Tem ainda alguns tinyàngà que pensa assim...

P - Antigamente usavam «timamba», 4 0 «shingundu»,41 »shikubo»,42 outras coisas... Agora já não usam?

Tamele - Agora as pessoas já não usa porque é difícil ficar sempre com aquilo no corpo, principalmente quando quer apanhar chapa. O chapa fica cheio e essas coisas perturba outros passageiros. Se calhar o cobrador nem ia deixar entrar no chapa. Antigamente quando a pessoa concluía a formação dela, andava em toda a cidade assim vestido para mostrar que já acabou, que já é nyàngà... N o nosso tempo custou muito; ficava com corpo cheio dessas coisas. E u , quando fez o curso, meu b'ava era civilizado... não aceitava que eu usa tudo aquilo sem estar com os espíritos. Ele diz que se o teu espírito não chama clientes não é preciso andar a passear assim para toda a gente te ver... [risos].

P — Mamã Carolina porque é que usa capulana especial quando fa^ consulta? Zimba — E u também usa.... Tamele - E u amarrar sempre capulana. Quando há reunião do Partido, eu amarra

capulana. Faço todos os trabalhos com a capulana no corpo, em casa usa sempre. Quando vai às compras, na machamba, tem vez que a capulana pode fica em casa. Mas dá jeito quando tem de subir nos chapas... Quando viaja leva sempre capulana comigo, quando vou visitar família também. Mas nas festas aqui no Maputo não é preciso levar capulana — só quando vai dançar para o Presidente, no aeroporto...

4 0 Espécie de suporte em cabedal sobre o qual se pregam várias fiadas de cauris (búzios), como se fosse um cinto. Por vezes faz-se um chapéu que os nyàngà usam. 4 1 Chapéu ou penacho de penas de pássaro, utilizado pelo nyàngà quando possuído pelos espíritos ndau. 4 2 Chapéu de fibras vegetais e pintado de cor purpura, semelhante a uma cabeleira.

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P — Não, aquela outra capulana especial... Aquela que dançou lá na festa... Tamele - Essa é capulana dos espírito, é especial, mostra que a pessoa aceita os

espíritos que pessoa tem. P—E com homem nyàngà, como ê? Também amarra capulana? Tamele - Homem não passeia com capulana vesdda. É homem, pode usar em casa.

Depois dobra e mete na sua pasta e leva para onde ele for. Mas quando chega num sítio para dormir tem que tirar e pôr a capulana debaixo da cabeça. Quando vai na reuniões da A M E T R A M O , homem, mulher, não importa, traz essa capulana numa pasta. Igual a Zimba. Homem quando vem na reunião traz capulana dele na pasta, mas quando chega aqui tira e amarra. Tem de ser assim, senão os espíritos não ajudam. Tem de cumprir, é da tradição. Sempre foi assim...

P - Mas há ve^es que eu já vi Mamã Carolina vi sem capulana dos espíritos.... Tamele - Pode ser está menstruada. Quando tem menstruação, não pode tocar nas

coisas dos espíritos. Tem que esperar acabar. Não trabalha nessa altura, não pode fazer kufemba, nada. Não pode mexer nas coisas dos espíritos nesse período. Mesmo se pessoa está só a querer medicamento dele, vem buscar mais tratamento, eu tem que mastigar carvão. Depois já pode fazer o trabalho. Depois tem que tomar banho com medicamento. Faz com estas folhas [mostra]. Pila bem pilado e depois toma banho com elas. Tem que tirar o cheiro do sangue.

P - Homens não tem problema? Zimba - Tem, é nossa tradição. Se faz sexo com mulher, tem que tomar banho

com remédio próprio, antes de ir trabalhara a tratar as pessoas. Só assim os espíritos volta no curandeiro.

P - E as mulheres tinyàngà, também é assim, também tem e tomar banho depois de sexo? Zimba - Sim, tem que tirar o cheiro, fazer os espíritos voltar.

As zonas de maior conflito — a interacção com a biomedicina

P - Porque é que o papá Zimba deixou de cooperar com o GEMT? Zimba — E u trabalhou bem com Leonardo Simão. Ele sabe muito a mim, porque

trabalhou com ele. E u deixei de trabalhar no Ministério da Saúde há muito tempo, porque já mudou o Ministro, viraram tudo, ali já aquele que é o próprio da medicina tradicional já foi embora, já não me liga bem. Não fala com os curandeiros, outros diz que os curandeiros não sabe nada, que os curandeiros vem aqui para fazer o quê? E u disse não, eu já é formado em medicina tradicional faz muito tempo, pronto, fiquei em casa, a trabalhar. Depois esses do G E M T , não aceita que nós sabe. N e m chama a gente de médico. D iz que é «praticante». Praticante de quê? Essa palavra não serve. A gente estuda, faz exame, sabe remédios, sabe ajudar pessoa. Quando precisa, essa gente do G E M T vem falar connosco, sabe que nós conhece plantas, sabe como tratar doenças, mas depois diz que somos praticantes... Praticante de onde? Praticante é esse que vende remédios só, não sabe o que é que esses remédios cura.

P - Mas mamã Carolina, diga lá, qual ê mesmo aquilo que sente ser a grande diferença entre como tratam lá no hospital e os tratamentos dos médicos tradiáonais?

Tamele - Cada um sabe... Este sabe, estudou, aquele também. Mas. . . . Tem doenças que são moçambicanas, que só nós sabe, só nós, médicos tradicional conhece.

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Mas essa doença dos espírito, só nós é que conhece e posso tratar. Remédios do hospital cura fora essa doença, mas não chega lá dentro, para fazer sair a doença cá para fora... Não passa, volta outra vez. . . Quando quebramos a tradição, as infelicidades aparecem... a morte pode aparecer mesmo naturalmente, mas pode vir de mal que se faz. Uma mulher que ficou viúva tem que fazer a tradição antes de ter relações com um homem, senão o homem fica doente... Quando saímos para longe, o perigo é maior. Chegamos e há espíritos que nos querem mal, que querem ficar com aquilo que a gente tem, querem ver se estamos fortes. Se começamos a ficar assim meio maluco, a ter problemas, que não conseguimos explicar. E isso, é sinal que vai haver problemas. Já sabemos, é assim mesmo. Muitas vezes mesmo os espíritos bons avisa que vem aí um problema, que um nòyi anda a nos perseguir.

Zimba — Pessoa pode ir no hospital, mas tem coisas que lá nunca vai resolver, não tem medicamento para isso. Depois, médicos moderno só dá remédios. Tem doença que precisa cerimónia...senão não cura-se... Tem doença que só médico tradicional é que é capaz curar, não é sabedoria de toda a pessoa. Tem que saber o que é, saber como tratar, saber medicamento do mato, dar à pessoa... não é fácil.

P -Quando aquela senhora veio cá porque o filho tinha um problema, não conseguia dormir por causa da namorada... Tratou aqui?

Zimba [risos] Já acabou isso, já está bom. Primeiro tratou ele próprio aqui, e depois deu medicamentos para em casa. Ficou bom. Os medicamentos foi a mamã Carolina que foi fazer lá em casa. Xei ! Fo i grande problema. Não dormia, não comia. Fica doente, magrinho, não trabalha, está mal. . . . teve de vir no curandeiro, fazer o trabalho, dar o medicamento para ele vomitar, tirar aquilo que entrou lá dentro. Ele toma o remédio, e quando acaba esse remédio, ele vai ver o que estava lá dentro, vai sair e ele vai ficar bom. Mas é preciso ir ao médico tradicional certo, forte, para lutar contra essa coisa má...

P - Mulher de ve% em quando não presta... Zimba - [risos] Não é de vez em quando, é toda vez! P- Xei, isso não é assim, homem também não presta, também quer remédios para arranjar

namoradas. Não vêm aqui pedir isso? Zimba e Tamele - [risos] Vêm, vêm mesmo... P - 0 papá Zimba fa% esses remédios? Zimba - E u não faz isso para as pessoas. E u quero mesmo é que as pessoas viva

bem. Não para ficar maluco, a pensar só nesses pensamentos de mulher, acaba fica maluco. E u não quer isso. O Samora também disse quando falou com ele, que ele não queria isso...

P - E como é, porque é que quando se fa% consultas, se chama sempre familiares do doente? Zimba - Os familiares são precisos claro, para saber o que aconteceu. A reunião

familiar faz-se para discutir sobre o que aconteceu e perceber culpas da infelicidade com essa familiar... A família vem explica o problema, conta toda, toda a história do problema, mesmo antes de ficar a doer, a sentir, para descobrir o que aconteceu. Para ver se o doente esqueceu de fazer alguma coisa com os defuntos, se alguém anda a fazer mal, ou se a família esqueceu dos antepassados...não fez mais mhamba. 4 3

4 3 Missa ou cerimónia aos antepassados; o plural é timhamba.

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Depois o médico conversa com o doente... é preciso conversar. O médico, os espíritos também, chamamos quando batemos tilholo. Sabe como é que, nós já explicou isso.. .Tem que descobrir quem tem culpado da doença . se foi esquecimento, ou se foi só assim, não quer mais saber das coisas.4 4

P -Quando morre alguém assim mal, em acidente, quando alguém mata, que se devefa^er? Zimba - Quando uma pessoa mata outra assim mesmo voluntariamente, o espírito

do morto volta à família daquele que matou e traz muitas infelicidades, desastres mesmo. A família deste, para perceber o que está a acontecer, vai no médico tradicional. Só este pode procurar a saber o que aconteceu, e quais os tratamentos e cerimónias que preciso ser feitas para resolver o problemas. Pode ser que adoece outro familiar, que não tem protecção. 4 5 O espírito fica assim e regressa a atrapalhar a vida da família de quem matou essa pessoa. Nessa família vai acontecer má sorte mesmo, azar de todo o tipo, porque esse espírito vai entrar no corpo de alguém para fazer mal, mas faz mal em toda a família... Todos mesmo. E por isso que todos vêm aqui consultar com o médico tradicional.4 6

P - E como é isso das vacinas? E só aquela de fa^er cortes? Zimba — Tem essa, que trabalha muito tempo. Quando é para coisa só, faz

xitsungulu 4 7 dele, para andar sempre com a pessoa. Coze bem no pano, é o medicamento para defender as pessoa, isto de xitsungulu. E protecção para viver, para defender cada um. Tem muita inveja outros não trabalha e tem inveja daquele que trabalhou, tem dinheiro, coisas, televisão. É preciso evitar isso...

P - Se eu quiser ser ministro, como faço para terprotecção, para chegar lá? Zimba - Aí o curandeiro é esperto. Va i te dar medicamento para ser ministro

quando só tens 2 a classe, não funciona. U m jardineiro quer ser director, com I a classe. Não é possível! Se está mesmo na bicha, na concorrência, o curandeiro dá protecção. Ser director não é fácil. É preciso que haja na altura um espírito que também era

4 4 O que se observa é que através destes cerimoniais se assiste ao recurso a formas quase coercivas de explicação de possíveis actos passados que são considerados - socialmente falando - de menos correctos ou sancionáveis. Outro ponto interessante é que a causa desse infortúnio, i.e., a doença que aparece, pode ocorrer não na pessoa que praticou o acto/ou que não realizou uma dada cerimónia, mas numa outra da família, a qual, porque não protegida por vacinas, acaba sendo a mais afectada. 4 5 I.e., que não está «vacinado». Enquanto tratamento profilático, as incisões da vacina são feitas nas zonas mais vulneráveis a agressões externas, onde é directamente introduzido o remédio (normalmente uma pasta onde entram vários componentes - 5 a 20) que é espalhado pelo nyàngà em cada corte. Os componentes da vacina são essencialmente de origem vegetal, secos, picados e misturados numa suspensão oleosa (gordura de cobra). A vacina é feita essencialmente como protecção contra os valòyi, contra «infecções» de feiticeiros, contra remédios maus que podem ter sido enterrados na proximidade da casa do paciente, contra maus sonhos, contra raios e balas, e para atrair boa sorte. Hoje as vacinas levam mais coisas que antigamente, porque hoje há mais problemas, mais doenças. 4 6 Interessante ver a pressão que se exerce sobre a família, e o facto desta grande unidade orgânica ser o alvo da fúria do espírito. Esta indefinição sobre quem vai ser o alvo do espírito pode jogar a favor ou contra quem pratica o mal... 4 7 Saquinho com medicamentos e que normalmente se pendura ao pescoço.

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director na família, que vai ajudar. É preciso fazer missa a esse espírito para ser director, ministro. Dizer «Você vai me ajudar, você já foi ministro». Então esse espírito dá te ajuda para chegar aonde você quer.

P - E quais são as principais doenças que estão no Maputo, que as pessoas vêm consultar? Zimba - O doença muito grave é essa SIDA, e tuberculose... Essa doenças estão

muito confusas, mas aquela que diz malária, essa é a doença que todos quase têm — nosso chama dzedzeze. Desentendimentos na família, marido e mulher não se dão bem, estás a ver...

P - Mas por exemplo, um casal não consegue terfilhos pode ir ao hospital e ao nyàngà ao mesmo tempo?

Tamele - Mas pode não ser por doença. Mas é melhor ir primeiro no hospital. P - E se o hospital não consegue? Tamele - Se não consegue vai nos tinyàngà, já os médica procura saber como

aconteça isto, porque pode ser que tenha dores, problemas na barriga, pode ser seja estéril, tanto o homem como a mulher. Esterilidade pode ser de não ter feito ritual tradicional como por exemplo comunicar os espíritos a saída da miúda de casa para o lar do marido. Assim, ela não vai pegar grávida; antes vai ter de fazer uma pequena cerimónia em casa dela; a acontecer assim, logo que ela voltar para o lar apanha grávida logo, sem necessitar de qualquer remédio... Nós trata e quando passa um mês, aconselha a ir ao hospital para fazer o controle. Depois volta e fazemos um tratamento para segurar a grávida, o bebé na barriga da mãe. Tudo é importante, o hospital, os nossos remédios. Aí não há problemas.

P- Mas há muita gente com estes problemas? Tamele - Sim, esse doença é de muito tempo P - Mas porque é que não fa^ também mais cooperação com os médicos do hospital daqui do

Maputo? Para trocar experiências... Zimba — Com Ministério da Saúde ainda vai lutar. Mas é que esta Associação ainda

é como nova. Só tem u m ano [referência ao tempo em que Zimba está na direcção]. Cada qual sabe as suas coisas. Pode trabalhar junto... A gente vai devagarinho, pouco pouco, chega lá. Agora já aceita atestado nosso feito, explicar que pessoa ficou doente, e tratou no médico tradicional.

P—E não há confusão com os médicos do Hospital? Zimba - Há problemas quando o doente não respeita ninguém, nem o curandeiro,

nem o hospital. Acontece. Começa a sentir bem, e esquece tudo. Pode-se complicar e depois ele volta a correr. Não pode ser, ficamos sem saber o que a pessoa tem, o que é que a pessoa quer. Custa um pouco. Mas a nossa obrigação é essa de curar as pessoas.

P — E como é que vocês estão a trabalhar sobre o SIDA? Situação está mal... muita gente está a morrer...

Zimba - Pessoa doente vai no Hospital e médico diz que tem SIDA. Depois não faz nada. Quando tem malária, faz pica, e depois dá remédio, a pessoa fica bem. Mas agora? Médicos não sabem curar SIDA? De onde veio essa doença? São os brancos que trazem. O branco viu que ainda não tinha conseguido acabar com os negros, mandou o S I D A dele. É luta própria contra os africanos, contra os negros. Nós fomos nascido aqui faz muito tempo. Nasceu nós todos aqui, nunca faltava remédio para curar. Agora diz que não há remédio desse SIDA. Morre gente, gente só assim... Que

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é que está a acontecer? É uma guerra grande agora. Muitos africanos morre de S IDA, e diz que não tem remédio para curar, e ninguém ajuda. Médicos da A M E T R A M O tem que fazer alguma coisa. Somos pobres, mas sabemos. Esse Ministro da Saúde de agora nunca chamou a nós. Ele sabe que nós pode ajudar, mas não chama, não fala com os médico tradicional. Nós sabe fazer remédios que ajuda essa gente que diz que tem SIDA, ajuda a curar pessoas. Somos médicos. Porque Ministério não chama a gente para ajudar a tratar? Porque só quer que a gente informa as plantas que a gente usa? Só os remédios de África é que curam? Então porque não vamos trabalhar juntos? Esse Jeito 4 8 dele, essa borrachinha, também não serve nada. E la é que faz SIDA, não presta. Quando usar Jeito, não vai crescer outros filhos. Quando nós morrer, o povo vai ficar sem ninguém, vai ficar vazio. . .

P - Não sei..Já na Europa di^em que foi em Africa que apareceu a doença!... Tamele - Não, não é! Porque a doença sempre vem dos português. Os brancos de

fora é que traz doenças. Quando os marinheiros cá chegava vinha com diferentes doenças. N o nosso país antes nem havia D T S , os que acharam que os cães podiam relacionar-se sexualmente com pessoas são os que trouxeram doenças... porque o sangue de um animal não combina com sangue de uma pessoa; mas eles ignoram isso e dizem què nós somos culpados [risos]. O moçambicano está em perigo apenas por ser negro; nos tempos de Samora haviam os que faziam sexo com cães apenas para ter alguns dólares, aqueles cooperantes...

P - 0 que é que está errado agora? Zimba - ...se o governo não nos apoiar não podemos fazer nada; faremos o que

fazemos de errado; mas se o governo nos ajudasse havíamos de ir mais longe.

Os direitos intelectuais...

P - Na África do Sul tem uma planta que trata SIDA. Parece mandioca. Vocês conhecem? Mas quem descobriu foram os médicos tradicionais, mas os dasfarmácias querem esse remédios, fa^er dinheiro. Quem é o dono da planta?

Zimba - Lá na África do Sul tem muita aldrabice, mas cura muito bem essa S I D A dele.

P-A planta não cura, mas trata, dá força. Só que o médico tradiáonalperdeu a planta, é como a Medimoâ9 que compra todo o remédio, e cobra por isso...

Zimba - Tem razão o médico tradicional, ele é que sabe. Tem razão. P-Que tipo de apoio vocês precisam agora? Financeiro ou...? Zimba - Governo tem de considerar-nos seus filhos sempre, e fazer nós colaborar

bem com o Ministério da Saúde. Agora com esse problema da doença que é S I D A — Essa gente de Gabinete [GEMT] vem falar, vem pedir nós ajudar outra vez identificar

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para fazer sede da A M E T R A M O não quer dar, mas nós é que sabe. Nós sempre viveu aqui, tem medicamentos antigos antigos, que só nós sabe. Agora como é? Quer enganar a nós de novo? Nós trabalhou lá [no G E M T J bem mesmo só com Leonardo Simão. Depois acabou. Queremos falar com Ministro da Saúde, com o Primeiro Ministro, mas não consegue audiência. E depois essa gente vai nas províncias, passa de Maputo nem fala com A M E T R A M O , vai só com pessoa do gabinete. Chega nas províncias, faz reunião, chama médicos tradicional e pergunta tudo. As vezes paga qualquer coisa, mas não chega nada. Nós [ A M E T R A M O ] está a lutar contra isso. Não está bem. Nós é quem sabe, mas quem tem dinheiro, quem está bem é pessoa do Gabinete, do Ministério. Não pode ser...

P - Mas vocês normalmente explicam como tratam as doenças, que remédios usam? Zimba - Não, já fizemos e não ganhou nada com isso. Ensinar a toda a gente não

vai curar as pessoas. Vão saber tudo, a nossa sabedoria. Já, assim, o nosso trabalho não pode acabar assim. Pode ensinar outro, mas não é para todos. Nós ensina, mas é aqueles que não é mais importante. Medicamento nosso faz com várias plantas, outras coisas. Não é só uma, como esses do Gabinete fez no l ivro. 5 0 Nós é que ajudou a fazer e não fala sobre nosso trabalho, nosso nome... Antigamente não ensinava a ninguém. Só aqueles que tinham a doença dos espíritos, que iam ficar tinyàngà. Aí ensina para esse outros saber curar.

P - Aquilo que a mamã Carolina aprende fica só na cabeça, ou a mamã Carolina escreve? Tamele - Fica só na cabeça. P -Então, como é que vaifa^erpara explicar as pessoas tudo isso que sabe? Tamele - A história pode escrever mas dar lição para as outra não dá porque aquele

aí não há-de estudar, é para saber fazer com a sua cabeça só. A pessoa que me ensinou não sabia escrever; será que pode gostar de ver alguém a escrever o que essa pessoa fala? Isso ele rejeita e pode até obrigar a pessoa a abandonar a formação, porque o b'ava pode dizer que casa dele não é escola; que não precisou de escrever o que ele hoje sabe...Ele pode dizer que aquilo que ele sabe, ele guardou na cabeça dele e até dias de hoje ele transmite tudo o que sabe só a falar. O b'ava pode apresentar diferentes raízes de medicamentos e que conhece a sua utilidade uma por uma. Antigamente usava cabaças para guardar remédios; cada uma tinha um remédio próprio que nós tinha de saber conhecer bem, sem falhar; o b'ava ensinava para que servia cada remédio e o tipo de doença que cura. O b'ava não escreve, você vai ter coragem de escrever? Se tenta escrever ele diz: «Você não foi trazido pela força de espírito» e atira o papelinho para longe. Mas eu atrapalhava muitas vezes quando era nova, porque é tanta coisa no mesmo lugar. Há remédio para ser fervido antes de usado no sítio dele, muito muito é raízes, e outro para ser aplicado depois de misturado, com água, com óleo...

P -. E agora, já compram os remédios aqui, não é? Tamele — Sim, tem pessoa conhecida que traz quando nós pede ele ir apanhar...

5 0 Jansen, P.C.M.; Mendes, O. (1983-1994). Plantas medicinais: seu uso tradicional em Moçambique. Maputo, Ministério da Saúde (4 volumes)

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P—E quem está a vender remédios lá no Xipamanine, quem é? Tamele - Estás a ver? Tem remédios no Xipamanine à venda. Quando chega lá,

apanha aquelas pessoa que vão apanhar remédios, mas não sabe qual o serviço dele, não sabe curar. Chega numa zona de «nkonola»51 e os tinyàngà vai procurar, cava, cava e tira toda a raiz, eles vão à volta com a enxada. Depois volta a deitar areia para que a raiz cresce de novo. Essa raiz é bom para cura dor de estômago. Mas há pessoas que não sabe e tira tudo, não fica nada e amanhã vem e não encontra nada. São esses vendedores ambulantes, andam a vender, lá no Xipamanine. Aqueles muitos não são curandeiros, só negócio. Não tem conhecimento com a planta que tira... Remédio não se toma assim, tem ser preparado, toma-se de maneira que o médico diz, põe num sítio certo... Esse é um problema que temos, nós, os nyàngà e temos que ver se resolvemos.

P - Como estão a conseguir lutar contra isso? Zimba. V o u conseguir, vou lutar para acabar esse negócio. É por isso que agora

introduzimos alguns fiscais para tirar aquele remédios de lá... Qualquer dia já não tem essa planta... Aqui perto já acabou mato, agora fica muito longe, e tem outras pessoas que vai procurar e traz vender aqui... Outros já nem sabe bem como tirar...

P -Já pensaram alguma ve% em plantarplantas medicinais? Zimba - Não, ainda não, porque essa plantas a casa vai ficar como o mato. Pode

fazer plantar machamba, outro vai cavar, roubar, acabou...

Visões do m u n d o . . . . « A gente não pode queimar a terra, tem que respeitar os mais velhos, a t r a d i ç ã o . . . »

P - Agora há muita violência, morre muita gente, mata As pessoas parece que estão a esquecer cada ve% mais que epreciso ter respeito... Já quase não fa^em cerimónias...

Zimba - E isso, porque olha, a Frelimo lutou até vencer, mas não foi só as pessoas que lutou, foi também os defuntos, os antepassados. Estava com eles para defender. Quando eles voltaram [a Frelimo] lá deviam fazer a missa - mhamba para todos os defuntos saibam que já voltaram, que o problema da guerra já acabou, Não é? Já não devem chatear mais. Mas o papá Samora não fez. Também este Joaquim Chissano não faz. Mas outros País, eu estou a ver na televisão...faz. Mandela quando queria fazer os votos, quando ele ganhou os votos [i.e., as eleições] ele chamou tudo os curandeiros para bater a missa [tocar os tingoma e chamar os espíritos] para os defuntos ficar em paz.

P - 0 papá Zimba di% que muitos dirigentes vêm aqui buscar remédio para ficarforte Zimba — É isso, quer ter vacina para ter força. Tem que vacinar nos médicos

tradicional para dar força às pessoas. Dirigentes usa muito xitsungulu no bolsos... Esse Chissano dele também usa xitsungulu. Pode ter outro que queria fazer mal, mas não consegue...

P - Porque é desses dirigentes, essas pessoas que anda defato, ninguém di% que vai ao curandeiro, ao nyàngà, parece que tem vergonha...

Terminalia sericea

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Zimba - Porque eles não quer saber que todas as pessoas sabe que Presidente, Ministro vai nos curandeiros.

P — Mas vem mesmo? Tamele — Muitos. . . . [risos] Até chama a nós nas reuniões do partido agora...Eu já

contou isso... Tem vergonha de sair na consulta de dia, mas vem à noite bater à porta! P-... Há reclamações dos mais velhos, que os mais novosjá não seguem a tradição... Tamele - Isso é verdade... P - Como é que vê isso? Tamele -...porque nós de agora não faz a tradição... Zimba - Pessoas de agora, desde a maneira de vestir, principalmente de senhoras,

faz coisas mal. Mulher é muito respeitado porque ela dá a vida; mas quando anda quase despido na rua, queima a terra. Os homens veste bem, mas a mulher anda de roupa curta; diz que é moderno, mas não é isso, não tem sentido...E muito proibido a mulher mostrar estas partes [coxas]... E as mulheres foi enganada pela política que ensinou que o aborto não faz perigo nelas, que depois de alguém falecer pode ter sexo sem problemas, sem fazer tratamento para purificar. Por isso muitos jovens morre por não seguir a tradição. Isso é que queima a nossa terra... Antigamente não havia isso porque os régulos postos pelos portugueses sabia que tinha altura para fazer cerimónias à terra. Hoje já não acontece.... As vezes até faz cerimónia a falar português... Como espírito vai entender?

Tamele — Não é só questão da tradição, é que não faz as coisa certa para nós poder viver bem. Negro é negro. Surge sempre algo difícil de tirar; ele devia antes de mais arranjar alguém para procurar o fundo da sua vida e as suas raízes tradicionais, para escutar bem o que os antepassados tem para dizer a ele. Por que é que Samora morreu cedo? Ele não seguiu a tradição quando morreu a sua mãe.... O nosso país vai cair assim mesmo, mas Chissano é pior, está a vender tudo, até terra, a pessoa estrangeira. Está a vender o nosso País, nós sabemos mas não queremos divulgar... Esse Chissano parece cabeça dele não trabalha bem... O poder de chefe é tradicional, é escolhido por Deus, pelos antepassados. Samora? Ele próprio estragou por meter os russos; ele quando bebé foi enrolado todo o corpo por uma cobra quando estava com a mãe na machamba; ninguém conseguiu explicar como é que a cobra desapareceu; fui tudo mistério. Quando foi chamar o pai para ver o que acontecia não apanhou cobra nenhuma; Foi aqui que fez a cerimónia dele, onde deu o poder a ele. Existe cobra natural e cobra dos espíritos. A dele era cobra de espíritos... Agora ninguém defende a nós, não tem respeito, não há chefe, desde que Samora morreu...

P - Porque que tanta gente está a querer fa^ermal agora? Zimba - É o tempo é assim... É muitas pessoas aqui na cidade. Olha, não é como

aquele tempo antigo. Agora já encheu de muitas pessoas, outros não trabalha, outros trabalha, mas queria de roubar outros, para os outros ficar sem emprego. Tem muitos não trabalham, só fazem negócios, e quando vêm as pessoas é aquele que tem dinheiro que ele pensa que pode matar e eu vou ficar com o dinheiro. É que a cidade já está a encher. N o tempo colonial, pode dizer que ele [o colonialista] dividiu o povo, mas era outro tempo, aqui vem da Macia, de Gaza, aqui em Maputo, só com Caderneta [Indígena] é que ficava. Os do norte não... Esses iam para S. Tomé [i.e., aqueles que estavam castigados, eram punidos com penas para S. Tomé]. Quando a

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gente faz mal aqui, os portugueses metem no comboio de mar [barco], e manda para ali, para S. Tomé. Mas não é para ele ficar no preso. Não é para ficar sossegado, sem fazer nada. Não, dá às pessoas dali para ele trabalhar. Não está preso. Va i fazer o trabalho, a machamba ou o quê ali, até chegar o ponto de ele voltar, dois anos, três anos. Também naquele tempo não há machimbombo que vai até Beira, não há machimbombo para o norte, Nampula, lá para onde...Não tem machimbombo para isso. Vai com barco, vai devagarinho... E agora, como que tem machimbombo, pode mandar as pessoas para lá [para fora da cidade de Maputo], mas elas quando chega lá tem dinheiro, vai comprar bilhete e voltar para aqui [risos]. Como é que vai fazer? Pode vai lá, mas há de voltar... Naquele tempo de Samora era pouco mais ou menos. O machimbombo não vai sempre para ali, era preciso guia de marcha, não andava assim qualquer maneira. Agora tem muito que está roubar, matar...

P - Mas... [interrupção] Tamele — Papá Zimba estava a falar desses que matavam e era mandado em São

Tomé. Hoje, esses ladrão não são castigados. Quando eu era criança, tinha muito medo quando via as pessoas do xibalo 5 2 , pessoas presas com corrente nos pés. Andava difícil, parecia saltar; era os presos da cadeia de Magude... Mas isso mostrava que tinha ordem na sociedade... Hoje, onde está lei? A pessoa hoje em dia só tem alguns dias na cadeia e depois sai; esse indivíduo não vai matar outra pessoa?... Então, se já não há deportação, já não manda as pessoas com castigo no norte... D i z que lei não permite. As próprias cadeias estão cheias de capim mas não mandam presos limparem por ter medo que vai matar os polícias. Nas cadeias as pessoas saem num instante. Parece hotel... Isso é perigosos para a pessoa que acusou a ele, que foi ofendido, pode até correr risco de vida. O ladrão é que tem a garantia da Frelimo, não a vítima do roubo.

P - Está mesmo mal... cada ve\ sabe menos quem é médico bom, quem éfeiticeiro... Zimba - E isso... Agora também os médicos moderno, quando as pessoas morre

de repente ou acidente ou quê, estão a fazer muito. Está mesmo muito mal o que ele faz... Tira tudo a vida dele, tira toda a vida dele [da pessoa morta, removem os órgãos bons para serem utilizados em transplantes] como e que ele vai fazer? Para que serve essa vida? É só para fazer o dinheiro. Quando morre de qualquer maneira, sem doença, eles agora fazem isso, aqui mesmo em Moçambique. Tira bocados. Tem outros que estão nos informar disso. A família dele diz que fez acidente aqui e foi para o hospital. Faleceu no acidente e a farnília dele encontrou lá no hospital quando já não tem nada. Tirou a língua, os olhos. . . 5 3 Na Africa do Sul vendem isso [aponta para os órgãos genitais] para fazer medicamento, para dar mais força... [risos]

P - Vara os homens terem mais força? Zimba - [risos]Não sei... Não, não é preciso, para os homens ficarem com mais

força, para trazer as forças, é o medicamento, as folhas, aquele que está no mato.

5 2 Trabalho forçado. 5 3 No hospital tal procedimento é realizado no âmbito do transplante de órgãos.

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P - Então para que é que os médicos do hospital fa^em isso? Zimba - Não sei mesmo porque fazem isso, para que servem as partes que esses

médicos tiram, o sexo e tira tudo . . . Já não sei que vida é essa que nós levamos com esse governo agora.

P - Votou o futuro melhor5*... Zimba - Futuro melhor é esse, aldrabar os outros. O futuro melhor porque

antigamente era tudo caniço tudo aqui 5 5 . Os brancos não deixavam construir à vontade... Agora entrou a Frelimo, já tudo já mudo, dizem que é futuro melhor, mas está tudo igual... tem caniço, não tem maneira de construir... Confusão de papéis é igual.. .

P - Se está tudo igual a antes, então qualquer dia tem xibalo56 de novo... Zimba —Tem... Operação produção é xibalo. Parece votamos antes. O problema

dos régulos também é uma coisa que não faz bem. O régulo sabe os cultos dele. E o régulo, filho de terra. Os régulo trabalhava para os colonos; sim, mas quando houve a independência não devia ter sido retirados assim os régulos. Devia ter explicado a eles nova maneira de trabalhar neste nosso novo governo... Mas tirou todos os régulos, que faz as timhamba para cair a chuva, as timhamba para que tudo vai bem, para que o povo não vai chatear. Tirou todos esses régulos, só pôr Grupo Dinamizador, levaram uma pessoa de Inhambane para ser chefe deste bairro sem conhecer os hábitos daqui. Que é que ele vai saber de nós machangane? Não pode...

P - É preciso a Unidade Nacional... Zimba - É a Unidade Nacional, mas não conhece nada aqui das pessoas. A unidade

nacional está a negar... [risos] não tem unidade nacional. Os defuntos daqui ele não conhece, não sabe o que é que é...é não, não pode ser assim... Tem que voltar a nomear os régulos....

P - Mas não é melhor em cada aldeia as pessoas escolherem quem deve ser o régulo? Zimba - O régulo não é para ser escolhido pelas pessoas. Tem a família daqueles

régulos que morreu. O filho ou o neto é que deve ser... Senão põe um qualquer. A Frelimo gosta da Unidade Nacional, enquanto não cumpre a Unidade Nacional, não cumpre as regras nossas...

Tamele — Sabe, agora está chega tempo de actuar com Frelimo sobre os votos...Mas nos tempos em que não respeita tradição, o Partido estava a pensar o quê? Estava a pensar que nyàngà não é pessoa? Porque no Parlamento não podem entrar dois tinyàngà para ajudar na solução de alguns problemas? Aí só se escolheram entre eles... Mas se tem pelo menos um nyàngà de Gaza, um do outro lado, pode ajudarem atravessar os problemas, a luta lá no Parlamento. Tem grande desentendimento, eu vê na televisão. Era bom que tem pessoas que avalia a discussão para encontrar saída; isso pode reduzir discussão; mas eles não estão a ver isso... E u , saindo bem preparada para ir no Parlamento, depois de explicar meu trabalho e ter ajuda dos espírito, pode descobrir o provocador do desentendimento e esse pode ser

5 4 Slogan do partido Frelimo durante o processo eleitoral de 1999. 551.e., os bairros da cintura suburbana da cidade, agora chamadas casas de construção precária. S 6 Trabalho forçado

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afastado. E também ele pode deixar de usar remédios maus para provocar desentendimento no Parlamento sem que se alcance uma solução.

P - Vocês não seriam inclusos na discussão? Seriam conselheiros? Ou mesmo deputados? Tamele - Nós podia ser conselheiro; o nosso trabalho era para acalmar discussão

dos deputados. Não é isso que diz, que todo é moçambicano, todo é igual nessa lei dele?

P — Mas já tentaram falar com os dirigentes do Governo, dos partidos? Tamele — Nós não tem maneira de ir lá falar com eles assim, aberto. Faz pedido

para marcar encontro, fazer audiência, mas recusa sempre. Nos, os tinyàngà só quer é dar conselhos...

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