Mobilizaçaoemredesociais

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O papel das redes sociais como ferramenta de mobilização política da sociedade: uma análise da “Primavera Árabe”

Gustavo Chaves Lopes1

RESUMO: Este artigo tem como objetivo discutir o papel das redes sociais na

mobilização de grupos da sociedade civil. Os protestos em países árabes, que ficaram

conhecidos como Primavera Árabe, utilizaram um modelo de organização que

conseguiu furar o bloqueia da mídia oficial e têm inspirado manifestações em várias

partes do mundo, sobretudo na Europa. Assim, pretendemos refletir sobre esse

modelo e o espaço de atuação da imprensa tradicional diante desse novo fazer

jornalístico.

PALAVRAS-CHAVE: Redes sociais, jornalismo cidadão, ciberativistas, mobilização social

RESUMEN: Este artículo tiene como objetivo discutir el papel de las redes sociales en la

movilización de grupos de la sociedad civil. Las protestas en los países árabes, que se

conoció como la primavera árabe, utilizando un modelo de organización que lograron

romper los bloques y los medios de comunicación oficiales han inspirado a las

manifestaciones en varias partes del mundo, especialmente en Europa. Por lo tanto,

tenemos la intención de reflexionar sobre este modelo y el espacio de actuación de la

prensa tradicional ante este nuevo periodismo.

PALABRAS CLAVE: Las redes sociales, periodismo ciudadano, ciberactivistas, la

movilización social

1 Gustavo Chaves Lopes é jornalista e aluno especial da disciplina de Jornalismo Digital na Pós Graduação da Faculdade de Comunicação da UnB

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Introdução

A crença de que tudo o que fosse publicado na internet poderia ser visto pelo

mundo inteiro sustentou, por muito tempo, a hipótese de que a democratização da

comunicação iria se consolidar, que todo indivíduo teria a possibilidade de ser ouvido.

Embora essa crença tivesse, na realidade, muitas condicionantes, o surgimento da

Web 2.0 contribuiu para a democracia através do uso da Internet, potencializando essa

capacidade.

A criação de blogs, sites de compartilhamento e, sobretudo, das redes sociais

criou um novo cenário, ampliando não apenas o acesso à informação, mas também

possibilitando a produção de conteúdo (informativo ou não) pelos usuários,

multiplicando exponencialmente as opções de fontes.

Mas as redes sociais criaram novas possibilidades. Para além das simples

conexões sociais, elas têm se mostrado poderosas ferramentas de organização política

da sociedade.

O caso da Primavera Árabe, ainda que não seja o primeiro (vide Revolução

Verde, no Irã) é, sem dúvida o mais emblemático. A partir de um modelo de

mobilização (que veremos adiante) que se manifestou na Tunísia e foi replicado em

quase todo o mundo árabe, a população daqueles países saiu em massa às ruas

exigindo mudanças estruturais na política, na sociedade, e na economia. Ditaduras

ruíram ou estão por ruir. Todo o status quo da região está se transformando.

Algo que seria impensável pouco tempo atrás (uma oposição organizada) surgiu

espontaneamente através das redes sociais. Sem uma posição política ou ideológica

definida, os ciberguerreiros, como ficaram conhecidos os manifestantes, conseguiram

catalisar o sentimento latente de insatisfação da sociedade depois de um caso isolado2

foi o estopim para o levante. Em pouco tempo, o que parecia mais uma manifestação

se transformou em uma onda de protestos na região, com resultados ainda não

definidos.

2 Bouazizi, um vendedor ambulante de 26 anos, protestava por ter seu carrinho de frutas confiscado ao se negar a pagar propina a autoridades locais. Depois de reclamar em diversos órgãos, Bouazizi recebeu um tapa na cara de uma funcionária pública. O jovem não agüentou a humilhação e ateou fogo ao próprio corpo em frente à repartição onde sofrera a ofensa. Foi o início da Primavera Árabe.

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O uso massivo das redes sociais, notadamente Twitter e Facebook, foi

fundamental para arregimentar adeptos para a revolta popular. Elas não apenas

organizavam as manifestações, como informavam a população sobre os

desdobramentos da revolta. Mais do que isso, tornaram-se fonte para a mídia do

mundo inteiro, que não tinha acesso ao que estava acontecendo.

Em tempo real, textos, fotos e vídeos eram postados nos servidores do Twitter,

Facebook e Youtube, possibilitando ao mundo ter acesso aos acontecimentos e

conhecer a real dimensão das manifestações. As redes sociais assumiram assim o papel

de garantidores da liberdade de expressão, liberdade de informação e, até mesmo, da

liberdade de imprensa.

Assim, o presente trabalho pretende abordar este modelo de mobilização

social, seus usos e reflexos na mídia, refletir sobre o papel do jornalismo (e do

jornalista) diante dessa inovação e sua importância como meio de comunicação.

Não temos a pretensão de esgotar o tema, apenas discutir sua relevância e

conseqüências para o fazer jornalístico. Além disso, faremos uma breve revisão sobre

temas como redes sociais, jornalismo cidadão e mobilização social na internet.

Apresentaremos o modelo de mobilização e alguns casos em que ele foi

aplicado, com informações que ajudem a entender esse fenômeno.

Redes Sociais

As redes sociais sempre existiram na história da humanidade, já que o homem

é um ser gregário que estabeleceu, ao longo do tempo, inúmeras formas de interação

e relacionamento social. No entanto, as redes sociais a que nos referimos, as relações

sociais mediadas por computadores, estabeleceram uma nova (ou várias) forma se

pensar as interações pessoais.

Hoje, uma parcela considerável da interação entre as pessoas se dá através de

uma alguma plataforma tecnológica. E-mails, mensageiros, sms, redes sociais, etc.: o

homem moderno já não consegue ficar “offline”. Manuel Castells, teórico que analisou

profundamente essas transformações, cunhou o termo que talvez seja o mais

apropriado para a nossa contemporaneidade: sociedade em rede.

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Sem nos estender muito sobre esse ou outros conceitos, podemos dizer que a

interface homem-máquina transmutou de tal forma as relações humanas a ponto de

haver uma transcrição de nossas interações presenciais para o mundo virtual. Castells

chamou esse fenômeno de virtualização do real (Castells, 1999, p. 414).

As tecnologias da web 2.0 (o conceito de web 2.0 vê a internet como

plataforma, na qual a interação é maior, o conteúdo é compartilhado e a produção,

colaborativa) ampliaram as possibilidades de interação na medida em que nos

permitem visualizar as conexões existentes para além dos nossos relacionamentos

presenciais, o que muitas vezes torna nossa “vida virtual” muito mais ampla e

diversificada.

Redes sociais tornaram-se a nova mídia, em cima da qual informação circula, é filtrada e repassada; conectada à conversação, onde é debatida, discutida e, assim, gera a possibilidade de novas formas de organização social baseadas em interesses das coletividades. (Recuero, 2011, pg. 15)

Muitos autores trabalham com a ideia de “mídias sociais”, porém, trata-se de

conceito3 mais amplo e complexo, mas que não é nossa intenção abordar aqui. A

seguir veremos exemplos dessas novas formas de interação que interessam

diretamente a esse estudo.

Facebook

O Facebook é o site de relacionamento mais popular do mundo hoje. Segundo

o site socialbakers.com, especializado em estatísticas de redes sociais, o Facebook

tinha, em junho de 2011, perto de 750 milhões de usuários ativos. Estima-se que

chegue ao número de um bilhão de contas em 2012.

Criado em 2004, por Mark Zuckerberg e outros estudantes da Universidade de

Harvard, EUA, o site é utilizado para interação social, hospedagem de fotos e vídeos,

troca de mensagens, além de disponibilizar uma série de aplicativos para seus

usuários.

3 Para uma pesquisa mais aprofundada sugerimos o livro Para entender as mídias sociais, organizado por Ana Brambilla, que pode ser baixado gratuitamente na Internet.

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Twitter

O Twitter difere bastante dos outros sites de relacionamentos, tendo mais

semelhanças com um blog (é considerado um microblog). O usuário pode postar textos

de até 140 caracteres (os tweets), que são visualizados pelos seus seguidores (pessoas

que estão conectadas a ele).

O número limitado de caracteres disponíveis, na verdade, faz referência a

antigas ferramentas de comunicação instantânea. O telex (uma espécie de máquina de

escrever que enviava e recebia mensagens) trabalhava com o limite de 160 caracteres

por mensagem. Quando os celulares passaram a enviar mensagens de texto (SMS), as

operadoras também trabalharam com essa medida de referência (mesmo que se possa

enviar um torpedo com milhares de caracteres, cada 160 toques são considerados

como uma mensagem pelas operadoras para fins de cobrança).

Surgido em 2003, a ideia era que o Twitter fosse utilizado principalmente

através do celular. Assim, os criadores do microblog disponibilizaram os mesmos 160

caracteres: 140 para a mensagem e até 20 para o nome do usuário.

O mote inicial do twitter é responder a pergunta: what’s happening? (o que

está acontecendo). A partir daí, uma infinidade de possibilidades de uso foram

incorporadas à ferramenta.

Jornalismo cidadão

Também chamado de jornalismo colaborativo, jornalismo participativo,

wikijornalismo, jornalismo open-source, entre outros termos mais ou menos criativos,

o jornalismo cidadão (que usaremos por entendê-lo mais apropriado) é,

resumidamente, o jornalismo praticado por qualquer pessoa. Ou seja, parte da ideia

de que não é preciso ter a formação acadêmica do jornalismo para produzir conteúdo

informativo.

E a Internet, claro, foi a grande potencializadora desse processo. Sobretudo a

partir do advento do conceito 2.0. Mais do que dar ao cidadão a possibilidade de

produzir notícias, quebra o paradigma da passividade no processo de comunicação,

eliminando a velha fórmula comunicacional:

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“A principal característica dessa lógica de produção é a superação do modelo transmissionista emissor-meio-mensagem-receptor, uma vez que este último torna-se agente produtor neste processo. A idéia de participação é, justamente, descentralizar a emissão, oportunizando que mais vozes tenham vez no espaço público. Valoriza-se desta forma, uma característica da rede, que é a possibilidade de uma interatividade efetiva”. (LINDEMAN, 2006. p.154).

Um dos pioneiros nessa forma de produção de notícias foi o site Slashdot

(www.slashdot.org), criado em 1997 pelo programador americano Rob Malda. O site,

especializado em temas de informática e tecnologia, era alimentado com matérias

enviadas pelos internautas, na sua maioria, informatas ou estudantes de informática.

Há um sistema de moderação, no qual são escolhidas cerca de 20 matérias, entre as

centenas enviadas diariamente pelos usuários.

No entanto, um dos primeiros sites de jornalismo cidadão voltado para a

produção de notícias foi o sul-coreano OhmyNews (ohmynews.com). Fundado no ano

2000 pelo jornalista Oh Yen Ho, o site foi uma forma de oferecer uma alternativa ao

monopólio de comunicação estabelecido no país, formado por três grandes jornais.

Baseado na ideia de que cada cidadão é um repórter, o site passou a receber

conteúdo de todo o país e, em pouco tempo, o OhmyNews já tinha uma grande

audiência na Coréia do Sul e foi aberto a outros países.

Inicialmente editado apenas em hangul, o alfabeto coreano, o site passou a ser editado também em inglês, a partir de agosto de 2004, sob a denominação de Ohmy News International (www.english.ohmynews.com). A partir de então, usuários de qualquer país têm a oportunidade de colaborar, de forma que a cobertura passou a se dar em âmbito mundial. (LINDEMAN, 2006, p. 157).

Enquanto os exemplos citados, e outros tantos surgidos depois, eram uma

alternativa para as mídias estabelecidas, o que fizeram os meios de comunicação de

massa diante desse novo cenário? Quase todos os portais de notícias, inclusive no

Brasil, criaram canais do tipo “você leitor”: vc repórter (Terra), FotoRepórter (Estadão),

Eu Repórter (O Globo), são apenas alguns casos em que o jornalista é apenas um

acessório no processo de produção de notícias. No primeiro semestre de 2011, o canal

de televisão DFTV, afiliado à Rede Globo, lançou o concurso “Parceiros do DF”, para

selecionar candidatos a repórter, que receberiam um mês de treinamento e

produziriam matérias sobre suas cidades. Não era necessário a formação em

jornalismo.

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Diante dessas mudanças estruturais dos processos de comunicação, onde todos

e qualquer um podem ser jornalistas, é de se perguntar que papel restará ao jornalista

profissional. Forçoso admitir que o jornalista (e o jornalismo) perdeu o monopólio da

voz.

Não é a intenção do presente trabalho responder a essa indagação, embora

reconheçamos sua grande importância. Pretendemos nos debruçar sobre o tema em

um futuro mestrado, onde pesquisaremos o assunto com mais profundidade.

No entanto, é necessário observar que, embora as fontes tenham se

multiplicado, democratizando o acesso e a produção de notícias, nem tudo o que se lê

merece credibilidade. Se essa afirmação já é verdadeira no mundo offline do impresso,

é ainda mais em um universo onde todos produzem informação, com seus interesses,

opiniões e visões de mundo. Se a objetividade já era uma quimera no jornalismo

tradicional, no jornalismo cidadão ele é uma utopia.

Longe, porém, de deixar de reconhecer a importância dessa revolução, que têm

oportunizado momentos emblemáticos de nossa história contemporânea, como

veremos a seguir.

Mobilização social

Não há novidade alguma no fato de um grupo de pessoas se reunir para

reivindicar algo, lutar por uma causa, defender uma bandeira. Os descontentes com o

establishment - fosse ele qual fosse - sempre existiram e sempre souberam da lógica

do “unidos somos mais forte”. Então, o que há de novo nas mobilizações atuais?

A novidade está na forma como isso vem acontecendo. Se antes a praça, o

espaço público, era o palco de onde surgiam os grandes clamores sociais, hoje basta

um computador para que se inicie uma revolução. Ou uma wikirrevolução, como disse

Manuel Castells em artigo4 recente.

A Internet mudou completamente a maneira como a sociedade se organiza - e

as redes sociais potencializaram ao extremo as possibilidades de mobilização social. O

conceito de interatividade ficou esvaziado diante da “horizontalização do processo de

constituição da mídia que, ao contrário da chamada mídia de massa, distribuiu o poder 4 La wikirrevolución del jazmín – jornal La Vanguardia, Espanha (29/01/2011)

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de distribuição da mensagem.” (Recuero, 2011, p. ). Hoje, mais do que participação,

mais do que interatividade, o que se observa é envolvimento.

A própria construção da cidadania, hoje, se dá sob (e sobre) alguma plataforma

tecnológica. São os ciberativistas (ou webcitizens, ou netzens, ou outro termo

semelhante) que estabelecem novas fronteiras da participação política. Através de um

computador conectado à rede rapidamente agregam adeptos à causa que defendem:

Essas mídias são grandes facilitadoras uma vez que sincronizam diferentes grupos espalhados num mesmo país ou no mundo, facilitam a coordenação das ações e ajudam a documentar o que está acontecendo. (Barreto, 2011, p. 163)

Um exemplo dessa forma de mobilização é a comunidade Avaaz (avaaz.org).

Fundado em 2007, o grupo é formado por ativistas que coordenam ações de

mobilização global em temas como direitos humanos, corrupção, meio ambiente,

geopolítica, entre outros.

O Avaaz envia milhões de e-mails solicitando que as pessoas assinem petições

em prol das demandas que a organização defende, como forma de pressionar as

autoridades competentes para agirem em favor das causas defendidas.

Os exemplos são vários e vão desde grandes temas de interesse coletivo (na

Alemanha, a sociedade se organizou através das redes sociais para pressionar o

governo a abandonar o programa nuclear do país), passando por pequenas causas

pessoais (como o homem que perdeu seu gato no aeroporto de Brasília e conseguiu

destaque para seu drama na mídia depois de fazer “barulho” nas redes sociais).

Há casos de solidariedade global, como aconteceu no caso das enchentes no

Rio de Janeiro ou do terremoto no Japão, quando milhões de pessoas se mobilizaram

através das redes sociais para arrecadar donativos, mantimentos e todo o tipo de

ajuda para os necessitados.

Na política, a campanha Fora Arruda ganhou força no Twitter com a hashtag5

#foraarruda, que mobilizou milhares de estudantes em Brasília, pressionando pela

5 Hashtags são as palavras-chave dos tweets, funcionando também como links para outros tweets com o mesmo tema.

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cassação do então governado do Distrito Federal, José Roberto Arruda. Depois de

semanas de passeatas, investigações e muito jogo político, Arruda acabou preso e

perdeu o mandato.

Além dos usos mais institucionais, como em campanhas eleitorais: a campanha

do presidente Barack Obama, o uso do Twitter e do Facebook foi maciço, a ponto de

alguns analistas creditarem às redes sociais o diferencial do candidato democrata. Aqui

no Brasil, nas últimas eleições majoritárias, as redes sociais também foram usadas

fortemente, criando uma espécie de disputa virtual entre os candidatos.

Mas é nas questões que dizem respeito à cidadania que as redes sociais têm

agido mais intensamente, onde campanhas organizadas na rede acabam

representadas no “mundo real”. Mais uma vez os exemplos são diversos e não é, no

momento, nossa intenção, nos aprofundarmos nessa temática.

Porém, de todos os infindáveis exemplos que podemos mencionar, nenhum

teve a capacidade de mobilização e a força transformadora das mobilizações nos

países árabes, onde a população saiu às ruas exigindo mudanças radicais na sociedade,

como veremos a seguir.

Primavera Árabe – Flores para todos

Os países árabes costumam ser vistos pelo Ocidente como um corpo único, que

compartilha uma mesma história comum, dotado de tradições conservadoras (ou

ultrapassadas), de uma cultura machista e de um fundamentalismo religioso. Porém,

essa é uma visão equivocada sob todos os aspectos e o próprio termo “mundo árabe”

carece de sentido etimológico.

Sem querer entrar em conceituações geopolíticas, que fogem ao interesse

imediato desse trabalho, basta dizer que os países árabes têm histórias distintas,

tradições diversas e culturas diferentes. Talvez o que eles compartilhem sejam apenas

algumas singularidades culturais, o idioma árabe e a religião islâmica. Ainda que nem

todo país islâmico tenha o árabe como língua oficial (como o Irã, para ficar no exemplo

mais óbvio) e ainda que mesmo o Islã (como todas as religiões monoteístas) tenha suas

diversas ramificações. Dito isto, vamos passar às transformações que alguns países

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árabes têm experimentado, nos atendo ao papel que as redes sociais têm

desempenhado nesse processo.

No dia 17 de dezembro de 2010, quando o tunisiano Mohamed Bouazizi se

autoimolou em protesto contra a corrupção de agentes do governo, sabia que viraria

um mártir, mas é provável que não imaginasse que seu sacrifício daria início às mais

importantes revoltas de países árabes na história contemporânea.

Indignados com o evento, milhares de jovens tunisianos saíram às ruas exigindo

a prisão dos agentes corruptos. Mas havia mais do que sentimento de justiça. Havia a

chama de uma revolução que transformaria a sociedade árabe como eles a conheciam.

Os protestos cresceram. A repressão aumentava na mesma medida. Enquanto

a mídia oficial dava a sua versão dos fatos, minimizando as manifestações e atribuindo-

as a poucos “subversivos”, as redes sociais fervilhavam. As ruas ficavam cada vez mais

tomadas por manifestantes e era impossível ignorá-las. Em poucos dias o presidente

Zine El Abidine Ben Ali, no poder há mais de 23 anos, teve que renunciar, devido ao

forte clamor popular.

Foi a senha para que a população de países da região se sublevassem. Com as

mesmas ferramentas, os egípcios derrubaram Hosni Mubarak, 30 anos no poder,

considerado um dos regimes mais sólidos da região. Logo Síria, Líbia, Iêmen, entre

outros, seguiam a onda de manifestações, embora nestes países a situação ainda

esteja indefinida.

Driblando a censura – um modelo de sucesso

Todos os países árabes citados vivem sob variados níveis de censura e

totalitarismo. Ainda que haja um maior ou menor grau de garantias individuais, em

nenhum deles se permite a plena liberdade de imprensa ou de expressão. Assim, para

poder se organizar politicamente e coordenar as manifestações, os jovens lançaram

mão das redes sociais como ferramentas de mobilização.

Inicialmente, essas ferramentas tiveram a função de “despertar a consciência”

da juventude árabe e de convocar os descontentes para sair às ruas e participar das

manifestações. Num segundo momento, quando as mídias locais “ignoravam” os

protestos e os jornalistas estrangeiros eram expulsos ou impossibilitados de realizar

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seu trabalho, as redes sociais assumiram definitivamente o papel de fontes de

informação e notícia, abastecidas pelos próprios cidadãos, furando o bloqueio imposto

pelos canais tradicionais de comunicação.

Embora se refira a outro acontecimento (o 11 de setembro) a descrição de

Gilmor (2004), para essa nova lógica de produção de notícias se encaixa com perfeição

nesse caso:

[...] desta vez, estava a acontecer mais qualquer coisa, algo de profundo: as notícias estavam a ser produzidas por pessoas comuns, que tinham pormenores a relatar e imagens para mostrar, e não apenas pelas agências de notícias “oficiosas” que, tradicionalmente, costumavam produzir a primeira versão da história. Desta vez, o primeiro esboço estava a ser escrito, em parte, por aqueles a quem as notícias se destinavam. Uma situação tornada possível – era inevitável – pelas novas ferramentas de comunicação disponíveis na Internet. (GILMOR, 2004, p. 12).

E a fórmula para o sucesso das manifestações era simples: pelo Twitter, os

ciberativistas marcavam os locais de encontro e disseminavam informações sobre o

evento. Em pontos estratégicos, alguns participantes faziam o papel de “olheiros” e

avisavam sobre os locais onde poderiam enfrentar repressão. Conforme a

manifestação ia acontecendo (geralmente passeatas ou aglomerações em praças

públicas), era feita atualização em tempo real.

O Facebook era utilizado como plataforma de debates, antes e depois das

manifestações. Também como suporte para fotos e vídeos. O Youtube também

entrava em cena para armazenar os vídeos. Foi dali que saíram (e continuam saindo)

muitas das imagens marcantes e flagrantes de repressão divulgadas na mídia

tradicional.

Não tardou para que os regimes percebessem que era inútil prender alguns

manifestantes ou expulsar jornalistas estrangeiros de seus países. Era preciso lutar

com as mesmas armas. As primeiras medidas foram no sentido de tentar inviabilizar o

acesso à Internet. Não durou muito. Depois, passaram a perseguir os ciberativistas

através das hashtags. Foi aí que entrou outro passo na estratégia dos manifestantes:

conforme as autoridades conseguiam mapear e bloquear as hashtags, outras eram

criadas e seguiam funcionando no mesmo ritmo.

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A principal etiqueta da revolução tunisiana começou como #sidibouzid (uma

referência à Bouazizi) e foi mudando ao longo dos eventos, para evitar a censura. Em

junho de 2011, #SBZ_news era a sexta versão que os ativistas colocavam no ar. Outras

#hashtags que fizeram (e fazem) a cobertura em tempo real, não apenas na Tunísia,

mas nos outros países foram: #tahir, #arabsprings, #arabrevolution, #yemen, #syria,

#bahrein, #lybia.

Interessante destacar que apenas uma pequena parte dos manifestantes, em

qualquer dos países citados, tinha contas no Twitter. Embora contassem com milhares

de seguidores, as principais hashtags não abarcavam a totalidade da população.

O sucesso das mobilizações se deu então, também por conta da forte tradição

de oralidade da cultura árabe (esse sim um traço comum no “mundo árabe”). Por

razões históricas, o hábito de contar histórias sempre acompanhou esses povos. Era

uma forma de manter uma memória coletiva e passá-la às gerações seguintes.

Vem daí uma brincadeira muito comum também no mundo ocidental: o

telefone árabe. Embora tenha diferentes nomes, dependendo da região, é provável

que todo mundo já tenha brincado ou ouvido falar do jogo. Consiste em passar uma

mensagem, da boca ao ouvido de outra pessoa e assim sucessivamente. Fica fácil

entender como nesses casos as chamadas nas redes sociais virtuais encontravam forte

eco nas redes sociais reais.

Castells (1999) fala da virtualização do real nas sociedades em rede. Mas, nesse

caso, não estaríamos vivendo uma realização do virtual? Esse paradoxal caminho

inverso sugerem que as relações de interesse, os debates, as organizações, começam

no universo digital, mas se concretizam no universo real.

Assim, Twitter, Facebook e Youtube se converteram “telefones árabes”

turbinandos. Com sua capacidade de disseminação, em pouco tempo milhares de

participantes eram arregimentados e tomavam as ruas em protesto contras os regimes

opressores, lutando por democracia, reivindicando melhores condições de vida,

liberdade e oportunidades de emprego (segundo pesquisas recentes da OIT 60% dos

jovens árabes estão desempregados, o que explicaria também a grande adesão às

manifestações).

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Nem tudo são flores

Nem sempre esse modelo é eficaz, como aconteceu nas manifestações

ocorridas no Irã, em protesto contra a reeleição do presidente Mahmoud

Ahmadinejad, considerada por observadores externos como fraudulenta. A chamada

Revolução Verde aconteceu em 2009, portanto antes mesmo da Primavera Árabe, e foi

uma das primeiras experiências da utilização das redes sociais como ferramentas de

ativismo político a furar a censura oficial. Outro caso em que a aplicação desse modelo

não teve o mesmo sucesso foi na Líbia. Nesses países, a repressão dos governos foi

muito mais dura e eficiente:

Os recentes levantes no mundo árabe foram marcados por mobilizações que, no mínimo, foram facilitadas e antecipadas pelo uso das mídias sociais. Se num primeiro olhar se vê o sucesso do uso da Internet nas revoltas do Egito e da Tunísia, por outros, sabe-se também que a onda verde que invadiu o Twitter e o Facebook durante a luta do povo iraniano contra o governo autoritário se virou contra eles, a partir do momento em que a revolta falhou e estas mesmas mídias servem hoje como banco de dados para a busca e apreensão de pessoas por esse regime. Mais recentemente, o governo da Líbia, assim que percebeu a mobilização online, bloqueou a Internet no país. (BARRETO, 2011, p.164-165).

As redes sociais continuam a trabalhar pela Primavera Árabe. Os manifestantes

continuam contando e mostrando ao mundo sua luta por democracia, em toda a sua

grandeza, mas também nos detalhes, nas pequenas alegrias e tragédias particulares. O

modelo de mobilização iniciado nos países árabes se espalha pelo mundo, com

especial destaque para ações na Espanha e Grécia. O mundo sabe antes dos

acontecimentos nesses lugares através das redes sociais e não na mídia tradicional.

Será esse um novo modelo de produção de notícias, que prescinde do jornalista e é

feito de fonte para fonte? Tentaremos responder a essa e outras indagações a seguir.

E o jornalista?

Visões fatalistas do jornalismo são comuns hoje em dia. Em nome do

determinismo tecnológico, muitos acreditam que o papel do jornalista será cada vez

secundário no processo de produção de notícias. Não há dúvidas que as novas

tecnologias vieram para ficar e mais – a atualização tecnológica é contínua. Cabe,

portanto, ao jornalista acompanhar esse processo.

Salaverría (2009) fala de uma nova relação com o público, de um novo perfil do

jornalista nesse processo de convergência midiática. O profissional do jornalismo deve

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abandonar a visão unidirecional do processo de comunicação e olhá-lo e praticá-lo de

forma multidirecional. Como vimos anteriormente, o público já está inserido nas

redações. O público está produzindo por si mesmo as notícias. Cabe ao jornalista estar

atento ao que esse público quer falar e ouvir.

Além disso, as redes sociais, se bem utilizadas, são aliadas e não ameaças. Ter

acesso ao enorme conteúdo de informações geradas, da possibilidade de contato

direto e instantâneo com as fontes, que estão onde o repórter não pode estar, podem

auxiliar e muito o jornalista a desenvolver seu trabalho. Sem esquecer uma das regras

básicas da profissão: checar a informação.

A lição da Al Jazeera

Não é de agora que e a rede de televisão Al Jazeera, do Catar, se tornou

referência para o mundo em assuntos relacionados ao Oriente Médio. Moderna e

dinâmica, a rede soube se adequar como poucos à nova lógica de produção de notícias

através das redes sociais. Em entrevista ao blog Periodismo con Futuro, do jornal

espanhol El País, (blogs.elpais.com/periodismo-con-futuro), o coordenador de mídias

sociais da Al Jazeera, Riyaad Minty, deu pistas importantes de como o jornalismo

tradicional deve se portar diante desse novo cenário.

A primeira delas, o jornalista deve estar em contato com o público e respeitá-

lo. Só assim se estabelece uma relação de confiança. Assim se atinge credibilidade e

logo o próprio público vai estar te passando informações relevantes.

Além disso, a verificação continua tão ou mais importante agora. O volume de

informações a que se tem acesso é infinitamente maior. Assim, o jornalista deve tentar

contato com que está tuitando, postando vídeos, divulgando fotos e checar as

informações, o que está longe de ser uma tarefa fácil:

“Lo mejor es conseguir un contacto personal, llegar a esa persona por correo electrónico y pedirle su teléfono. Cuando ya tienes el número con su código de área, sabes en qué zona está. Luego hay que comparar su versión con otras, incluidas la de los corresponsales en la zona. También les pedimos que se fotografíen con el periódico del día y así sabemos que están en el sitio en el que dicen que están. Es un gran desafío, pero si sigues estos pasos, puedes estar seguro que tienes un 70% o un 80% de posibilidades de éxito en la verificación". (MINTY, 2011)

Minty conclui dizendo que os jornalistas não podem ignorar o fato que a forma

de produzir e consumir informações mudou completamente. Se não enxergar as redes

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sociais como parte de seu trabalho corre o risco de tornar-se irrelevante.

No entanto, é provável que haja a necessidade de estar atento também ao que

Wolton chama de “tirania do acontecimento”. Ou seja, a comunicação é baseada na

instantaneidade absoluta, quando um volume incessante de informações é oferecido

ao público, que não consegue digeri-las. Mas a noção de “tempo real”, com a qual a

instantaneidade trabalha é diferente do tempo histórico, da sociedade.

Mesmo que se fique acordado 24 horas por dia não se dá conta de consumir

toda a massa de informações despejadas continuamente. Ao jornalista,

individualmente, cabe tirar do caos a notícia, do turbilhão de informações achar a que

seja relevante para o público.

Diante do que foi visto até aqui, parece que o jornalista está agora em uma

nova fase de sua profissão: por um lado precisa adaptar-se, adequar-se a um novo

cenário, onde os atores se multiplicaram ao infinito e as possibilidades de

interpretação do “real” são muitas. Por outro, tem que manter certas liturgias da

profissão, como checagem, apuração e um certo filtro.

Considerações Finais

São muitas as conclusões que podem ser extraídas dessa nova realidade que se

apresenta ao fazer comunicativo. Não temos pretensão, como já dissemos, de esgotá-

las aqui, mas apresentaremos as que nos parecem mais interessantes a este estudo.

Um dos primeiros entendimentos que se apresentam diante do exposto diz

respeito às novas relações que se estabeleceram no processo de produção de notícias

com o advento das redes sociais.

Definitivamente, o público está em outro patamar nesse processo. Não há mais

como ver no leitor (entendido aqui como um consumidor multimídia de notícias) um

sujeito passivo. Ele entrou de vez na lógica de construção do produto informativo e

tem cada vez mais espaço e voz. O jornalismo perdeu o monopólio da fala, de forma

irreversível.

O público se tornou um colaborador imprescindível. Não nos formatos do tipo

“você repórter”, que também têm seu valor mas, sobretudo, como interlocutor dos

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eventos, estando presente e vivenciando os acontecimentos onde e quando eles

ocorrem.

Também constatamos que o jornalista se mantém relevante na medida em que

confere credibilidade à informação oriunda das redes sociais, apurando sua veracidade

através da checagem das fontes, da investigação dos fatos. Assim, o jornalista continua

imprescindível como um mediador da construção social da realidade, que passa, cada

vez mais, pelas redes sociais.

O jornalismo cidadão pode contribuir, assim, para a democratização da

comunicação. Não apenas pela possibilidade de acesso ou produção de notícias, mas

como um aliado na interpretação que mais se aproxime da realidade dos fatos.

Dinamizando um modo engessado e, muitas vezes, preguiçoso de recortar (e recontar)

os acontecimentos.

A mídia tradicional terá (se ainda não o fez) que se abrir a essa nova realidade.

As empresas de comunicação terão de ver em seu público mais do que clientes, mas

parceiros na construção do seu produto. O diálogo é cada vez mais necessário, e as

trocas é que estabelecerão as relações de credibilidade e confiança, imprescindíveis

nesse negócio.

Desde uma perspectiva cidadã, a utilização das redes sociais como ferramentas

de mobilização política quebram um paradigma para a atual geração: havia a crença de

que as chamadas gerações X e Y, crescidas ou nascidas em um universo altamente

digital e virtualizado, seriam alienadas e desinteressadas de questões coletivas.

O que se vê, no entanto, é uma participação cada vez mais ativa, com diversos

grupos interagindo, discutindo e, mais importante, agindo e provocando

transformações reais na sociedade.

Mediadas pelas redes sociais, a organização da sociedade avançou para um

nível inédito de mobilização. As possibilidades de participação sugerem mais do que

interação, permitem (e até exigem) o envolvimento do público.

As redes sociais se impõem como uma ferramenta indispensável no processo

de comunicação, seja ele jornalístico, político, social ou cultural. Elas agregam, pela

primeira vez, a multiplicidade de discursos, visões e interpretações da realidade.

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Como plataforma comunicacional alternativa à mídia oficial ou aos grandes

meios, as redes sociais demonstraram sua eficiência. Não é possível controlá-las, nem

vencê-las. É preciso juntar-se a elas.

Bibliografia consultada

BARRETO, Fernando: Mobilização Social. In: Para entender as mídias sociais. Org.

BRAMBILLA, Ana. E-book, 2011.

CASTELLS, Manuel: A era da informação: Economia, sociedade e cultura – Volume 1:

Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

GILMOR, Dan: Nós, os média – Lisboa: Presença, 2005

LINDEMAN, Christiane: Jornalismo participativo na internet: novo suporto, novas

práticas, novos conceitos. In: Animus – Revista interamericana de comunicação

midiática. Santa Maria/RS, vol. V, n. 2. p. 149-168, 2006.

MINTY, Riyaad - Al Yazira: o cómo el ciudadano fue esencial para contar la revolución,

entrevista de Ana Alfageme - http://blogs.elpais.com/periodismo-con-futuro/:

acessado em 17/06/2011

NEGREDO, Samuel; SALAVERRÍA, Ramón: Periodismo integrado: convergencia de

medios y reorganización de redacciones - Barcelona: Sol90Media, 2008

RECUERO, Raquel: A nova revolução – as redes são as mensagens. In: Para entender as

mídias sociais. Org. BRAMBILLA, Ana. E-book, 2011.

WOLTON, Domenique: Pensar a comunicação: Brasília: UnB, 2004.