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Fevereiro 2012
Tese de Doutoramento
em Antropologia do Espao e das Cidades
MOBILIDADES INVISVEIS E IDENTIDADES PRECRIAS:
VIDAS EM FUGA DA POBREZA
Jos Manuel Cavaleiro Rodrigues
Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do grau de Doutor
em Antropologia do Espao e das Cidades, realizada sob a orientao cientfica da Professora Doutora Filomena Paiva Silvano
- Apoio financeiro da Fundao para a Cincia e a Tecnologia (FCT) no mbito do POCI 2010 e PROTEC -
MOBILIDADES INVISVEIS E IDENTIDADES PRECRIAS: VIDAS EM FUGA DA POBREZA
INVISIBLE MOBILITIES AND PRECARIOUS IDENTITIES: LIVES RUNNING AWAY FROM POVERTY
JOS MANUEL CAVALEIRO RODRIGUES
RESUMO
No momento em que comeam a ser melhor conhecidos os dinamismos que fazem dos pobres uma populao flutuante, da qual uma parte substancial passa por episdios de pobreza que no se transformam numa condio definitiva, o projeto conducente a esta tese pretendeu caracterizar as trajetrias de mobilidade que consubstanciam os movimentos bem-sucedidos de fuga destituio e privao econmica extrema. Com base num trabalho etnogrfico junto de vinte e oito famlias residentes em dois bairros de habitao social metropolitanos, entrevistadas e acompanhadas ao longo de mais de dois anos, procuraram-se respostas para trs tipos de interrogaes. A primeira foi saber como surgiu a pobreza nas suas vidas, quais as causas que a provocaram e em que condies foi possvel a sua ultrapassagem, cruzando na anlise a evoluo de factores estruturais com as estratgias e os projetos engendrados no plano individual e familiar. Reconstrudas as trajetrias, o segundo objectivo foi captar os modos de vida construdos aps a sada da pobreza e a maneira como esses indivduos e famlias se identificam socialmente no presente, face s posies que conquistaram para si prprios e s aspiraes que mantm. A esta segunda dimenso, de autoidentificao, esteve articulada uma terceira, a de recolher as representaes dos sujeitos sobre o conjunto mais amplo das estruturas de desigualdade e das hierarquias sociais e econmicas, desde as posies desfavorecidas que experimentaram pessoalmente aos lugares mais privilegiados a que s a imaginao d acesso.
PALAVRAS-CHAVE: pobreza, mobilidade socioeconmica, identidade social.
ABSTRACT
At a time when we start to understand the dynamics of the poor as a floating population in which a significant part of the people is not condemned to become permanently poor, the investigation leading to this thesis intended to characterize the mobility processes of those who successfully escaped destitution and extreme economic deprivation. Based on ethnographic work among twenty-eight families living in two neighbourhoods of metropolitan public housing, interviewed and observed for over two years, this study researched three major issues. The first was to find out how poverty came into the lives of those families, to identify the causes of their economic hardship and the circumstances in which they moved out: did they benefit from the interference of any structural factors or was agency and personal strategy the main cause for economic change? A second topic for research was the lifestyles they raised after poverty and the way they identify themselves and the position they occupy in society. This dimension of self-identification was connected with a third one, where the goal was to collect the subjects representations about the broader system of social and economic inequalities, from the impoverished positions they had experienced in the past to the privileged places that stand above them in social space.
KEYWORDS: poverty, social and economic mobility, social identity.
NDICE
E PUR SI MUOVE - A PERSPECTIVA DA MOBILIDADE E O CONHECIMENTO DA POBREZA 1
CAPTULO I - ITINERRIO METODOLGICO, ENTRE OS TERRENOS E OS DISPOSITIVOS ANALTICOS 38
1. Pobreza e mobilidade: genealogia de um objecto 38
2. Da pobreza e dos seus lugares 43
3. Entrevistas e etnografia em contextos contemporneos 51
4. Narrativas, anlise e sistematizaes interpretativas 57
CAPTULO II - POBREZA E DESIGUALDADES SOCIAIS 68
1. O campo especfico dos estudos da pobreza 68 1.1. O Reformismo liberal e a origem progressista dos estudos da pobreza 70 1.2. A Escola de Chicago e a ecologia social da pobreza 73 1.3. scar Lewis e a Cultura da Pobreza 76 1.4. Debate terico e apropriao poltica das teses culturalistas 80 1.5. Da pobreza material s conceptualizaes da Infraclasse 91 1.6. A pobreza e o paradigma da excluso 99
2. A pobreza enquadrada pelos estudos das desigualdades sociais 110 2.1. Capitalismo, globalizao e reestruturao das desigualdades 110 2.2. A infraclasse e a teoria das classes e da estratificao 117 2.3. Das posies de classe s identidades de classe 129 2.4. A perspectiva das desigualdades nas teorias da etnicidade 147 2.5. A anlise clssica e as abordagens alternativas da mobilidade social 167 2.6. Habitus, reflexividade e identidades sociais contemporneas 179
CAPTULO III - POBREZA, TRAJETRIAS DE MOBILIDADE E REPRESENTAES IDENTITRIAS 192
1. As histrias de vida econmica e a heterogeneidade dos percursos de pobreza 192
2. Dinmicas de mobilidade e trajetrias de classe na sada da pobreza 214
3. Representaes e identidades de classe em famlias com trajetrias de pobreza 248
DAQUI PARA ONDE? TRAOS DE PROCESSOS INACABADOS 295
Bibliografia 308
1
E PUR SI MUOVE A PERSPECTIVA DA MOBILIDADE E O CONHECIMENTO DA POBREZA
Estvamos no princpio do ano e eu preparava-me para os ltimos dias de um j
longo trabalho de campo quando soube que 2010 ia ser publicamente declarado Ano
Europeu de Luta Contra a Pobreza e a Excluso Social, numa cerimnia oficial a ter
lugar em Madrid. Segundo pude apurar, no seguimento de orientaes da Cimeira de
Lisboa e de uma deliberao conjunta do Parlamento e do Conselho Europeus1, os
pases integrados na Unio tinham programado para esse ano uma srie de reunies,
concursos, conferncias e campanhas, tendo como principais objectivos, formalmente
anunciados, interpelar os esteretipos e as percepes colectivas existentes sobre a
pobreza e a excluso social, sensibilizar as opinies pblicas e mobilizar os cidados e
as instituies para a necessidade de combater o problema. Quando analisados em
maior detalhe, os princpios orientadores e as aes concretas ento previstas
revelavam, alm dessa preocupao central com o grau de consciencializao das
sociedades acerca das questes da pobreza, uma ateno muito particular conferida
comunicao e sua funo estratgica, domnios aos quais, direta ou indiretamente,
se encontrava submetida a generalidade da programao. Dentro desta lgica, tudo
parece ter sido cuidadosamente planeado, desde a inscrio nos documentos-base
duma referncia acerca da necessidade de convocar sistematicamente os media, de
modo a que eles pudessem estar presentes e assegurassem a cobertura noticiosa dos
acontecimentos, at atribuio da coordenao e produo de suportes
promocionais, informativos e educacionais, a uma agncia especializada e a uma rede
1 Depois de, em 2000, a Cimeira de Lisboa ter definido como objectivo estratgico para a nova dcada a obteno de avanos significativos na erradicao da pobreza, estas duas instituies centrais da Unio
Europeia decidiram, em 2008, consagrar o ltimo desses 10 anos a divulgar e a promover socialmente os valores da incluso. Sobre os pressupostos e objetivos deste Ano Europeu ver: DECISION N
1098/2008/EC OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL of 22 October 2008 on the European Year for Combating Poverty and Social Exclusion (2010). Disponvel em [Consult. 8 Setembro
2010].
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
2
de profissionais de comunicao social, previamente selecionados e que organizariam
o processo de difuso escala europeia. Todas as aes e eventos tinham esta marca:
tiravam partido do trabalho dos media ou eram concebidos especialmente para
enquadrar e nortear a sua interveno. Este segundo tipo de intenes estava patente,
por exemplo, na realizao de concursos e conferncias destinados classe
jornalstica, de modo a suscitar a sua reflexo e avaliao em torno do tratamento
noticioso do tema, assim como podia ser encontrado nas exposies com as quais se
pretendia envolver o meio artstico e levar os criadores a debruarem-se sobre o
universo da pobreza e a produzir obras que pudessem exprimir pontos de vista
estticos sobre o fenmeno e as vidas por ele afectadas.
Quem conhece a histria do combate pobreza e excluso social no espao da
Unio Europeia, sabe que o tipo de preocupao ento demonstrada com as
representaes que chegam aos cidados e que moldam as suas percepes dos mais
desfavorecidos no tem antecedentes comparveis. As iniciativas europeias conjuntas
com incidncia na luta contra a pobreza comearam com um primeiro programa em
1975 e, da para c, seja ao nvel das sucessivas geraes de programas dedicados a
esta condio social particular, seja na criao de fundos sociais definidos em funo
de reas de interveno especficas, como, por exemplo, na educao e formao, na
habitao, ou na insero no mercado de trabalho, as polticas sociais e as medidas
europeias no que toca proteo aos mais desfavorecidos sempre estiveram
direcionadas para responder s necessidades mais concretas destas populaes e aos
factores estruturais impeditivos da sua integrao socioeconmica plena.
O que poder ento levar os polticos e as instituies europeias a afectar
recursos a projetos de curto prazo que, atravs da comunicao junto dos pblicos,
visam exclusivamente intervir sobre os processos de construo e difuso de imagens
da pobreza e das identidades socialmente constitudas dos pobres e da sua condio?
sabido que, em reas como a da pobreza, em que a percepo dos problemas por
parte do conjunto das populaes pode ser mais sensvel aos esteretipos e aos
preconceitos, a formao de um ambiente social favorvel interveno dos estados
pode justificar, s por si, o recurso a polticas mais incisivas de comunicao. Contudo,
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
3
este princpio ser genrico e razoavelmente intemporal. A questo, portanto,
permanece e reside em saber porqu agora, ou porqu s agora?
Para tentar responder a esta pergunta ser preciso contextualizar e situar no
tempo as decises subjacentes. Os contornos e os contedos que foram conferidos ao
Ano Europeu de Luta contra a Pobreza e a Excluso Social resultam de deliberaes
tomadas pelas instituies europeias no decurso de 2008 e integram um plano mais
amplo e ambicioso de aes cujo objectivo expresso proteger os cidados da crise
econmica e financeira global que, assumidamente, nesse ano j assolava a Europa e
ameaava pr em risco as estruturas produtivas e a estabilidade dos padres de vida
dos pases membros2. Revisitando a memria dos acontecimentos e dos discursos que
fizeram a histria recente desse perodo de ecloso da crise, constata-se, sobretudo
entre analistas e responsveis ao nvel governativo e das instituies supranacionais, a
existncia de um estado de preocupao e ansiedade que vai crescendo medida que
o alastramento dos sinais de depresso nas economias, o avano da crise dos
mercados financeiros para os sectores produtivos e os prenncios da subida em flecha
das taxas de desemprego fazem recear, cada vez mais, o aparecimento de rupturas e
de fenmenos de contestao e violncia social. Situaes de desobedincia civil e
desordem pblica como as que se registaram em Frana e na Grcia, entre o final de
2008 e o incio de 2009, vieram aumentar os receios e comprovar que as piores
previses eram possveis. neste quadro que tem lugar a concepo de um Ano
Europeu de Luta Contra a Pobreza e a Excluso Social que faz da comunicao e da
difuso de informao e do conhecimento existentes sobre os pobres a pedra de
toque do programa, naquilo que aparenta ser tambm uma estratgia pensada de
gesto e controle de formas de incompreenso e de descontentamento social. A
pobreza constitui o motivo da programao, mas no so os pobres o seu primeiro
destinatrio. O verdadeiro alvo a atingir ser a conscincia social existente sobre o
2 A crise torna-se uma prioridade das agendas e a vigilncia dos seus efeitos sociais a primeira das
tarefas. Se no, veja-se a produo de documentos como Monitoring the social impact of the crisis. Public perceptions in the European Union: Analytical report. Flash Eurobarometer Series n276. The
Gallup Organization, October 2009.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
4
problema, trabalhando quer diretamente sobre as populaes, quer ao nvel dos
decisores, das entidades tcnicas e de outros intervenientes formadores de opinio,
de modo a que, tambm por esta via, se possa precaver e condicionar, no s a reao
dos mais desfavorecidos, mas a de todos os grupos sociais que, sob a presso da crise
e das dificuldades econmicas, estaro sujeitos a uma maior fragilizao e susceptveis
a que a sua insatisfao seja canalizada contra os mais pobres e as eventuais medidas
com que os estados se vejam na necessidade de implementar para os proteger.
Em Portugal, na mesma poca, as expresses de alarme acerca das
consequncias sociais da crise so tambm frequentes e surgem, o mais das vezes, sob
a forma de enunciados dramticos que se referem possibilidade de ocorrerem
situaes de exploso social. A expresso foi-se instalando e tornando quase um
lugar-comum, at atingir um pico de utilizao, entre Maio e Junho de 2009, na
sequncia dos tumultos que assolaram o Bairro da Bela Vista em Setbal, quando altas
figuras do estado, da igreja e de instituies polticas, pronunciando-se ou no
diretamente sobre os acontecimentos mas referindo-se sempre aos efeitos da crise,
vieram alertar para o perigo de se estarem a gerar problemas graves provocados pelo
aprofundamento das clivagens sociais, relativamente a populaes econmica e
culturalmente marginais e socialmente segregadas. Em simultneo, as notcias corriam
pelos jornais e pelas televises anunciando que, para evitar a vaga de crimes do ano
anterior e a repetio de um vero quente, as foras policiais e os servios de
segurana estavam no terreno e apertavam a vigilncia a sujeitos cadastrados nos
bairros perigosos3.
3 Expresses usadas nos leads jornalsticos durante o perodo referido. Numa dessas headlines de
imprensa titulava-se Polcias vo controlar as casas dos criminosos para salientar o facto das autoridades ligadas ao Gabinete de Coordenao de Segurana, superestrutura das polcias nacionais,
terem definido como estratgia de combate criminalidade a vigilncia a partir dos domiclios de um numeroso conjunto de suspeitos sinalizados atravs do cruzamento de informaes. Em declaraes
comunicao social, as mesmas fontes procederam identificao de dez zonasproblema, mencionando que s numa delas existiriam trezentos criminosos referenciados (Dirio de Notcias, 22
de Junho de 2009). Este gnero de notcias mostram bem como a ao dos meios de comunicao de massas, combinada com a dos agentes polticos e administrativos, podem fazer a promoo pblica de
um discurso agitador, de tom muitas vezes alarmista. No estamos muito longe, na forma e no teor, das
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
5
O que tanto o programa europeu como os discursos polticos e mediticos
sobre a conflitualidade e a violncia urbana emergentes na sociedade portuguesa me
parecem pressupor uma convico idntica, da parte dos agentes envolvidos, acerca
dos efeitos disruptivos do empobrecimento e sobre a necessidade de proteger as
sociedades, a estabilidade e a ordem institudas. Embora estas narrativas no sejam
explcitas e no vo alm de, quando muito, insinuar hipotticas fontes de ameaa,
fica a impresso de que atravs delas se revela o receio de que determinados grupos
sociais, pressionados pelos atuais cenrios de precarizao geral das condies de
vida, possam tornar-se perigosos e desestabilizadores das relaes sociais. Estamos
longe dos posicionamentos ideolgicos e dos preconceitos morais com que o
pensamento do sculo XIX condenava estas populaes, mas, mesmo assim, sente-se
por aqui a ressonncia daquilo que nesse tempo era designado como classes
perigosas. Durante o final desse sculo, dangerous classes4 era um qualificativo que
remetia para um conjunto de regras e valores de conduta, usado para caracterizar
populaes pauprrimas, atradas para as cidades mas inteis para o trabalho
industrial, tidas como promscuas e familiarmente irresponsveis, incapazes de prover
s suas necessidades e, por isso, consideradas um atentado aos valores e coeso
sociais. Nos discursos porventura mais esclarecidos e politicamente informados do
sculo XXI, a imagem da suposta depravao moral e de valores ter-se- diludo, em
certos casos mesmo desaparecido, mas permanecer a ideia de que estes grupos so
potencialmente insurgentes e uma fonte de problemas para o funcionamento normal
e pacfico das sociedades, particularmente naqueles momentos da histria, como o
atual, em que as crises nas economias vo ao ponto de tornar insustentveis as
condies de vida dos mais necessitados.
campanhas que desencadeiam os episdios de moral panics caracterizados na sociologia por Stanley Cohen em Folk Devils and Moral Panics (1972).
4 A origem da expresso habitualmente atribuda a Charles Loring Brace, filantropo e reformador norte-americano que publicou em 1872 um livro de memrias intitulado The Dangerous Classes of New
York, and Twenty Years' Work Among Them.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
6
At aqui reconstitumos um cenrio feito de avaliaes e projetos de natureza
iminentemente poltica, de cujos enunciados e pressupostos as cincias sociais
parecem estar ausentes. Na realidade, a situao historicamente bem mais
comprometedora e no iliba teorias e autores dos estudos da pobreza de, um modo
mais consciente ou involuntrio, verem as suas ideias participar na constituio deste
tipo de ambientes e perspectivas intelectuais ou polticas. Se no, vejamos. Em 1963, o
economista de origem sueca Gunnar Myrdal ter recorrido sua lngua materna para
com o termo underklass cunhar um novo conceito aplicvel pobreza emergente na
sociedade americana. A inspirao do conceito poder at ser outra, uma vez que,
traduzida para ingls, a palavra underclass j registava uma apario anterior, em
1918, quando John MacLean, figura destacada do movimento socialista escocs, a
empregou para se referir maioria dos trabalhadores oprimidos e sua luta para
derrubar a overclass capitalista5. De toda a maneira, com Myrdal, o termo entra nas
cincias sociais e ganha um novo sentido, passando a identificar uma massa crescente
de desempregados que, sob o efeito das mudanas econmicas e tecnolgicas,
deixaram de estar em condies de ser absorvidos pelo mercado de trabalho, apesar
da expanso fulgurante verificada nos sistemas produtivos6. Duas dcadas volvidas,
esta acepo estrutural que fazia dos pobres vtimas dos modelos de desenvolvimento
econmico, havia de ser esquecida e substituda por uma outra, de cariz
comportamental, sobretudo como resultado da apropriao e recriao do termo
underclass por parte de formas pblicas de discurso, nomeadamente as que se
expem atravs dos canais de comunicao social. Os escritos do jornalista Kenneth
5 The whole history of society has proved that society moves forward as a consequence of an
underclass overcoming the resistance of a class on top of them", declarou MacLean numa interveno proferida no Edinburgh High Court, a 8 de maio de 1918. O que aqui estava em causa era o papel
revolucionrio de uma dita classe de baixo, mas este discurso, que passou histria como Speech from the Dock, integra a primeira formulao conhecida do termo underclass. Texto integral
disponvel em http://www.revolutionarycommunist.org/wweb/macleanindexfiles/1918-sfd.htm [Consult. 25 Janeiro 2011].
6 Myrdal adopta o conceito no seu livro The Callenge of Affluence, publicado pela Ramdom House em
1963.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
7
Auletta7 so representativos da redefinio operada no conceito e do modo como ele
passou a designar grupos que rejeitam as normas e os valores prevalecentes nas
sociedades, que recusam o trabalho e se tornam dependentes do assistencialismo, que
no hesitam em violar as regras morais e os princpios familiares, chegando no limite a
viver da prtica de crimes e margem da lei. O retrato patolgico e disfuncional da
underclass estabelecido por Auletta sofreria de imediato contestao, mas isso no
impediu nem a penetrao destas caracterizaes ideolgicas no debate pblico, nem
o reforo de uma hiper-referenciao negativa que veio sobrecarregar ainda mais as
identidades dos pobres e gerar a cobertura necessria reconfigurao das polticas
que, nos Estados Unidos, beneficiavam estas populaes at subida ao poder da
administrao Reagan nos anos 80.
No foi a primeira vez - e com toda a probabilidade no ser a ltima, que
exerccios de manipulao ideolgica se servem de conceitos desenvolvidos pelas
cincias sociais para revalidar premissas de abordagem e reabilitar modos de ao j
conhecidos no tratamento dos problemas gerados pela pobreza. O caso mais
paradigmtico sucedeu com um antroplogo, scar Lewis (1969a; 1969b), e acabaria
por conduzir a um descrdito prolongado do seu conceito de cultura da pobreza.
Lewis assumiu uma posio de risco ao admitir a existncia de uma relao entre a
persistncia da pobreza e factores comportamentais. Embora atribusse a pobreza, na
sua origem, s desigualdades intrnsecas ao desenvolvimento da economia capitalista
e ausncia de um contrapeso proveniente de polticas sociais, a tese de Lewis era a
de que a sedimentao da pobreza atravs do tempo devia ser vista, antes de mais,
como uma consequncia da formao e reproduo intergeracional de valores e da
incubao de comportamentos distintos, entre as famlias e as comunidades pobres.
Para os modelos de governo prevalecentes na Amrica do Ps-Guerra, a viso da
existncia de uma cultura que determina a psicologia do grupo, cerceia os modos de
vida dos pobres e, no fundo, os responsabiliza pela sua situao, no poderia ser mais
ajustada verso paternalista em voga de um welfare-state que precisava de
7 Apresentados no livro The Underclass, de 1983, editado pela Vintage Books.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
8
argumentos cientficos para legitimar intervenes centradas nos indivduos e na ideia
de que necessrio proceder sua reeducao para os tirar da pobreza.
Valer por isso a pena, mais adiante, sair do quadro estritamente
contemporneo e rever de um modo mais aprofundado e crtico a histria dos estudos
que pretendem explicar a origem da pobreza, para constatar que, hoje como ontem,
certas teses e autores trouxeram o tratamento do tema para um contacto demasiado
prximo e, por vezes, perverso com as ideologias dominantes na poltica e na
sociedade acerca da pobreza e da sua razo de ser. Mas haver outras constataes
igualmente importantes que resultam de uma reviso da literatura e a que podemos
passar desde j. Os estudos da pobreza contam com mais de um sculo de existncia8
e, tal como muitas outras reas de investigao, sobretudo interdisciplinares, foram-se
segmentando e constituindo em diferentes linhas de trabalho, de acordo com os nveis
e perspectivas de abordagem, as metodologias empregues e os paradigmas tericos
em que se situavam os autores. Da que o campo se encontre hoje dividido segundo
vrias orientaes de pesquisa divergentes, que por vezes se ignoram e noutros casos
se contradizem entre si. Uma das tradies presentes desde o incio a dos estudos
descritivos, de base quantitativa, que permitem a caracterizao do fenmeno nas
suas mltiplas dimenses, comeando pela determinao do nvel de pobreza e dos
efetivos populacionais afectados, passando pela sua distribuio no espao, e
abarcando os impactos sobre as suas condies de vida, em diversos aspectos como a
habitao, a sade ou a educao. Trata-se de uma perspectiva de trabalho
geralmente muito ativa e influente, dado o seu carcter aplicado e a utilidade de que
se reveste para a tomada de decises polticas e tcnicas e para o planeamento e a
conduo das intervenes diretas sobre a realidade, no terreno.
8 Durante o sculo XIX, sobretudo depois dos trabalhos de Tocqueville (1835) e de Engels (1844), foi-se tomando conscincia do significado que a industrializao tinha em termos da pauperizao de largos
sectores da nova classe operria urbana, num processo que havia de transformar definitivamente o carcter da pobreza, at a predominantemente alojada no mundo rural. Se considerarmos apenas os
estudos especficos com um carcter mais sistemtico, as primeiras investigaes conduzidas sobre esta nova pobreza, urbana e industrial, so atribudas a Booth, Life and Labour of the People in London
(1889) e a Rowntree, Poverty: A Study of Town Life (1901).
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
9
Em paralelo, o avano dos estudos da pobreza tem sido feito por outros
caminhos, porventura menos prticos mas seguramente mais aprofundados, dirigidos
natureza do problema e compreenso da sua origem. Aqui, o que se procura, seja
atravs de estratgias de macro anlise, seja das abordagens etnogrficas ou de
percursos biogrficos, um conhecimento dos factores que esto por detrs da
produo da pobreza ou das condies em que se desenvolvem os seus modos de
vida. Este segundo gnero de investigaes est marcado por uma diviso
fundamental, e at agora inultrapassada, entre duas grandes correntes tericas. De
um lado temos os adeptos das teses estruturais, posio clssica e maioritria, que
atravessa todos os ramos das cincias sociais afectos a esta rea de estudo e para a
qual a criao e a reproduo da pobreza deve ser atribuda s desigualdades e
discriminao provocadas pelos mecanismos e pelo funcionamento dos sistemas
econmicos, sociais e polticos. Uma posio distinta ocupada pelas interpretaes
ditas culturais9, que veem a pobreza antes de mais como uma forma de cultura, a
maior parte das vezes disfuncional e divergente do conjunto social, que se forma em
consequncia dos modos de vida e das estratgias desenvolvidos pelos indivduos e
pelas comunidades pobres para sobreviverem e que acarreta, na prtica, a
perpetuao da sua condio social. So sobretudo as ideias e os conceitos
provenientes deste segundo quadrante, mais centrado numa anlise de
comportamentos e numa interveno sobre casos individuais, a serem apropriados
ideologicamente e a reaparecerem transportados por alguns discursos doutrinrios e
de senso comum.
Estes modelos de investigao e de anlise enformam a histria centenria dos
estudos da pobreza, mas comeam a dar sinais de estarem a perder terreno face s
crticas que lhe vm sendo dirigidas e s alternativas de abordagem em que um
nmero cada vez mais significativo e alargado de autores tem vindo a trabalhar,
sobretudo aps a dcada de 90. A primeira falha que apontada s perspectivas
tradicionais na realidade uma limitao. Esses enfoques, ao debruarem-se sobre a
9 Ou comportamentais, quando se focam na evidenciao de comportamentos e atitudes particulares e
pretendem explic-los em funo da presena de determinados traos culturais distintivos.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
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pobreza enquanto condio, concentram-se no momento em que essa condio j se
encontra realizada. Podem dar-nos imagens completas de situaes, mas fazem-no de
um modo esttico, sem enquadrar as dinmicas histricas e biogrficas que conduzem
at aos contextos em anlise. Todas as dimenses e conceitos que s possam ser
abordados atravs de uma anlise processual, ou que impliquem mudana, escapam
geralmente a estes enfoques.
Uma segunda lacuna igualmente flagrante. Durante muito tempo, os estudos
da pobreza s deixavam ver massas homogneas e caractersticas apresentadas como
universais. Ora, os grupos sociais que tm a particularidade de viver em situao de
pobreza no deixam por isso de ser to complexos e estratificados como quaisquer
outros melhor colocados nas hierarquias. A pobreza, sabido, atinge em maior grau as
mulheres, as crianas e os idosos, as classes trabalhadoras, as minorias tnicas e os
imigrantes. Ignorar esses outros grandes factores de desigualdade gnero, idade,
classe, raa e etnia, a relao que mantm com a condio de pobreza e o modo como
se combinam para diferenciar internamente as populaes, uma das maneiras
irrefletidas de diminuir o conhecimento das diversas formas de se chegar at
pobreza, de se ser pobre ou de se aspirar a outra condio e estatuto social.
Finalmente, os modelos mais antigos tm vindo a ser acusados de representar
os pobres como testemunhas passivas e incapazes de esboar qualquer reao s
condies adversas que os constrangem. O carcter indefeso destas populaes face
aos seus cenrios de vida quotidianos era tradicionalmente justificado com base no
argumento de que os pobres no teriam a maioria dos recursos necessrios para se
tornarem senhores do seu prprio destino. Muitos investigadores, por outro lado,
tero simplesmente preferido enfatizar o peso das estruturas, para evitar a atribuio
aos pobres de uma capacidade de agenciamento que os condenaria a serem ainda
mais responsabilizados pelas suas dificuldades. A faculdade de desafiar os padres de
desigualdade s deixa de ser desprezvel e surge como objecto de pesquisa quando,
como agora, o objectivo que move alguns investigadores passa a ser captar as
estratgias desenvolvidas para sobreviver no quadro da pobreza ou, em situaes
menos frequentes, quando os pobres se revelam capazes de mudar a sua condio
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
11
social. Para os autores que se situam dentro deste ngulo novo de abordagem, no se
trata de negar ou pr em causa a existncia de fortes constrangimentos estruturais
que incidem sobre a pobreza, mas de ver como e em que circunstncias os pobres,
apesar de viverem em condies particularmente difceis e limitativas, conseguem
manter ou conquistar alguma margem de autonomia e de autodeterminao.
Entre os primeiros a demonstrar a insuficincia e a desadequao sob muitos
aspectos dos modelos tradicionais dos estudos da pobreza esto os antroplogos.
Desde a dcada de 80 e sobretudo depois de 90, a antropologia e as abordagens
etnogrficas tm ocupado um lugar de destaque na construo de novas perspectivas
de trabalho que enfatizam o papel contemporneo do desenvolvimento global das
economias capitalistas no crescimento da pobreza, ao mesmo tempo que se debruam
sobre a reao dos pobres e revelam as estratgias individuais e colectivas com que
procuram sobreviver ou alterar o seu destino. Alm desta noo mais equilibrada das
relaes entre estrutura e agncia, a contribuio da antropologia para a renovao
dos estudos da pobreza tem introduzido uma viso mais processual, histrica e
geograficamente situada das prticas, dos significados e identidades associadas
pobreza e promovido o cruzamento analtico dos vrios eixos de diferena e
desigualdade implicados na construo desta condio social.
O impacto conseguido pela investigao antropolgica na renovao dos
estudos da pobreza no foi desta feita conseguido custa da mobilizao geral dos
antroplogos especializados nas sociedades contemporneas, imagem do que havia
sucedido at dcada de 70, com o predomnio do tema da pobreza nos trabalhos da
antropologia urbana (Eames e Goode, 1977). Recorrendo a uma avaliao sistemtica
do campo que remonta a meados dos anos 90 (Susser, 1996) e com base numa
apreciao mais emprica e eventualmente incompleta do que foi produzido da para
c, possvel afirmar que, pelo contrrio, a antropologia da pobreza se tornou uma
pequena rea de interesse dentro da disciplina, sem grandes centros ou correntes a
pautarem a investigao e a assegurarem a afirmao duma especialidade. Abrindo o
ngulo de avaliao, constata-se que o que se passa com a rea mais particular dos
estudos da pobreza confirmado pelo pouco envolvimento dos antroplogos com as
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
12
dimenses e problemticas da desigualdade e da estratificao social em geral.
verdade que o estudo das desigualdades comeou por ter alguma centralidade na
antropologia do sculo XX, mais precisamente na poca em que, sob os efeitos
modernizadores da expanso colonial, o enfoque sobre as sociedades tradicionais do
terceiro-mundo passou a ter de dar conta dos processos de mudana, ao mesmo
tempo, que se recuperava o interesse pelas sociedades modernas e os antroplogos
regressavam s suas origens e se dedicavam ao estudo dos contextos estratificados
que culturalmente lhes eram familiares. Apesar deste reposicionamento da
antropologia e da relevncia das desigualdades para a anlise das relaes sociais
contemporneas, durante as ltimas dcadas a preocupao com o tema foi-se
esbatendo, at se perder quase por completo no seio da disciplina (Tilly, 2001a; Kasmir
& Carbonella, 2008).
Se querer estudar a pobreza de um ponto de vista antropolgico corresponde
hoje a enveredar por caminhos pouco frequentados, a solido a que o investigador se
sujeita adensa-se ainda mais quando, como no meu caso, o grupo eleito constitui um
pequeno segmento minoritrio e menos tpico de pessoas e famlias que, apesar de
apresentarem biografias marcadas pela experincia da pobreza, encetaram nalgum
momento percursos sociais que os colocaram em mobilidade, encontrando-se hoje a
viver fases mais ou menos consolidadas ou concludas desses processos. Foi com este
tipo de populaes largamente desconhecido que estive a trabalhar nos ltimos cinco
anos, sabendo que a articulao entre pobreza e mobilidade ascendente demasiado
inslita para no suscitar interrogaes e que, por esse motivo, h razes redobradas
para fundamentar com rigor e consistncia as formulaes e a pertinncia dos
problemas de investigao desenhados partida.
A esse propsito, comearia por chamar a ateno para um facto que se me
afigura decisivo na configurao dos estudos da pobreza e que tem a ver com o
domnio que a sociologia e as suas perspectivas de trabalho exercem no campo10. Aqui
10 A par com a economia, a sociologia a cincia social cujos contributos, desde sempre, mais se
destacaram na investigao sobre o tema.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
13
como noutras reas, a anlise sociolgica est tradicionalmente orientada para o
estudo de regularidades, ou seja, de padres de vida social, neste caso, de
comportamentos ou cadeias de causalidade que englobem ou expliquem a existncia
da generalidade das situaes de pobreza. A juntar a esta marca disciplinar, h pelo
menos um outro factor a justificar a pouca relevncia que dada a casos e situaes
especficos ou a processos mais excepcionais. Refiro-me solicitao poltica e tcnica
que acompanha muitos destes trabalhos, empurrando-os para anlises mais pesadas,
de grandes nmeros e factores determinantes, capazes de suportar a tomada de
decises de aplicao universal. Os estudos da pobreza tendem a ir ao encontro destas
encomendas e expectativas, a buscar generalizaes, a produzir anlises extensivas e a
retirar concluses que uniformizam as realidades retratadas.
A tese acerca da existncia de um ciclo da pobreza constitui um bom exemplo
do modo como a influncia das referidas diretrizes de trabalho se pode repercutir na
produo de modelos e vises homogeneizadoras e, no limite, sempre reducionistas.
Esta teoria tornou-se um dos postulados sobre o qual tm sido aliceradas as
explicaes do fenmeno, ajustvel a diferentes quadros tericos e tem subsistido
depois de uma primeira formalizao, ainda na primeira metade do sculo XX11, ainda
e mais uma vez pela mo de Gunnar Myrdal (1995 [1944]). Segundo Myrdal, a pobreza
um fenmeno cumulativo que associa vrias causas em cadeia. O que a provoca e
mantm no so apenas a explorao econmica, a falta de recursos culturais ou a
discriminao e o preconceito raciais, atuando de um modo isolado, mas a combinao
destes e de outros factores, interdependentes e que se reforam mutuamente. Uma
11 A ideia de aplicar a figura da ciclicidade formao da pobreza anterior, mas com um objectivo e um sentido distintos. Rowntree, no estudo j aqui referido (1901), fala de ciclo da pobreza para mostrar
como o fenmeno afecta os indivduos de forma diversa, de acordo com os momentos, igualmente distintos, que constituem o seu ciclo de vida. Para Myrdal, o problema o dilema em que vive a
sociedade americana e a sua incapacidade quando se trata de resolver a profunda contradio entre os ideais liberais e a vida miservel da maioria da populao negra. O conceito de crculo vicioso serve-lhe
para caracterizar essa configurao perversa de um sistema de relaes raciais em que os brancos oprimem os negros e justificam a opresso considerando-a uma necessidade face incompetncia
cultural e econmica dos oprimidos. A resoluo do dilema implicava, segundo Myrdal, que o ciclo fosse quebrado, quer atravs duma interveno centrada nos preconceitos dos brancos, quer alterando as
circunstncias de vida dos negros e levando-os, dessa forma, a questionarem os seus opressores.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
14
vez desencadeado, o processo de empobrecimento tende a aprofundar-se, ou seja, a
aumentar de intensidade e a tornar-se persistente, aprisionando as suas vtimas
dentro de crculos viciosos intrincados que s intervenes conduzidas a partir do
exterior podem tentar romper. O corolrio da tese aponta portanto para a definio
da pobreza como condio crnica, com um pendor acentuado para a auto-
perpetuao. Os sujeitos que caem na pobreza no s esto perante situaes
permanentes, que podem durar toda a sua vida, como ainda correm o risco de ver as
geraes seguintes subjugadas pela ao dos mesmos factores de desvantagem. Nesse
sentido e havendo uma hereditariedade de posies, a pobreza dever constituir a
condio social mais sujeita s lgicas reprodutivas das desigualdades.
A investigao emprica realizada sobre a mobilidade social ao longo do ltimo
meio sculo d-nos alguns elementos para avaliar as premissas relativas persistncia
temporal e transmissibilidade intergeracional da pobreza. Um primeiro tipo de dados
pode ser obtido a partir de estudos transversais que consideram as deslocaes
registadas no conjunto da estrutura de desigualdades. A parte dessa informao cujas
origens so mais remotas provm da sociologia das classes e da estratificao e
confirma-nos a presena de graus progressivamente maiores de fechamento social
medida que descemos nas hierarquias, atingindo os movimentos de sada valores
mnimos nos segmentos inferiores, exatamente onde se encontram os grupos de
trabalhadores menos qualificados e mais susceptveis de serem afectados pela
pobreza12. Outros dados, disponveis graas ao avano nas ltimas dcadas das
observaes longitudinais em painel, so de tipo economtrico e apresentam-se sob a
forma de correlaes entre os nveis de rendimentos de duas geraes sucessivas.
Tambm a e apesar da deteco de diferenas nacionais profundas, se confirmam
12 Todos os investigadores que conduziram trabalhos de referncia no domnio da mobilidade, Glass, Goldthorpe, Marshall entre outros, validam esta concluso emprica: as taxas de reproduo
intergeracional mais elevadas concentram-se nos extremos das pirmides sociais. As anlises contemporneas da estrutura de classes efectuadas no nosso pas, por Ferreira de Almeida, Estanque ou
Cabral, apesar das diferenas terico-metodolgicas dos dispositivos empregues, revelam a mesma tendncia, nomeadamente ao nvel do fechamento da base da estrutura de desigualdades e da maior
dificuldade dos trabalhadores manuais em ultrapassar as barreiras de classe.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
15
valores elevados de reproduo intergeracional, reforados nas classes extremas de
rendimentos e, em particular, entre os descendentes de famlias mais pobres13.
Se dvidas houvesse, o cruzamento destas fontes suficiente para afastar
qualquer incerteza quanto a uma tendncia geral da pobreza para se reproduzir em
linhas hereditrias, marcando na longa durao a vida da maioria dos grupos
familiares. Mas os estudos economtricos citados tornam igualmente seguro afirmar
que a regra conhece muitas excees, numerosos percursos divergentes em que essa
cronicidade vencida e a privao e falta de recursos so situaes ultrapassadas com
a renovao geracional. Mesmo nos EUA, pas que lidera o conjunto das naes ricas e
desenvolvidas do mundo ocidental que simultaneamente se destacam por apresentar
das mais altas das taxas de reproduo intergeracional da pobreza valores a
ultrapassarem a casa dos 30 a 40% durante as ltimas dcadas14, um em cada dez
indivduos nascidos pobres constroem percursos de vida distintos que lhes permitem
aceder a escales de rendimento mais elevados da sua sociedade (Zimmerman, 1992;
Corak, 2006; OCDE, 2008). A j conhecida e teorizada reteno estrutural que condena
a maior parte dos indivduos pobres a transmitirem o seu estatuto s geraes
vindouras, no parece, portanto, capaz de impedir uma minoria estatisticamente
relevante de ultrapassar barreiras e conquistar para os seus descendentes nveis de
rendimento que os colocam a salvo da pobreza, muito embora esse facto tenha sido
descurado no passado e permanea ainda hoje largamente inexplorado pelos estudos
sociais e pela literatura da especialidade.
Para irmos um pouco mais longe e procedermos a uma avaliao completa das
formas e dos processos possveis de mobilidade a partir da pobreza, falta-nos
13 A prioridade da maioria destes estudos a deteco de taxas globais de mobilidade, entre pais e filhos
de todas as condies econmicas. Determinar a extenso com que se processa a reproduo vs. mobilidade intergeracional da pobreza, um objectivo mais especfico, assumido apenas por uma parte
dos estudos (Zimmerman, 1992; Corcoran, 2001; Corak, 2006). Independentemente da dimenso e variedade dos universos em anlise, os dados so consistentes e demonstram que a dificuldade em
atingir a mobilidade tanto maior quanto mais baixo for o escalo de rendimentos a que se pertence.
14 O fenmeno da transmisso entre geraes da pobreza frequente nas sociedades mais abastadas do
ocidente. A Gr-Bretanha e o Canad destacam-se, em conjunto com os EUA, nesta tendncia.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
16
introduzir uma escala de observao mais reduzida e focar perodos de um nico ciclo
biogrfico, de modo a captar as transies que se efetuam em temporalidades curtas.
Estes estudos conduzidos numa perspectiva intrageracional esto a suscitar grande
interesse na atualidade e a sua difuso tem contribudo para alargar
consideravelmente os horizontes do conhecimento acerca do balano entre
reproduo e mobilidade nas populaes pobres15. Do somatrio de informaes
obtidas com perodos de observao intrageracionais de durao varivel, obtm-se
mais uma vez resultados surpreendentes e, na aparncia, paradoxais. Numa primeira
anlise, as estatsticas revelam-nos uma pobreza fluida, com muitos pobres a sarem
constantemente das situaes de maior privao e a fazerem com que as taxas de
pobreza persistente, por perodos dilatados, sejam muito inferiores s taxas de
pobreza verificadas em cada ano. Porm, j mais raro os movimentos dos trnsfugas
serem de longo alcance ou de carcter definitivo: a maioria ascende provisoriamente a
situaes que no sendo de pobreza so de vulnerabilidade, regressando algum
tempo depois condio de partida. So recorrentes os movimentes pendulares, com
entradas e sadas repetidas da pobreza, sem que os protagonistas consigam fixar-se
nas posies menos desfavorveis. Ao nvel dos grandes nmeros, estes movimentos
refletem-se, como ficou dito, na reduo da pobreza persistente, cristalizada, mas no
comportam qualquer impacto mais significativo sobre o volume total de pobreza.
Estes dados reforam o que as primeiras quantificaes intergeracionais das
dinmicas da pobreza j revelavam, ou seja, que o crculo vicioso da pobreza ou no
se chega a formar ou pode ser quebrado e os efeitos de reteno no aprisionam
definitivamente todos aqueles que algum dia se tenham tornado pobres. Revelam
igualmente, o que muito importante, a mutabilidade permanente na composio dos
15 Quer usem uma escala intrageracional ou intergeracional, os estudos dedicados mobilidade da
pobreza apresentam uma grande diferena em relao s abordagens tradicionais da sociologia das classes e da estratificao. Enquanto nestas a mobilidade social analisada a partir dos movimentos que
se efetuam entre categorias socioprofissionais ou classes sociais, em funo das inseres produtivas, as mesmas dinmicas entre os pobres so examinadas em funo de linhas de pobreza, consoante as
deslocaes se fazem para baixo ou para cima de limiares pr-definidos de rendimento. Nesta perspectiva, as metodologias tm um cariz mais econmico do que sociolgico e as investigaes so
mais recentes, datando o seu arranque da dcada de 80 do sculo passado.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
17
efetivos da pobreza, algo que as medies instantneas adoptadas pelas anlises
estticas ocultam por detrs da estabilidade dos nmeros. Aprofundemos ento a
pesquisa dos argumentos empricos que nos permitem comprovar a possibilidade de
subverso dos destinos da pobreza, detendo-nos um pouco mais na abundante
produo estatstica dos ltimos vinte anos e introduzindo as fontes existentes sobre o
nosso pas, para termos no s uma noo mais concreta do valor real destes
movimentos, mas tambm da maneira como eles ocorrem entre ns.
Sobre Portugal no existem por enquanto estudos das dinmicas da pobreza
escala de duas ou mais geraes. Todavia, h alguma variedade de indicadores
temporais em estudos comparativos recentes, bastante limitados quanto durao
dos perodos cobertos, mas que nos permitem antever alguns aspectos das dimenses
processuais do fenmeno e confrontar a situao nacional com a de um conjunto
diferenciado de pases. Basicamente estamos a falar de dados e de estudos produzidos
ou patrocinados por duas organizaes internacionais de que o nosso pas faz parte, a
UE, atravs do Eurostat, e a OCDE.
As estatsticas do Eurostat constituem a fonte de que Bruto da Costa (2008) se
serviu para, pela primeira vez entre ns, incluir a varivel tempo num estudo de
caracterizao da pobreza nacional. O interesse deste autor, um dos fundadores da
investigao sobre a pobreza em Portugal (1985, 1989)16, recai sobre a anlise dos
problemas colocados pela persistncia do fenmeno, da que a sua forma de introduzir
a dimenso temporal esteja orientada para a durao das situaes e no para a
medio dos fluxos de entrada e sada na pobreza. Segundo os dados que nos
apresenta, no perodo de seis anos compreendido entre 1995 e 2000, perto de 28%
dos indivduos que passaram pela pobreza estiveram nessa situao um nico ano.
Num estudo de outra equipa de investigadores nacionais17, em que se analisa a
16 Estudos referenciados na bibliografia pelo nome do primeiro autor, Manuela Silva, com quem Bruto da Costa dividiu a coordenao das investigaes.
17 Coordenado por Jos Antnio Pereirinha, este trabalho, intitulado Gnero e Pobreza: Impactos e Determinantes da Pobreza no Feminino, data tambm de 2008 e a fonte o mesmo Painel Europeu de
Agregados Domsticos, com dados recolhidos pelo INE para o Eurostat.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
18
pobreza no feminino, -nos revelado que 41% dos portugueses foram pobres durante
os anos de 1995 a 2001, mas a maioria, 24%, viveu uma situao transitria, limitada a
um s episdio de pobreza que conseguiu ultrapassar.
O carcter temporrio de uma parte das experincias de pobreza em Portugal
est em consonncia com o que se verifica no conjunto dos pases desenvolvidos da
OCDE. De acordo com o ltimo relatrio da organizao dedicado s desigualdades, a
maioria dos 17 pases analisados alcana at taxas de transitoriedade na pobreza
superiores s portuguesas e relega o nosso pas para uma das ltimas posies no que
toca percentagem de indivduos que saem dessa condio e deixam de ser pobres. A
maior rigidez estrutural do nosso pas sobressai alis em todos os indicadores
utilizados. Em Portugal, 36% dos pobres conseguem subir acima do patamar da
pobreza, para em 12 % dos casos ficarem prximo ou ultrapassarem o rendimento
mdio nacional; na mdia da amostra da OCDE, so quase 55% os que saem da
pobreza e 18% os que se aproximam ou vo alm do rendimento mdio dos seus
pases.
Com um horizonte temporal de trs anos de observao, os dados da OCDE
nada nos dizem sobre a sustentabilidade dos movimentos realizados e sobre a
possibilidade de, a mais longo prazo, algumas destes percursos sofrerem retrocessos e
os seus protagonistas reentrarem na pobreza. Este gnero de informao existe em
alguns estudos nacionais, nomeadamente de pases que, salvaguardando diferenas
noutras dimenses, apresentam valores de incidncia do fenmeno pelo menos to
grandes como em Portugal. o caso dos Estados Unidos da Amrica, pas
relativamente ao qual se sabe que, em meados dos anos 90, um em cada trs pobres
saa todos os anos da pobreza e metade no voltava a ela nos cinco anos seguintes
(Cellini, 2008). Sensivelmente na mesma poca, entre 1994 e 2000, dados
provenientes do pas vizinho, indicam-nos que, em Espanha, o nmero dos que
conseguiam permanecer fora da pobreza depois de a terem deixado era maior do que
aqueles que se viam obrigados a regressar (Arranz, 2010). Apesar de algumas lacunas,
a coleo de todos estes dados parece-me suficiente para concluir acerca da presena
de comportamentos e dinmicas reveladoras da heterogeneidade da pobreza, que no
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
19
so sinnimo de facilidade na ruptura com a privao e a falta de recursos para a
maioria, mas que comprovam a existncia de linhas de fuga e trajetrias possveis para
alcanar mudanas duradouras na vida dos indivduos.
A mobilidade que s agora, sobretudo atravs dos estudos longitudinais e das
grandes amostras, se comea a revelar como uma caracterstica insuspeitada da
pobreza, no mais evidente para o olhar ou para as escalas de observao de um
antroplogo. Pessoalmente, precisei de vrias oportunidades de pesquisa, em
contextos diversos, e do encadeamento acidental de pequenas descobertas, enquanto
perseguia outros objectivos, para chegar at ao tema e perceber o relevo que a
matria podia comportar em si mesma. A histria deste meu percurso comea com um
convite de uma equipa de investigadores e de tcnicos de ao social para participar
num projeto de dinamizao sociocultural de um grande bairro de realojamento.
Poucos anos decorridos aps a mudana para o novo espao residencial, a populao
realojada mudara por completo os seus antigos hbitos de relacionamento, cultivados
durante dcadas no bairro de barracas e, no lugar das solidariedades e sociabilidades
prprias de muitos meios populares, institura uma tica e comportamentos de
evitamento, fechamento domstico e isolamento familiar. Para tentar contrariar esta
ruptura relacional e mobilizar as energias colectivas que pudessem ser usadas para
resolver os problemas do bairro, nomeadamente o vandalismo e a pequena
criminalidade que por vezes tomavam conta dos espaos pblicos, os tcnicos locais
estavam procura das melhores estratgias e formas de ao para, de acordo com os
seus diagnsticos, religar o tecido social e recuperar alguma da antiga coeso interna.
Hoje o bairro chama-se Quinta dos Lios, mas na altura, em plena dcada de
80, ainda usava a fria designao burocrtica de Zona N2, atribuda pelo Plano de
Urbanizao de Chelas. Concebido nos anos 60 e objecto de revises posteriores, este
plano foi um instrumento precursor de planeamento urbano em larga escala no nosso
pas e com ele pretendia-se organizar a ocupao de 510ha, o maior territrio
expectante dentro do permetro da capital, de acordo com princpios inspirados no
movimento modernista e na Carta de Atenas. A zona N2 era uma das suas seis reas
habitacionais, destinadas a alojar, no conjunto, uma populao superior a 50 mil
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
20
indivduos. As zonas tinham todas uma funo estritamente residencial, com elevadas
densidades populacionais e, sempre na maior obedincia regra modernista da
segregao funcional, separadas por vastos espaos vazios, atravessados por redes
virias de interligao e conexo cidade, ao longo das quais se deveriam instalar o
comrcio e servios de proximidade e as atividades econmicas com expresso e
atratividade escala urbana e regional. Assim ditava o plano, mas o que os novos
moradores foram encontrar era substancialmente diferente. Entre 1977 e 1982,
enquanto decorreu o realojamento, pouco mais havia do que os edifcios e uma
envolvente desoladora de terrenos abandonados, sem infraestruturas e
equipamentos, onde parte da circulao se fazia pelas antigas azinhagas e at os
transportes pblicos de ligao ao centro da cidade tiveram que ser reivindicados.
Um cenrio de vida urbana bem distinto do que haviam conhecido at a a
maioria dos realojados abrangidos pelo projeto de interveno de que participei e que,
mais tarde e j noutro quadro de trabalho, havia de estudar e ficar a conhecer melhor.
O grosso desta populao provinha da Quinta do Narigo, um bairro de barracas
construdo em terrenos pblicos, que compensava a falta de condies com a
localizao na freguesia de So Joo de Brito, paredes-meias com o bairro de Alvalade,
ao tempo um dos mais privilegiados de toda a cidade. Ainda assim, estes urbanitas de
primeira gerao, protagonistas quase todos do xodo rural que esvaziou os campos
em Portugal nos anos 60, pareciam estar a ser largamente beneficiados com o
realojamento que lhes foi concedido. Conseguiram-no em 1975, bastante antes de
muitos outros milhares de moradores de ncleos de barracas espalhados por Lisboa
saberem quando iriam ter direito a uma habitao e foram-lhes atribudas casas em
edifcios que viriam a ganhar notoriedade e ficar ligados histria deste perodo da
arquitetura portuguesa. O conjunto habitacional, popularmente apelidado de Pantera
Cor-de-Rosa18 uma obra dos arquitetos Gonalo Byrne e Reis Cabrita. No havendo
uma identificao prvia da populao a que se destinavam as habitaes, os autores
18 A inspirao para o nome resultar da opo dos arquitetos pelo cor-de-rosa que recobre todas as fachadas e do facto do edifcio ser contemporneo da exibio da verso televisiva da conhecida
personagem animada norte-americana, Pink Panther.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
21
elaboraram o projeto sabendo apenas que o mesmo se destinava a uma populao da
cidade com baixo nvel econmico19. Pelo que fui observando ao longo do tempo, a
elaborao de projetos a partir de caracterizaes genricas e vagas, sem conhecer os
utentes reais e sem alicerar as propostas num trabalho de campo prvio, foram
prticas correntes em habitao social, pelo menos no passado. No caso desta equipa
e deste projeto, nota-se principalmente uma preocupao com a relao entre o
edificado e o espao pblico, derivada duma reviso de conceitos arquitectnicos que
decorria a nvel internacional e qual estava associada a ultrapassagem das ideias e do
programa modernistas. Em termos operativos, o projeto traduz essa influncia atravs
de uma construo contnua de edifcios alinhados, ligados uns aos outros por galerias
que percorrem as fachadas e por pontes entre os vrios blocos, de modo a que seja o
conjunto a desenhar a praa e as ruas, recuperando e simultaneamente renovando a
maneira tradicional de organizar o espao pblico urbano. Malgrado o interesse e o
reconhecimento que a proposta gerou no meio arquitectnico, uma das suas opes
estruturantes suscitou equvocos e levou rejeio dos edifcios por parte da
populao. Logo durante a construo, quando se deslocavam ao stio para
acompanhar a evoluo das obras, as pessoas expressavam a sua surpresa e
incompreenso, ao ponto de entre muitos se ter instalado definitivamente a ideia de
que as suas futuras casas seriam uma adaptao daquilo que esteve destinado a ser
um hospital. O motivo da celeuma inicial e dos desentendimentos posteriores foram
os acessos em galeria e a liberdade de circulao que permitiam, peremptoriamente
recusados por todos. O que tinha sido projetado de uma forma pretensamente
emptica, para facilitar os contactos e o inter-relacionamento dirios, transformou-se
numa fonte de problemas e conflitos entre moradores e destes com a entidade
promotora, ao tempo da construo, o Fundo de Fomento da Habitao20.
19 Segundo a memria descritiva do projeto.
20 Depois dos protestos, de abaixo-assinados e reunies, alguns moradores, associados ou isoladamente, colocaram portes e vedaes e interromperam as passagens. As entidades pblicas procederam a
demolies, mas h quatro anos atrs uma parte destas obras de alterao continuava de p.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
22
A situao criada pelas galerias testemunha, quanto a mim, mais do que um
simples desajustamento entre os ideais e as linguagens da arquitetura e as
necessidades e expectativas da populao. Ela pode servir, em primeiro lugar, para
denunciar as teorias substancialistas sobre os efeitos do espao e os preconceitos
tericos que exacerbam o poder das formas construdas para condicionar as relaes
sociais e se imporem aos modos de vida. No foi por existirem galerias, ruas privativas
ou lugares de estar, que os moradores da Pantera Cor-de-Rosa se dispuseram a dar
continuidade s formas de sociabilidade e de apropriao dos espaos exteriores que
tinham mantido no Narigo; reagiram ativamente contra as novas disposies
espaciais e, no conseguindo ser bem-sucedidos, prosseguiram com as estratgias de
individualizao dos modos de vida que lhes pareciam fazer mais sentido no contexto
do ps-realojamento. verdade que ao deixarem desertos os espaos de estar e de
circulao pblicos, os moradores renunciaram ao seu controle comunitrio e abriram
a porta ocupao por parte de outros grupos e comportamentos indevidos ou
marginais. Mas, ao contrrio do que algumas anlises supem e querem fazer crer,
no so os sentimentos de insegurana que estas presenas indesejadas podem gerar,
sobretudo em certos momentos crticos, que justificam o fechamento domstico e o
retraimento relacional; a privatizao dos modos de vida corresponde a processos e
lgicas que so anteriores, no tem origem na insegurana, manifesta ou percebida,
mesmo que os dois fenmenos possam aparecer por vezes associados nas
representaes dos prprios atores sociais.
Como devemos ento entender esta alterao nas posturas face aos
relacionamentos locais que acompanham a transio e a mudana de contexto
residencial, entre o bairro de barracas e o bairro de realojamento? Os diagnsticos dos
tcnicos que encontrei no terreno e, a partir da, as minhas prprias observaes
levaram-me a colocar a hiptese de que pudesse ser a mudana da condio
habitacional a provocar a emergncia de uma nova tica residencial, de um cdigo de
comportamentos que explicitamente prescrevia o afastamento dos espaos comuns e
o distanciamento social, condenando a permanncia imotivada no exterior e qualquer
tipo de contactos, para alm dos sinais de reconhecimento e saudao obrigatrios no
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
23
quotidiano21. No trabalho feito sobre a populao que conheci na Pantera Cor-de-
Rosa, porque os objectivos traados eram mais vastos e transcendiam em muito os
processos que estavam a ser vividos no momento da observao22, no tive ocasio de
aprofundar o tratamento especfico da formao destas atitudes e comportamentos,
nem de estender a etnografia de modo a recolher dados suficientes para sustentar
interpretaes sobre o seu significado. Fiquei, todavia, persuadido de que aquilo a que
assistira podia muito bem no ser um fenmeno isolado, fruto de circunstncias
acidentais e irrepetveis, cujo significado se circunscreveria ao domnio estrito das
relaes de vizinhana e convivialidade.
Anos mais tarde, pude pr prova essas minhas intuies em vrias situaes
de pesquisa. Uma delas, mais recente, decorreu do acompanhamento de oito
processos de realojamento integrados no PER, Plano Especial de Realojamento, do
municpio de Lisboa, entre 2000 e 200123. Os processos foram acompanhados
registando os pontos de vista de um painel de 32 famlias, entrevistadas por duas
vezes, uma imediatamente antes e outra alguns meses depois do realojamento, de
modo a recolher impresses sobre as suas expectativas e projetos iniciais, sobre a
experincia da mudana e a evoluo das prticas e representaes ao longo desse
perodo. Segundo as narrativas recolhidas, o tempo que medeia entre o anncio dos
21 Na prtica, pelo menos uma parte da populao mais idosa no cumpria sempre com estas regras.
Mas nem estes detratores, nem nenhuns dos outros moradores, deixavam de repetidamente se referirem s ditas regras, de as defenderem e manipularem discursivamente, para se situarem a si e aos
outros no microcosmos das relaes locais.
22 A investigao estava definida em torno do processo de urbanizao da populao, dada a sua origem
camponesa, considerando trs momentos fundamentais: o ponto de partida rural, as condies objectivas e as motivaes subjacente formao do projeto migratrio; um perodo intermdio, o da
permanncia no Narigo e das estratgias adaptativas e de integrao urbana; e, finalmente, os anos da Pantera de Cor-de-Rosa e as reaes ao novo quadro de vida scio-espacial introduzido pelo
realojamento.
23 Os oito processos dizem respeito transferncia das populaes de sete bairros (Musgueira Norte,
Musgueira Sul, Quinta do Louro, Alto dos Moinhos, Calvanas, Casal do Pinto, Quinta das Murtas, Quinta dos Padres, Beco das Beatas e Pailepa este ltimo em duas fases), para trs novas localizaes (Carlos
Botelho, Alta de Lisboa Centro e Pao do Lumiar) e um realojamento local (Murtas).
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
24
processos e a concretizao dos realojamentos uma poca de grande expectativa e
entusiasmo, em que se procura estar a par de toda a informao, corresponder s
solicitaes administrativas, conhecer as caractersticas das novas habitaes e fazer
planos quanto sua ocupao. preocupao individual junta-se frequentemente a
mobilizao colectiva, com associaes locais a formarem-se para organizarem a
populao, assumirem a sua representao e mediao durante os contactos e as
negociaes com as entidades promotoras. So tambm tempos difceis e, por vezes,
agitados, com desconfianas, acusaes e conflitos a marcarem as relaes entre as
partes. Receia-se ser preterido, descobrem-se comportamentos de favor, luta-se pelas
melhores localizaes e tipologias mais favorveis. As solidariedades e as estratgias
individuais combinam-se para procurar controlar as decises e ter o que se deseja.
Depois de estarem a viver nas novas casas, as queixas e reclamaes, quando existem,
so pontuais e no diminuem a satisfao geral com a mudana de residncia. Os
primeiros meses so preenchidos com a instalao, o arranjo dos espaos, as
aquisies de mobilirio e equipamento com que cada famlia, medida das suas
ambies e possibilidades, quer decorar e tornar seus os espaos. Uns recusam-se a
trazer o que quer que seja das casas antigas, endividam-se e investem na renovao
completa dos recheios; outros, mais modestos ou previdentes, adquirem apenas o que
de absoluta necessidade, mas todos projetam na casa a ideia de uma vida nova. Para
muitos, ter uma casa conforme aos padres de habitar acessveis generalidade da
populao urbana, um acontecimento inigualvel e sem paralelo nas suas biografias.
A casa nova representa salubridade, conforto e segurana para a vida das
famlias, mas a par do valor de uso dos imveis aparecem sempre referncias a
significados que nos remetem para o seu valor simblico. O mesmo se passa com o
conjunto dos espaos residenciais, os bairros, em relao aos quais os ganhos de
imagem, incidindo sobre as representaes externas, so pelo menos to valorizados
quanto as vantagens de ordem material e prtica que cada um sente na utilizao
quotidiana do novo habitat. Este aspecto passar um pouco despercebido nas anlises
produzidas por muitos investigadores, mas, quanto a mim, a esperana e a motivao
com que so acolhidos os processos de realojamento tm muito a ver tambm com a
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
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sensibilidade identitria destas populaes e com a expectativa de que um novo
estatuto habitacional seja possvel e tenha um reflexo positivo no modo como so
socialmente reconhecidas. Sob este ponto de vista, as populaes obrigadas a viver
dcadas em habitaes precrias no so diferentes do conjunto da sociedade e
encaram o alojamento como um marcador simblico que permite a identificao e o
posicionamento nas hierarquias sociais. A imposio de uma tica residencial, nos
termos que j ficaram descritos, decorre ainda desta tentativa de aproveitar o
realojamento para reformular positivamente as identidades atribudas, procurando
promover a conformidade dos comportamentos a modelos de urbanidade e a modos
de habitar decorrentes do novo estatuto habitacional que se quer ver legitimado.
Apesar da esperana e do esforo organizado com que muitos moradores se
empenham nestes processos de luta em torno da identidade comum, os resultados
so necessariamente incertos. Os realojamentos mudam a condio habitacional, mas
deixam intocados todos os outros factores de pobreza e excluso que se manifestam
no espao e que podem conduzir ao restabelecimento de eventuais estigmas e
identidades negativas. Foi isso que aconteceu na Horta Nova, um bairro de
realojamento local que observei poucos anos depois de concludo o processo de
realojamento em 1992. Aquando da minha chegada ao bairro, em 1995, vivia-se um
perodo de uma certa acalmia que, segundo os moradores, no obstava a que a m
reputao sentida no passado estivesse de volta. O trfico de droga, a delinquncia e a
pequena criminalidade a que de forma mais notria passou a dedicar-se uma pequena
franja da populao residente, foram os grandes factores responsabilizados pelo
reaparecimento das representaes negativas, formadas a partir do exterior mas
plenamente assumidas pelos meus informantes. A esses factores juntavam ainda os
sinais da degradao de uma parte das construes, a vandalizao dos espaos
colectivos e situaes de desordem e infraco lei que haviam merecido a ateno
da polcia e a cobertura dos meios de comunicao social, como justificaes para
aquilo que consideravam ser o avano rpido das imputaes e condenaes externas
de que o bairro era objecto.
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A tendncia para a individualizao dos modos de vida, reforada na Horta
Nova por uma quase dissoluo da associao de moradores em lutas internas e pela
fraca capacidade de mobilizao de estruturas alternativas criadas no ps-
realojamento, deixaram a populao incapaz de reagir e contrariar colectivamente as
foras que a empurravam de novo para a estigmatizao. Perante este cenrio,
salvaguardar a identidade e suster, a nvel interno e face ao exterior, as aspiraes a
uma subida de estatuto, so metas que s podiam ser perseguidas atravs de
estratgias individualizadas de demarcao de todos os comportamentos que estavam
na base da condenao social dos residentes e do bairro. O mecanismo de
diferenciao a que os moradores recorreram para proteger as suas aspiraes foi
fundamentalmente discursivo e tinha como instrumento as acusaes trocadas no
quotidiano relacional. A comunicao e as interaes apareciam por isso dominadas
pela troca constante de acusaes, sob a forma de insultos diretos e frontais, de
rumores ou comentrios jocosos que eram postos a circular e envolviam a totalidade
da identidade social dos indivduos e das famlias, recobrindo temas variados que iam
dos comportamentos laborais e econmicos s prticas domsticas e das relaes de
vizinhana aos papis conjugais e parentais. Para pr o processo acusatrio a funcionar
era erigida uma posio ideolgica qual correspondia o polo negativo24 dos
comportamentos e que se destinava a concentrar numa categoria especfica de
moradores o essencial das acusaes e do descrdito exteriores. No jogo social da
troca de acusaes, cada participante procurava projetar aqueles que elegia como
adversrios em direo ao polo negativo das representaes, ao mesmo tempo que
exaltava a diferena e a superioridade do seu prprio comportamento ou da sua
famlia. Tnhamos, portanto, uma dinmica hierarquizante original, em que os lugares
ocupados se definiam pela distncia em relao a um polo negativo e em que s havia
duas posies estveis: a dos que estavam excludos e a dos que se excluam das
trocas de acusaes. A primeira reunia os que foram fixados ao polo negativo, aqueles
24 Posio ideolgica e polo negativo so expresses empregues por Grard Althabe (1993) e outros
investigadores na anlise das cits HLM. Tomo-os de emprstimo por encontrar paralelismos, para mim evidentes, entre as dinmicas relacionais no contexto da habitao social francesa e o que, a este nvel,
se passa no nosso pas.
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que consensualmente eram vistos como responsveis pelo descrdito do bairro e por
violarem as normas definidas para os modos de vida residenciais. Tratava-se de
indivduos e grupos familiares em situaes de misria extrema, muito dependentes
da proteo assistencial, por vezes com histrias de vida ligadas criminalidade, ao
desvio e a condenaes judiciais, segregados pelo resto dos moradores e sem
credibilidade para lanar acusaes. A segunda correspondia aos que estavam numa
posio diametralmente oposta, a dos que se distinguiam pela situao econmica e
pelo estatuto habitacional diferenciado, que cultivavam o distanciamento e estavam
menos expostos s relaes e intrigas locais. Tirando estas duas minorias, todos os
outros, de uma forma mais ou menos ativa, voluntria e consciente eram participantes
nas lutas de (des)classificao internas. A sua caracterizao era a do morador tpico,
cujo dia a dia oscilava entre a vulnerabilidade e a pobreza, que conseguia subsistir
pelos seus meios a maior parte do tempo, mas que no estava a salvo de conjunturas
adversas. Era esta a imensa maioria que quis confiar na atribuio da casa como um
momento de viragem material e simblica, a partir do qual podia esperar a
requalificao do seu estatuto social urbano, e que assistiu aos acontecimentos
posteriores ao realojamento como uma ameaa s suas pretenses mais profundas e
um motivo para se proteger e afirmar a sua diferena, distanciando-se das pessoas e
dos atos negativamente conotados.
As trocas de acusaes na Horta Nova, os cortes e o evitamento relacional na
Pantera Cor-de-Rosa e os investimentos na requalificao residencial confirmados
durante o PER, so tudo provas das transformaes profundas que os realojamentos
acarretam e dos modos diversos como vm reconfigurar as relaes nos lugares onde
habita a pobreza urbana e as estratgias com que no seu interior se movimentam os
atores sociais. Os realojamentos dividem, criam diferenas e expem condies e
predisposies que se encontram latentes ou so menos visveis. No originam toda a
variedade de situaes e modos de vida que se verificam nos bairros sociais e que so
prprios da pobreza das classes trabalhadoras, neste e noutros contextos, mas avivam
contrastes e tornam mais tangveis as divergncias entre caminhos possveis. Uns
encontram no novo contexto residencial condies para continuarem a construir a
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autonomia dos seus projetos; outros sentem que se tornam mais evidentes as suas
incapacidades em promover o modo como vivem, ao passo que muitos se confrontam
com os mesmos entraves estruturais de sempre. Nesse sentido, a dinmica introduzida
pelo realojamento favorece a formao de hierarquias e distines em espaos sociais
que passam habitualmente por ser homogneos e fornece o contexto microssocial
ideal para se proceder observao, num segmento especfico, de percursos de
mobilidade. No da mobilidade realizada, que s pode ser verificada na longa durao,
mas da sua dimenso processual, escala dos pequenos passos e, por vezes, dos
revezes, que do forma aos projetos na ao e nas intenes quotidianas. Uma
mobilidade vivida, feita tanto de concretizaes como de aspiraes, que s existe
enquanto movimento presente, sem destino assegurado.
A caracterizao da heterogeneidade de posies e trajetrias dos grupos
vulnerveis pobreza foi ensaiada por uma vez no nosso pas, sob a forma de uma
tipologia de modos de vida (Ferreira de Almeida et al., 1992). O resultado dessa
tipificao um modelo construdo com base num conjunto extenso de variveis, cujas
qualidades heursticas nunca foram exploradas plenamente ao nvel emprico. Os
prprios autores assinalam o facto da exaustividade, rigor e exclusividade das
combinatrias no poder ser garantida num modelo que nunca foi testado. Mesmo
assim, o conhecimento sobre o carcter multiforme e multidimensional da pobreza em
Portugal teria muito a ganhar com mais investigao com base em modelos como este
e nos seus tipos-ideais. Depois da publicao deste modelo, passou a ser mais clara
para mim a ideia de que a pobreza um todo que recobre mltiplas formas e, quando
chegou altura de lanar a atual investigao, voltei a recuperar a tipologia e os
critrios empregues, posto que a populao que me interessava estudar correspondia
grosso modo caracterizao apresentada para o modo de vida investimento na
mobilidade25.
25 Ao todo, a tipologia apresentava sete tipos: destituio, restrio, poupana, convivialidade, investimento na mobilidade, dupla referncia e transitoriedade. Uma vez que os princpios
classificatrios so vrios e os grupos no so exclusivos, comprovei mais tarde que possvel encontrar investimentos na mobilidade em indivduos classificados noutros grupos, nomeadamente na
transitoriedade e na dupla referncia. Entretanto, em 2005, trabalhando sobre este modelo, de que
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No incio, quando ainda procurava identificar as situaes de mobilidade tpicas
com que havia de trabalhar, usei critrios idnticos aos do modelo para selecionar os
primeiros contactos. Os sujeitos escolhidos nesta fase faziam parte de categorias que
se distinguiam por factores estritamente econmicos e de insero profissional.
Podiam ser trabalhadores industriais ou de servios, trabalhar por conta prpria ou
serem assalariados, mas os seus nveis de rendimento deviam estar situados acima dos
limiares de pobreza e dependerem de situaes contratuais ou pequenos negcios
dotados de alguma estabilidade. Mais tarde, medida que o trabalho de campo e o
conhecimento prximo do meio aumentavam, comecei a encontrar casos que no
estavam a ser identificados e em que, sem poder confirmar de imediato as situaes
econmicas respectivas, verificava a presena de traos de comportamento e projetos
que apontavam para a mobilidade e percursos que pelo menos distinguiam
estatutariamente os seus autores. Estas indicaes etnogrficas levaram-me a abrir o
conceito para alm das medidas standard do rendimento disponvel e dos seus
indicadores profissionais indiretos, de modo a contemplar outras evidncias de
mobilidade, tanto na forma consumada como de processos em curso. Passei por isso a
trabalhar no s com indcios estritamente econmicos, profissionais e monetrios, de
mobilidade, mas com trs outras dimenses, a saber: mobilidade educativa, revelada
pelas formaes profissionais e qualificaes escolares adquiridas pelos prprios em
idade adulta e pelo investimento em diplomas e formaes mdias e superiores dos
seus descendentes; mobilidade residencial, patente na aquisio de alternativas
habitacionais pelos moradores, financiada com apoios pblicos no caso da gerao
titular ou, no caso dos seus filhos, com base no autofinanciamento; e mobilidade
poltica, nos casos em que atravs de cargos no associativismo local e de funes
desempenhadas em organizaes de natureza partidria, religiosa, recreativa ou de
foi um dos autores originais, Lus Capucha veio propor uma atualizao, com ligeiras alteraes. Os
modos de vida aparecem agora posicionados pelo cruzamento de dois eixos estruturantes: o das competncias, oportunidades e recursos materiais e o das disposies e orientaes culturais e
relacionais (2005: 214, 5). Aos modos de vida anteriores acrescentado mais um, o da desafectao, representando os grupos marginais, de populaes em ruptura com todo o tipo de vnculos e laos
sociais e institucionais.
E pur si muove A perspectiva da mobilidade e o conhecimento da pobreza
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solidariedade, os indivduos ganhavam um prestgio e uma influncia especiais,
sobretudo junto das suas comunidades. Geralmente, qualquer ocorrncia de uma
destas expresses secundrias de mobilidade, vinha a revelar mais tarde a sua
incorporao em biografias das quais tambm fazia parte a ultrapassagem bem-
sucedida de situaes de pobreza.
Perceber-se-, pelo que ficou dito, que as concepes demasiado materialistas
e agarradas aos elementos puramente mensurveis da mobilidade, e a fortiori da
pobreza, me parecem enfraquecer a compreenso de ambos os fenmenos. A sada da
pobreza pode acontecer de uma forma mais linear e direta, pela progresso
econmica, exclusivamente atravs do crescimento dos mercados de trabalho, sem