Currículos, Gêneros e Sexualidades: Experiências Misturadas e ...
Mixtapes - Revista Backstage · 2009-01-06 · de rappers, misturadas com ... um milhão de...
Transcript of Mixtapes - Revista Backstage · 2009-01-06 · de rappers, misturadas com ... um milhão de...
62 www.backstage.com.br
REPORTAGEM
Mixtapes
s fitas eram originalmente feitas pelos DJs para tocar
enquanto não podiam estar nos toca-discos. Elas re-
presentavam o conceito de cada DJ, desde a ordem do set,
as entradas e saídas das mixagens, etc.
Lançada pela Phillips na década de 60, a fita cassete esta-
beleceu-se como uma mídia barata e viável para divulgar
com eficiência a produção musical em cenas underground
- como no início do hip-hop, nos subúrbios nova-
iorquinos, final dos anos 70. Com a entrada dos aparelhos
de som nos carros e a invenção do Walkman pela Sony, no
início dos anos 80, as fitinhas ganharam fôlego na cultura
jovem. Assim, trabalhos de grandes nomes como Grand-
master Flash, Afrika Bambaata, e outros ultrapassaram
fronteiras físicas, sociais e culturais. A mixtape virou sinô-
nimo de hip-hop. A música rap é um estilo muito dinâmi-
co, evolui a cada momento e não foi diferente com as
mixtapes. O formato dos anos 70 ainda permanece vivo,
mas não é o mais comum. Até meados da década de 90,
Daniel [email protected]
Amixtapes eram basicamente amostras de DJs ou exposição
da sua habilidade. Eram como uma vitrine para mostrar o
talento de um Disc Jockey. Também serviram como vitri-
nes da produção local de determinada cena. Da mesma for-
ma que ocorreu com o hip-hop, também funciona hoje.
Exemplo disso é o grime, novo estilo da música urbana in-
glesa: baseou sua popularização com as mixes, que hoje po-
dem ser encontradas nas prateleiras de uma megastore.
Com o tempo, alguns desses tapes começaram a apresentar
MCs mais do que DJs mixando e eram comercializados nas
lojas de discos underground ou na rua. A partir de meados
dos anos 90, a mixtape foi um celeiro de novos talentos nos
Estados Unidos. Delas, surgiram grandes nomes do rap
comercial atual como Eminem, 50 Cent, Jay-Z, Kanye
West, Lil Wayne, como também os principais nomes do
rap undergound, talentos como Mos Def (atualmente
mais ator de cinema do que MC), Lupe Fiasco, Talib
Kweli, entre outros.
O começo de tudo foi nos anos 70. DJs como Grandmaster Flash, AfrikaBambaata, Kool Herc, Breakout, The Funky Four costumavam distribuircópias de suas performances em cassetes de áudio
Mixtapes
www.backstage.com.br 63
REPORTAGEM
Nessas “novas” mixtapes, o DJ traba-
lha também como produtor, fazendo
batidas próprias, usando versões ins-
trumentais de músicas já conheci-
das. Convidava diversos MCs para
fazer versos inéditos ou improvisos
(freestyle). Usando dois toca-dis-
cos, editava os sons de forma a não
ficarem com grande duração, inse-
rindo scratches, sons de sirenes e
outros ruídos urbanos entre as fai-
xas. Nessa época, a indústria da mú-
sica rap não era como hoje, lançando
milhões de cópias e com novos artis-
tas aparecendo todo mês. A mixtape
era onde as gravadoras iam procurar
novos talentos. Por meio delas, você
sabia quem estava em evidência,
quem não estava mais, e descobriam-
se os novos nomes. As mixtapes eram
como um filtro, um amortecedor en-
tre a rua e as gravadoras. Elas nunca
assumiam o risco de contratar um
artista que não tinha percorrido
esse caminho.
Hoje, nomes como Dj Green Lantern,
Dj Drama, Kay Slay, Mick Boogie e
Whoo Kid são artistas conhecidos
graças às suas mixtapes, que chegam a
vender cem mil cópias. Existe até
uma premiação anual para mixtapes,
o Annual Mixtape Awards, que já
está em sua décima primeira edi-
ção, com mais de 20 categorias.
Mesmo nas premiações exclusivas
de música rap, existe uma categoria
de melhor mixtape.
Nesse nicho, surgiram alguns outros
estilos. Bem interessantes são os ta-
pes de mixagens em versões a cappela
de rappers, misturadas com instru-
mentais de outros produtores e esti-
los, uma espécie de mash-up. Grande
exemplo disso foi o do DJ Danger
Mouse, que atualmente faz parte da
dupla Gnarls Barkley. Em 2004, pe-
gou a capella do “The Black Album”
do rapper Jay-Z e misturou com ins-
trumentais que ele produziu usando
samples do “The White Album”, dos
Beatles. O sucesso do “The Grey
Album” foi estrondoso com mais de
um milhão de downloads na Internet.
A cultura das mixtapes é essencial-
mente norte-americana, mas em al-
guns lugares da Europa, como França
e Portugal, a mixtape teve grande im-
portância na cena hip-hop. Em Por-
tugal, sem as mixtapes, a cultura hip-
hop, provavelmente, não seria tão
forte como é hoje. Lá, o hip-hop teve
um primeiro estouro com a break
dance, nos anos 80. Também aparece-
ram alguns MCs na época, mas o pri-
meiro álbum de hip-hop português só
foi lançado em 94. Era uma coletânea
com alguns dos melhores grupos da
época. Foi enorme sucesso e chegou a
disco de ouro. Com isso, as grandes
gravadoras quiseram arriscar em ou-
tros projetos com fórmulas comerci-
ais, mas não funcionou. As gravado-
ras abandonaram o hip-hop, e em
95, 96 começou um movimento
underground. “Apareceram novos
grupos, mas praticamente só produzi-
am mixtapes. Não se editavam álbuns,
porque não havia dinheiro”, diz Valete
(www.myspace.com/valete115), um
dos MCs mais importantes do rap
português, e que também apareceu
por meio das mixtapes. “Em Portugal,
a maior parte dos MCs e DJs que já
têm uma base de fãs e uma carreira
sustentada, fizeram nome em mix-
tapes. As mixtapes eram uma rampa
de lançamento para os MCs. Todo o
MC novo queria entrar em uma mix-
tape para poder espalhar o seu talen-
to. Aqui, se um MC lança um álbum e
não tem história nenhuma em mix-
tapes, ninguém lhe dá importância”,
acrescenta Valete. O mesmo aconte-
ce com os DJs. Em Portugal foram as
mixtapes que suportaram o cresci-
mento do hip-hop. Passavam de mão
em mão, circulavam pelas cidades e
levavam o nome dos MCs e DJs a to-
dos os cantos do país. Atualmente os
artistas da cena hip-hop em Portugal
são reconhecidos, como comprova a
escalação do Rock In Rio Lisboa, que
teve palcos com vários artistas da
cena local.
No Brasil essa cultura nunca teve
muita força. Aqui, a mixtape era mais
um cartão de visita, um set gravado
das principais músicas de cada DJ;
nunca foi algo realmente levado a sé-
rio. Mas, de três, quatro anos para cá,
vem acontecendo lançamentos nas
Hoje, nomes como DjGreen Lantern, Dj Drama,Kay Slay, Mick Boogie eWhoo Kid são artistasconhecidos graças àssuas mixtapes, que
chegam a vender cemmil cópias
64 www.backstage.com.br
REPORTAGEM
ruas, sempre de maneira independente e
com pouco apoio. Mesmo assim, bastan-
te coisa de qualidade. Um dos primeiros
exemplos foi o MC /produtor Parteum
(www.myspace.com/parteum), conheci-
do do rap alternativo de São Paulo. Ex-
skatista profissional, Parteum lançou
uma mixtape intitulada “Patrocínio
Quebrado”, antes de lançar seu disco
oficial, “Raciocínio Quebrado”, pela
gravadora Trama. Nessa mix fez um
CD com alguns remixes de músicas
que iam para o álbum, músicas novas
de seu grupo, Mzuri Sana e músicas
instrumentais, “a intenção foi divul-
gar meu trabalho sem ter de esperar
pelo lançamento oficial do Raciocí-
nio Quebrado”, explica. Depois do
lançamento do disco oficial, lançou
novas mixtapes, “a arte independe
da sazonalidade do ‘Mercadão’. Ven-
do as mixtapes nos shows e em algu-
mas lojas de skate, nada muito divul-
gado”, complementa.
Em junho, o DJ KL Jay, uma das maio-
res referências no Brasil, DJ do grupo
paulistano Racionais MCs, lançou
sua primeira mixtape, com distribui-
ção nacional. “Rotação 33” conta
através de mixagens, scratches e back
to backs um pouco da história do rap
brasileiro, desde o pessoal mais anti-
go até novos nomes em que ele acre-
dita. O resultado é bem interessante.
Lançada pelo seu selo 4P e gravada,
mixada e masterizada no Studio Mun-
do Novo, do produtor Buguinha, a
mixtape traz ainda uma novidade:
vem com um DVD que mostra a gra-
vação ao vivo. Mostra as cenas de gra-
vação dos convidados, comentários
do DJ e tudo relacionado aos bastido-
res da “fita mixada”. Uma inovação
bem pensada pelo DJ. Nesse lança-
mento, KL Jay valorizou o rap feito
em terras brasileiras. Todos os instru-
mentais são de grupos do Brasil, mui-
tos produzidos pelo próprio DJ. A em-
balagem foi muito bem pensada; tem
a forma de uma fita cassete em pape-
lão, em que vêm o CD e o DVD.
O Rio de Janeiro também está en-
trando nesse caminho. Em 2008, dois
bons lançamentos: o MC Funkero
(www.myspace.com/funkero), consi-
derado um dos MCs mais velozes do
país, que também integrou os vocais
da banda F.U.R.T.O de Marcelo Yuka,
acaba de lançar sua “Poesia Marginal”,
em que mistura o rap com o funk dos
morros cariocas, sem clichês. O pro-
dutor de Volta Redonda, Iky Castilho
(www.myspace.com/ikycastilho) lan-
ça a segunda edição de sua mixtape em
outubro. A “Ikyxtape” teve seu pri-
meiro volume em 2005 e revelou no-
mes que se consagraram nas batalhas
de MCs pelo país. “Minha intenção
era colocar o meu bloco na rua. Uma
mixtape com algumas músicas mi-
nhas, outros nomes em que acredito
para rimar nos meus beats; e botei
para download de graça na Internet; a
idéia foi essa”. “Durante o processo
de gravação, algumas pessoas ouvi-
ram e acharam que valia a pena fazer
uma tiragem em CD”, explica Iky. A
Lançada pelo seu selo 4P, egravada, mixada e
masterizada no StudioMundo Novo, a mixtapetraz ainda uma novidade:
vem com um dvd quemostra a gravação ao vivo
MC Funkero Poesia MarginalDJ Drama
66 www.backstage.com.br
REPORTAGEM
“Ikyxtape Vol. 2” já está em processo
de mixagem e masterização. Esses
dois lançamentos têm prensagem em
CD SMD, o que barateia muito os
custos. Para quem não conhece, o
SMD (Semi Metalic Disk) é uma
tecnologia semelhante ao CD. Foi
criada com o objetivo de baratear
o preço de comercialização de um
Compact-Disc (CD) em quase 80%, e
também combater a pirataria, já que
seu preço fica entre 5 e 6 reais (com
direito a uma revista em que o artista
coloca sua biografia, letras, apoios e etc).
Isso torna possível o lançamento dessas
mixtapes pelo menor custo para o pro-
dutor e para o consumidor.
E não é só na música rap que as
mixtapes estão aparecendo no Brasil.
Um exemplo são as mixtapes lançadas
pelo DJ paulistano, Pedrinho Dubstrong
(www.myspace.com/dubstrong). Ele já
está em sua quarta mixtape de música
jamaicana. Seu primeiro lançamento,
“Original Fever”, com participação do
rapper francês Pyroman, foi um su-
cesso de crítica. Nela, Dubstrong
mixava grandes clássicos do Roots
Reggae, junto com raridades que ele
possui, como colecionador e pesquisa-
dor de reggae. “A cultura das mix-
tapes é essencialmente norte-ame-
ricana, veio do hip-hop, que por
sua vez é descendente direto do
reggae. Na música jamaicana até
existem algumas mixtapes, mas é
nos “soundclashs” e nos “dubpla-
tes” que os jamaicanos extravasam.
Nas minhas mixtapes também cos-
tumo gravar alguns ‘dubplates’,
versões exclusivas com MCs brasi-
leiros ou gringos” diz. Por que en-
tão fazer mixtapes de reggae? “Sou
DJ de hip-hop também, mas o reggae
e a cultura jamaicana sempre foram
minha fonte primordial de pesqui-
sa. Assim, nada mais natural que
unir as duas culturas e fazer uma
releitura através de mixtapes”.
Nem tudo são flores, no entanto,
no cenário das mixtapes. No início
de 2007, a RIAA (Recording Industry
Association of América) entrou
com um processo contra os DJs que
fazem mixtape. E sobrou para os
dois nomes que mais vendiam na
época. Acusados de “falsificação e
violação da legislação de direitos
autorais”, os DJs Drama e Don
Cannon e, por meio deles, todo o
mercado paralelo foi implicita-
mente responsabilizado pelas per-
das da indústria fonográfica, tanto
no que se refere ao número de uni-
dades vendidas (queda de 12,8% só
no formato CD) quanto em relação
aos resultados financeiros globais
de 2006 (queda de 6,2%). A mes-
ma indústria que se aproveitou
das mixtapes, durante anos, para
garimpar novos talentos, agora se
volta contra esses produtores in-
dependentes em uma constatação
clara do fracasso de uma indús-
tria arcaica incapaz de se adaptar
ao fenômeno.
DJ KL Jay