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  • O MITO QUE NO MITO: A CONSTRUO DA FIGURA DO GACHO EM

    SIMES LOPES NETO E AUGUSTE DE SAIN HILAIRE

    Paula Marcolin1

    1 Introduo

    A reconstruo de tipos regionais pelo imaginrio popular normalmente suscita as

    mais acaloradas discusses quanto efetiva existncia de substrato histrico que respalde a

    figura humana contada. Com a supervenincia de achados histricos, a passionalidade do

    sujeito que interpreta ou interpretou - a histria que veio a se verdadeirizar pelo

    imaginrio popular condenada por aqueles que denunciam a mistificao de tal figura.

    Sucede, ento, um perodo de desconstruo, normalmente impregnada de arroubos e

    excessos, quais viro a ser, depois, contestadas pelos reacionrios, estes tambm apoiados em

    outros elementos histricos.

    nesse movimento, ditado pelos influxos e pelo embate dialtico entre pesquisa e

    passionalidade humana esta extrema quando se trata de enaltecer ou inferiorizar o que

    descreve quem fomos e quanto isto importa para quem somos que edificamos sentimentos

    nacionais, instituies, enfim, num sentido largo, a cultura da civilizao. Debate assim existe

    em torno figura do gacho, sobretudo aquela ficcionalizada, por assim dizer, pela pena do

    escritor pelotense Joo Simes Lopes Neto.

    Muito se falou sobre a edificao mtica desta figura. Simes Lopes Neto foi

    duramente criticado por conceber personagens e histrias que no passariam de lendas

    extradas da literatura oral; produto superlativo de um tipo social despojado dos predicados de

    heroicidade to exaltados em suas obras, mais especificamente, em Contos Gauchescos.

    Realidade ou meras representaes ficcionais? Indiscutivelmente, o divisar de terrenos

    do mito e do verossmil, o desvelar do crvel e do incrvel, para, quem sabe, perscrutar o ponto

    de partida dos processos mimticos que determinam o imaginrio popular, tarefa de invulgar

    importncia para a construo da identidade cultural de determinado povo.

    O presente artigo prope-se a modestamente lanar algumas perspectivas sobre esta

    questo.

    2 O cronotopo do pampa

  • O tempo e espao so elementos inseparveis e constituem fontes germinativas de

    sentido. Ao estudar a interao destes e como suas representaes no romance, Bakhtin

    elaborou o conceito de cronotopo, vocbulo composto por radicais de origem grega, cronos,

    que significa tempo e topos, espao.

    A partir do conceito de cronotopia, extrado da Teoria da Relatividade, de Albert

    Eintein, Bakhtin adapta a perspectiva da indissolubilidade entre espao e tempo na rea

    discursiva, para concluir que essa interao espacial-temporal, o cronotopo, que determina a

    imagem do indivduo na literatura.

    O cronotopo como materializao privilegiada do tempo no espao o centro da

    concretizao figurativa da encarnao do romance inteiro. Todos os elementos

    abstratos do romance, as generalizaes filosficas e sociais, as idias as analises

    das causas e dos efeitos, gravitam ao redor do cronotopo, graas ao qual se enchem

    de carne de sangue e se iniciam no carter imagstico da arte-literria. (BAKHTIN,

    1993, p. 356)

    nessa obra, Questes de literatura e de esttica, que o autor investiga no somente

    com o objetivo de explicar mas entender o funcionamento da evoluo dos cronotopos ao

    longo dos tempos, e as variaes perceptivas com que o indivduo presencia um determinado

    perodo de tempo articulado com determinado espao.

    A forma de percepo do tempo contemplada nos estudos de Bakhtin, iniciando com

    o romance grego, em que os heris no obedecem lgica temporal, permanecendo

    inalterados em relao passagem do tempo, sendo esse o tempo coletivo, e concluindo com

    o cronotopo da cultura popular, o carnaval de Rabelais, em que impera o tempo individual.

    Esta perspectiva oferecida por Bakhtin, perfeitamente aplicvel ao conto, d matiz

    especial ao enredo simoniano se o compreendermos sob o prisma de uma singularidade

    fenomnica do tipo regional, a sua necessariedade diante daquela interseco tempo e espao

    que o produziu; ou seja, aquele tipo regional como um produto desta alquimia. Sendo assim,

    entendemos a regio dos pampas, ou mais especificamente a regio que se tornou cenrio dos

    Contos Gauchescos, como fator indispensvel na investigao do tipo regional que ali habita,

    em determinado perodo.

    Ao explorar esse caminho de anlise, somos conduzidos a perceber que as histrias

    criadas e narradas por Simes so verossmeis enquanto registro literrio de uma determinada

    rea, em um determinado espao de tempo.

    1 Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Letras da UFRGS na rea de Literatura Brasileira.

  • 3 O contexto do debate

    As discusses acerca da obra de Simes versam, notadamente, sobre a legitimidade da

    narrativa deste autor, que, predominantemente urbano, no seria capaz de retratar, com aguda

    perspiccia, a essncia de um povo rural, em uma lgica pr-urbana, anterior lgica de

    mercado.

    O que avulta nesse debate (e que ainda perdura) o constante uso do vocbulo mito

    em textos que abordam a obra de Simes.

    A acepo corrente quanto ao termo mito2 unvoca ao fazer referncia de algo que

    transcende o real, que aproxima da fbula, ligado a uma origem alegrica. Apropriada esta

    acepo, poder-se-ia, genuinamente, qualificar os personagens ou atmosfera dos Contos

    Gauchescos, como entidades mticas? Ao falar sobre essa questo, Fischer argumenta:

    Blau no , como algumas leituras apressadas sugerem, um mito, muito menos uma

    mistificao ele um peo de estncia, no um proprietrio interessado em dourar a plula da dureza da vida; ele um personagem realmente significativo

    literariamente, e por isso ele representativo historicamente. (FISCHER, 2004, p.

    65)

    Como sublinhado, Blau Nunes representativo historicamente por retificar

    emblematicamente as condies de um especfico intercruzar de espao e tempo. Os

    princpios morais inerentes ao gacho de Simes, tais como a coragem, honestidade e

    integridade so reais, no estando apenas presentes em obras de fico, mas tambm em

    registros histricos, no literrios.

    A fim de investigar propriamente a correspondncia histrica dessa figura gacha do

    sculo XIX, levantou-se a hiptese de que alguns registros de cunho no literrios poderiam

    ser confrontados com a fico. Para realizao desse processo, optou-se por examinar a obra

    do botnico francs Auguste de Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul, que consiste em

    um dirio de viagem elaborado pelo estudioso no perodo em que esteve em solo gacho. As

    2 1.Relato sobre seres e acontecimentos imaginrios, acerca dos primeiros tempos ou de pocas heroicas 2.

    Narrativa de significao simblica, transmitida de gerao em gerao dentro de determinado grupo, e

    considerada verdadeira por ele 3. Ideia falsa, que distorce a realidade ou no corresponde a ela 4. Pessoa, fato ou

    coisa real valorizados pela imaginao popular, pela tradio, etc. 5. Fig. Coisa ou pessoa fictcia, irreal; fbula.

    (Aurlio) sm (gr mythos) 1 Fbula que relata a histria dos deuses, semideuses e heris da Antiguidade

    pag. 2 Interpretao primitiva e ingnua do mundo e de sua origem. 3 Tradio que, sob forma alegrica, deixa

    entrever um fato natural, histrico ou filosfico. 4 Exposio simblica de um fato. 5 Coisa

    inacreditvel. 6 Enigma. 7 Utopia. 8 Pessoa ou coisa incompreensvel. (Michaelis online)

    s. m. || fato ou passagem da fbula; narrao de um fato fsico ou moral feita sob a forma simblica de alegoria.

    (Fig.) || Coisa que no tem uma existncia real; coisa em que se no cr; quimera; utopia. (Fig.) || Pessoa ou

    coisa incompreensvel; enigma. F. gr. Mythos (fbula). (Aulete Digital)

  • impresses de um viajante estrangeiro se tornam preciosas na medida em que desapaixonadas

    e tecidas sob uma lente pretensamente cientifica.

    4 Notcia do gacho do sculo XIX

    Muitos foram os viajantes que estiveram no Brasil no perodo colonial e que legaram

    documentos essenciais para uma remontagem da histria a partir de ngulos distintos.

    Destaca-se, entre eles, Auguste Prouvenal de Saint-Hilaire que, fazendo parte de um seleto

    grupo de cientistas e naturalistas, renunciou vida acadmica e pesquisa em sala de aula

    para se dedicar a um trabalho que demandava mais empiria. O clebre botnico no somente

    coligiu e catalogou material botnico para sua pesquisa sobre a fauna e a flora em grande

    parte do Brasil, mas relatou fatos valiosos da sociedade oitocentista em que estava imerso,

    como por exemplo, costumes, comportamento e hbitos alimentares, mantendo-os num dirio

    de relatos gerais. Sua expedio ao Rio Grande do Sul teve incio em 1820 com trmino no

    ano seguinte. Seu dirio foi publicado na Frana em 1887, sob o ttulo Voyage Rio Grande

    do Sul, chegando ao Brasil somente em 1935 por intermdio da Ariel Editora. Nesse

    documento, Saint-Hilaire registra suas impresses desde que entrara na ento Provncia de

    So Pedro do Rio Grande, chegando primeiramente em Torres, percorrendo todo o litoral em

    direo ao extremo sul do pas.

    Nessa trajetria pela ento provncia, Saint-Hilaire foi hospedado em diversas

    estncias, o que foi proporcionou-lhe contato direto com os habitantes locais e o

    conhecimento dos hbitos e ofcios dessas pessoas do extremo meridional. No incio de sua

    trajetria, o botnico surpreende-se com a fartura de carne pelas estncias que passava, fato

    muito bem descrito nos contos de Simes, em que carne gorda sobrava, e potrada linda isso

    era ao cair do lao. (LOPES NETO, 2012, p. 100) Esse hbito carnvoro dos gachos

    matria recorrente de comentrios do viajante pela provncia:

    Em toda parte onde parvamos na estrada, meu guia perguntava se era possvel

    adquirir uma manta. A manta nada mais que uma grande faixa de carne seca e

    nunca foi vendida ao meu guia, pois todos o presenteavam com franqueza. (SAINT-

    HILAIRE, 1999, p. 30)

    Essa foi a realidade constitutiva do tipo chamado gacho: perodo em que as

    propriedades no eram cercadas, cuja profuso de gado permitia uma alimentao carnvora,

    em condies de grande fartura.

  • Segundo Chaves (2001), o conceito de gacho sofrera mudanas ao longo do tempo,

    passando por conceitos de acordo com as modificaes da sociedade. O indivduo que se

    ocupava dos trabalhos campeiros, no extremos sul do Brasil, na idade do ouro da era

    colonial, era chamado guasca; apenas no final do sculo XVIII que denominaram gacho o

    tipo ladro, desertor, vagabundo, que vivia do contrabando e da venda de couro. Somente no

    sculo XIX surge o termos gacho sob a acepo de guerreiro e peo, em outras palavras, o

    homem que se ocupar dos trabalhos da estncia, da lida do campo e, posteriormente,

    apresentar tendncias militares marcantes. Todos os aspectos acima aludidos so

    determinados, no somente, mas tambm, por um conjunto de fatores mesolgicos, em que

    necessariamente h direta influncia do ambiente sobre os indivduos e em suas prticas,

    hbitos, rotinas e comportamento.

    5 O gacho no pampa - o pampa no gacho

    A localizao da provncia e sua geografia definem deterministicamente o tipo de

    organizao econmica que acaba se estabelecendo3. A regio dos pampas, pelo seu clima e

    vegetao, compreende um espao em que predomina a plancie de largos campos planos,

    facilitando a pecuria e a cultura de determinadas espcies. Na medida em que Saint-Hilaire

    avana pela provncia, logo sobreleva a diferena desta em relao s outras que visitara

    desde o incio de sua jornada:

    Esta capitania certamente uma das mais ricas de todo o Brasil e uma das mais

    aquinhoadas pela natureza. Situada beira-mar possui lagos e rios que oferecem

    fceis meios de transporte. O solo produz trigo, centeio, milho e feijo com

    abundncia e experincias tm provado que todas as rvores, legumes e cereais da

    Europa a produziro facilmente se forem cultivados. (SAINT-HILAIRE, 1999, p.

    56-57)

    E, posteriormente, fascinado com a natureza dos habitantes daquele lugar, afirma:

    Chamou-me a ateno desde minha entrada nessa capitania, o ar de liberdade de

    todos que tenho encontrado e a destreza de seus gestos, livres de languidez que

    caracteriza os habitantes do interior. Seus movimentos tm mais vivacidade e h

    menos afabilidade em suas maneiras. Em uma palavra: so mais homens. (Idem, p.

    28)

    3 No faz parte do escopo deste artigo estabelecer uma teoria determinista para classificao do fenmeno que

    ocorre na formao do gacho pampiano. Esse assunto requer muito cuidado, posto que as teorias sobre tal

    assunto (determinismo geogrfico, determinismo ambiental etc.) levantam problemticas que demandariam outro

    texto apenas para esse debate.

  • O relevo e o adensamento populacional incipiente da poca explicam a disposio das

    moradias em largos intervalos. Essa disposio permitia que cada famlia pudesse ampliar sua

    propriedade multidirecionalmente, mas, por outro lado, favorecia espoliaes de forasteiros

    ou qualquer outro tipo de ameaa, exigindo que cada ncleo desenvolvesse uma certa feio

    militar de modo que garantisse sua defesa.

    Esse permanente estado de alerta um aspecto que parece determinante para

    militarizao do gacho e explica a exaltao e o culto da coragem, bravura e lealdade, por

    serem estas virtudes de inestimvel valor guerra. A moralidade aqui no formal, pois ter

    bravura e coragem indispensvel para sobreviver numa terra em que inexistia a milcia

    pblica capaz de socorrer o morador do pampa longnquo - j que quem vive na solido das

    lonjuras, e ao alcance do inimigo, precisa se precaver.... (LESSA, 1984, p.112)

    Somente com um cdigo moral gravitado em torno da coragem e da bravura que essa

    comunidade asseguraria a defesa da propriedade e a preservao da prpria vida. A

    preeminncia e voluntariedade com que o gacho trata as obrigaes militares, no as

    encarando como um mero dever cvico a que deve se resignar, bem verificada no conto

    Melancia - Coco Verde que, embora Costinha amasse sia Talapa e tenha prometido casar-se

    com esta, ele opta por servir na guerra, fato que no apresentado como hiptese por

    ningum; ou seja, no colocada em dvida a prioridade de Costinha, de colaborar com a

    defesa de seu territrio.

    Com efeito, essa caracterizao moral do gacho encontra amparo nos registros feitos

    por Saint-Hilaire (1999, p.74), quando observa que esta capitania seria de qualquer modo

    escola para as outras. Seria dotada de atividade, esprito militar e dum sentimento nacional

    que s a guerra faz nascer.

    Esse fenmeno refletido diretamente na estrutura daquela comunidade e mandatrio

    para que haja uma organizao social peculiar. preciso lembrar que na primeira metade do

    sculo XIX ainda no havia um Estado regulador, aspecto catalisador para a criao de um

    cdigo de conduta particular; consequentemente, a fim de garantir a ordem comunitria, era

    preciso que todos condescendessem, mesmo que verbalmente, com as leis previamente

    estabelecidas. No conto Deve um queijo, podemos vislumbrar essa atmosfera que

    representativa dos personagens na obra de Simes, ao caracterizar o velho Lessa: E sisudo;

    no era homem de roer corda, nem de palavra esticante, como couro de cachorro. Falava

    pouco, mas quando dizia, estava dito; pra ele, trato de boca valia tanto e at mais que

    papel de tabelio.. (NETO, 2012, p.112, grifo nosso)

  • De acordo com Faoro (1998), o universo representado por Simes est em fase de

    transio da comunidade para a sociedade estamentria, em que, embora essa no desaparea,

    confunde-se com a nova estrutura social:

    A comunidade gacha foi superada e destruda por dois elementos de grande

    importncia histrica: pela mentalidade do criador de gado e do cavaleiro, e pelos

    choques guerreiros da fronteira, que, militarizando o homem do pampa, afastaram-

    no do habitat do teto comum e do solo. Dispersaram-se, esses fatores, e o

    intelectualizaram. Aparece, ento, a sociedade estamentria patrimonial, com

    dominadores e dominados, cada qual com sua honra e destinos prprios. (FAORO,

    1998, p. 28)

    Essa nova entidade social que surge forma-se a partir da influncia dos novos

    estancieiros que passam a receber a posse das sesmarias no incio do sculo, extinguindo a

    parceria entre patro e peo, em que a igualdade social, considerada uma das preciosidades

    ora existente no pampa, fica comprometida. De acordo com Bavaresco (2001), o mundo

    recuperado pelo saudoso narrador Blau Nunes compreende exatamente essa fase em que os

    aspectos comunitrios ainda predominam ao mesmo tempo em que entram em conflito

    quando surgem questes relacionadas nova ordem social.

    Esse tipo de problematizao pode ser visualizado no conto contrabandista, em que

    a fronteira ainda era pensada como um ambiente para realizaes de trocas comuns com a

    Banda Oriental, em que inexistiam impostos ou taxaes para tal procedimento; o

    contrabando era uma prtica tradicional daquela regio, cuja origem fora anterior ao sculo

    XIX. Pode-se inferir que h um projeto de realizao de um registro histrico das

    particularidades de tal perodo, tratando-se de um conto a servio de um documento de relato

    representativo para a posteridade (no que o autor estivesse pensando a fico como ensaio).

    Outro aspecto que merece considerao no conto aludido acima a capacidade de

    alguns personagens expressarem uma certa pujana e determinao, o que insinua o carter

    heroico atribudo ao personagem; essa lgica no se faz congruente no universo dos Contos

    Gauchescos. Para ilustrar tal situao, contemplamos a figura de Jango Jorge que, embora aos

    noventa anos, ausenta-se na vspera do casamento da filha para, pessoalmente, buscar-lhe o

    enxoval em territrio oriental. Esse gacho quebralho viajou por quase dois dias no dorso

    de um cavalo, tarefa aparentemente impossvel para um cidado de tal idade; porm, naquelas

    circunstncias, essa realidade era usual, conforme aponta Saint-Hilaire (1999, p.62): Vrias

    vezes disse, j: os habitantes dessa capitania passam a vida, por assim dizer, a cavalo,

    frequentemente locomovem-se a grandes distncias com rapidez suposta aqum das

    possibilidades humanas.

  • O hbito de andar a cavalo uma decorrncia inelutvel da criao deste animal em

    larga escala, propiciada pelo relevo e variao climtica amena, sem temperaturas castigantes

    durante o ano. Este animal, companheiro inseparvel do peo, smbolo recorrentemente

    empregado em Contos Gauchescos para, na maioria das vezes, instrumentalizar ideias ou

    sentimentos como liberdade, amizade ou luta. Muitas so as passagens em que Blau Nunes d

    a sentir a unidade existente entre o peo e seu cavalo, livres a percorrer os largos campos do

    pampa gacho. Sobre essa questo, Saint-Hilaire registra a seguinte impresso ao comparar o

    gacho com o mineiro:

    Tenho j observado, muitas vezes que os mineiros no so arraigados terra natal.

    Com efeito nenhum hbito particular os retm e eles no tm pesar em sair procura

    de melhores situaes, por isso que sua inteligncia peculiar lhes garante meios

    fceis de subsistncia em qualquer parte. Os habitantes desta capitania, ao contrrio,

    nunca emigram porque sabem que fora dela sero obrigados a renunciar ao hbito de

    estar sempre a cavalo e em parte alguma encontraro tamanha abundncia de carne.

    (SAINT-HILAIRE, 1999, p. 74)

    A percepo acima tambm enfatiza, alm da relao com o cavalo, o enraizamento do

    gacho a sua terra. A este propsito interessante notar que o fato de a provncia ter sido um

    dos ltimos lugares visitados por Saint-Hilaire confere ao relato e comparao feita s

    outras capitanias uma especial legitimidade, o que marca definidamente os traos

    idiossincrticos do pampa gacho.

    Essa lgica utilizada pelo botnico, ao longo de seu dirio, para pensar a estrutura de

    tal comunidade carrega uma perspectiva naturalista muito arraigada, em que o meio

    determinante na formao do indivduo. A constante convivncia do homem do campo com

    os animais reflete consequentemente no comportamento deste uma vez que o universo

    representado nos contos ainda se encontra em harmonia; esse argumento fundamental para

    reconstruir a lgica simoniana, alicerada sobre as slidas bases deterministas, e verificada

    nos personagens que, pelo contnuo contato com animais, acabam apresentando caractersticas

    animalizadas.

    Percebemos esse movimento, nos contos, a partir da adjetivao atribuda aos

    personagens, como em Negro Bonifcio, em que Tudinha possui os dentes brancos e

    lustrosos como dente de cachorro novo ou olhos de veado assustado; em Os cabelos da

    china, Juca Picum comia como um chimarro, dormia como um lagarto, valente como o

    qu... e ginete, ento, nem se fala!. Esse fenmeno quase que simbitico entre o homem e a

    natureza afasta aquele do horizonte civilizatrio, sensvel e aproxima desta, que no obedece

    mesma lgica do universo humano.

  • 6 Consideraes finais

    A tradio na literatura, por sua competncia, est apta a construir estruturas capazes

    de consolidar determinadas hipteses, algumas delas, inquestionveis. Muitas vezes, estas

    mesmas pressuposies so apenas argumentos falaciosos revestidos por um discurso

    persuasivo, de carter atraente. Schopenhauer simplifica tal estratgia ao afirmar que aquele

    que sai vencedor de uma discusso deve-o, muitas vezes, no tanto veracidade dos juzos

    expostos em suas proposies, quanto astcia e destreza com que os defendeu.

    (SCHOPENHAUER, 1999, p.159) nesse embate, entre o que parece e o que de fato , que

    buscamos edificar outras hipteses, mesmo que modestas, a fim de colaborar com a

    construo de um percurso menos tortuoso para a literatura.

    O que no se quis: no foi necessrio afirmar, em momento algum, que h certa

    similitude entre os registros de Saint-Hilaire e a realidade representada nos Contos

    Gauchescos. O presente artigo no ambicionou suprimir o discurso que classifica o

    personagem simoniano de mito, nem tampouco sustentar uma tese erguida sobre bases

    inabalveis. No foi igualmente objetivo deste texto esgotar as possibilidades que aproximam

    o autor pelotense do botnico francs; pelo contrrio, observa-se que essa aproximao

    ensejou outras possibilidades de abordagem que merecem ser investigadas.

    O que de fato se quis: buscou-se uma abordagem que utiliza como ferramenta no

    apenas o fato literrio, mas outras reas de conhecimento. Esse procedimento somente

    enriquece a investigao no mbito acadmico, e, por consequncia, promove outras

    perspectivas de leitura que acabam ousando caminhos desconhecidos, audaciosos. Essa

    confrontao entre a fico e o documento no literrio contribui para que a literatura

    continue sustentando o respaldo que lhe concede autoridade na representao da realidade.

    Buscou-se dar obra, atravs das conjecturas apresentadas (sem o propsito de superestim-la

    ou subestim-la), o lugar que lhe correspondente.

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