Pe. JOSÉ PALHANO DE SABÓIA Santo, Semideus ou Cavaleiro do Apocalipse?
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MITO E TRAGÉDIA NA GRÉCIA ANTIGA – I E II
Jean Pierre Vernant
Pierre Vidal-Naquet
SP, ed. Perspectiva, 1999,
Coleção Estudos, 163
MITO E TRAGÉDIA I
1. O momento histórico da tragédia na Grécia : Algumas condições sociais e psicológicas2. Tensões e ambigüidades na tragédia grega 3. Esboços da Vontade na Tragédia Grega 4. Édipo sem complexo (não resumido).5. Ambigüidade e reviravolta: sobre a estrutura enigmática de Édipo-Rei 6. A caça e o sacrifício na Oréstia de Ésquilo 7. O Filoctetes de Sófocles e a Efebia
PREFÁCIO
02. As tragédias não são mitos. Elas surgem, no fim do séc VI ac, quando a linguagem do
mito deixa de apreender a realidade política da cidade; seu universo situa-se entre esses dois
mundos – o do mito e o dos novos valores desenvolvidos pela cidade -, o que constitui sua
originalidade e a própria mola da ação. No conflito trágico, o herói, o rei e o tirano ainda aparecem
presos à tradição mítica, mas a solução do drama escapa a eles: jamais é dada pelo herói solitário e
traduz sempre o triunfo dos valores coletivos impostos pela nova cidade democrática.
05. Qual é o papel do analista? Nossas análises, diferente da pura análise estrutural ou da pura
interpretaçã, estão, ao mesmo tempo, no âmbito da sociologia da literatura e da antropologia
hisórica: não explicamos a tragédia reduzindo-a a certas condições sociais, mas pretendemos
apreendê-la em todas as suas dimensções – dimensões do social, do estético e do psicológico –
sem reduzir uma dimensão à outra, mas compreendendo como elas se articulam e se combinam
para formar um fato humano único, que na história aparece sob aquelas três faces: realidade social
(com os concursos trágicos), criação estética (novo gênero literário) e mutação psicológica (surge
uma consciência e um homem trágico) – três faces que definem um mesmo objeto e admitem uma
mesma ordem de explicação.
06. Nossas análises supõe um constante confronto de nossos conceitos modernos com as
categorias postas em ação nas tragédias, propondo entre ambos um diálogo lúcido qu eajude a
desvendar os pressupostos geralmente inconscientes do leitor moderno, obrigando-o a questionar-
se.
07. Esse o ponto de partida. As tragédias gregas, como obra literária, são atravessadas por pré-
conceitos e pré-supostos que, tanto para o artista quanto para o ouvinte constituíam quadros de
referência comum na comunicação que se estabelecia entre ambos; mostrar quais eram esses
quadros, o pano de fundo que tornava intelig~ivel as próprias estruturas da peça, é outro de nossos
objetivos.
08. Além desses confrontos, há a especificidade da obra trágica. Questões como “de que
forma o tempo de cada opersonagem se insere na marcha da mecânica montada pelos Deuses”1
são outras tantas que surgem e que recebem, à guiza de respostas, sugestões, que o futuro desses
trabalhos se encarregará de enriquecer.
1. O MOMENTO HISTÓRICO DA TRAGÉDIA NA GRÉCIA:
ALGUMAS CONDIÇÕES SOCIAIS E PSICOLÓGICAS (01)
01. Os helenistas tem se perguntado sobretudo sobre as origens da tragédia. Mas mesmo que
tivessem oferecido uma resposta decisiva quanto à esse ponto, faltaria compreender o essencial: as
inovações que a tragédia trouxe e que, no plano da arte, das instituições sociais e da psicologia,
fazem dela uma onvenção.
02. O problema das origens é, pois, em certo sentido, um falso problema. Seria mais válido
falar em antecedentes, notando contudo que eles não se situam no mesmo plano do que se quer
explicar: a máscara, por exemplo, comum às tragédias e às mascaradas rituais, não sublinha
simplesmente um parentesco entre ambas, já que sua função e natureza, na tragédia, é coisa bem
diferente de um travestimento religioso. É uma mascara humana (não animal), de papel estético
(não ritual), que entre outras coisas sublinha a distância e diferenciação entre dois elementos
1 Olha o Bergson aí...
opostos mas solidários: o coro, personagem coletiva, e a persoagem trágica, cuja máscara o
individualiza e o vincula à categoria social e religiosa dos heróis. Polaridade, portanto, entre dois
elementos na técnica trágica: o coro, ser coletivo e anônimo que exprime os sentimentos dos
espectadores que compõe a comunidade cívica, e a personalidade individualizada, cuja ação forma
o centro do drama e tem a figura de um herói de uma outra época, a quem sempre é mais ou
menos estranha a condição normal de cidadão.
03. A essa duplicação do coro e do herói trágicos corresponde uma dualidade na própria
linguagem da tragédia: de um lado, o lirismo do coro; entre os protagosnistas, uma forma
dialogada mais próxima da prosa. As personagens heróicas não são apenas evocadas, mas postas
em questão pelos debaets que as opõe umas às outras. De seu lado, o coro não tanto exulta as
virtudes exemplares do herói (como na tradição) quanto se inquieta e se interroga a respeito de si
mesmo. No novo quadro do jogo trágico, portanto, o herói deixou de ser modelo: tornou-se, para
si mesmo e para os outros, um problema.
04. Essas observações preliminares permitem discernir melhor os termos em que se coloca o
problema da tragédia. Não basta notar que o trágico traduz uma consciência dilacerada, o
sentimento das contradições que dividem o homem contra si mesmo; é preciso descobrir em que
plano situam-se essas oposições na Grécia, qual seu conteúdo, em que condições vieram à luz.
05. Esse foi o trabalho empreendido por LOUIS GERNET. Ele mostrou que a verdadeira
matéria da tragédia é o pensamento social próprio da cidade, especialmente o pensamento jurídico,
em pleno trabalho de elaboração (pois que era ainda relativamene novidade). Os poetas trágicos
utilizam esse vocabulário do direito jogando delibreadamente com suas incertezas, sua falta de
acabamento: imprecisões, incoerências e oposições qu erevelam discordâncias internas do
pensamento jurídico, bem como seus conflitos com uma tradição religiosa e uma reflexão moral
cujos domínios não stão claramenteo delimitados com relação ao direito.
06. É que o direito nã é uma construção lógica; constitui-se a partir de procedimentos “pré-
juridicos”, dos quais se libertou e opôs, permanecendo em parte solidários com eles. Os gregos
não tem a idéia de um direito absoluto, fundado sobre princípios, organizado num sistema
coerente. Para eles há, num pólo, o direito apoiado na autoridade de fato, na coerção; no outro
pólo existe a ordem do mundo, aspotências sagradas; entre ambos há diversos “graus” de direito,
toda uma gama de problemas morais que dizem respeito à responsabilidade do homem. A tragédia
mostra, portanto, uma diké em luta com outra diké; Não é um debate jurídico: toma como objeto o
homem, que, em sí próprio, vive esse debate, que é coagido à fazer uma escolha definitiva, a
orientar sua ação num universo de valores ambíguos onde jamais algo é estável unívoco.
07. Esse é o primeiro aspecto do conflito. O segundo, estreitamente vinculado ao primeiro, diz
respeito à vinculação dos temas trágicos às narrativas heróicas: a tragédia, embora busque seus
temas nas lendas de heróis, assume um distanciamento com relação à eles; questiona-os.
Confronta os valores heróicos com os novos modos de pensamento que marcam o advento do
direito na cidade. As lendas dos heróis, com efeito, ligam-se à linhagens reais, as quais no plano
dos valores, práticas, religiosidade e comportamentos representam aquilo que a cidade teve de
regeitar, contra o que teve de lutar para estabelecer-se, mas também aquilo a partir do que se
constitui e com que permanece profundamente solidádia.
08. O momento da tragédia é, pois, aquele em que se abre, na experiênmcia social, uma
distância bastante grande entre o pensamento jurídico-social, de um lado, e as tradições mítico-
religiosas, de outro, para que eles sejam, sentidos como opostos, sem que, no entanto, essa
distância seja tão grande para que o confronto entre ambos deixe de efetuar-se. O mesmo se dá
com rela~çao aos problemas da responsabilidade humana: há uma consciência trágica da
resposabilidade quando os planos humano e divino são bastante distintos para se oporem, sem no
entanto deixar de parecerem inseparáveis. O domínio próprio da tragédia situa-se nesas zona
fronteiriça onde os atos humanos vêm articular-se com as potências divinas, inserindo-se numa
ordem que ultrapassa o homem e a ele escapa. (05)
2. TENSÕES E AMBIGUIDADES NA TRAGÉDIA GREGA
01. A sociologia e a psicologia, apoiados no trabalho filológico e hisórico empreendido desde
a muito pelos especialistas, focalizam problemas que os helenistas só encontram incidentalmente.
02. A tragédia surge no fim do séc. VI e morre, em menos de 100 anos, apagando-se quando a
filosofia triunfa; gênero particular, expressão de um tipo particular de experiência humana, a
tragédia tem um contexto próprio, em funçõ do qual se estabelece a comunicação entre ela e seu
público, que não deve ser esquecido.
03. Esse contexto não existe em si: forma-se nas práticas que o homem desenvolve e renopva
continuamente no campo social, universo humano de significações, instrumentos verbais e
intelectuais, categorias de pensamento, sistemas de representações, crenças, valores, formas de
sensibilidade, modalidade de ação e de agente.
04. Não há universo exspiritual existente em si, e assim também ocorre com a tragédia: é ela
própria quem elabora seu mundo spiritual; a própria consciência trágica nasce e desenvolve-se
com a tragédia.
05. O contexto, portanto, não está tanto ao lado do texto quanto subjacente à ele. Compete ao
estudioso ver como um domínio próximo é transmutado no sentido trágico, adquirindo outra
função – por exemplo, o direito: a tragédia não é um debate jurídico, mas se utiliza das formas
jurídicas para formar questionamentos de todos os valores e normas em vista de uma pesquisa que
nada mais tem a ver com o direito e tem sua base no próprio homem.: que é esse monstro
incompreensível e desnorteante, culpado e inoscente, lúcido e cego, senhor da natureza e incapaz
de governar a si mesmo? Quais as relações desse homem com seus atos, cuja iniciativa ele
assume, mas cujo sentido o ultrapassa, de tal modo que não é tanto o agente que explica o ato,
quanto o ato que, voltando-se contra o agente, descobre quem ele é? Qual é, enfim, o lugar desse
homem num universo social, natural, divino, ambíguo, onde nenhuma regra parece definitiva
06. A tragédia é também instituição social, colocada ao lado dos órgãos públicos e judiciários.
Nela a cidade se colocava em cena, ela desempenhava a si mesmo diante do público. Mas ela não
reflete, simplesmente o social: questiona-o, problematiza-o. Apresentando o embate entreo atual
cidadão e o passado mítico dos hjeróis, problematiza-se o passado e o presente do homem. Postas
as questões, não há resposta plenamente satisfatória: existe apenas um equilíbio apoiado em
múltiplas tensões. Nesse sentido a ambiguidade trágica permanece. [nota: a instituição do direito
é um exemplo: equilíbio de tensões que devem afastar-se sem excluir-se – o direito do indivíduo e
seus deveres – a tragédia a mostra como misto de boa vontade e terror, ambos devendo
equilibrar-se sem destruir-se, embora contrários. Vide nota 3, pg 12, 12vº]
06.2 Esse debate com um passado ainda vivo cava no interior da tragédia uma primeira
distância, expressa pela tensão entre os dois elementos do drama: o coro, personagem coletiva e
anônima, que encarna o povo mas que, entretanto, se utiliza de uma linguagem mítica ou heróica,
e o herói, personagem individualizada e mítica que, entreanto, se utiliza de uma linguagem mais
próxima à popular, o que o torna como que contemporâneo do público.
2 OBS.: repeti a numeração 6 do parágrafo, por engano.
07. Também é colocar mal o problema indagar sobre a maior ou menor unidade de caráter dos
personagens trágicos.
08. O debate só teria sentido sob a perspectiva de um drama moderno, construido sobre a
unidade psicológica dos protagonistas.
09. Na tragéia isso não acontece. E termos como Daimon, designando uma potência divina
que se apodera de um homem, marcam essa fluidez ou abnertura do caráter trágico.
10. Na tragédia não se trata de unidade ou descontinuidade da pessoa frente á ação; é o caráter
que deve dobrar-se à ação. O que, com olhos modernos, chamamos de mudançã de caráter marca,
na tragédia, a passagem e uma psicologia à outra, de um âmbito à outro (humana e divina, política
e mítica, etc), sendo que a coexistência e confrontação de ambos é que constitui o efeito trágico. A
grande arte trágica consistirá mesmo em formar simultâneos esses dois planos, emsi mesmos
suficientes, mas tragicamente indissolúveis, do caráter e das potências divinas.
11. Ethos – daimon: é nessa distância que o homem trágico se constitui.
12. Para a mentalidade de hoje (e já, em grande parte, para ARISTÓTELES) essas duas
interpretações se excluem mutuamente. Mas a lógica da tragédia consiste em “jogas nos dois
tabuleiros”, numa ambiguidade que sublinha as contradições, demarca as distãncias, mas que não
chega nunca à uma solução que faça desaparecer os conflitos. Essa tensão, que nunca é aceita
totalmente, nem suprimida inteiramente, faz da tragédia uma interropgação que não admite
resposta.
13. Há tensões e ambiguidades também no uso dos termos do direito, que para os gregos não
era iaindaum sistema absoluto e coerente, mas uma mistura entre dois planos de direito, um
apoiado na coerção, consagrando a autoridade de fato, outro apoiado no religioso, pondo em causa
potências sagradas, a ordem do mundo e de Zeus.
14. E essa dupla referência a planos distintos e contraditórios, mas simultâneos e coexistentes,
codeterminantes, é que causa o efeito trágico [ver exemplos pg. 16/17].
15. O universo divino, igualmente, é apresentado como conflitual, agrupando-se os Deuses
em categorias fortemente contrastadas, podendo a dualidade apresentar-se até mesmo em um
único Deus [ex., pg 17].
16. Mas é sobretudo no plano da ewxperiência humana do divino que se delineiam as
oposições. Há várias formas de viad religiosa que parecem excluir-se mutuamente: um divino
tumultuado, dionisíaco; um divino da cidade, público, sábio; um divino familiar; um divino
político, etc.
18. Essa presença, na lingua dos trágicos, de uma multiplicidade de níveis – a mesma palavra
ligando-se a campos semânticos diferentes – dá ao texto uma profundidade particular. Há uma
defasagem fundamental entre as diversas formas como os vários componentes da tragédia (coro,
público, atores, etc) interpretam o diálogo, o que constitui elemento essencial do efeito trágico. O
sentido unilateral de cada personagem choca-se com outros sentidos da mesma palavra, fazendo o
herói cair na armadilha dos múltiplos sentidos – que ele não reconhece – do que ele mesmo disse.
[tudo é diferente, só a palavra é igual; ver que a soberania de si, a verdade de sí, é destruída pela
multiplicidade “social” da palavra; são as diversas dimensões de sentido que coexistem no social
que permitem quebrar a verdade individual]
19. A linguagem trágica fala de um invisível, de um indizível na comunicação mesmo. Ela se
torna clara somente na medida em que o espectador descobre a multiplicidade dos sentidos,
abrindo-se a uma visão de mundo problemática, tornando-se ele próprio consciência tragica.
20. Para além dessas tensões, o que talvez defina o essenmcial da tragédia é a simultaneidade
de um tempo huimano, formado de presentes sucessivos e limitados, e de um tempo divino, além
do umano, que abrange a cada instante a totalidade dos acontecimentos3, ocultando-os ou
descobrindo-os, mas sem que nada lhe escape. Unindo e contrapondo o tempo dos homens, o
drama revela o divino no próprio decurso das ações humanas.
21. A tragédia vincula-se à uma ação, coloca os personagens no limiar de uma decisão.
Entretanto, a ação humana não tem autonopmia bastante para conceber-se ou resolver-se sem o
poder dos deuses, A ação humana é uma espécie de desafio ao futuro, ao destino e à si mesma. Os
deuses lhe são desconhecidos e incompreensíveis.
22. Agir, portanto, tem um duplo caráter: de um lado, é deliberar consigo, prever os meios e
os fins; de outro, é contar com o desconhecido, entrar num jogo de forças sobrenaturais sobre as
quais não sabemos se, colaborando conosco, preparam nosso sucesso ou nossa perda. Mesmo a
ação mais refletida conserva o caráter de um ousado apelo aos deuses; somente no final do drama
os atos assumem sua verdadeira significação e os agentes, através daquilo que realizam sem saber,
revelam sua verdadeira face.
3 Bergson, nesse sentido é trágico, pois sua noção de “tempo” quer inserir o divino no humano...
23. Como a personagem trágica se constitui na distância que separa daimon de ethos, a
culpabilidade trágica se estabelece entre a antiga concepção religiosa de erro-polução e a nova
concepção em que o culpado é aquele que, sem ser coagido, deliberamente decidiu cometer um
delito. Não há, ainda, na Grécia, um verdadeiro vocabulário do querer; entretanto, o advento da
cidade permite experienciar, nos debates públicos, a responsabilidade por si mesmo, o poder de
decidir sobre si. Essa experiência ainda incerta da vontade exprime-se, na tragécia, como uma
interrogação sobre a relação do agente com seus atos.
24. O sentido trágico da responsabilidae surge quando a ação humana dá lugar ao debate, à
intenção, à premeditação, mas ainda não adquiriu consistência e autonomia suficientes para bastar-
se à si mesmo; esse domínio fronteiriço onde os atos humanos articulam-se com as potências
divinas, as quais lhe dão seu verdadeiro sentido, é o domínio próprio da tragédia. (24)
3. ESBOÇOS DA VONTADE NA TRAGÉDIA GREGA
01. Para o homem ocidental atual, a vontade é uma das dimensões essenciais do sujeito. A
vontade sublinha na pessoa seu caráter de agente, de causa de atos, pelos quais se é responsável e
pelos quais os sentimos presos interiormente. A continuidade do sujeito une passado e presente a
medida em que suas condutas sucessivas se encadeiam e se inserem num mesmo quadro.
02. A vontade, atualmente, supõe uma proeminência atribuída ao sujeito humano posto como
origem, causa, de todos os atos que dele emanam, além de uma valorização da ação. O agente
apreende-se como centro de decisão, detentor de um poder que não depende nem da afetividade,
nem da pura inteligência, poder ilimitado da vontade que se manifesta em particular no ato de
decisão.
03. Assim, não há ação sem um agente individualizado que seja centro e fonte dela; não há
agente sem um poder que liga o ato ao sujeito que o decidiu e que, ao mesmo tempo, assuma a
responsabilidade por ele. Tal categoria de “vontade” nos parece evidente. Entretanto, os gregos
não tinham nenhuma palavra para ela.
04. A vontade não é um dado da natureza humana. É uma construção complexa tão difícil,
múltipla e inacabada como a do “eu”, com a qual é em grande parte solidária. Evitemos, pois,
projetar sobre o grego antigo a estrutura de nossos processos de decisão, nossos modelos de
comprometimento do ‘eu’ com os atos, e examinemos a forma como os gregos estruturaram as
relações entre o sujeito humano e suas ações.
05. Alguns autores consideram que a categoria da vontade nasce no e pelo desenvolvimento
da tragédia, pois que nela vemos um agente deliberar, em foro íntimo, sua ação, assim tomando-a
a si.
06. Seus adversários salientam, com razão, que a tônica na responsabilidade pessoal
obscurece o papel – entretanto, decisivo – das forças sobre-humanas que agem no drama, não
somente do exterior, mas também no intimo da decisão, Afinal, o que lhe motiva seria sempre, no
fim das contas, uma necessidade, a qual é controlada pelos Deuses no próprio ato de querer.
Assim, a deliberação é menos “escolha” que “verificação” do caminho divino, necessário.
07. Outros argumentam ainda que haveria uma dupla motivação, onde uma mesma ação é
explicada por dois planos interpenetráveis, mas distintos, oplano dos deuses e o plano dos
humanos: o herói confronta-0se com uma necessidade superior, que o dirige, mas, por um
movimento próprio de seu caráter, ele se apropria dessa necessidade, torna-a sua a ponto de querer
e desejar aquilo que, num outro sentido, é constrangido a fazer. Com isso se re-introduz essa
margem de livre-escolha sem a qual fica difícil pensar em responsabilidade.
08. O problema atinge todo o sistema conceitual implícito em nossa representação do
voluntário; afinal, a questão ocorre a meio caminho entre nossa noção de vontade e a que
entendemos seja a grega. A noção de vontade, entretanto, não é um dado, não é natural; ela supõe,
além das dimensões da autonomia e da livre escolha - cuja validade para os gregos é contestada
com razão -, uma série de condições: que uma série ordenada de acontecimentos sejam sentidos
como puramente humanos, bastante ligados uns aos outros e circunscritos no espaço e no tempo
para constituir uma conduta unificada; que se crie o indivíduo, e o indivíduo apreendido em sua
função de agente, com suas noções correlatas de mérito e culpa pessoais, a aparição de uma
responsabilidade subjetiva substituindo aquilo que se pôde chamar de delito objetivo, um começo
de análise dos níveis de intenção, de níveis de realização, etc – construção complexa, que tem uma
história.
10. Toda a questão está em saber o que os gregos entendiam por escolha e ausência de
escolha. Nossas noções de escolha/coação não se aplicam diretamente à eles. Tomemos o exemplo
de ARISTÓTELES.
11. Para justificar o princípio da culpabilidade pessoal do mau e dar à afirmação da
responsabilidade do homem um fundamento teórico, ARISTÓTELES elabora uma doutrina do ato
moral que representa o mais elaborado esforço da filosofia grega clássica para distinguir, segundo
suas condições internas, as diversas modalidades de ação, desde o ato realizado de mau grado, por
coerção externa ou ignorância do que se faz, até o ato realizado de bom grado, com pleno
conhecimento de causa,. Após deliberação e decisão, O termo proaíresis marca o mais alto grau
de consciência e comprometimento do sujeito com a ação, designando a ação sob a forma de
decisão,. A proaíresis é mais que a ação feita de bom grado, porque esta pode ocorrer sem
deliberação (acatando um desejo ou apetite, por exemplo). A proaíresis, embora se apóie num
desejo, é fruto de uma aspiração penetrada de inteligência e orientada, não para o prazer, mas para
um objeto prático que o pensamento já apresentou à alma como um bem. A proaíresis implica um
processo prévio de deliberação; ao ermo desse cálculo racional institui uma escolha, que se
exprime num julgamento que desemboca diretamente na ação. Distingue-se, assim, das ações
puramente desejadas ou somente teóricas, pois a deliberação diz respeito às coisas que estão “em
nosso poder”, que podem ser objeto de ação, e não de uma única maneira, mas de várias.
13. Tal teoria parece tão moderna que nela já se viu um elemento de livre escolha, atribuído
ao poder da razão, ou, em outro sentido, uma elevação da faculdade do querer (contra
SÓCRATES e PLATÃO), transformando-a numa força ativa, capaz de determinar-se a si própria
independentemente dos apetites. Entretanto, a proaíresis não constitui um poder independente das
duas únicas faculdades que, segundo ARISTÓTELES, agem na ação moral: de um lado, a parte
desejante da alma; do outro, o intelecto, na sua função prática. A opção da proaíresis não se dá
entre o bem e o mal, entre os quais teria livre escolha; ela não tem relação com os fins, mas com
os meios: posto um fim, a deliberação consiste na cadeia de julgamentos pelos quais a razão
conclui que tais meios práticos podem ou não conduzir ao fim proposto; o último julgamento da
série dirige-se ao último meio da ação; apresenta-o não somente como possível, mas como
imediatamente realizável. Assim, a aspiração, ao invés de visar o fim de maneira genérica, inclui
no seu desejo as condições concretas de sua realização; fixa-se sobre a última condição, a qual
coloca o fim ao alcance do sujeito no momento presente. Logo que o desejo assim se fixou sobre o
meio imediatamente realizável, segue-se necessariamente a ação.
14. A necessidade é imanente a todas as fases desse processo (aspiração, deliberação,
decisão).
15. A teoria aristotélica parece implicar um determinismo psicológico que nos parece
incompatível com o projeto, que ela sustenta, de fundar responsabilidade sobre o plano moral e
jurídico. Afinal, a aspiração é necessária, a deliberação é necessária, a decisão é necessária. Não
há em momento algum espaço para a liberdade na ação, algo similar ao que chamamos de livre-
arbítrio, quer se trate de uma escolha deliberada, quer de um ato realizado de bom grado.
16. Uma tal lacuna marca a distância que separa as concepções grega e moderna do agente.
Além de sublinhar as orientações diferentes da ética grega e da consciência moral atual, ela traduz
a ausência, no plano psicológico, de uma categoria elaborada da vontade. A oposição grega entre
ações de responsabilidade pessoal e não-pessoal não se funda na distinção entre voluntário e
involuntário, mas nas distinções que a consciência social estabelece, nem sempre baseada em
critérios lógicos ou coerentes (o que inicia a mudar com a instauração do direito).
17. É preciso, de outro lado, lembrar o caráter fundamentalmente intelectualista de todo o
vocabulário grego da ação. Na língua e mentalidade antigas, as noções de conhecimento e de ação
aparecem estreitamente solidárias. Lá onde um moderno espera encontrar uma expressão relativa
ao querer, encontra um vocabulário relativo ao saber. A concepção socrática de falta, nesse
sentido, retoma e prolonga uma tradição mais antiga de falta, que é ao mesmo tempo um “erro” de
espírito, uma polução religiosa e uma fraqueza moral. A falta, mesmo identificando-se com o
indivíduo, o ultrapassa, podendo prender-se à sua linhagem ou à sua cidade. No contexto desse
pensamento religioso em que o ato criminoso se apresenta, no universo, como uma força
demoníaca de polução e, no interior do homem, como um desvario de espírito (que o “conduz” ao
crime) é toda a categoria da ação que se organiza de outra maneira. O erro esconde em si uma
força nefasta que vai bem além do agente humano. O indivíduo que o comete (ou melhor, que é a
sua vitima) é tomado pela força sinistra que ele desencadeou (ou que se exerce através dele). Em
lugar de emanar do agente como sua fonte, a ação o envolve e arrasta.
18. Nesse quadro, não poderia tratar-se de uma vontade individual. A distinção, na atividade
do sujeito, entre intencional ou coagido nem mesmo tem sentido.
19. Com a instauração dos tribunais da cidade, do direito, a concepção de falta se apaga;
delineia-se uma nova noção de indivíduo e de delito; a intenção é sublinhada como constituinte da
ação, e a divisão entre intelectual/coagido assume valor de norma – mesmo assim, ainda
intelectualizada, pois se exprime em função do conhecimento-ignorância. O erro já não se vincula
à uma má-vontade, mas à uma ignorância; essa ignorância, entretanto, ao mesmo tempo é causa
da falta e excusa da falta, pois liga-se, ao mesmo tempo, ao contexto religioso da ignorância, e ao
contexto jurídico, relativo às condições concretas da ação. Mas em nenhum dos dois planos está
implícita a categoria da vontade.
20. A noção de intencional oscila entre a tendência espontânea do desejo e o cálculo
premeditado da inteligência. O que põe o sujeito em movimento é sempre um “fim” que orienta,
como que do exterior, a sua conduta, seja o objeto para o qual tende espontaneamente seu desejo,
seja o que a reflexão apresenta ao seu pensamento como um bem. Mas, nisso, a vontade não
encontra seu campo próprio de aplicação, onde o sujeito se constituiria, no e pelo querer, em
centro autônomo de decisão.
21. Que sentido atribuir, então às afirmações de ARISTÓTELES de que o homem é princípio
e pai de seus atos como de seus filhos? Elas marcam o cuidado de enraizar os atos no foro íntimo
do sujeito. Essa autonomia, entretanto, não tem o sentido de um ‘eu’ pessoal ou de uma faculdade
especial de modificar o jogo das causas que agem no interior do sujeito. Autós se refere ao
indivíduo tomado no seu todo, concebido como o conjunto das disposições que formam seu
caráter particular. E o caráter tem por base uma soma de disposições que se desenvolvem pela
prática e se fixam em hábitos. Assim, a ignorância não seria causa do erro, já que os homens
também seriam responsáveis por sua ignorância, eles tem poder sobre ela, autoridade. Se o
contexto forma o caráter, o contexto é formado por nossos atos em seu conjunto. O homem é pai,
causa eficiente de seus atos, mas tal causalidade interna se define de forma negativa: cada vez que
não se pode atribuir a uma ação uma fonte exterior coercitiva, é que a causa dela se encontra “no
homem”.
22. Em ARISTÓTELES, portanto, a causalidade do sujeito e sua responsabilidade não se
refere a um poder qualquer da vontade. A noção de indivíduo ainda é incipiente e muito presa à
noções como virtude e vício para que este se liberte como centro de decisão pessoal.
23. Os trágicos não ignoram este processo do advento da responsabilidade subjetiva, a
importância cada vez maior da consideração das intenções pessoais do agente; entretanto tais
mudanças se deram num quadro psicológico onde a categoria de vontade não tem lugar.
24. Não há que se falar em responsabilidade, nos gregos, a partir da vontade ou das intenções;
como vimos, nem mesmo ARISTÓTELES faz referência, com sua proaíresis, a um poder intimo
de auto-decisão. A diferenciação se faz não entre um ato coagido e um livremente desejado, mas
entre uma coação que opera do exterior e uma coação interna, inserida nas determinações do
agente. Seguindo seu caráter, o agente age coagido desde dentro, sendo portanto responsável por
seus atos.
27. Enfim, parece-nos que a tragédia apresenta um modelo de ações humanas característico,
próprio, correspondendo a um estágio particular da elaboração das categorias da ação e de agente.
28. Há, nesse modelo trágico de ação, um incontestável aspecto de submissão a potências
superiores.
29. Este, porém, constitui apenas um dos planos da ação. Existe um outro aspecto, imposto
pelo texto como uma das dimensões essenciais da decisão trágica: a dimensão humana. Aquilo que
o homem é obrigado a fazer é também o que ele deseja de todo coração, e a explicação dos atos
oscila e muda de sentido e valor continuamente na tragédia, conforme se unem e se opõe seus dois
planos, o divino e o humano. A morte de AGAMEMNOM por CLITEMNESTRA, por exemplo,
ultrapassa ambos os protagonistas: o castigo imposto ao rei encontra sua origem na maldição que
pesa sobre toda a linhagem dos átridas (no plano divino), mas tal assassinato é também preparado,
decidido, executado, por CLITEMNESTRA, por razões bem suas, que se inscrevem na linha de
seu caráter. [outros exemplos pgs 43 a 45].
30. É claro que a parte que, em sua decisão, cabe ao próprio sujeito não é da ordem da
vontade. É para nós, modernos, que o dilema se formula em termos de vontade livre OU formas
diferentes de coação. Mas, em termos gregos, o agente é responsável, mesmo se obrigado pelo
plano divido, desde que cede ao impulso do desejo, divino ou humano. [esse “ceder” é atribuído à
razão, entendida, então, como “causa não-causada”, ou como poder de decisão não influenciado
pelas contingências e necessidades da escolha]
31. Éthos, o caráter, Daimon, a potência divina, eis as duas ordens de realidade onde se
enraíza a decisão trágica. Situando-se a origem da ação, ao mesmo tempo, no homem e fora dele, a
mesma personagem aparece ora como agente, ora como alguém que é movido.
32. Qual é, para uma história psicológica da vontade, o significado dessa tensão
constantemente mantida pelos Trágicos entre o realizado e o sofrido? Porque essas ambigüidades
pertencem ao gênero literário que, pela primeira vez no ocidente, procura exprimir o homem em
sua condição de agente? Já sublinhamos que a tragédia vive do confronto entre as antigas formas
do pensamento religioso e as novas concepções ligadas ao desenvolvimento do direito e da prática
política. Esse confronto se exprime muito especialmente na tragédia pelo questionamento do
homem enquanto agente: seus atos, mesmo planejados, mesmo decididos, lhe escapam, e é
somente ao final da trama que ele compreende, sofrendo o que acreditava haver decidido, o
sentido real daquilo que se realizou sem que o quisesse ou soubesse. O agente, em sua dimensão
humana, não é causa e razão suficiente de seus atos: ao contrário, é sua ação que, voltando-se
contra ele (segundo o que, sobre a ação, os deuses decidiram), o descobre a seus próprios olhos,
lhe revela a verdadeira natureza do que ele é e fez.
34. Assim como sua culpabilidade se insere ao mesmo tempo na antiga concepção religiosa de
falta e a nova concepção do direito, também o agente trágico aparece dilacerado, ora causa
responsável de seus atos, ora joguete nas mãos dos deuses. Sua ação se inscreve numa ordem
temporal sobre a qual não tem atuação; seus atos, assim, o ultrapassam. Por isso, para os gregos, o
artista não é autor de sua obra: ele apenas encarna na matéria uma forma pré-existente, superior à
sua técnica e à si mesmo; o homem não está à altura do que faz.
35. Na Atenas do séc. V, o indivíduo se firmou, como sujeito do direito, responsável;
entretanto, nem o indivíduo, nem sua vida interior adquiriram bastante consistência e autonomia
para constituir o indivíduo autônomo, centro de decisão. Separado de suas raízes familiares,
cívicas, religiosas, o indivíduo nada mais é. A influência dos indivíduos sobre o futuro é tão
restrita que a ação parece mais perfeita quanto menos é comprometida com o tempo. Tanto é
assim que o ideal de ação grega é abolir toda distância temporal entre o agente e seu ato, fazê-las
coincidir num puro presente. Agir é,m então, menos organizar e dominar o tempo que excluir-se
dele.
5. AMBIGUIDADE E REVIRAVOLTA
SOBRE A ESTRUTURA ENIGMÁTICA DE ÉDIPO-REI
01. A tragédia é o gênero por excelência no uso da ambigüidade; e o Édipo-rei é um
modelo de tal uso. Mais importante que a quantidade de fórmulas ambíguas que contém, porém,
ele é modelar pela natureza e função que a ambigüidade ocupa no drama.
02. São várias as ambigüidades. Pode tratar-se de uma ambigüidade no vocabulário,
tornada possível pelas imprecisões ou contradições da língua (de resto, inevitáveis, segundo
ARISTÓTELES, já que as coisas são infinitas e as palavras, finitas). O dramaturgo joga com ela
para traduzir sua visão trágica de um mundo dividido contra si mesmo, dilacerado pelas
contradições. Na boca de diversos personagens, as mesmas palavras tomam sentidos diferentes,
porque seu valor semântico não é o mesmo na língua religiosa, jurídica, política, comum. A
ambigüidade pode traduzir a tensão entre valores sentidos como inconciliáveis a despeito de sua
homonímia, as palavras trocadas sublinhando não a comunicação, mas a impermeabilidade dos
espíritos, as barreiras que separam os protagonistas. Cada herói, fechado no universo que lhe é
próprio, dá a palavra um só sentido; a essa unilateralidade choca-se violentamente outra
unilateralidade. E a ironia trágica poderá consistir em mostrar como, no decorrer da ação, o herói é
“pego pela palavra”, sofrendo um sentido que se obstinava em não reconhecer. É somente entre o
autor e o espectador que a língua recupera sua função de comunicação, mostrando, precisamente,
que existem, nas falas trocadas pelos homens, zonas de opacidade e incomunicabilidade.
Reconhecendo o universo como conflituoso, ele se faz, através do espetáculo, consciência trágica.
03. A ambigüidade pode dar-se também entre o personagem e ele mesmo, uma mesma fala
referindo-se, ao mesmo tempo, à duas faces do personagem – o amor de CLITEMNESTRA,
estrategicamente utilizado para capturar AGAMEMNONM, é um exemplo.
04. A ambigüidade que se encontra no Édipo-rei é diferente; não concerne nem à oposição
de valores (na linguagem) nem à duplicidade da personagem. No drama de que é vítima, é Édipo,
e somente ele, que conduz o jogo. Nada o obriga a levar sua pesquisa a termo, senão o alto
conceito que tem de sua tarefa, de sua capacidade, de seu julgamento, seu desejo apaixonado de
conhecer a verdade a todo preço. E no fim do caminho que traçou contra tudo e contra todos,
Édipo descobre que, conduzindo o jogo do princípio ao fim, é ele que foi joguete do princípio ao
fim. A ambigüidade das palavras de Édipo não diz respeito à duplicidade de seu caráter, mas à
duplicidade de seu ser. Édipo é duplo; constitui por si mesmo um enigma, cujo sentido ele só
adivinhará quando se descobrir, em tudo, o contrário do que acreditava e parecia ser. Os deuses
insinuam um discurso secreto em suas palavras, que Édipo não escuta; sua linguagem aparece
assim como o lugar onde se atam e se defrontam na mesma fala dois discursos diferentes, o
humano e o divino.
05. Compreende-se, então, porque Édipo-rei tem um alcance exemplar no que concerne à
ambigüidade. Édipo, o decifrador de enigmas, o rei, adorado como um Deus, revela-se à se mesmo
como assassino, polução na cidade. A decifração do enigma é ao mesmo tempo a decifração da
identidade de Édipo.
06. Quem é, portanto, Édipo? Como seu próprio discurso, como a palavra do Oráculo,
Édipo é duplo, enigmático. Do princípio ao fim do drama ele permanece psicológica e moralmente
o mesmo, um homem de ação e decisão, corajoso, inteligente, ao qual não se pode imputar
nenhuma falta. Mas, sem que o saiba, sem tê-lo querido, nem merecido, essa personagem revela-
se, em todas suas dimensões, inversa à que aparece no governo da cidade: o estrangeiro é nativo, o
decifrador de enigmas é um enigma que não pode decifrar, o justiceiro, um criminoso, o
clarividente, um cego, o salvador da cidade, sua perdição.
08. Considerado do ponto de vista dos homens, Édipo é o chefe clarividente; considerado
do ponto de vista dos deuses, ele aparece cego. A ambigüidade da ação marca a duplicidade de
uma condição humana que, à maneira do enigma, se presta à duas interpretações opostas, tão logo
se a meça com o metro divino ou humano. Édipo, o maior dos homens, torna-se o menor dos
homens.
10. Por meio desse esquema lógico de inversão que a tragédia opera, um ensinamento
particular é proposto: o homem não é um ser que se possa definir ou descrever, é um problema,
um enigma, cujos duplos sentidos jamais se chegou a decifrar. A significação da obra não pertence
nem à moral nem à psicologia; se Édipo mata seu pai, tal não corresponde ao seu caráter ou à uma
falta moral. Em cada ato que cometia, o sentido de sua ação se invertia: a legítima defesa fez-se
parricídio; o casamento, consagrando sua glória, fez-se incesto. E tais inversões pertencem à
tragédia, sobretudo.
11. [Exemplos de imagens invertidas: Édipo, de caçador, passa à caça; de pesquisador,
passa à objeto de pesquisa; de médico, passa à doença; melhor ainda, é cada um dos opostos
simultaneamente, invertendo-se suas posições estremas, no início e no fim do drama]
13. Mesmo o nome de Édipo é ambíguo: Édipo é o homem de pé inchado (oîdos), o que
lembra a criança enjeitada, mas é também o homem que sabe (oîda). O duplo sentido de Oidípous
se encontra no interior do seu próprio nome, na oposição entre as duas primeiras sílabas e a
terceira (oida = eu sei; poús = pé). Para que Édipo realmente saiba quem ele é, é preciso que a
primeira personagem [eu sei, o mais alto] se inverta, até coincidir com a segunda [pé,
enjeitamento, polução, o mais baixo].
16. A reviravolta que faz de Édipo, rei divino, um Édipo polução, é o eixo no qual se opera
a série de inversões que afetam a personagem e fazem do herói o “paradigma” do homem trágico.
18. É no momento essencial do drama, quando a sorte de Édipo repousa sobre o fio da
navalha, que a polaridade semideus-bode expiatório se revela mais claramente. Suspeita-se que
Édipo fora o assassino de seu pai; um mensageiro diz-lhe, então, que ele é, na verdade, uma
criança achada. Sua mãe (e esposa), entendendo tudo, implora-lhe para desistir de saber quem é.
Mas ele, acreditando que fora a boa sorte que lhe fez subir da condição de abandonado a de Rei,
prossegue, e acaba descobrindo, também para si mesmo, que é na verdade vítima da sorte4.
19. De fato, acreditava-se que a criança abandonada que se “salva” sozinha tinha algo de
divino; havia razões para Édipo crer-se como tal.
23. Mas Édipo era ao mesmo tempo pharmakós, isto é, aquele que carrega a culpa da
cidade, concentrando-a em si, ou que a polui, e que por isso deveria ser expulso (ou morto),
purificando-a. No drama, Édipo inicia sua carreira salvando a cidade de um estado “poluído”, ao
decifrar o enigma da Esfinge. Pois isso, ambiguamente, agora os atenienses se dirigiam a ele para
salvar a cidade – ele, ao mesmo tempo rei e polução.
27. Édipo mesmo se apresenta, sem o saber, como pharmakós, diversas vezes: tomando as
dores da cidade como suas – já que é seu rei, ele se diz responsável por essas dores – mas
responsável ao mesmo tempo como rei (o que devia terminar com a polução) e cauda da polução.
28. Rei-divino-pharmakós são as duas faces de Édipo, que, para SÓFOCLES, é por isso o
modelo da ação humana. De fato, o Rei, como soberano, é responsável pela cidade; se ela decai, é
que seu “poder” de soberano se foi, ou se inverteu; a solução normal, em tal caso, era sacrificar o
rei – ou encontrar alguém que o substituísse nisso, assumindo os males que se concentravam em
sua pessoa – o pharmakós.
29. O pharmakós é, em si mesmo, ambíguo: concentra os males da cidade, mas, por sua
expiação, traz de volta à ela a fecundidade. Tanto que, em algumas cidades, o pharmakós era
mantido pela comunidade, durante um ano, sem trabalhos nem despesas, para ao final assumir a
posição que lhe cabia.
4 É interessante notar que a interpretação helenista não exclui totalmente a explicação psicanalista; poderíamos pensar que em tudo isso se encontra ainda a tese essencial do humano (psicanalista), a saber, que ele, pelos desejos edípicos que carrega necessária e naturalmente, é uma espécie de monstro, e que justamente por isso não se deve saber quem se é. Entretanto, a análise helenista coloca essa condição como secundária, pois é para além do conhecimento e do desconhecimento que as coisas se desenrolam; o “saber” que Édipo busca, e que sua própria mãe lhe aconselha a não pesquisar mais, pode ser algo de caráter Edípico (numa certa interpretação); mas não é esse saber que estrutura a peça: ele é apenas uma forma de expressão da ambigüidade fundamental do homem, e, mais que ambigüidade, da indeterminação fundamental do homem, expressa em termos do que, na época, era determinado (as leis do incesto, as posições opostas do rei e do pharmakós, etc, conforme mais adiante e texto 4, “Édipo sem complexo”.
30. Tal simetria pharmakós-rei talvez esclareça uma instituição como o ostracismo,
instituído em Atenas no fim do séc VI (a.c.), e pelo qual a assembléia da cidade, tendo votado que,
naquele ano, havia necessidade do ostracismo, escolhia, sem debate nem defesa, um nome para
um exílio de dez anos, destinado a afastar da cidade quem se elevava demais, o que se destinava,
de certa forma, a prevenir a tirania (afastando quem se destacava demais).
32. O ostracismo é simétrico e inverso ao ritual do pharmakós: neste, a cidade expulsa o
que há de mais vil e a ameaça por baixo; naquele, ela expulsa o que há de mais elevado e a ameaça
por cima.
34. Esse aspecto, que comporta ao mesmo tempo abaixo da medida do humano e acima
dele – e que deve por isso ser expulso – é o próprio estatuto de Édipo.
35. Esse é também o sentido da morte do pai, e do esposamento da mãe: Édipo é aquele
que gera seus filhos ali mesmo onde ele foi gerado, que mata o próprio homem que lhe deu a vida,
e essa condição – não humana, não inscrita nas leis que mantém a sociedade dos homens – o torna
ápolis, isto é, sem medida comum, sem igualdade com os outros homem, o colocando nesse limbo
ao mesmo tempo divino (pois entre os Deuses, o incesto não é proibido) e sub-humano (os
animais, por exemplo, também não respeitam essas interdições). Os animais, portanto, por falta de
discernimento – o que os coloca abaixo dos homens – e os Deuses, por sua absoluta liberdade de
fazerem tudo, já que são imortais – o que os coloca acima dos homens -, se aproximam nessa
dupla negação do humano para onde o destino levou Édipo. [notar que, ao final da trilogia, é essa
mesma condição ao mesmo tempo animalesca – infrahumana – e divina – sobrehumana – que
valerá à Édipo uma valoração positiva, pois o lugar aonde ele morrer será abençoado; ele não
morre na cidade, não é sepultado pelos seus - o que é animal; mas é essa que salvará a cidade
onde ele morrer – o que é divino].
6. A CAÇA E O SACRIFÍCIO NA ORÉSTIA DE ÉSQUILO
01. A Oréstia se abre com uma fogueira de destruição – que ilumina como o dia, e remete
aos primórdios da civilização - , e encerra-se com uma procissão noturna, cujo brilho já não é
enganador, mas ilumina um universo reconciliado (o que não quer dizer sem tensão). A custa da
ação trágica, a desordem cede à ordem, tanto entre os deuses quanto entre os homens. A caça e o
sacrifício, entretanto, são temas recorrentes ao longo de toda essa trilogia.
03. Há, portanto, um liame entre a caça e o sacrifício; tais temas são superpostos, e por isso
cale a pena estuda-los juntos. São inclusive os mesmos personagens, AGAMEMNON e
ORESTES, que sucessivamente são caçadores e caçados, sacrificadores e sacrificados (ou em vias
de). No presságio da lebre prenhe devorada pelas águias – imagem que retorna sempre, e que
resume e relança a peça - , a caça é a imagem de um sacrifício monstruoso, o de IFIGÊNIA.
04. A caça evoca todo um mundo de representações. É, em primeiro lugar, uma atividade
social que se diferencia em função das etapas da vida (o jovem efebo tem um tipo permitido de
caça, o hoplita, guerreiro adulto, outro, etc). Mas é também uma das expressões da passagem da
natureza à cultura. Sob esse aspecto, ela se cruza com a guerra [que era, para os gregos, uma
parte da política, a política sendo questão de cultura, e ligada, portanto, a pólis e aos adultos].
05. Há conexões estreitas entre a caça e o sacrifício.
06. O sacrifício reparte deuses de homens; para aqueles vão os ossos e a fumaça; para
estes, a carne cozida. O mito de PROMETEU [pelo qual os homens ganharam o fogo, ligado mais
uma vez à polis, a técnica] é estreitamente vinculado ao de PANDORA [ que foi a primeira
mulher, cujo comportamento liga-se, para os gregos, sempre mais à astúcia algo animal do que a
cultura]; a posse do fogo, necessária à refeição e ao sacrifício, tem por contrapartida “a geração
maldita das mulheres”, e a devorante sexualidade.
07. A função da caça é complementar e oposta à do sacrifício. Ela define as relações do
homem com a natureza selvagem. O caçador é, ao mesmo tempo, o leão ou águia (animal
predatório), a serpente ou lobo (animal astucioso) e o possuidor de uma arte (tekhné) que nem o
leão nem o lobo possuem.
08. O ato do sacrifício é um ato culinário, estritamente ligado ao mundo dos campos
cultivados [à vida civilizada, portanto, às mulheres, aos deuses; ela define as relações do homem
com a natureza divina].
09. Vista globalmente a caça tem uma situação oposta à do sacrifício olímpico clássico.
Sabe-se que o sacrifício de animais caçados é um fenômeno raro [sacrificavam-se normalmente os
animais criados, como o boi] estando tal sacrifício ligado em geral à divindades de natureza
selvagem, rebeldes à cidade, como Ártemis e Dioniso. Frequentemente, o sacrifício de um animal
caçado aparece no lugar de um sacrifício humano.
10. Existem, todavia, entre esses domínios opostos [que remetem à vida natural, caótica e
agressiva e à vida civilizada e ordenada], zonas de interferência, de que justamente se aproveita a
tragédia.
11. Acentuemos as linhas de força das três peças, as quais, de certa maneira, se opõe termo
a termo.
12. Iniciemos pelo coro que segue imediatamente o párodo de AGAMEMNON, pela
evocação do presságio dos dois pássaros a devorar uma lebre com sua cria.
14. Vocabulário de caça e vocabulário do sacrifício estão aqui estreitamente mesclados. A
lebre é o próprio tipo do animal caçado; entretanto, havia um regulamento de caça que
recomendava deixar os filhotes à Deusa [Ártemis; a regra é mencionada por Xenofonte]. Assim, a
caça das águias [no presságio] é ao mesmo tempo, cada de reis e caça desleal, invadindo, o
domínio de Ártemis.
15. Mas essa caça é também um sacrifício; CALCAS [o adivinho] assim o diz, temendo
que Ártemis exija “um outro sacrifício monstruoso, cuja vítima lhe pertença inteiramente”. [os
jovens, como Ifigência, que será sacrificada por seu pai, Agamêmnon, para vencer a guerra,
‘pertenciam’ à Ártemis, deusa das fronteiras – como a juventude, meio animal, meio civilizada,
para os gregos]
16. Assim, no princípio, a lebre é, por um lado, Tróia, que será tomada como uma caça, e
por outro IFIGÊNIA, sacrificada por seu pai, ele que é também um leão (caçador/sacrificador).
Ártemis intervém porque AGAMEMNON, sob tal espectro de leão ou águia, já penetrou nos
domínios do selvagem, tendo matado outras crianças ainda em seu furor de vencer a guerra
[ultrapassando, assim, uma medida humana de ação, ele se torna ao mesmo tempo divino e
animalesco, fora de toda lei] .
19. Num certo sentido, toda a peça vai nos mostrar como esse sacrifício corrompido que é
a morte de IFIGÊNIA sucede a outros e provoca outros. A própria guerra de Tróia é uma caça,
cujos guerreiros/caçadores não se comportavam legitimamente como tais, passando continuamente
do mundo das batalhas ao da caça animal, selvagem.
20. A guerra repete a matança ímpia da lebre; o assassinato de AGAMEMNON repete por
sua vez o sacrifício de IFIGÊNIA. O vocabulário é ainda o do sacrifício e da caça:
AGAMEMNON é ao mesmo tempo alguém abatido num sacrifício [para apaziguar a polução
oriunda do sacrifício ímpio de Ifigênia] e uma fera aprisionada numa rede, caçada, vitima ao
mesmo tempo da leoa CLITEMNESTRA e do lobo EGISTO [isto é, vítima da astúcia, que não
era uma caçada “limpa”, para os gregos, assim como seu sacrifício não o fora, por transgredir
as regras divinas].
21. Enquanto a captura do ser humano que será sacrificado é descrita com metáforas de
caça, a própria execução é evocada com metáforas de animais de criação [isto é, de sacrifícios]. É
outro modo de exprimir o sacrilégio, pois os animais criados devem, por um sinal, indicar o seu
assentimento com o sacrifício – o que não o fazem nem IFIGÊNIA nem AGAMEMNON.
22. A primeira peça, AGAMEMNON, vai, assim resultar numa reviravolta total, numa
inversão de valores: a fêmea matou seu macho, e a desordem instalou-se na cidade, o sacrifício foi
um anti-sacrifício.
23. A peça seguinte, COÉFORAS, tem a mesma estrutura fundamental da primeira, e
forma sua exata contrapartida especular, com a diferença importante que o tema do “sacrifício”
está em vias de desaparecer.
25. O personagem principal das Coéforas, ORESTES, filho de AGAMEMNON, tem um
caráter duplo, ambíguo, que o faz ao mesmo tempo culpado e inocente no decorrer da peça, dada
sua condição de efebo, isto é, de jovem, ou seja, de alguém que ainda não é totalmente civilizado e
por isso pode legitimamente utilizar-se de artimanhas e de astúcia para vingar o pai. [notar que,
como efebo, Orestes pertence ainda à Ártemis, e é de fato por sua mão que ela adquire vingança,
pois Orestes vinga o pai matando a mãe e o amante através da astúcia, como eles mataram o pai].
27. Assim, ORESTES é dito ao mesmo tempo arqueiro – o arco caracterizando a caça, ou,
por exclusão, o não-guerreiro, o não-hoplita (guerreiro adulto, que segue a moral de guerra, que
preceitua lutar com a espada, de perto e de frente, e não de longe, como com o arco) – e hoplita,
em sua caça/sacrifício para vingar o pai. O coro dirá, resumindo tudo, que a vitória de Orestes, ou
antes a do Oráculo, foi conseguida “por astúcias que não são astúcias”.
29. As imagens retomam essas ambigüidades: assim, ORESTES, que é dito “serpente”
(isto é, animal astucioso, rasteiro), é dito também “leão” (isto é, animal corajoso, que luta de
frente, que assume com coragem a vingança que o destino lhe impôs, agindo como verdadeiro
sucessor do trono paterno, que também era, aliás, um ‘leão’). As serpentes, entretanto, retornam na
última peça, as EUMÊNIDES, sobre as cabeças das Eríneas [espíritos vingadores dos crimes
familiares]. O destino de ORESTES não é, portanto, decidido: caçador e guerreiro, serpente e
leão, ORESTES será, nas Eumênides, como uma caça que querem sacrificar [para pagar a meia-
polução que ele cometeu matando a mãe astuciosamente, vingando assim o seu pai; digo “meia-
polução’ porque ele, como efebo, podia utilizar-se da astúcia; mas para matar a mãe? Mas como
deixar o pai sem vingança?].
30. Tal oposição entre a natureza selvagem e a civilização, presença constante ao longo
dessas duas primeiras peças, vai reaparecer em plena luz na terceira, desembocando desta vez
explicitamente no mundo político.
31. Já no prólogo dessa última parte relata-se que a passagem do mundo selvagem à
civilização pode efetivar-se, e sem violência, por uma sucessão natural.
32. Não obstante, as Erínias preparam a morte de ORESTES. Se, portanto, o mundo do
selvagem pode ser integrado à civilização(e é o que o processo de Atena consegue, ao final), nem
por isso ele deixa de subsistir, e pensar assim seria negar uma parte da realidade.
33. O ORESTES caçador das Coéforas torna-se então caça. As Eríneas, espíritos
vingativos puramente selvagens e animais, são caçadoras. [ver que há um progresso na selvageria,
inversamente proporcional à ‘limpeza’ com que se tratará a polução: primeiro, Agamêmnon,
homem inteiramente integrado à civilização, comete um ato monstruoso, que não tem solução
senão em outro crime; esse outro crime, cometido por Orestes, já não é tão monstruoso porque
ele é efebo, e poderia, em parte, comete-lo; buscando vingança por essa meia-polução, as Eríneas
– isto é, a pura animalidade selvagem – serão reintegradas à cidade como protetoras dos
fundamentos da mesma (a fecundidade do solo, por ex.), coisas ainda ‘selvagens’ mas ao mesmo
tempo domesticadas, e o crime, então, passará a ser julgado nos tribunais, isto é, passasse da
civilidade à civilidade, mas num grau enriquecido; e essa é a positividade da selvageria; como diz
Nietzsche, o animal ‘lavra’ a terra esgotada pela produção da cultuira; no que o acompanha
Blake: “conduz teu arado sobre os ossos dos mortos”.]
34. As Eríneas recebem sacrifícios de composição característica: trata-se apenas de
produtos “naturais”, sem nada que dependa da agricultura; elas têm o direito aos dois extremos: o
“puro”, o “natural”, é também o cru. Elas não bebem vinho, mas comem os homens. [para os
gregos o “natural” liga-se ao selvagem, e por isso se opõe ao “humano”, que se liga ao
civilizado]
35. A transformação das Eríneas em Eumênides não mudará sua natureza. Divindades da
noite, elas são objeto da festa noturna que termina a trilogia [que começava com uma fogueira,
vale a pena lembrar, que iluminava a noite como um dia, mas trazia a marca do caos, pois a luz
era a de Tróia queimando; ao contrário, no final, está-se em uma noite iluminada por algumas
tochas de luz, mas o universo reencontrou sua ordem; mas não se saiu da ‘noite’...]. Doravante,
como protetoras do crescimento, tem direito às primícias.
36. Divindades do sangue e do que é selvagem, elas se transformam em protetoras da
vegetação, da cultura e da criação, a dos animais e a dos homens [isto é, como se a selvageria
deve-se estar na base de todas essas coisas]. De maneira impressionante se passa do vocabulário
da caça ao vocabulário da agricultura e da criação. As Eríneas, caçadoras, têm agora uma sede na
cidade [Atena atribui-lhe um templo]. Por fim, Atena pede às Eumênides (nova forma das Eríneas)
que se comportem como o jardineiro que revolve o solo para eliminar dele as ervas daninhas. A
parte que é do selvagem permanece no interior da cidade, pois Atena se encarrega de retomar o
“programa” das Eríneas, “nem anarquia, nem despotismo”; que o temor fique instalado com o
respeito, no exterior da cidade, na medida em que ele forme fronteira. O furor, este mundo de
animalidade deve ser reservado à guerra estrangeira: “não chamo combates os que opõem pássaros
do mesmo viveiro”5. A parte de cada um nos diferentes tipos de sacrifício é fixada.
7. O FILOCTETES DE SÓFOCLES E A EFEBIA
01. Este trabalho pretende lançar luz sobre o paradoxo da efebia ateniense. O efebo [jovem,
não-adulto], ao prestar seu juramento, compromete-se a agir de acordo com a moral coletiva dos
hoplitas [guerreiros adultos], a do combate de falange contra falange, combate leal e combate
solidário. Entretanto, no próprio rito de passagem, o efebo às vezes acede à condição de adulto por
um ato de astúcia, engano, trapaça – o que é próprio à efebia, não aos hoplitas. O efebo opõe-se ao
hoplita ao mesmo tempo pela localização espacial de suas atividades guerreiras e pela natureza
dos combates que participa; ele está ligado à zona-fronteira, seu modo normal de combate não é o
afrontamento hoplítico, mas a emboscada, a astúcia. Mas o juramento que o jovem prestava não
fala nem de astúcia, nem de zona-fronteira, mas justo o contrário: é um juramento de hoplita. O
campo de atividade do futuro hoplita é, nesse juramento, claramente delimitado: o espaço
cultivado dos campos, a cidade.
02. Tal esquema parece-me próprio a esclarecer certos aspectos do Filoctetes, de Sófocles.
5 Comparar com a diferenciação que Deleuze efetua entre ‘guerra’ e ‘combate’, em Crítica e Clinica, “Nietzsche e São Paulo, Laerence e João de Patmos”
03. A lenda de Filoctetes impunha a Sófocles um esquema simples: relegado em Lemnos
depois de ter sido picado por uma serpente, coxeando e exalando um odor insuportável, mas
possuidor do arco infalível de Heracles, Filoctetes permanece exilado por 10 anos, até o dia em
que uma expedição grega o reconduz a Tróia. Um adivinho revelara que só sua presença e a do
arco assegurariam a vitória na guerra.
04. Em Sófocles o jovem Neoptólemo, filho do rei Aquiles, será encarregado por Ulisses
para, pela astúcia, se apossar do arco e da pessoa do herói.
05. Sublinhou-se muitas vezes a estranheza da peça sofocleana: é a única tragédia
conservada que não tem nenhum papel feminino; a única em que o problema colocado é resolvido
ex-machina por uma divindade, entre outras.
06. Para nosso fim interessa ver o exemplo, único mas capital na obra de Sófocles, de uma
mutação do herói trágico: o jovem Neoptólemo aceita, de início, com repugnância, enganar
Filoctetes; depois, muda de opinião, e termina por abandonar Lemnos, o “campo de batalha”,
auxiliado pela solução apresentada por um deus. Tal contrasta com o andamento habitual do herói,
que sustenta sua posição contra tudo e todos, sendo ao final destroçado pela maquinaria divina.
07. Acredito que tal “mutação” de Neoptólemo vincula-se à instituição da efebia, e seus
ritos de passagem.
08. No FIloctetes, o herói que dá nome à peça encontra-se completamente abandonado,
num lugar selvagem, ermo; é o ermitão, está completamente exposto, isto é, encontra-se nesse
não-lugar, definido por oposição à casa, à cidade, aos campos cultivados.
09. A esse mundo selvagem se opõe, muito nitidamente, dois outros “mundos”: o primeiro
é o campo de batalha troiano, isto é, o universo da cidade representado pelos cidadãos armados, os
hoplitas; e o segundo é o mundo do universo familiar de Filoctetes e Neoptólemo. É entre os dois
que os heróis serão chamados a escolher.
10. Filoctetes aparece como inteiramente estranho ao mundo dos campos cultivados; e o
coro lamenta essa existência que não tem para si “nenhum desses frutos que só nós cultivamos,
nós, os mortais comedores de pão... Ah! Deplorável existência a de um homem que há 10 anos não
teve a alegria de ver lhe servirem vinho...” Está sem família, sem companheiro: é um exilado
social. Ulisses (que o exilou) legitima o exílio lembrando que por causa de seus gritos [ele havia
sido picado por uma cobra], o exército não conseguia exercer em paz os cultos cívicos. O mal que
tortura Filoctetes é nele justamente essa parte do selvagem.
11. Filoctetes encontra-se no limite entre a humanidade e a selvageria animal. Tal situação
é simbolizada pela caça, única atividade que permite sua sobrevivência fora dos campos
cultivados. Assim, se o ferimento da cobra o afastou dos homens, o arco é sua contrapartida; ele
assegura sua vida, mas ao mesmo tempo lhe isola do mundo dos homanos [a caça têm algo de
animalesco; e o arco é um arco divino – ambos, portanto, fora do âmbito do humano]. Mas esse
arqueiro não pode ser um hoplita: aquele atira de longe, defendido pela distância, e um hoplita
deve saber encarar as coisas de frente, ao lado dos seus.
12. Junto à esse homem asselvajado desembarcam, então, Ulisses, um homem maduro, e
Neoptólemo, um jovem, que a rigor poderia ser filho de Filoctetes - o que inclusive é sugerido na
peça. Ao longo da peça, o jovem é chamado de “menino” e “filho” diversas vezes, e só ao final de
“homem” – o que confirmaria sua mudança de estatuto.
13. A aventura de Neoptólemo, um filho de rei, é paradigmática – servia de modelo aos
jovens gregos. E entretanto, ele é desde o início posto em relação com Ulisses, como militar
estreante diante de seu oficial.
14. Conseguir a arma de Filoctetes será, portanto, a primeira “façanha” de Neoptólemo; ela
se desenrolará fora do espaço cívico, e consistirá num ardil, uma emboscada que é também uma
caça.
15. Uma caça à nível de linguagem: tratava-se de “roubar a alma” de Filoctetes; Ulisses
recusa ao mesmo tempo o uso da força e da persuasão.
16. Voltando á metáfora militar na qual Neoptólemo está inserido, importa compreender
que, sendo a situação de efebo, por definição, transitória, sua “façanha” ardilosa só se justifica
pela obediência ao poder estabelecido [como um soldado diante de seu oficial] A virtude da
façanha efebica [que faz passar à adulto] esgota-se com sua realização. Por outro lado, Ulisses
não poderia levar à cabo essa façanha, por ser o homem político, excessivamente civilizado – o
exato oposto de Filoctetes; e Neoptólemo, cujo próprio nome sugere aliás a juventude, faz figura
de mediador obrigatório entre os dois. Ulisses e Filoctetes, cada um, instalado em seus
paroxismos, não se podem comunicar; o efebo, meio animal , meio homem, comunica-se com
ambos.
18. A reintegração de Filoctetes no mundo dos homens, que é o objetivo da façanha efebica
de Neoptólemo, começa desde que Filoctetes, pela primeira vez em dez anos, ouve falar grego,
retoma contato com a linguagem. Quando aceita ser curado (adentra na civilização) Filoctetes
arqueiro será separado do Filoctetes hoplita, que então vinga, lutando na guerra. A situação de
Neoptólemo também mudará: sua consumação em guerreiro com pleno exercício está consumada.
Ambos, Filoctetes e Neoptóemo, devem doravante vigiar um pelo outro – e esse é exatamente o
conteúdo do juramento que pronuncia o efebo ao virar hoplita; logo, ambos são reinseridos na
cidade, como hoplitas. [A amizade que se cria entre ambos os obriga um com relação ao outro, e
essa obrigação fraterna é a própria lei do hoplita; portanto, a relação fraterna – ou paterna,
como se queira – entre Neoptólemo e Filoctetes têm como efeito mudar a condição existencial de
ambos: Filoctetes, convencido pelo jovem, de que deveria retornar à cidade – talvez em parte não
desprezível devido à seus encantos – retorna à cultura; Neoptólemo, ao renunciar ao simples
ardil e decidir retornar à Tróia, mostra-se ‘adulto’, isto é, encara de frente a realidade que se põe
diante dele, e com isso TAMBÉM ingressa na cultura; eis uma das linhas de interpretação da
peça: como o efebo, o jovem, passará à condição de adulto, hoplita, sem que seja necessário
mudar sua natureza para isso. Pois, para os gregos, não se trata de uma repressão, de uma
obrigação, de uma castração, mas de uma elevação: o jovem é tão animal quanto FIloctetes, e
isso não é ‘patológico’; é natural. O problemático ai é o estilo de vida que se leva, mais baixo e
limitado que o da vida adulta – e NÃO ao contrário, como nos parece hoje... O jovem vive
protegido pela distancia com que se relaciona com as coisas, isto é, ele não se constitui COM
elas, e NISSO constitui-se sua animalidade; adentrar na cultura, tornar-se “adulto”, é fazer essa
passagem entre uma distância protegida – mas pobre, enquanto distância – e uma proximidade
poderosa, mas rica, enquanto proximidade. Proximidade com o quê? Com o real, com tudo o que
o humano pode e não pode fazer, o real como devir, como não pré-existente a si mesmo, já que ele
NÃO é estruturado em função apenas de suas interdições... para nós as interdições são papel
essencial na determinação do real; mas isso refere à nós, e não ao homem].