Mito e Música na Grécia Antiga

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    IntroduoDe Homero a Aristxeno e os tericos alexandrinos, o termoharmonaveio a ser empregado basicamente em trs esferas de atividade: 1) namaonaria e carpintaria as harmonai eram presilhas ou encaixes, 2) napoesia e/ou filosofia, Harmonia/ harmonaera uma Deusa, personificao oufora, 3) na terminologia musical, harmonaieram as antigas escalas e, maistarde, o sistema de escalas.2 Esses significados se acumularam e, aps certoperodo, passaram a coexistir.

    A deusa Harmonia (em Hesodo e no Hino Homrico a Apolo) e aharmonamais material da carpintaria e da maonaria representam desenvolvi-mentos paralelos, enquanto os musiclogos, conforme um procedimento que

    se observa nos primeiros tericos, emprestaram o termo tcnico dos artesos.Primeiro, as harmonaimusicais denominavam o conjunto de notas que de fatoocorria em uma determinada melodia e, posteriormente, as possibilidades te-ricas (escalas)no mais registrando as notas que realmenteeram tocadas emcanes especficas.

    No raro que uma palavra possua, em grego ou em qualquer ou-tra lngua, significados abstratos e concretos (lato senso ). E se, no caso deharmona, h pelo menos quatro sculos entre a ocorrncia do termo com osentido de presilha ou encaixe manico e o sistema de escalas musicais,isso no significa que houve, necessariamente, um desenvolvimento do conceito,do mais concreto ao abstrato.

    HARMONIA: MITO E MSICA NA GRCIA ANTIGA1

    PAULADACUNHACORRA

    Departamento de Letras Clssicas e VernculasUniversidade de So Paulo

    1Este texto a traduo de minha dissertao de mestrado: Harmoniai and Nomoi(MA in Classical Studies,RHBNC, University of London, 1987), com algumas alteraes e o acrscimo da introduo.

    2Cf. infrae, para a abstrao do sistema de escalas de Aristxeno, SZAB, 1977, p. 122-123.

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    poesia e a filosofia arcaicas envolvem diferentes modos de pensamento, umsendo mais simblico e o outro mais abstrato? Nesse caso, aonde ficam asfronteiras? Hesodo j foi situado em ambos os territrios, assim comoXenfanes.6 Sem a pretenso de resolver tais questes aqui, investigaremosalgumas suposies bsicas que norteiam tal distino.

    A crtica freqentemente admite haver nas genealogias da chamadatradio potica um certo grau de abstrao, notando tambm que as per-sonificaes e o mtodo genealgico no foram abandonados por alguns pr-socrticos. Os catlogos poticos apresentam arranjos significativos de no-mes de heris e/ou de divindades segundo a sua honra, as suas funes (quepodem ser complementares, como nos pares opostos dos pr-socrticos) ou

    alianas, que justificam a distribuio geogrfica dos povos e sua relao, asorganizaes sociais e polticas, a criao e a ordem do universo.No entanto, conforme alguns crticos, o emprego por filsofos de

    divindades antropomrficas acarreta certas inconvenincias, porque so seresanimados expressos em termos humanos e na linguagem simblica, religiosae irracional do mito.7 E as imagens, particularmente concretas e sensuais nospoemas picos, so elementos constitutivos da narrativa, que o mais eficien-te veculo do mito.

    Em geral, admite-se, porm, que a diferenciao da filosofia impli-ca mais do que o simples abandono do mito e da personificao e que, naGrcia antiga, ela fez parte das mudanas sociais, polticas e religiosas ocorri-

    das durante o perodo arcaico. Em suma, presume-se que, de um modo ou deoutro, os pr-socrticos tendessem para uma nova forma de pensamento cujaexpresso fosse racional, secular e abstrata. Esses so os critrios segundo osquais os autores arcaicos so julgados e, caso suas obras exibam um ou maisdestes traos, eles so includos no crculo dos filsofos.

    Outro fator importante, talvez decisivo, so os antigos testemu-nhos, os comentrios e as histrias que procuravam traar as origens das di-versas escolas, distinguindo, dos poetas tradicionais, os primeiros mestres dafilosofia. Aristteles (Pot.1447b), por exemplo, diz que Homero e Empdoclesnada tm em comum, exceto o metro. , portanto, correto chamar o primeiro6Segundo KIRK, 1983

    2, p. 75, Xenfanes no se encaixa em nenhuma categoria geral. No entanto, ele opta por

    enquadrar Xenfanes entre os pensadores jnicos e no entre os precursores, ao lado de Hesodo. Por suavez, os mesmos poemas de Xenfanes so includos nas principais edies de poesia elegaca e jmbica.

    7Cf. KIRK, 1983

    2, p. 72-4 e o captulo 1.7 para um sumrio representativo da viso corrente da transio do mito

    filosofia na Grcia antiga.

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    de poeta e o segundo de fisilogo, no de poeta. O contraste no seria toclaro, talvez, se Aristteles tivesse comparado Hesodo, e no Homero, aEmpdocles.

    Em vista disso, preciso reconsiderar o problema das personifica-es e das noes mais abstratas dos pr-socrticos, e as quatro ocorrnciasde harmonaem Empdocles (cf. II infra). Os editores modernos nos trazemHarmonia (com maiscula) em dois fragmentos (96, 122) e harmona (comminscula) no fr. 23. Assim, o leitor levado a crer que, no caso dos fragmen-tos 96 e 122, a Harmonia a deusa antropomrfica da tradio literria ouuma personificao.8 Quanto ao fr. 27, os editores e tradutores discordam, poisos primeiros grafam o termo com minscula e os segundos, com maiscula.9

    Segundo Ramnoux10

    , para alcanar um grau superior de abstrao, preciso dispor de um vocabulrio adequado. Caso contrrio, possvelrepresentar a mesma oposio servindo-se de pares concretos que, tomadosa um nvel superior, possuiro um valor diferente, alterado. No entanto,Ramnoux11 mesmo repara que Empdocles dispunha de trs cdigos, dosquais servia-se livremente: o religioso (Afrodite/Nekos), o laico (Amor/Guer-ra), e um mais especializado (Reunio/Disperso). A cosmologia deEmpdocles apresenta indiscutvel vnculo com a tradio religiosa/potica,evidente no apenas no emprego de nomes das antigas divindades, mas tam-bm no processo descrito: os elementos se casam como os deuses das anti-gas teogonias. Se, em tese, Empdocles poderia ter composto seus poemas

    sem recorrer aos nomes de deuses tradicionais, ele no o fez. E, como vimos,trata-se de uma escolha, no de uma limitao imposta pela linguagem. Qualseria ento o sentido do uso, aparentemente indiferenciado, que Empdoclesfaz destes trs cdigos?

    Para Bollack12, harmona apresenta um sentido concreto (laproportion agrafe la manire dun crampon) nos fragmentos 23, 27, 96 e112. H, porm, diferenas entre estas ocorrncias, assinaladas pelo prprio

    8Cf. BURKERT, 1985, p. 184-5, para antropomorfismo e personificao, e RAMNOUX, 1983, p. 112, que julgaque, nas personificaes, so usados nomes tradicionais para novos conceitos: Il devient loisible de fairecorrespondre aux catgories des noms divins: un Eros ou une Philia pour rassembler; un Neikos ou un Polmospour diviser. Que de divinits abstraits ont t ainsi enfantes!.

    9

    Cf. BOLLACK, 1969, III.1, p. 134 e KIRK, 1983, p. 295.10RAMNOUX, 1983, p. 158-9.11

    RAMNOUX, 1983, p. 161.12

    BOLLACK, 1969, III.2, p. 388.

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    Bollack em sua edio: apenas no fragmento 23 o termo harmona grafadopor todos editores e tradutores com inicial minscula. Nesse caso, somente,no se trata de deusa, fora ou princpio e, dado o colorido pico do contexto, possvel que a palavra tenha sido empregada aqui, como na Odissia(5.247-51),com o mesmo sentido material.13 Na Harmonia/harmonados fragmentos 96e 23 est explcita a idia de proporo, o que pode sugerir uma associaodessa harmonacom as musicais, obtidas por meio do ajuste das cordas segun-do propores especficas.14

    Herclito tambm emprega cdigos diversos,15 mas os apotegmasno so versificados e, embora alguns contenham pares de opostos, eles noformam casais: o mtodo no genealgico, nem h traos de uma

    cosmogonia. As mximas expem concisamente regras e princpios.16

    Harmonaocorre em dois fragmentos de Herclito. No fr. 54, doistipos de harmonai, a aparente e a no-aparente, so comparadas. O senti-do ambguo, pois as harmonaipodem ser mais concretas (como uma ligadu-ra material), ou no. No outro texto (fr. 51), apalntonos harmona(uma cone-xo reciprocamente tensa) comparada que existe entre as cordas e asestruturas do arco e da lira.

    Embora Herclito mencione outras divindades (fr. 15, 32, 93 e 94)e no rejeite completamente elementos religiosos, nos fragmentos que nosrestaram, harmonano figura como uma deusa, mas como uma fora ou umprincpio. Como alguns de seus contemporneosAnaximandro, Anaxmenes,

    Xenfanes e ParmnidesHerclito participou da mudana de atitude face sformas mais tradicionais de religio que geralmente associada com as trans-formaes mais abrangentes (sociais, econmicas e polticas) ocorridas du-

    13Para BOLLACK, 1969, III.1, p. 123, n.3, esta harmonapoderia ser o material usado pelos pintores.

    14Empdocles, que vinha do oeste, pertencia mesma tradio em que Pitgoras e Laso de Hermone (poeta,msico e terico musical, cf. infra) estavam inseridos.

    15Para uma leitura que enfatiza (talvez excessivamente) os elementos tradicionais em Herclito, veja RAMNOUX,1983, p. 114-130, que classifica os nomes prprios em Herclito conforme as seguintes categorias: a) os quefazem aluso ou referncia direta s divindades tradicionais: Zeus (fr. 23, 64), Apolo (fr. 92, 93), Hades e Dioniso(fr. 15), Dke(fr. 23, 28, 80), ris, as Ernias e Hlio (fr. 94) e Plemos(fr. 53), b) os nomes de divindades que sousados para expressar fenmenos fsicos ou meteorolgicos (no arrolados), c) os casos incertos: Harmonia(fr. 51, 54), Hpnose Thnatos(fr. 21),Aion(fr. 52) e Damon(fr. 119). Devido proximidade de Harmonia ePlemosem Hiplito, RAMNOUX, 1983, p. 120, pergunta se esta Harmonia dos fragmentos 51 e 54 no seriasemelhante dos pares que Empdocles emprestara dos mitos tebanos. Mas, possvel que Hiplito, no

    Herclito, tenha feito tal associao.16Cf. BOLLACK & WISMANN, 1972, p. 11-52. O uso freqente do pronome impessoal da terceira pessoa, doneutro plural, de neutros precedidos pelo artigo (to/) e dos termos abstratos, a fora dos verbos e a ausncia denarrativa, so algumas caractersticas distintivas de seu estilo.

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    rante o perodo arcaico (sculo IX-V a. C.).

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    Com propsitos diversos e demodos distintos, eles formularam novas definies da natureza dos deuses.Herclito, por exemplo, critica aspectos da prtica ritual e as concepes cor-rentes acerca dos deuses nos fragmentos 5, 32, 67 e 114.

    Tal atitude, porm, no radicalmente nova, surpreendente em seucontexto, e nem se limita aos filsofos. A religio grega antiga no era dogmticae, portanto, a literatura tradicional no revela uma concepo uniforme oucoerente dos deuses. Cada mito possui um nmero de verses diferentes, cadaautor tecendo em sua narrativa, drama ou poema, as suas prprias idias acer-ca da funo e da natureza dos deuses. Pndaro (Ol. 1.24-5), por exemplo, emuma passagem clebre, rejeita a verso corrente do mito de Tntalo e oferece

    uma nova que no ofende as suas noes sobre a natureza divina: Filho deTntalo, em minha narrativa sobre ti, contradirei os poetas que me antecede-ram. NoAgammnon(160-3) de squilo, o coro faz uma enigmtica invoca-o a Zeus (Zeus, quem quer que seja, se o agrada ser chamado assim, assimo invocarei) que j foi comparada com o fragmento 32 de Herclito: Umacoisa, a nica verdadeiramente sbia, consente e no consente ser chamadopelo nome Zeus. Citamos apenas esses dois exemplos, entre muitos casossemelhantes na literatura grega antiga.

    O advento da escrita e, particularmente, da prosa so freqentementeassociados origem da filosofia na Grcia Antiga. No entanto, no sabemosem que forma (verso ou prosa), Tales, Anaximandro e Anaxmenes escrevi-

    am.18

    Xenfanes comps poemas hexamtricos, elegacos e jmbicos. Os frag-mentos de Herclito no so versificados, embora padres rtmicos e figuraspoticas sejam discernveis.19 Pitgoras no deixou textos escritos, mas umatradio puramente oral, enquanto Parmnides e Empdocles compuserampoemas hexamtricos. Se, com o tempo, a prosa se estabeleceu como sendo aforma mais comum da filosofia, no podemos dizer que a reintroduo daescrita tenha sido o fator decisivo para o seu surgimento, porque provvelque tanto os poetas, quanto os filsofos do perodo arcaico, se que essesescreviam, serviam-se da escrita com o mesmo propsito: no para compor,

    17Cf. BURKERT, 1985, p. 305-37, para um comentrio sobre as atitudes individuais dos pr-socrticos.

    18Isso se Tales chegou de fato a escrever um livro. Cf. KIRK, RAVEN & SCHOFIELD, 1983

    2, p. 88: The

    evidence does not allow a certain conclusion, but the probability is that Thales did not write a book. Sobre olivro de Anaximandro, cf. KIRK, RAVEN & SCHOFIELD, 19832, p. 102.

    19No fragmento 54, por exemplo, o ritmo seria (-uuuuu-) (uu), a segunda parte sendo claramente um anapesto(uu-uu-) com a contrao das breves em uma longa. Nota-se tambm a aliterao (r, f, v) e a assonncia (a, e).

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    mas para preservar os seus textos, compostos oralmente. Se o processo daescrita surtiu efeitos imediatos sobre a forma e o contedo das obras, essesainda no foram adequadamente examinados e definidos.

    Desde a Antigidade, comenta-se, porm, a novidade, a origina-lidade dos pr-socrticos, por mais difcil que seja defini-la. Alguns fatoresdeterminantes (e geralmente ignorados) so o modo de performance, a funodos textos e a atitude dos autores. Qual seria sua inteno bsica? Em queocasies, de que maneira, para e por quem eram lidos e/ou declamados? Ospoemas e as composies em prosa dos pr-socrticos provavelmente desti-navam-se a um pblico especfico (grupos seletos, ou de iniciados) que bus-cavam instruo, no entretenimento.

    Por sua vez, a funo primria da poesia tradicional, mesmo dachamada poesia didtica era a de entreter. Os poemas eram recitados oucantados com acompanhamento musical, com ou sem dana, em reuniesmenos formais ou em festas religiosas e cvicas, e em competies literrias.Mais tarde, tornaram-se textos, estudados em sala de aula, mas no foramoriginalmente compostos para este fim.

    1. Harmona em Homero e HerdotoNa ilha de Calipso (Od. 5.247-51), Odisseu faz sua barca como um

    homem experiente em construes (eu eds tektosynon): ele rene (hrmosen) astbuas de madeira usando pregos e outras harmonai(ligaduras):

    te/trhnen d )a)/ra pa/nta kai\ h(/rmosen a)llh/loisigo/mfoisin d ) a)/ra th/n ge kai\ a(rmoni/h|sin a)/rassen.

    (/Osson ti/j t ) e)/dafoj nho\j tornw/setai a)nh\rforti/doj eu)rei/hj, eu)= ei)dw\j tektosuna/wn,to/sson e)/p ) eu)rei=an scedi/hn poih/sat ) )Odusseu/j.

    A todas ele furou, ajustou-as umas s outrase, com cavilhas e ligaduras, martelou-as.Qual homem, experiente construtor,arredonda o fundo de um vasto cargueiro,de tal largura fez Odisseu a barca.

    Mais tarde, durante a tempestade, Odisseu recebe de Ino um vumgico, mas decide permanecer na barca enquanto as tbuas ainda estiverem

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    firmemente encaixadas em suas harmonai(Od. 5.361).Na Ilada (5.60), Harmondes, nome prprio da mesma raiz deharmona, pai de Tkton(O construtor), o av de Phreklosque construraos navios de Alexandre. Mas, alm deste uso de harmonacomo as amarras outravessas da construo naval, a palavra tambm ocorre na Ilada(22.254-55)com o sentido figurado de pacto; so os laosfirmados entre Heitor e Aquiles:

    toi\ ga\r a)/ristoima/rturoi e)/ssontai kai\ e)pi/skopoi a(rmonia/wn.

    Pois [eles] seroos melhores testemunhos e guardas de nossos laos.

    Herdoto emprega o termo harmonaem contexto semelhante aodas passagens homricas, mas com um significado ligeiramente diverso. En-quanto na Iladae na Odissiaas harmonaiso meios materiais de construo e,assim como harms, termos tcnicos da maonaria e da carpintaria emprega-dos metaforicamente ou no, em Herdoto, na descrio da construo dosnavios de carga egpcios, as harmonaino so os ferrolhos ou as cavilhas, mas assuturas, as junes ou articulaes visveis de suas partes ajustadas (Hdt. 2. 96):

    nomeu=si de\ ou)de\n cre/wntai e)/swqen de\ ta\j a(rmoni/aj e)n w)=n e)pa/ktwsan th|=bu/blw|.

    No usam vigas mas, por dentro, calafetam asjunescom papiro.20

    A relao de harmonacom outras palavras derivadas de ararsko(adaptar, encaixar), como os verbos harmonzdo, harmzdo e o substantivoharms, evidente. Hrma(carro) tambm pode ser includo na lista caso seaceite a hiptese de Chantraine21 de que o termo esteja relacionado ao mo,motamicnicos, significando originalmente rodas ou chassis: a trave deconexo do carro.

    As ocorrncias seguintes ilustram a afinidade semntica que harmonapode ter com rma(B), uma palavra dlfica que significa unio, amor (LSJ).

    20Harmona se emprega mais tarde com esse mesmo sentido de juno tambm com referncia a outras es-truturas, tal como a do corpo humano (cf. LSJ).

    21CHANTRAINE, 1968. v. 2.

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    (PhilaeNekos) da Fsica. Os nomes para o amor na Fsicaso Philtes, Afrodite,Kprise Gethosne.26 A Harmonia do fr. 27, que mantm o sol imvel e uno, ainda um princpio de coeso, enquanto Nekos, o princpio oposto e com-plementar de separao, descrito como sendo destruidor, pernicioso e furi-oso (oulomnos, lygrs, mainomnos).27

    A unio de fogo, terra, gua e ar no fr. 96 de Empdocles obra deHarmonia. Simplcio, a fonte do fragmento, comenta que Harmonia outronome para Phila, a artes das coisas vivas e de suas partes. A artes quevemos trabalhar em outros fragmentos Afrodite,28 que combina os quatroelementos para construir as formas e cores de compostos temporrios (fr.71): [seres mortais]: todas as coisas que, tendo sido compostas(synarmosthnta)

    por Afrodite, agora existem.29

    Wright30

    observa que o particpio synarmosthntarefora a noo de que no se trata de uma mistura, mas de um ajuste das partespara fazer o todo. O mesmo vale para o fragmento 23 onde no se trata de umamistura de cores a fim de se obter, com harmona, diversas tonalidades, mas deuma justaposio de cores diferentes.31

    3. Harmona em HerclitoSe, em Empdocles, Harmonia j no mais deusa nem herona,

    (pois no recebe culto, no possui genealogia, nem localizao precisa), emHerclito, ela nem sequer personificada. Trata-se, segundo Jouan32, de umanoo abstrata. Harmonaencontra-se em dois fragmentos de Herclito com o

    significado original de conexo, ligadura. Mas, no fragmento 54, se fazuma distino entre a harmonaaparente e a no-aparente:

    a(rmoni/h a)fanh\j fanerh=j krei/ttwn

    a harmonano-aparente mais forte que a aparente.

    Interpretada por Diels como Deus e por Kranz como Lgos33, a26WRIGHT, 1981, p. 59. Cf. Harmonia e Kpristambm nos Katharmoi.

    27Fr. 17, 109, 115. Esses trs adjetivos que qualificamNekosaplicam-se tambm a Ares, o ltimo sendo um deseus eptetos na tradio literria.

    28Fr. 71, 73, 75, 86, 87.

    29Fr. 71:(qnhta/: to/ss )o(/sa nu=n gega/asi sunarmosqe/nt ) )Afrodi/th|.

    30

    WRIGHT, 1981, p. 222.31WRIGHT, 1981, p. 180.

    32JOUAN, 1980, p. 115.

    33DIELS & KRANZ, 1959.

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    harmonano-aparente associada com harmonia reciprocamente tensa dofragmento 51 por Kirk34 (so as conexes no-aparentes que, envolvendotenso, subjazem aos contrrios unindo todas as coisas). A conexo aparentepode ser material, de contato superficial, ou no, como no caso da conexoentre objetos semelhantes (relacionados quanto forma, cor ou funo) que evidente e mais fraca por no envolver uma tenso.

    No Banquete(187a) de Plato, ao citar o fragmento 51 de Herclito,Erixmaco explica que essa harmona uma sinfonia, uma consonncia criadapela arte da msica. Uma tradio de comentadores seguiu-lhe, atribuindo aotermo um sentido musical nesta passagem (Herclito fr. 51):

    diafero/menon e(wutw|= xumfe/retai:

    pali/ntonoj a(rmoni/h o(/kwsper to/xou kai\ lu/rhj.

    o que discorda, consigo mesmo concorda:harmonareciprocamente tensa, como a do arco e da lira.

    Kirk35 afirma que o texto no foi corretamente interpretado peloscomentadores antigos porque o emprego de harmona com um significadotcnico-musical no seria corrente antes do quarto sculo a. C. e que, mesmoneste perodo, o termo geralmente possua o sentido de uma escala musicalespecfica, resultante do mtodo de afinao, isto , uma sucesso de notas. 36

    A harmonado fragmento 51 de Herclito seria o meio de ligao, comum ao

    arco e lira, que palntonos( = age em ambas as direes sob foras contr-rias). Ela rene os contrrios que, tendendo em direes opostas, so unidos,no fundidos.

    4. As primeiras escalas musicaisAntes de cadaperformance, os msicos esticavam as cordas de seus

    instrumentos e, com cavilhas, ajustavam-nas a intervalos especficos, a umadeterminada afinao. As melodias das canes no-estrficas eram condicio-nadas em parte pela melodia inerente lngua falada, pelos acentos tonais queelas tendiam a seguir: Os compositores no eram guiados pelo acento escrito

    34

    KIRK, 1954, p. 223-224.35KIRK, 1954, p. 204.

    36KIRK, 1954, p. 204, sugere que essa implicao musical pode ter sido desenvolvida pelos seguidores ouelaboradores de Herclito.

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    mas pela pronncia, cujas sutilezas os acentos escritos so incapazes de regis-trar.37 O ritmo baseava-se na quantidade silbica natural, sendo que a dife-rena entre a durao da nota (ou notas) conferida s slabas longas e s bre-ves era geralmente o dobro.38

    Uma tripartio de dialetos e de prticas musicais j havia se desen-volvido, por volta do sculo VIII a. C., em trs tradies distintas: a elica naTesslia, Becia e na ilha de Lesbos, a drica no Peloponeso e a jnica natica e na Jnia.39 Afinaes especficas tambm parecem ter variado regional-mente, contribuindo para a caracterizao dos estilos musicais aos quais ospoetas fazem aluso.

    Os poetas mais antigos no mencionam os seus processos de afina-

    o. Mesmo quando entravam em contato com outras melodias e aprendiamas afinaes diferentes e exticas, necessrias para a reproduo das canes,eles no faziam referncia a escalas abstratas, mas melodia particular que eracantada. Quando lcman disse (fr. 126PMG):

    Fru/gion au)//lhse me/loj to\ Kerbh/sion

    uma melodia frgia, no alos, ele tocou, o Cerbsio

    provvel que ele no tivesse em mente um esquema ou a afinao envolvida,mas a prpria melodia, identificada como sendo frgia.40 Pode-se dizer o mes-mo de Estescoro, na sua Orestia(fr. 212PMG):

    toia/de crh\ Cari/twn damw/tata kalliko/mwnu(mnei=n Fru/gion me/loj e)xeuro/ntaj a(brw=jh)=roj e)perxome/nou.

    Das Graas de belas comas, tais cantigas preciso cantar, descobrindo uma melodia frgiaquando chega, graciosa, a primavera.

    37WINNINGTON-INGRAM, 1955, p. 64. Na poesia estrfica, porm, a melodia no acompanharia os acentose, como grande parte da poesia era estrfica at o sculo V a. C., isso limitaria a importncia dos acentos smelodias da poesia pica.

    38

    Em certos ritmos, uma slaba longa poderia equivaler a trs breves. Cf. WEST, 1982, p. 22.39 WEST, 1973, p. 78-87.40

    Cerbsio o nome de uma tribo que Estrabo (12.8.21) no consegue identificar. possvel que fosse tambmo nome de um nmosaultico para uma divindade ctnica (cf. infra).

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    As antigas harmonai citadas por Pseudo-Plutarco (De mus.1134f-1136, 1137b-d), as de Olimpo (a escala espondia), as de Terpandro (eas que se assemelhavam a essas por serem de trs cordas e simples) e aque-las que Aristides Quintiliano diz serem as escalas mencionadas por Plato naRepblica, foram todas consideradas defectivas pelos sistematizadores tardios.Macran41 sugeriu que tais escalas imperfeitas poderiam ter surgido no pro-cesso da adaptao de um instrumento a uma escala maior do que aquelaspara as quais fora originalmente projetado. Mas essas escalas parecem im-perfeitas s para quem tem em mente o sistema terico de Aristxeno. 42

    Como diz Winnington-Ingram:43 Uma escala uma espcie de representaoesquemtica de um modo, mas escalas podem variar em abstrao. As antigas

    harmonaidos gregos foram o primeiro grau de abstrao. Portanto, a irregula-ridade e a natureza imperfeita dessas harmonaievidenciam a sua proximida-de prtica musical, pois no representam possibilidades virtuais, podendo serdefinidas como a reunio de notas que de fato eram utilizadas em um estiloparticular de msica.

    5. Laso de Hermone significante que a primeira ocorrncia do termo harmonaentre os

    msicos encontre-se em Laso de Hermone que, de acordo com o lxico Suda,foi o primeiro a escrever sobre a msica. Alm de ser considerado o primei-ro terico, Laso teria sido tambm o primeiro a tornar o ditirambo competitivo

    (Sudas.v.), o que pode estar associado instituio do ditirambo nos festivaisdionisacos de Atenas.44 Pseudo-Plutarco atribuiu a Laso inovaes no ritmo ena melodia do ditirambo (De Mus. 1141c):

    La=soj de\ o/( (Ermioneu\j ei)j th\n diqurambikh\n a)gwgh\n metasth/saj tou\jr(uqmou/j, kai\ th|= tw=n au)lw=n polufwni/a| katakoluqh/saj, plei/osi te fqo/ggoijkai\ dierrimme/noij crhsa/menoj, ei)j meta/qesin th\n proupa/rcousan h)/gagenmousikh/n.

    Alterando os ritmos para o tempo do ditirambo, tomando como guia a gama

    41MACRAN, 1902, p. 33.

    42Essas harmonaiso maiores ou menores do que uma oitava e, com a exceo da drica, no parecem ter sido

    criadas por adio, conjuno ou disjuno de tetracordes.43WINNINGTON-INGRAM, 1963, p. 60.

    44PICKARD-CAMBRIDGE, 1962, p. 13. Uma passagem nas Vespas (1409) de Aristfanes alude, pos-sivelmente, a esse fato.

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    extensiva dos aloi, e usando assim um maior nmero de notas espalhadas,Laso de Hermone transformou a msica que at ento prevalecia.

    O tempo de execuo pode ter aumentado e possvel que, ao es-palhar as notas, Laso teria 1) usado notas desconexas, isto , notas deharmonaidiferentes (modulao), ou 2) aumentado a gama com notas maisespalhadas, ou ainda 3) preenchido as lacunas das antigas harmonai.45

    No sabemos se Laso desenvolveu o conceito de harmonaem seusescritos tericos, nem de que modo poderia t-lo feito. Mas, a ltima interpre-tao dada passagem de Pseudo-Plutarco citada acima indicaria um primei-ro passo na direo de uma srie de oitavas sistematizadas. Em sua Harmnica,Aristxeno critica a concepo espacial de Laso que atribua espessura snotas, enquanto o prprio Aristxeno conferia quantidade e realidade ape-nas aos espaos entre elas.46 Portanto, se Laso no foi oprimeiro musiclogo, foium dos primeiros, tendo desenvolvido uma teoria musical prpria.

    Ton de Esmirna (59.7) atribuiu a Laso o estudo das vrias medi-das de vibrao que produzem os intervalos musicais. Seria uma experinciasemelhante quela que, por meio da comparao dos comprimentos das cor-das, levou descoberta (feita por Pitgoras, segundo Plato (Rep. 531a) e todauma tradio posterior) das propores matemticas, das fraes numricasdos intervalos tonais (oitava 2:1, quinta 3:2, quarta 4:3). .

    Como diz Burkert47, Laso nunca foi chamado de pitagrico; noh testemunhos de uma relao direta entre Laso e Pitgoras, entre a escolapitagrica e a teoria e os empregos de harmonaem Laso. Mas, como Laso erada Siclia, era possvel que ele compartilhasse do material mais antigo quefundamentava as formulaes pitagricas. E notvel que o termo harmonaocorra pela primeira vez com um sentido indiscutivelmente musical nos ver-sos um poeta e professor de msica com interesses tericos.

    *Antes de discutirmos o poema de Laso, recapitulemos os empregos

    de harmona de modo a indicar a possvel relao entre os sentidos1)no-musicais e 2) musicais da palavra:

    45

    Estas hipteses encontram-se respectivamente em PICKARD-CAMBRIDGE, 1962, p. 19, BARKER, 1984, p.235-236 e EINARSON DE LACY, 1956, p. 419.46

    Cf. MACRAN, 1902, p. 226.47

    BURKERT, 1972, p. 378.

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    1.(a) Harmona empregado como termo tcnico da carpintaria e damaonaria. Trata-se de um significado que no caiu em desuso. Nesse caso, asharmonaiso as amarras, as presilhas materiais, ou as juntas/articulaes deuma estrutura. Tambm h o emprego figurado de harmonano sentido de umpacto, dos laostravados entre duas ou mais partes.

    (b) Em um desenvolvimento paralelo, uma divindade ou personifica-o que assume diversas formas e nomes (Harmonia, Afrodite ou Phila), or-ganiza o mundo por meio da unificao, em oposio a um deus ou uma forade separao. Em Empdocles, Harmonia a artes que cria as formas mor-tais, harmonizando os quatro elementos (terra, fogo, gua e ar) segundo pro-pores especficas. Em Herclito, que no atribua a cosmogonia a deuses,

    harmona um princpio de coeso que evita que os elementos opostos nomundo se dispersem.Com as suas harmonai, os artesos humanos criam artefatos ajus-

    tando as partes em um todo. Da mesma maneira, artesos divinos, demiurgosou foras, criam ou mantm a ordem csmica.

    2. Uma harmona a srie de notas obtidas pela afinao das cordasda lira e empregadas em uma melodia particular.

    A relao simples e evidente entre estes dois usos bsicos a deuma tcnica (instrumento ou meio) pela qual se obtm, de partes, um todo.Implicaes interessantes so suscitadas por um smbolonpitagrico (Iamb.V.P. 82) que parece reunir a Harmonia cosmognica, pertencente esfera

    mtica-religiosa/filosfica, e a harmona musical, do vocabulriotcnico-cientfico:

    ti/ e)sti to\ e)n Delfoi=j mantei=on; tetraktu/ j. o(/per e)sti\n h( a(rmoni/a, e)n h(=| ai(Seirh=nej.

    O que o orculo em Delfos? O Tetrakts, que justamentea harmonana qual esto as Sirenas.

    6. Harmonia e os pitagricosAksmata, ou smbola, eram mximas que Pitgoras, baseando-se

    em antigos conceitos e ordenanas cultuais, teria transmitido oralmente aos

    seus discpulos. No smboloncitado acima, o Tetrakts(a ttrade sagrada) soos nmeros 1, 2, 3 e 4 que formam o tringulo perfeito que possui quatrounidades de cada lado e cuja soma dez:

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    .

    . .. . .

    . . . .

    So esses tambm precisamente os nmeros que constituem as fra-es numricas dos intervalos musicais (a oitava 2:1, a quinta 3:2 e a quarta4:3), nos quais esto as Sirenas.

    Na relao da matemtica com a harmona, os pitagricos julgavamque aqueles [os fatos da matemtica] e os seus princpios eram geralmente oscausadores das coisas existentes, de modo que quem desejasse compreender averdadeira natureza das coisas existentes deveria voltar a sua ateno a esses,

    isto , aos nmeros [...] e s propores, porque por meio deles que tudo seesclarece (Iamb. Comm. math. 78.8.18). O nmero o princpio do mundo, asSirenas produzem a msica das esferas, todo o universo harmonia e n-mero, e todas as coisas a ele se assemelham.48

    Que um princpio numrico fundamentava a ordem do mundo, eque a msica tivesse uma origem e funo csmica, eram idias que gozavamde ampla circulao muito antes de Pitgoras. No entanto, a sua formulaono smbolonpitagrico rene os dois sentidos bsicos de harmonaaqui discuti-dos, revelando a especulao que havia nessa poca acerca da harmonamusi-cal e da Harmonia das antigas cosmologias: as Sirenas (figuras mitolgicasque representam as notas ou as cordas afinadas da lira) esto na harmonaque,

    por sua vez, derivada do Tetrakts, que o princpio numrico do mundo. essa luz, devemos considerar a primeira ocorrncia do termo

    harmonaem Laso e a referncia a Estescoro. Semelhanas entre as cosmologiasde Pitgoras e de lcman tambm j foram notadas: assim como as Sirenas dePitgoras esto na harmona, do mesmo modo, o coro de onze Sirenas doPartnio de lcman foi interpretado como sendo as onze notas de uma harmona(formada por dois tetracordes conjuntivos e um disjuntivo49). No h teste-munhos da existncia de uma harmonade onze notas, nem de uma lira deonze cordas na poca de lcman. No h tampouco evidncia do uso dealguma tcnica para se obter mais de uma nota de uma nica corda. A modu-lao, como hiptese, deve ser descartada, pois, segundo Aristteles (Prob.

    48BURKERT, 1972, p. 187.

    49WEST, 1967, p. 1-15.

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    19.15), nos tempos antigos, os prprios homens livres participavam dos co-ros e era difcil para um grupo grande cantar de maneira competitiva, portan-to, eles cantavam as canes em uma s harmonia. Provavelmente, o mesmose aplica ao coro de meninas de lcman.50

    A harmonia das esferas da Repblica(617a-d) de Plato no requeruma explicao musical to difcil: sentadas sobre as esferas que giravam em fre-qncias diferentes, cada uma das oito Sirenas emitia uma nota e, juntas, elasformavam uma oitava: e de todas oito, em unssono, uma s harmonasoava.

    Muito pouco restou do fragmento 70LP de Safo mas, assim comoem lcman, Pitgoras, Plato, e no Hino Homrico a Apolo, os coros de Musas,Sirenas ou Pliades cantam em uma s harmona, e Harmonia geralmente se

    encontra no contexto de um coro:...]n d ) ei)=m ) e[.........] a(rmoni/aj d[..........polug]a/qhn co/ron, a)/ a [...........] de li/gha.[

    Irei...harmonia (Harmonia?)...coro encantador...agudo...

    7. Harmona nos fragmentos de Laso e Pratinasa) LasoO fragmento de Laso, citado por Ateneu (Deipn. 624e-f) para des-

    crever a harmona elica, precedido por uma afirmao de Heraclides doPonto sobre a natureza das harmonai um estatuto negado s harmonaifrgias

    e ldias com base em um princpio tnico: Existem apenas trs harmonai, jque existem tambm apenas trs espcies de gregos: os dricos, os elicos eos jnicos (Ath. Deipn. 624c). Mais adiante, explica-se a origem da nomencla-tura das antigas harmonai (Ath. Deipn. 624d): ... eles chamam de harmonadrica o estilo meldico que os dricos desenvolveram, de elica, a harmonaque os elicos cantavam, e de jnica, a terceira harmonaque eles ouviram osjnios cantarem.51

    Entramos no domnio do thosmusical. A definio de Heraclidesno faz jus a quantidade e variedade de harmonaique estes povos devem ter

    50

    Cf. ANDERSON, 1966, p. 22, n.23 e WEST, 1967, p. 14: Alcmans lyre only provided the accompaniment, themore important element in his music was the singing of the choir (...). It is the choir that represents itself inour Parthenion as singing not quite as well as the Sirens. They strive after the eleven divine tones (...).

    51Cf. WINNINGTON-INGRAM, 1963, p. 60.

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    utilizado, mas fornece uma base racionalista para classific-las segundo o seuthos, que era o que lhe interessava. Por exemplo, Heraclides revela forte pre-conceito com relao ao carter dos elicos (insolentes, arrogantes, intrpi-dos e orgulhosos), que ele transfere para a harmonaelica, citando Pratinas(cf. fr. 712bPMG infra ) como confirmao de seu julgamento (Ath. Deipn.624e-625).

    As antigas harmonaiexibiam preferncias por determinadas gamastonais s quais as melodias se restringiam. At a poca de Laso, pelo menos,elas eram associadas a um tom caracterstico (tessitura). Mais tarde, com asistematizao dos tericos e os aperfeioamentos tcnicos que aumentarama gama dos instrumentos, era possvel toc-las em tons diferentes, e a modu-

    lao entrou em voga nas performances de solistas. Esse fato est possivel-mente relacionado expanso das harmonai (hpo-/hper-) e alterao danomenclatura das mais antigas.52

    As conotaes ticas convencionais de uma harmonadeviam serafetadas quando o tom tradicional no era observado pois, embora no fosseo nico, o tom era um elemento importante para a sua caracterizao. Lasoqualificou a harmonaelica como sendo barbromos(fr. 702PMG):

    Da/matra me/lpw Ko/ran te Klume/noi ) a)/loconmelibo/an u(/mnon a)nagne/wnai)oli/d ) a)\m baru/bromon a(rmoni/an

    Canto Demter e aMoa, esposa do Clebre,oferecendo-lhes hino de doce vozna elica harmonade grave tom.

    53

    O adjetivo barbromos tem sido parafraseado por de grave tom(=bartonos) e interpretado como uma referncia apenas tessitura,54 o que

    52Cf. HENDERSON, 1942, p. 93-103, e WINNINGTON-INGRAM, 1963, p. 12-16: segundo Riemann os modoshpo-/hperseriam, respectivamente, uma quinta acima e abaixo de suas oitavas fundamentais enquanto, paraLaloy, a mudana de nomenclatura teria ocorrido em um periodo no qual o crescente uso da modulao tendiaa eliminar os modos individuais por meio de sua fuso. WINNINGTON-INGRAM, 1963, p. 13, afirma quehavia certamente algum motivo para tais mudanas, mas que este estgio da transio na nomenclatura das

    escalas gregas est envolto de mistrio. Um exemplo a citao de Laso por Ateneu (Deipn. 624d-625a), queconsidera a harmonaelica como equivalente hipodrica.53AMoa(Ko/rh) Persfone e o Clebre(Klu/menoj), um eufemismo para Hades.

    54EDMONDS, 1928, HENDERSON, 1942, p. 99 e WEST, 1981, p. 126.

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    no traduz todas as conotaes do termo envolvidas na caracterizao daharmona. As demais ocorrncias de barbromosrevelam como o adjetivo podedenotar no apenas o tom da harmona, mas tambm a qualidade, a altura e,inclusive, o seu modo de performance. Barbromos, empregado principalmentecom relao ao mar e ao trovo, um rudo surdo e alto que resulta de algumaforma de percusso: so ondas quebrando na praia, a batida de cascos decavalo, de ps e de tambores (cf. LSJ). Alm da harmona barbromos, a can-o de Laso (fr. 702PMG) em honra de Demter e Persfone pode ter compartil-hado de outros elementos caractersticos da msica executada nos cultos deDioniso e da Deusa Me.

    O coro da Helena(1301-68) de Eurpides canta a busca que Demter

    faz pelos vales e florestas procura sua filha, ao som de castanholas brmiasque emitiam / um penetrante clamor. Quando a deusa, cansada de procurara filha em vo, se entristece, toda natureza fenece e os deuses deixam dereceber sacrifcios. Ento, para alegr-la, Zeus envia as Graas, as Musas eAfrodite, que tomou em mos a voz ctnica do bronze / e os tamborinscobertos de couro, enquanto a prpria Demter recebe o alos barbromos.55

    Um alos barbromos figura tambm no coro das Nuvens (311-313) deAristfanes: partindo em direo a Atenas, terra dos Mistrios Eleusinos, ocoro celebra a festa de Bromo: a exaltao dos coros melodiosos e da Musabarbromosdos aloi.56

    Nas Bacantes(120-34) de Eurpides, quem entrega um alosfrgio a

    Ria (uma outra Deusa Me) so os coribantes: foi dela que os stiros oadquiriram, introduzindo-o em suas danas corais, nas festas trienais em queDioniso se alegra (Bacantes120-34). Nessa passagem, o adjetivo barbromosempregado para qualificar instrumentos de percusso, no o alos. O coro debacantes (151-67) sobe s montanhas ao som de tamborins de surdo bromido(barbromoi).

    possvel que a cano de Laso fosse acompanhada pela msica eperformance tpicas de uma celebrao de Bromo (Dioniso) e da Deusa Me,exibindo algumas de suas caractersticas bsicas como a tessitura grave das

    55O tom dos aloi geralmente agudo ou claro. A referncia aqui pode ser ao alosfrgio, usado nos cultos aDioniso e Deusa Me, e que, segundo Ateneu (Deipn. 185a), era grave (bars), podendo ser tocado com um

    abafador anlogo ao do slpinx.56Nuvens(311-313): Bro/mia ca/rij eu)kela/dwn te corw=n e)reqi/smata kai\ Mou=sa baru/bromoj au)lw=n).Um esclio passagem define essa festa de Bromo como sendo disputas dionisacas nas quais havia concursosde coros (oi( Dionusiakoi\ a)gw=nej oi(=j a(/millai tw=n corw=n).

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    melodias, os aloi barbromoi e instrumentos de percusso (tmpana, krtala,kmbalae rhmboi).57 Mas, por outro lado, poderia tratar-se apenas de umareferncia feita a este tipo de msica e culto.

    Em vista das notas biogrficas referentes a Laso citadas acima, osseus versos (fr. 702PMG) poderiam fazer parte de um canto coral compe-titivo: um ditirambo, um hiporquema ou alguma outra forma semelhante.Pickard-Cambridge58 descarta a hiptese de ser um ditirambo: As canesassigmticas de Laso incluam ditirambos. A Demterexclui-se pela sua harmona(elica ou hipodrica). provvel que, aqui, Pickard-Cambridge tivesse emmente a seguinte passagem de Aristteles (Pol. 1324b):

    pa=sa ga\r bakce/ia kai\ pa=sa h (toiau/th ki/nhsij ma/lista tw=n o)rga/nwne)sti\n e)n toi=j au)loi=j, tw=n d ) a(rmoniw=n e)n toi=j frugisti\ me/lesi lamba/neitau=ta to\ pre/pon, oi(=on o( diqu/ramboj o(mologoume/nwj ei)=nai dokei= Fru/gion,kai\ tou/tou polla\ paradei/gmata le/gousin.

    Pois todo frenesi bquico, e todo movimento semelhante, mais ade-quadamente acompanhado pela flauta do que por qualquer outro instrumentoe, dentre as harmonai, nas melodias frgias que adquirem as caractersticasprprias (como o ditirambo que considerado frgio por todos), e dissomuitos exemplos so fornecidos.

    Um dos exemplos citados por Aristteles (Pol. 1324) o caso deFiloxeno, que tentou compor um ditirambo na harmonadrica mas foi inca-paz de complet-lo, impedido pela prpria natureza do ditirambo que o faziaretornar harmonafrgia.

    b) PratinasEm vista disso, como teria Aristteles classificado a cano de

    Pratinas (fr. 708PMG )? Ateneu (Deipn. 617b-f) define-a como sendo umhiporquema, mas no claro o que isto seja. De qualquer maneira, assimcomo o fragmento de Laso, os versos de Pratinas seriam necessariamenteincludos na categoria de todo frenesi bquico. No , porm, admissvelque a prtica de Pratinas fosse julgada simplesmente imprpria ou inade-

    57Para a associao desses instrumentos a Dioniso e Demter, veja tambm as Bacantes(55-63, 120-34, 151-67), oCiclope(63-70, 203-5), Helena(1308-14, 1358-65) e os Herclidas(777-851) de Eurpides.

    58PICKARD-CAMBRIDGE, 1962, p. 14-15.

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    quada, como a de muitos inovadores dos sculos V-IV a. C., pois o seu pro-testo (que barulho este?) conservador e coincide com uma das maiorescrticas feitas por Plato e Aristteles aos msicos de seu tempo: a inverso daantiga supremacia da letra sobre a msica (Pratinas fr. 708.3-7PMG):59

    e)mo\j e)mo\j o( Bro/mioj, e)me\ dei= keladei=n, e)me\ dei= patagei=na)n ) o)/rea su/menon meta\ Naia/dwnoi(=a/ te ku/knou a)/gonta poikilo/pteron me/loj.ta\n a)oida\n kate/stase Pieri\j basi/leian. o( d ) au)lo\ju(/steron coreue/tw. kai\ ga/r e)sq ) u(phre/taj.

    meu, meu o Brmio. Cabe a mim cantar e ressoar,correndo pelos montes com as Niadese cantando, qual cisne, melodia de asas multicor.Foi a cano que a Piria fez rainha. Que o alossiga,danando atrs. Ora, ele no passa de um servo!

    nos ltimos dois versos que surge o problema: triambo, ditirambo,senhor coroado de hera/ouvi, ouvi o meu canto coral drico.60 O que fazerde um canto coral drico nesse contexto? Isso significa necessariamenteque a cano foi composta na harmonadrica? Anderson61 julga que sim e, aseu ver, a referncia ao canto coral drico faz crtica do abuso do texto pelodesenvolvimento incontido das melodias aulticas na harmonafrgia que esta-va estreitamente relacionado aos ditirambos mais antigos.62

    Koller sugere que o fragmento de Pratinas seja proveniente de umdrama satrico no qual havia dois coros: um auldico, na harmona frgia, eoutro citardico, na harmonadrica. Nesse caso, no haveria uma contradioentre a afirmao de Aristteles (Pol. 1324b) e o uso da harmonadrica pelo poeta.Seaford63, em interpretao mais recente, compara o fragmento de Pratinas aoprodo e parbase da comdia antiga, indicando suas semelhanas, e lana ahiptese de que essa cano, alm de parodiar o estilo ditirmbico, representaria

    59Plato (Rep. 400d): (...) ritmo e harmoniaseguem a palavra, como se dizia a pouco, e no a palavra a estes. Comefeito, disse ele, so estes que devem seguir a palavra. (r(uqmo/j ge kai\ a(rmoni/a lo/gw|, w(/sper a)/rti e)le/geto,a)lla\ mh\ lo/goj tou/toij. )A)lla\ mh/n, h)= d ) o(/j, tau=ta/ ge lo/gw| a)kolouqhte/on).

    60qri/ame, diqu/rambe kisso/kat ) a)/nax/ [a)/kou )] a)/koue ta\n e)ma\n Dw/rion corei/an.

    61

    ANDERSON, 1966, p. 47, n.30.62ANDERSON, 1966, p. 225, cita Antgenes (AP13.28) para a possibilidade de um coro ditirmbico mais antigono modo drico (Grande Dionsia de 485).

    63SEAFORD, 1977/78, p. 81-94.

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    uma espcie de transio do canto coral ao drama satrico.Portanto, h duas possibilidades: 1) a afirmao de Aristteles (Pol.1324b) seria uma generalizao esquemtica que no fazia jus variedade daprtica musical que, na realidade, admitia o emprego de outras harmonai(comoa drica e a elica) na composio de ditirambos, hiporquemas, e de outrasperformances satricas e bquicas embora os autores pudessem revelaruma prefernciapela harmonafrgia em tais composies, ou 2) um coro dricono seria necessariamente um canto coral na harmona drica, o adjetivofazendo referncia a uma espcie, a um tipo deperformancecoral, e no harmonaempregada. Seria uma aluso menos tcnica e mais genrica ou metafrica, otermo drico sendo usado em um sentido largo: o coro prega um estilo

    drico que traz consigo as conotaes de uma tradio mais conservadora esbria, na qual a cano ainda reinava.No fragmento 712PMG de Pratinas, o poeta revela o seu interesse

    pela caracterizao das harmonaisegundo o thos:

    a) mh/te su/tonon di/wkemh/te ta\n a)neime/nan [ )Iasti/]mou=san, a)lla\ ta\n me/sannew=n a)/rouran ai)o/lize tw=i me/lei

    b) pre/peipa=sin a)oidolabra/ktaij

    Ai)oli\j a(rmoni/a.

    a) No persiga a Musa tensa,nem a jnia distendida,mas, arando o meiodo campo, eolize a melodia.

    64

    b) Convm a todos,que em canes se vangloriam,a harmonaelica.

    64Para GULLICK, 1951, p. 369, as duas harmonasextremas seriam a drica tensa (sntonos) e a jnia relaxada(epaneimne), ao passo que a elica seria a harmonaintermediria. ANDERSON, 1966, p. 48, aponta para o fato

    de que, mais tarde, a harmonaelica foi chamada de hipodrica e a istia, de hipofrgia, e ele sugere que aharmonatensa poderia ser a mixoldia (uma das harmonaitensas). Segundo Laloy (in ANDERSON, 1966,p. 277), a comparao no seria de tom (grave/agudo) mas, a seu ver, epaneimne, sntonos, e khalar seriamtermos referentes a uma alternncia de intervalos.

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    A prpria opinio de Pratinas sobre a necessidade de um uso ade-quado das harmonai, para se expressar determinados caracteres, pesa contra oargumento de Aristteles (Pol. 1324b) e, assim, difcil rejeitar a hiptese deque o seu fragmento 708PMG estivesse na harmona drica. Mas, talvez asalternativas no sejam absolutamente excludentes. Diante da evidncia de Laso,de Pratinas e do coro ditirmbico de 485 a. C., possvel que a classificaodas performances, feitas por Aristteles com o intuito de justificar sua teoria dothosmusical, fosse um pouco esquemtica e forada. Por outro lado, a meraocorrncia do nome de uma regio ou de um povo na letra de uma cano nopode ser considerada imediatamente como evidncia irrefutvel da harmonana qual a msica foi composta.

    8. A teoria e a prtica do thos musicalA teoria do thosmusical surge em contextos pedaggicos, desen-

    volvida por Plato, Aristteles e Aristides Quintiliano que, preocupando-secom a educao, tm a moral e no a esttica como critrio de valor (Plato,Leis655b):

    kai\ i(/na dh\ mh\ makrologi/a pollh/ tij gi/nhtai peri\ tau=q ) h(mi=n a(/panta,a(plw=j e)/stw ta\ me\n a)reth=j e)co/mena yuch=j h)\ sw/matoj, ei)/te au)th=j ei)/tetino\j ei)ko/noj, su/mpanta sch/mata/ te kai\ me/lh kala/, ta\ de\ kaki/aj au)=,tou)nanti/on a(/pan.

    E para evitar um discurso muito longo acerca disso tudo, digamossimplesmente que todas as figuras e as melodias que atm-se virtude daalma ou do corpo, ou a alguma imagem dela, so belas, e as que, por outrolado, atm-se ao vcio, so absolutamente o contrrio.

    Os comentrios mais tardios sobre o thosmusical tm, em suamaioria, Plato como referncia, especialmente a Repblicae as Leis, onde ateoria amplamente desenvolvida. Mas, seriam os fundamentos do thosmu-sical pura fabricao dos filsofos?

    As caractersticas ticas (isto , relativas ao carter, ao thos) que soatribudas s harmonaipoderiam ter sua origem na associao da letra (o con-

    tedo das cantigas), com todas as suas conotaes, msica, harmoniaemque eram cantadas. Dessa maneira, as harmonaiteriam adquirido significadosconvencionais. Plato (Leis669b-70) bane a msica puramente instrumental

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    por uma srie de razes, mas uma delas ilumina esta questo: quando a msi-ca no tem letra, ela difcil de ser julgada quanto ao seu carter pelos juizes.65

    Outros fatores que tambm devem ter contribudo para a caracterizao dasharmonaiseriam a sua ocasio deperformance(religiosa ou convival) e os precon-ceitos tnicos que existiam acerca dos povos entre os quais determinadasharmonaieram mais praticadas, ou aos quais suas origens eram atribudas. Porexemplo, a prtica musical dos espartanos do quinto sculo a. C. teria compar-tilhado a sua reputao: severa, conservadora e viril.

    Portanto, possvel que as harmonaitenham adquirido um carterespecfico associadas:

    1) ao contedo da composio literria;

    2) aos traos tnicos convencionalmente atribudos aos seus poe-tas e msicos;3) ao propsito ou funo da performance.Para saber se as caracterizaes das harmonaiencontradas nas obras

    dos filsofos correspondem a uma prtica real, corrente entre poetas e msi-cos, estudaremos as odes pindricas nas quais as harmonasempregadas somencionadas. Assim, poderemos averiguar, primeiro, se o uso de uma deter-minada harmonapelo poeta era puramente arbitrrio, ou se seguia algum crit-rio significativo de escolha. Por fim, se tais associaes realmente existiam,veremos se a caracterizao das harmonaifeita por Pndaro era semelhante que encontramos na filosofia, isto , se a caracterizao dos tericos espe-

    lhava-se na prtica.

    a) A harmona elicaPndaro faz referncia harmonaelica em trs de suas odes epin-

    cias - harmonaessa qual Plato, curiosamente, no faz sequer meno. Nose pode supor que Plato tenha classificado a harmonaelica com a sinto-noldia, a mixoldia e as demais harmonaisemelhantes a essas porque ela noera uma harmonatrendica ou enervada. A harmonaelica no pertenceriatampouco ao grupo das harmonaiafrouxadas (Plato, Rep. 398e-399a). Nes-se caso, a elica deve ter sido formalmente semelhante drica.

    65

    A msica instrumental exigia uma especializao (no permitindo a participao do cidado comum comointegrante de um coro) e foram nestas competies que surgiram as primeiras inovaes virtuossticas. Umoutro motivo que pode ter dificultado o julgamento do thosda msica instrumental competitiva era o usofreqente que nela se fazia da modulao.

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    sugere que a harmonaelica tenha surgido a partir deuma nova afinao da drica, pela adio de um tom inferior. Se as duasharmonaieram de fato semelhantes, pode ser que o silncio de Plato quanto elica deva-se ao desejo de no perturbar a simetria de seu esquema (Rep.399a-c): as duas harmonaique ele escolhe, a drica e a frgia, devem represen-tar o homem virtuoso na guerra e na paz, em aes foradas e voluntrias. Sotambm duas as danas admitidas nas Leis(814d-816b): a dana da guerra e ada paz.67

    a) A Terceira Ode NemiaA Terceira Ode Nemiaem honra de Aristoclides de Egina, vencedor

    do pancrcio, cantada ao acompanhamento das flautas (aloi) e da lira (12), epresume-se que a harmonaseja a elica porque os aloiso chamados frgiosou ldios, mas nunca elicos (79):

    po/m ) a)oi/dimon Ai)olV=sin e)n pnoai=sin au)lw=n

    um trago glorioso, no sopro elico das flautas

    A Musa invocada para cantar Egina, ilha do vencedor e terra dosMirmdones, e a estirpe de Aaco. A luta de Tlamon com as Amazonas, afora de Peleu e o auxlio que este obteve de Quron para conquistar Ttis somencionados. Mas, a narrativa principal ocupa-se do mito da infncia de Aquilesna Tesslia, terra dos destemidos centauros, onde a criana prodgio matoulees, porcos selvagens, e capturou cervos sem armas de caa aos seis anos deidade. Aquiles, Ttis, Peleu e Quron eram cultuados na Tesslia, e esses mitosnarrados por Pndaro podem ter tido um desenvolvimento original na tradi-o pica elica. o prprio poeta quem diz que o que lhes conto, foi ditopelos antigos.68

    Assim, uma cadeia associativa relaciona o louvor do vencedor suailha e ao mito (possivelmente de uma saga elica) cantado na harmonaelica:As lendas que associam a Tesslia Egina, indicando uma migrao real deuma tribo de homens chamados Mirmdones ou Helenos, so confirmadas

    66WINNINGTON-INGRAM, 1963, p. 26.

    67Mas tambm possvel que a harmonasimplesmente j estivesse obsoleta no tempo de Plato, ou no de Dmon.

    6852-3: lego/menon de\ tou=to prote/rwn e)/poj e)/cw. Cf. FARNELL, 1921, p. 285-289, 310.

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    pelo culto; na ilha, os filhos de Aaco permaneceram por muito tempo prxi-mos ao altar do pai da tribo helnica, Zeus Helnio. 69

    b) A Segunda Ode PticaNa Segunda Ode Ptica, no apenas a harmona, mas o nmos tambm

    mencionado (69-71):

    to\ Kasto/reion d )e)n Ai)oli/desi cordai=j qe/lwna)/qrhson ca/rin e)ptaktu/poufo/rmiggoj a)nto/menoj.

    e o Castrio, em cordas elicas,

    observa benevolente, saudandoa forminge de sete notas.

    Pseudo-Plutarco (1140c) descreve a melodia de Cstor (t Kastreionmlos) como sendo uma melodia tocada na flauta pelos espartanos quando, emguerra, avanavam contra o inimigo.70 Se esse nmossempre teve uma conotaomarcial, Pndaro pode t-lo escolhido em virtude de um dos temas da ode,pois ele comea cantado Siracusa (1-3)

    te/menoj )/Areoj, a)ndrw=n i(/ppwn te siderocarma=ndaimo/niai trofoi/

    recinto de Ares, e de homens e cavalos armados em ferro,divina nutriz

    e louva Hiero por sua assistncia a Locris (63-5):

    neo/tati me\n a)rh/gei qra/sojdeinw=n pole/mwn. o(/qen fami\ kai\ se\ ta\n a)pei/ronado/xan eu)rei=n,ta\ me\n e)n i(pposo/aisin a)/ndressi marmna/menon, ta\d ) e)n pezoma/caisi

    69

    FARNELL, 1921, p. 310.70Aqui, porm, no se trata de um nmosaultico, mas citardico, cantado ao acompanhamento de uma formingede sete cordas. Mas, como a ode de Pndaro no tem funo militar, ela pode ter sido uma adaptao literriado nmosoriginal.

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    juventude convm a coragemdos guerreiros terrveis, de onde tambm digo que tuinfinito renome obtiveste, ora entre cavaleiros,ora entre infantes lutando.

    Parece que os nmoiantigos tinham harmonaie ritmos determinadose, portanto, essa ode poderia estar na harmonaelica simplesmente por seressa a harmona do nmos de Cstor. De qualquer forma, o mito narradopertence tradio elica: xion deita-se com uma Nuvem e gera Cen-tauro, uma criatura que, acasalando-se com as guas do Monte Plio, pro-duz a raa dos centauros (44-48).

    d) A Primeira Ode OlmpicaEsta ltima referncia em Pndaro harmonaelica perturbadora e

    gera uma certa desconfiana quanto possibilidade de haver sempre uma relaoentre a harmonae o contedo narrativo da cano. Na Primeira Ode Olmpica, dedi-cada vitria de Hiero na corrida de cavalo, a narrativa central desenvolve umanova verso do mito de Plops e da instituio dos jogos olmpicos.

    No necessrio imaginar que a lira (17) estivesse afinada naharmonadrica, ela drica simplesmente por estar no palcio de Hiero (17-8):

    a)lla\ Dwri/an a)po\fo/rmigga passa/lou

    la/mban )

    mas a dricaforminge, do gancho,toma

    Em uma primeira leitura da ode, seria de se esperar que a harmonaempregada fosse a drica ou a ldia, em funo do vencedor, de sua terra natale do contedo mtico. Mas, a harmonapoderia depender do nmosque, por suavez, poderia ter sido escolhido em virtude da modalidade da competio (100-3):

    e)me\ de\ stefanw=sai

    kei=non i(ppi/w| no/mw|Ai)olhi/di molpv=crh/.

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    a mim, coro-locom o nmoshpioem cano elica, preciso.

    ONmos hpio no ocorre em nenhuma outra fonte. Seria prudentedeixar a questo em aberto, ou supor uma falha na transmisso de uma refe-rncia a um Nmos hpio na harmona elica. Uma hiptese, porm, que oNmos hpio fosse um nmosem honra dos Discuros. Na Ilada(3.236), Cstor chamado de domador de cavalos, e os gmeos eram cavaleiros de velo-zes cavalos e de cavalos brancos em Pndaro (P. 1.126). O culto aosDiscuros era proveniente da Lacnia, onde esses dois filhos de Zeus eram

    associados aos dois reis espartanos e entretidos nas Xnia rituais.71 Em Olmpia,o altar dos gmeos ficava junto ao ponto de partida das corridas de cavalo.Farnell72 descreve um relevo de Larissa (sculo II d. C.) em que se v o solascendendo na parte superior, embaixo, os Gmeos galopando pelo ar e, sobeles, uma Vitria que ergue uma coroa a dois adoradores: um estende as mosem orao e, ao lado deles, h um estrado e uma mesa com bolos. Essa arecepo de costume para os Discuros que vm de longe, o sol ascendentepode aludir ao seu carter celeste, mas a Vitria e a coroa indicam algumadisputa atltica em que o devoto triunfou ou pede por uma vitria. 73

    Vimos, portanto, que nem sempre a escolha da harmonaelica nasodes de Pndaro estava associada ao contedo narrativo do poema. Era poss-

    vel, como no caso da Terceira Ode Nemia, que o elogio do vencedor, de suaterra natal, e a narrativa mtica tivessem todos uma estreita ligao com aharmonaempregada. Porm, na Segunda Ode Ptica, a escolha do nmosde Cstore um tema secundrio (o da guerra) podem ter sido mais importantes e, nessecaso, difcil dizer se a afinidade da harmonacom o mito foi intencional ouuma coincidncia. Quanto Primeira Ode Olmpica, se houve um fator deter-minante na escolha da harmona, ele teria sido unicamente o nmos, no haven-do nenhuma outra relao entre a harmonae os demais elementos da ode.

    Ao tratarmos das referncias harmonaldia, devemos manter es-

    71Cf. PNDARO,N. 10.49-50.

    72

    FARNELL, 1921, p. 220.73Para o altar em Olmpia, cf. PAUSNIAS, 5.15.5; para as Xnia, FARNELL, 1921, p. 228: Their only publiccult as a rule was a ritual known as ce/nia, a free festival to which the Dioscuroi were invited and at which they

    were also hosts, entertaining the gods and citizens (...). Cf. PNDARO, Ol. 1.1-17, 3.33-41.

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    ses casos em mente a fim de observar se a escolha dessa harmonaem Pndaroest associada ao mito, s origens do vencedor, se depende de outros fatores,ou se simplesmente arbitrria.

    b) A harmona ldiaNa classificao das harmonaifeita por Plato, dois so os grupos

    excludos do currculo dos guardies (Rep. 398e):1) a mixoldia, a sintonoldia (= a ldia tensa), e todas as demais

    harmonaisemelhantes que nemservem para as mulheres2) a ldia e a frgia que so frouxas (khalara), suaves e convivais.As harmonaido primeiro grupo so classificadas como trendicas e

    lamentativas, as do segundo, como convivais, e essas ltimas so excludasporque a embriaguez, a suavidade e o lazer no so prprios para os guardies.Pseudo-Plutarco tem por base essa passagem quando elabora uma

    descrio das harmonai, fazendo aluso aos seus mitos de origem (1136c-e):A ldia aguda, prpria para lamentaes e, segundo Aristxeno, o cantofnebre de Olimpo para o Ptio foi composto nessa harmona.74 Em seu Pe12, Pndaro nos conta como a harmonaldia foi ensinada pela primeira vez aosgregos durante as bodas de Niobe. Filha de Tntalo e esposa de Anfio, Niobe freqentemente representada na iconografia lamentando sobre suas crian-as mortas. Nos rituais fnebres, o treno era geralmente executado por umcoro de mulheres que, arrancando os cabelos e rasgando as suas roupas, can-

    tavam um refro em resposta a um lder do coro que, por sua vez, cantava umsolo, como Andrmaca na Ilada(24.719-76).75 Na verso de Pausnias (9.5.7),Anfio, o msico lendrio, ergueu a muralha de Tebas com sua msica e apren-deu de Tntalo, e dos prprios ldios, a harmonaldia.76

    Assim como Plato, Pseudo-Plutarco uniu a harmonaldia frouxae dos simpsios jnia, em oposio mixoldia tensa pois, segundo ele,

    74Essa harmonaldia deve corresponder sintonoldia de Plato.

    75Ritos funerais e formas de lamentao violentos so habitualmente associados s prticas orientais. A msica aguda (okss) e os modos so tensos (sntonoi): o mixoldio, ldio e jnio tensos. Cf. SQUILO, Pers. 935-40,1038-77; Supp. 57-72, 112-16;Ag. 705-12; Ch. 423-28; SFOCLES,Aj. 624-34; EURPIDES, Hel. 164-90, Supp.798-801.

    76Segundo Pausnias (loc. cit.), Anfio quem cria a lira de sete cordas, adicionando trs cordas forminge de

    quatro. Uma harmonamanica criada por uma harmonamusical uma imagem interessante, presente tambmnas Fencias (vv. 821-25) de Eurpides: os deuses vm para as bodas de Harmonia, e as muralhas de Tebaserguem-se sozinhas ao som da lira de Anfio. Para outros mitos acerca da introduo do modo ldio na Grcia,

    veja Ateneu (Deipn. 626a).

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    essa ldia grave. Aristteles concorda com alguns musiclogos que critica-ram o Scrates da Repblica (398e) por no ter admitido as harmonai maisfrouxas: por causa de seus tons mais graves, as harmonaiafrouxadas soprprias para os idosos que no so mais capazes de cantar nas harmonaitensas (agudas). Aristteles tambm as julga prprias para as crianas, espe-cialmente a ldia (Pol. 1342):

    h(/ pre/pei tV= tw=n pai/dwn h(liki/v dia\ to\ du/nasqai ko/smon t ) e)/cein a(/ma kai\paideia/n, oi(=on h( ludisti\ fai/netai peponqe/nai ma/lista tw=n a(rmoniw=n.

    a que convm idade das crianas, por ter a capacidade de promover aordem e a educao, mais do que qualquer outra harmona, parece ser a ldia.

    Essa caracterizao pode, talvez, esclarecer a razo do emprego daharmonaldia em algumas odes pindricas, pois a harmonaldia mencionadaem trs odes epincias cujo trao comum o fato de serem dedicadas a crian-as ou adolescentes.

    a)A Dcima-Quarta Ode Olmpica

    A Dcima-Quarta Ode Olmpica celebra a vitria de Espico deOrcomeno na corrida para meninos. No h narrativa mtica nesta odeprocessional, mas o coro louva as Graas que recebiam um famoso culto em

    Orcomeno: com o seu auxlio, advm coisas doces e agradveis (8-9):

    ou)de\ ga\r qeoi\ semna=n Cari/twn a)/terkoirane/ oisin corou\j ou)te\ dai=taj?

    pois nem os deuses, sem as augustas Graas,ordenam coros ou festins

    As Graas que participam da vitria so Aglaia, Eufrosinephilesmolpe(amiga do canto) e Talia erasmolpe(que ama o canto). O coro canta naharmonaldia (18-9):

    Ludw|= ga\r )Asw/picon tro/pw|e)n mele/taij a)ei/dwn e)/molon

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    Pois, no modo ldio, a Espico,em versos cuidados, venho cantar,

    e Eco enviado ao Hades para dar as boas novas ao pai, para contar-lhe queo menino coroou seus cachos com as asas dos jogos gloriosos.

    Bowra77 afirma que nessa ode e na Oitava Ode Nemiapode nohaver paixo, mas h certamente a emoo de um encanto cativante. Comcerteza, as Graas (especialmente a Talia erasmolpe), como espectadoras, estomais do que encantadas com o coro de ps ligeiros (15-18).

    b) A Quarta Ode NemiaO contedo mtico da Quarta Ode Nemiaest associado ilha do

    vencedor. Pndaro narra as aventuras de Tlamon e faz o elogio da raa deAaco, incluindo Ttis, Peleu e Quron. Mas a escolha da harmonaparece terseguido outros critrios. A Quarta Nemia, uma ode processional estrutural-mente semelhante Dcima-Quarta Ode Olmpica78, inicia-se com o louvor sfilhas das Musas (3-4):

    Moisa=n quga/terej a)oidai\ qe/lxan nin a(pto/menaiou)de\ qermo\n u(/dwr to/son ge malqaka\ te/ggeigui=a, to/sson eu)logi/a fo/rmiggi suna/oroj.

    As canes, filhas das Musas, encantam-no pelo toque,

    e nem a gua quente amoleceos membros tanto quanto o elogio acoplado lira.

    Pndaro canta o jovem Timasarco, vencedor na luta dos meninos (44-5):

    e)xu/faine, glukei=a, kai\ to/d ) au)ti/ka, fo/rmigx,Ludi/v su\n a(rmoni/v me/loj pefilhme/non.

    tea j, doce lira,com harmona ldia, cano amvel

    77BOWRA, 1964, p. 391.

    78FARNELL, 1932, p. 264.

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    ) A Oitava Ode NemiaA Oitava Nemia, em que se canta um vencedor de Egina, tambmno revela uma filiao entre a sua harmonae o contedo narrativo: os mitose lendas locais. Mas, Denias um jovem atleta que Pndaro glorifica invo-cando Hora (1-5):

    (/Wra po/tnia, ka/rux )Afrodi/taj a)mbrosia=n filota/twn,a(/te parqenhi/oij pai/dwn t ) e)fi/zoisa glefa/roij,to\n me\n a(me/roij a)na/gkaj cersi\ basta/zeij, e(/teron d ) e(/teraij.a)gapata\ de\ kairou= mh\ planaqe/nta pro\j e)/rgon e(/kastontw=n a)reio/nwn e)rw/twn e)pikratei=n du/nasqai

    Augusta Hora, mensageira dos amores divinos de Afrodite,que, pousando sobre os clios de meninas e meninos,a um, por fora, com mos afveis elevase a outro, fazes o contrrio.Feliz quem, no errando o momento propcio para cada ato, capaz de conquistar os mais nobres amores.

    79

    Ao oferecer sua ode, Pndaro compara-se a um suplicante que trazuma (15-16) Mitra ldia rebordada com clamor,/ pelas duas corridas queDenias e seu pai venceram, um adorno da Grande Nemia. A metforaimplica a harmona, pois, segundo o esclio passagem, Pndaro chama dehino variado (poiklon hmnon) o que est na harmonaldia: a)llhgorikw=n to\npoiki/lon u(/mnon ou(/tw fhsi/n, w(j Ludi/w| a(rmoni/v gegramme/non.A sua oferendano tem a solenidade de uma guirlanda ou de um ramo de oliveira: um lindoadorno (galma) como o que as meninas do Partnio de lcman (fr. 1.67-9PMG)queriam ter para si, e tambm variegado (poiklos), como o que Safo dese-java para a sua filha Clis (fr. 98LP).

    As referncias harmonaldia, nos textos de Pndaro que nos che-garam, encontram-se nestas trs odes para meninos. Embora no haja a indi-cao do emprego de uma outra harmonanas demais odes semelhantes a es-sas, isso no nos garante que todasodes epincias de Pndaro para meninosfossem compostas na harmonaldia. No entanto, nesses trs casos especficos,o seu uso coincide com a opinio de Aristteles (Pol. 1342b) tanto a respeito

    79Para a imagem do amor que vem dos olhos, cf. Teogonia(910-11) e o comentrio de West (1966: 409-10).

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    do carter da harmonaldia, quanto ao fato das harmonaipoderem ser apropri-adas a idades diferentes. Para cantar a vitria desses meninos, Pndaro uniu aharmonaldia ao tom alegre e jovial das odes.80 Um outro fator tambm podeestar relacionado escolha dessa harmona: a Dcima-Quarta Ode Olmpicae aQuarta Ode Nemiaso consideradas odes processionais e formalmente seme-lhantes.81 Portanto, nessas duas odes no apenas o destinatrio, mas tambm aperformancepode ter sido um elemento que contribuiu para a escolha da harmona.

    c) A harmona dricaNo h em Pndaro, pelo menos no que nos restou de sua obra,

    nenhuma referncia explcita harmonadrica.82 Mas, segundo um esclio

    Primeira Ode Olmpica(26g), aparentemente, o poeta a caracterizou com um dostermos que, mais tarde, os tericos do thosmusical usavam para descrev-la:83

    ei)/retai e)n Paia=sino(/ti Dw/rion me/loj semno/tatoj e)/stin

    est dito nos pesque a melodia drica a mais nobre.

    Essa a mais antiga passagem (de que temos notcia) em que aharmonadrica descrita como sendo nobre ou solene se pudermosconfiar no escoliasta.

    *Raras so as indicaes nos poemas antigos das harmonaiespecfi-

    cas empregadas pelos poetas, e se, por um lado, os fatores que parecem deter-

    80A moda, em Lesbos e em Esparta do sculo VII a. C., eram os produtos ldios: A riqueza e o luxo no vestir sofreqentemente atribudos aos ldios, cuja moda era imitada pelos jnios da sia Menor no tempo em queSardes era a capital do reino de Creso (Pearson, 1917. p. 32). Essa reputao ou, pelo menos, a sua memria,sobreviveu at os sculos VI-V a. C., cf. Xenfanes (Ath. Deipn. 526a), squilo (fr. 59) e Sfocles (fr. 45). Pormeio da imagem, Pndaro sugere que sua ode (N. 8) seja comparvel a tais produtos.

    81Cf. FARNELL, 1932, p. 263-264. No certo, porm, que a Oitava Ode Nemiaseja de fato uma ode nemia.

    82Cf. a discusso sobre a lira drica na Primeira Ode Olmpica(17) supra.

    83Em outros poemas, Pndaro refere-se a um ritmo drico (Ol. 3. 5) e a um caminho drico de hinos (fr. 191:

    Ai)oleu\j e)//baine Dwri/an ke/leuqon u(/mnwn). Nesse ltimo caso, a referncia bastante vaga, a aluso podendoser tanto a um estilo musical, a uma melodia, harmona, ou ao ritmo drico. Para os tericos, cf. PSEUDO-PLUTARCO, 1136f, segundo o qual uma das razes pelas quais Plato preferia a harmonadrica era por nelahaver uma gravidade nobre (polu\ to\ semno/n e)n tV= Dwristi/).

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    minar a opo de Pndaro pelas harmonainas odes sejam vrios,

    84

    vimos comoele atribuiu a cadaum carter convencional que, pelo menos nos casos exami-nados, foi compartilhado pelos tericos posteriores.

    Embora esse levantamento oferea uma amostragem de algumasmaneiras com que Pndaro (e outros poetas) pode ter trabalhado as conotaesdas harmonaimusicais em suas composies, no h, evidentemente, comotraar as origens dessas caracterizaes. Se Pndaro contribuiu para a elabora-o dessas convenes, ele no foi o primeiro a faz-lo. Algumas j haviamsido estabelecidas e eram correntes entre poetas do sexto sculo a. C.

    Portanto, embora no se saiba ao certo como e quando os caracteresconvencionais das harmonai foram criados, interessante que as primeiras

    evidncias de sua existncia encontrem-se entre poetas da tradio drica, doPeloponeso e das colnias dricas do oeste: Pratinas, Laso e Pndaro. pro-vvel que a prtica desses poetas/msicos tenha sido divulgada e, posterior-mente, formalizada (talvez um pouco alterada) pelos tericos interessados napaidia musical.

    9. A paidia musicalSegundo Plato (Rep. 399a), a harmonadrica admitida por ele na

    paidia dos guardies, imita as expresses de homens valentes, empenhadosna guerra ou em aes foradas (biaa ergasa). Ela engendra a sobriedade:jovens educados com uma dose certa de ginstica e dessa msica simples

    sero sbrios e valentes, obedecero s leis e no cometero atos injustos(Plato Rep. 410a).Todos, de acordo com Aristteles (Pol. 1342b), concordavam que a

    harmonadrica era, quanto a seu carter, a mais estvel (stasimotte ), viril(andreon) e, formalmente, uma harmona intermediria.85 Em Ateneu (Deipn.624d), Heraclides afirma que a harmona drica no relaxada nem alegre,mas severa e violenta; no variada (poiklos) nem de muitos torneios (poltropos),mas viril (andrdes) e magnfica (megaloprpes). Pseudo-Plutarco (1136e-f) julgaque Plato incluiu a harmonadrica em sua paidia ideal por ela ser solene e

    84As harmonaipodem estar relacionadas ao contedo nar rativo, ser dependentes da escolha do nmos, ou adequadas

    ao destinatrio ou, ainda, ocasio e forma de performance.85Alm de ocupar a posio central no Sistema Perfeito de Aristxeno, a harmonadrica foi eleita como sendo aharmonapadro. Isto , todos os tnoido Sistema Perfeito repetiam o mesmo padro de intervalos (a estruturada harmonadrica) em tons diferentes. Cf. WINNINGTON-INGRAM, 1963, p. 78 e BARKER, 1984, p. 168.

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    um outro mtodo de caracterizao. Ao relacionar a harmona frgia sperformancesdionisacas, Aristteles leva em conta a prtica real de poetas emsicos (delo d ho poesis), o thosde cada harmonaresultando das associaesfeitas entre a msica, a letra, e o modo de performance. O que deve ter sido aforma mais comum e habitual.

    Embora Plato, em certas passagens, faa referncia s carac-terizaes comumente aceitas, possvel que ele tenha recusado as harmonaiextremas (as mais tensas e as mais frouxas), em vista de suas estrutu-ras. Assim, ele teria escolhido as duas harmonaiintermedirias, aquelas queocupariam mais tarde a posio central no Sistema Perfeito dos tnoide Aris-txeno: a harmonadrica bem no centro e a frgia, logo abaixo. Nesse caso,

    poderamos nos perguntar por que Plato teria adotado, alm da harmonadrica, a frgia e no a hipoldia, que tambm ficava no centro, mas acima, eno abaixo da drica.

    Vejamos o contexto maior. Plato dividiu as aes em duas catego-rias opostas (as de guerra e as de paz) e escolheu danas e harmonai pararepresentar essas duas categorias. Uma natureza equilibrada se alcana pormeio de uma educao correta em ginstica e msica. Negligncia na educa-o musical produz uma natureza dura e brutal, negligncia na educao fsi-ca, uma excessivamente tenra e mansa (Plato, Rep. 410b-c). Essa dicotomiafuncional entre a ginstica e a msica, presente na paidia geral, repete-se, porsua vez, na educao musical com as harmonaidrica/frgia, subentendidas

    nesta passagem das Leis(802):

    e)/sti de\ a)mfote/roij me\n a)mfo/tera a)na/gkh kateco/mena a)podido/nai, [ta\ de\tw=n qhleiw=n] au)tw| = tw|= th=j fu/sewj e(kate/rou diafe/ronti, tou/tw| dei= kai\ diasafei=n. to\ dh\ megaloprepe\j ou)=n kai\ to\ pro\jth\n a)ndrei/an r(e/pon a)rrenwpo\n fate/ on ei)=nai, to\ de\ pro\j ko/smion kai\sw=fron ma=llon a)pokli=non qhlugene/steron w(j o)\n paradote/on e)/n te tw|=no/mw| kai\ lo/gw|.

    necessrio [ao legislador] atribuir ambos [harmonae ritmo] a cada um dosdois [tipos de msica] e, o que prprio para as mulheres, pela diferenanatural de cada sexo, tambm preciso esclarecer. Deve-se dizer que, o quetende magnificnciae coragem, masculino

    90e o que tende modstia e

    90Heraclides (Ath. Deipn. 624d) qualifica a harmonadrica com os mesmos adjetivos que, em Plato, caracterizamo que masculino. Cf. PLATO, Rep. 399a-c.

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    temperana, deve ser aceito como feminino, tanto em lei, quanto em discurso.

    Os termos dessa descrio sugerem que, alm da inteno de elimi-nar os modos extremos, o critrio de escolha de Plato poderia estar vincu-lado teoria de thosmusical de Dmon. Aristides (De mus. 2.13) faz referncias harmonai transmitidas por Dmon que, ao caracteriz-las, no levava emconta a prtica musical (como Aristteles) mas as considerava segundo umadistino que fazia entre notas masculinas e femininas:

    e)n gou=n ta=ij u(p au)tou= paradedome/naij tw=n ferome/nwn fqo/ggwn o(te\ me\ntou\j qh/leij, o(te\ de\ tou\j a)/rrenaj e)/stin eu(rei=n h)/toi pleona/zontaj h)\ e)p e)/latton h)\ ou)d) o(/lwj pareilhme/nouj, dh=lon w(j kata\ to\ h)=qoj yuch=j e(ka/sthj

    kai\ a(rmoni/aj crhsimenou/shj.

    Nas harmonai por ele transmitidas, entre as notas produzidas, pode-seencontrar ora as femininas, ora as masculinas prevalecendo, ou sendo inferioresem nmero, ou nem mesmo estando presentes, isso claramente conforme othosda alma de cada uma e da harmonaempregada.

    Se, de acordo com Dmon, as estruturas das harmonaidrica e frgiarevelavam, respectivamente, uma predominncia de notas masculinas e femi-ninas, e se Plato tivesse em mente essa teoria, isso explicaria por que a ca-racterizao da harmona drica feita por Plato coincide com a da prticahabitual e como, ao atribuir caractersticas convencionalmente femininas harmonafrgia, ele diverge dos demais.

    Para Plato, por meio de uma educao na harmonadrica e frgia,unidas harmoniosamente, que a alma se torna sbria e valente (Rep. 410e-411a):

    Kai\ tou= me\n h(rmosme/nou sw/frwn te kai\ a)ndrei/a h( yuch/; Pa/nu ge. Tou= de\ a)narmo/stou deilh\ kai\ a)/groikoj; Kai\ ma/la.

    E dessa harmonano resulta uma alma moderada e corajosa? Absolutamente.

    E da desarmonia, uma covarde e grosseira? Muito mesmo.

    O apego a uma nica harmona o trao de uma alma desequilibra-

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    Essas ltimas duas prticas so, justamente, as de homens em tempo de paz (PLATO, Rep., 399a-d).92 interessante que o argumento de Lques, que recusa as demais harmonai(a jnica, a ldia e a frgia) por noserem gregas, coincide com a definio das harmonaifeita por Heraclides (Ath. Deip. 624d) - noo com aqual Plato, obviamente, no concordaria.

    da, como a de Laques. Quando Laques (195a) questionado acerca da melhorforma de educao, revela-se como um general obtuso, imoderado e incapazde argumentar ou de ensinar.91 Primeiro, Laques rejeita as novas tcnicas decombate s porque no so empregadas pelos lacedemnios, depois, ele afir-ma no tolerar discusses sobre a virtude (ou sobre qualquer outro tema)exceto quando partem de um tipo especfico de homem (Laques188d):

    Kai\ komidV= moi dokei= mousiko\j o( toiou=toj ei)=nai, a(rmoni/an kalli/sthnh(rmosme/noj ou) lu/ran ou)de\ paidia=j o)/rgana, a)lla\ tw|= o)/nti [zh=n h(rmosme/noijou(=] au)to\j au)tou= to\n bi/ on su/mfwnon toi=j lo/goij pro\j ta\ e)/rga, a)tecnw=ja)ll ) ou)k i)asti/. Oi)/omai de\ ou)de\ frugisti\ ou)de\ ludisti/, a)ll ) h(/nper mo/nh

    (Ellhnikh/ e)stin a(rmoni/a.

    Tal homem parece-me ser o msico perfeito: no o que afina a lira ou uminstrumento infantil na mais bela harmona, mas aquele que realmente afina asua prpria vida, as palavras em sinfonia com os atos, apenas na harmonadrica: no na jnia, nem na frgia ou na ldia, mas na nica harmonaque helnica.

    92

    Laques (189b) declara que odeia travar discusses com homens afina-dos na harmonacontrria e que s permite que Scrates fale porque ele jhavia dado provas anteriores de sua coragem. Quando pedem-lhe que definaa coragem, Laques (190e) cr que seja algo muito simples, mas acaba repro-duzindo uma velha frmula. Laques (191-6) nem consegue seguir os argu-mentos de Scrates e, portanto, para dar continuidade ao dilogo, Scratesrecorre a Ncias (197b), um general mais equilibrado e gil, que afirma sertemeridade o que Laques definiu como coragem. Pois Ncias havia sido edu-cado por Dmon, professor tambm de seu filho e que, a seu ver (180d)

    a)ndrw=n carie/staton ou) mo/non th\n mousikh/n, a)lla\ kai\ t ) a)lla o(po/sou bou/leia)/xion sundiatri/bein thlikou/toij neani/skoij.

    o melhor dos homens, no somente na msica mas, tambm, em tudo omais que queiras, valioso para passar o tempo com os jovens desta idade.

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    Laques (197d-e, 200a), ao contrrio, em sua ignorncia, faz poucode Dmon e dos sofistas, julgando que esta forma de educao seja intil.Nos Cavaleiros, Aristfanes ridiculariza Cleo, outro general, por ter

    um gosto suno em msica.93 Quando menino, Cleo no queria, nem eracapaz de aprender outra harmonaseno a drica (Eq. 985-96):

    a)lla\ kai\ to/d ) e)/gwge qau-ma/zw th=j u(omosi/ajau)tou=. fasi\ ga\r au(to\n oi(pai=dej, oi(/ xunefoi/twn,th\n Dwristi\ mo/nhn a)/n a)r-mo/ttesqai qama\ th\n lu/ran,

    a)/llhn d )ou)k e)qe/lein maqei=n.kata to\n kiqaristh\no)rgisqe/nt ) a)pa/gein keleu/-ein, w(j a(rmoni/an o( pai=jou(=toj ou) du/natai maqei=nh)/n mh\ Dwrodokisti/ .

    Mas, sobretudo, admira-me istoda sua musicalidade suna:pois dizem os outrosmeninos, colegas seus,que, apenas na harmonadrica, eleconseguia afinar a lira.

    Outra, no queria aprender.Ento, o mestre de ctara,irado, mandou-o embora:Pois nenhuma outra harmonaeste menino capaz de aprender,seno a dolodrica.

    94

    A comdia foi produzida em 424, quando Esparta queria a paz eCleo, interessado na prolongao da guerra, conseguiu persuadir os ateniensesa imporem condies inaceitveis. Tucdides (3.36) retrata Cleo como o

    93Na Grcia antiga, chamar algum de suno era uma forma comum de insulto por ignorncia, estupidez (Pndaro,

    Ol. 7.90) ou por um comportamento arrogante e insolente (Cf. LSJ). Cf. Laques 196: qualquer suno osaberia (a)/n pa=san u(=j gnoi/h).94

    Dorodokist: trocadlho (repetido no verso 430) de harmonadrica com dorodoko (aceitar suborno) quealude corrupo de Cleo.

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    mais violento dentre os cidados e o de maior influncia sobre o povo.Aristfanes (Eq. 626-29) compara sua oratria a um combate violento. Pro-duto tpico da guerra, Cleo s acredita na fora bruta.95

    Esses dois generais, Laques e Cleo, exemplificam o efeito de umtipo de negligncia na educao musical: a restrio harmona drica. Poroutro lado, tanto a falta de ginstica, quanto a prtica exclusiva da harmonafrgia na msica, produziria uma alma excessivamente delicada e franzina(Plato, Rep. 411a-412a):

    to\n ka/llist )a)/ra mousikV= gumnastikh\n kerannu/nta kai\ metriw/tata tV=yucV= prosfe/ronta, tou=ton o)rqo/tat )a)\n fai=men ei)=nai tele/wj mousikw/tatonkai\ eu)armosto/taton, polu\ ma=llon h)\ to\n ta\j corda\j a)llh/laij xunista/nta.

    Conseqentemente, aquele que melhor misturar ginstica com msica e asaplicar alma na melhor medida, este, o mais corretamente, diramos ser omais perfeito e harmonioso msico, muito mais do que o que afina as cordasumas s outras

    pois a prpria alma, segundo Smias (Fdon86-7),

    w(j h( me\n a(rmoni/a a)o/rtaton kai\ a)sw/maton kai\ pa/gkalo/n ti kai\ qei=o/ne)stin e)n tV= h(rmosme/nV lu/rv.

    como a harmona, invisvel, incorprea, algo muito belo e divino que existe

    na lira harmonizada,

    ao passo que a lira e suas cordas so comparadas aos corpos mortais.A concepo da alma como uma harmonae do corpo como o ins-

    trumento muito antiga e um dos fundamentos do thosmusical. Macrbio aatribuiu a Pitgoras e Filolau e, embora isto possa ser uma inferncia a partirdo Fdon, Smias foi discpulo de Filolau (Fdon61d-e) e tem sido consideradoum dos matemticos pitagricos.96 Scrates (Fdon86c), porm, faz objeo aesta comparao da alma com uma harmona, porque ela entra em conflitocom a sua crena na imortalidade e na transmigrao da alma

    95Cf. GOMME, 1956, II, p. 298 e MURRAY, 1933, p. 48.

    96BURKERT, 1972, p. 92, 198, 272.

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    a(rmoni/a, dh=lon o(/ti, o(/tan calasqV= to\ sw=ma h(mw=n a)me/triwj h)\\ e)pitaqV=u(po\ no/swn kai\ a)/llwn kakw=n, th\n me\n yuch\n a)na/gkh eu)qu\j u(pa/rceia)polwle/nai.

    Pois, se a alma como uma harmona, evidente que, quando nosso corpo excessivamente relaxado ou distendido por doenas, ou por outros males, foroso que a alma logo perea.

    97

    De qualquer forma, na Repblica, a alma harmoniosa freqente-mente descrita em termos musicais. A sophrosne (prudncia), em Plato,tambm cria uma espcie de harmona, estendendo-se tanto pelas partes distin-tas da sociedade (Rep. 432a):

    dia\ pasw=n parecome/nh xuna//dontaj tou/j te a)sqenesta/touj tau)to\n kai\tou\j i)scurota/touj kai\ tou\j me/souj.

    Essa estende-se simplesmente por toda a cidade, fazendo com que todoscantem em unssono, os mais fracos, os mais fortes e os do meio,

    quanto pelas partes da alma tripartite, que harmonizam-se como as trs notas(ou cordas) bsicas da oitava (Rep. 443d):

    w(/sper o(/rouj trei=j a(rmoni/aj a)tecnw=j ne/athj te kai\ u(pa/thj kai\ me/shj,kai\ t a)/lla a)/tta metaxu\ tugca/nei o)/nta.

    como os trs termos [intervalos ou notas] da harmona: o inferior, o superior,o mdio, e todos os demais que estiverem de permeio.

    98

    Assim, a harmona, que, como a cavilha do carpinteiro, ajusta aspartes da alma, da msica, do cosmos, de embries (Hipcrates Vict. 1.2) etoda a vida orgnica, essencialmente a mesma.

    97Cf. Cavaleiros (531-33) de Aristfanes, onde Cratino comparado a uma lira gasta pela idade.

    98O escoliasta interpretou essa harmonacomo sendo formada a partir de duas oitavas o que talvez fosse umatentativa de v-la como a conjuno das harmonaidrica e frgia. LEVIN, 1961, p. 305, identificou essas cordascomo a hpathe hpathon, msee nthe diezdeugmnon. No entanto, podem ser compreendidas simplesmente como

    sendo as cordas bsicas de uma lira de sete cordas:hypthe(parypthe, likhnos)mse(trthe, paranthe)nthe.

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