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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO MISTICISMO E PROTESTANTISMO: UM ESTUDO FENOMENOLÓGICO DAS EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS Patrícia Pazinato Orientador: Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos Tese apresentada à Universidade Metodista de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo 2005

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

MISTICISMO E PROTESTANTISMO: UM ESTUDO FENOMENOLÓGICO DAS EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS

Patrícia Pazinato

Orientador: Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos

Tese apresentada à Universidade Metodista de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Ciências da Religião.

São Bernardo do Campo

2005

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

PATRÍCIA PAZINATO

MISTICISMO E PROTESTANTISMO: UM ESTUDO FENOMENOLÓGICO DAS EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS

São Bernardo do Campo

2005

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A coragem se ser, conhecer, amar Chegar, doar, receber e partir Do divino A fagulha

A pescar na margem me sentei Atrás de mim a árida planície

Porei ao menos ordem em minhas terra ? London Bridge is falling down fallling down falling down

Poi s’ascose nen foco che gli affina Quando fiam uti chelidon – Ó andorinha andorinha

Le Prince d”Aquitaine à la tour abolie Nesses fragmentos apoiei minhas ruínas

Why then Ile fit you. Hieronymo’s mad againe Datta. Dayadhvam. Damyata

Shantih shantih shantih

T.S. Eliot The Wast Land, 1922

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Encontrei ondas contra mim, como se eu fosse um homem morto entre palavras. Campos de cevada inspirados no fogo que batiam nas costas das minhas mãos, aldeias inteiras cantando sua pureza quase louca. Encontrei depois o lugar onde deitar a cabeça e não ser mais ninguém Que saiba. Uma pedra pedra seca, uma vida entre muitos dons. Com raízes de quem divaga. Uma pedra sem som como que se move Sobre os alimentos O Amor em Vista Herberto Helder (1930) Costa e Silva, Alberto e Bueno, Alexei (org.) Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea Rio de Jneiro: Lacerda, 1999, p. 235

Agradecer, Chegar partindo, partir chegando

Pais Filhos

Amigos Professores

Alunos Pacientes

Amores Pessoas ausentes e presentes

Que a letra não alcança Apenas desenha em vida

O amor recebido

Invisível e único

Agradecimentos especiais aos orientadores Dr. Leonildo Silveira Campos Dr. Antônio Govea Mendonça

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Os mestres da caixa miúda

Não abram a caixa miúda

O firmamento pode desabar dentro dela

Não a fechem de modo algum Ela poderá ceifar a perna das calças da eternidade

Não a atirem ao chão

Os ovos do sol poderão espatifar-se dentro dela

Não a lancem ao espaço Os ossos da terra poderão partir-se dentro dela

Não a segurem com as mãos

A massa estelar poderá azedar dentro dela

O que vocês estão fazendo pelo amor de Deus Não a percam de vista

Vasko Popa (1922-1991) Jovanovic, Aleksandar (org.) Céu Vazio 63 poetas eslavos São Paulo: Hucitec, 1996, p.112

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PAZINATO, Patrícia. Misticismo e Protestantismo: um estudo Fenomenológico das Experiências Religiosas. Tese de Doutorado em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2004, 337 p.

RESUMO

A presente tese investiga as manifestações de misticismo no Protestantismo brasileiro, especialmente em seus primórdios, tendo como campo de observação a atividade missionária. Este trabalho registra-se em meio aos estudos que abordam as relações entre cultura, religião e modernidade, principalmente quanto ao campo simbólico. Trata-se de pesquisa exploratória fundamentada no método fenomenológico. Para tanto, utiliza-se a redução fenomenológica e a redução eidética conforme as orientações de Edmund Husserl. Esta tese procura trazer contribuições para esclarecer elementos presentes na construção, transformação e difusão do Protestantismo, considerando a mística protestante como fenômeno religioso. A experiência mística é analisada do ponto de vista individual e coletivo, uma vez que este trabalho privilegia uma perspectiva sociológica em interface com a Psicologia, a Antropologia e, menos centralmente, a Filosofia e a História. Como pesquisa qualitativa e delimitada por seu objeto de estudo, o misticismo pode ser inicialmente apontado como relação direta entre o sagrado e o fiel, reconhecida desta forma individualmente e pelo grupo a que pertence.Tomou-se como referência teórica, entre outros autores, as idéias do sociólogo Roger Bastide, procurando confirmar ou refutar sua hipótese que um dos significados do misticismo pudesse representar a emergência do sagrado selvagem. Esta expressão designa a presença de elementos simbólicos que se manifestam de modo espontâneo ou explosivo nos rituais religiosos. Processos como a secularização e a laicização, decorrentes da institucionalização e modernidade da religião, fazem manifestar o sagrado selvagem, revelando os resíduos das produções sócio -culturais aparentemente ocultas ou mesmo latentes.Os instrumentos utilizados para a realização da pesquisa são trechos de obras literárias características do Protestantismo como A Peregrina e O Peregrino de autoria de John Bunyan, bem como jornais e periódicos evangélicos brasileiros referentes à segunda metade do século XIX: O Estandarte, Puritano e Expositor Cristão, que transmitiam concepções do Puritanismo e do Pietismo. Trechos de diários dos missionários e textos autobiográficos de pastores complementam a análise. O trabalho situa-se historicamente no período antecedente ao da Reforma, seu desenvolvimento e desdobramentos. Priorizaram-se especialmente os movimentos de reavivamento inglês e americano. em suas respectivas influências no imaginário e nas práticas religiosas brasileiras. Após cuidadosa leitura, seleção e organização por unidade de sentido dos dados analisados, firmou-se a hipótese de que a mística protestante é um elemento constitutivo do Protestantismo, representando modalidades de significação social, entre as quais destacam-se as mediações culturais entre: razão/emoção; singularização/institucionalização; fragmentação/unidade; tradição/inovação; e padronização/automia, expressando relações com as formas de poder, mudança social e divergência de interesses sócio-econômicos.Verificou-se a existência, principalmente nas camadas socialmente menos privilegiadas da população, de indícios relevantes de aproximação cultural entre alguns elementos de práticas religiosas do Pentecostalismo vinculadas ao campo simbólico africano e indígena. Sugere-se que novas pesquisas sejam realizadas, revelando os significados das formas de expressão místicas no Protestantismo brasileiro e suas relações com o Pentecostalismo. Essas investigações podem clarificar os processos de justaposição de elementos culturais distintos nas práticas religiosas brasileiras, como afirmados por Roger Bastide, e corroborados por esta pesquisa. Palavras-chave: Misticismo, Fenomenologia, Protestantismo, Sociologia da Religião, Experiência Mística, Missionários.

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PAZINATO, Patricia. Misticism and Protestantism: A Phenomenologic Study of Religious Experiences. Thesis of Doutorado in Sciences of the Religion. São Bernardo do Campo: Metodista University of São Paulo, 2004, 337 p.

SUMMARY

The present thesis investigates the manifestations of mysticism in the Brazilian Protestantism, especially in its origins, having as observation field the activity missionary. This work is registered in the middle of studies that approach the relations between culture, religion and modernity, mainly when related with the symbolic field. It is a exploratory research based on phenomenons´study . For that , it is used phenomenons´ study reduction and the eidética reduction as the orientations of Edmund Husserl. This thesis attempts to bring contributions to clarify elements presents in the construction, transformation and diffusion of the Protestantism, considering the protestant mystic as a religious phenomenon. The mystic experience is analyzed in the individual and collective point of view, once this work privileges a sociological perspective in interface with Psychology, the Anthropology and, less centrally, the Philosophy and History. As qualitative research and delimited by its object of study, the mysticism can initially be pointed as a direct relation between sacred and the loyal , recognized in this manner individually and for the group that belongs. As theoretical reference, among others authors, the ideas of sociologist Roger Bastide were used, confirming or to refuting its hypothesis that argues that one of the meanings of the mysticism could represent the emergency of the sacred savage. This expression assigns the presence of symbolic elements that are manifested in spontaneous or explosive way in the religious rituals. Processes as the secularizing and the laicização, caused by the institutionalization and modernity of the religion, cause the manifestation of sacred savage, showing the residues of the occult or apparently exactly latent social-cultural productions. The instruments used for the accomplishment of the research are stretches of characteristic literary compositions of the Protestantismo as The Pilgrim and the Pilgrim of authorship of John Bunyan, as well as periodicals and Brazilian evangelical periodic to the second half of century XIX: The Standard, Puritan and Christian Expositor, that transmitted conceptions of the Puritanism and the Pietism. Daily autobiographicals text and stretches of the missionaries complement the analysis. The work is placed historically in the antecedent period to the one of the Reformation, its development and unfoldings. The movements of English and American revival had been prioritized especially. in its respective influences in the imaginary and Brazilians religious practical. After careful reading, election and organization for unit of the analyzed data, it was firmed hypothesis that argues that the protestant mystic is a constituent element of the Protestantism, representing modalities of social meaning, among which the cultural mediations are distinguished between: reason /emotion; singularization/institucionalizing; fragmentation/unity; tradiction/inovation; e padronization/autonomy, expressing relations with the forms of power, social change and divergence of social-economic interests. It was verified the existence, mainly in the less privileged social classes of the population, of important ind ication of cultural approach betwen some religious practical elements of the Pentecostalism together whit the African and aboriginal symbolic field. It is suggested that new research could be made, disclosing to the meanings of the mystics forms of expression in the Brazilian Protestantism and its relations with the Pentecostalism. These investigations can clarify the processes of juxtaposition of distinct cultural elements in the Brazilians religious practical, as affirmed by Roger Bastide, and corroborated for this research.

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PAZINATO, Patrícia. Protestantismus und Mystizismus: Eine Phänomenologische Lektüre der Erfahrungs Religiös. Doktorarbeit in Religionswissenschaft. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2004, 337 p.

FAZIT

Die vorliegende Doktorarbeit untersucht die Ausdrucksweisen vom Mystizismus in dem brasilianischen Protestantismus, besonders zu seinem Anfang, und hat als Studienfeld die missionarische Tätigkeit. Diese Arbeit gehört zu den Studien, die die Frage der Beziehungen zwischen Kultur, Religion und Modernität vorbringen, besonders was den symbolischen Bereich betrifft. Es handelt sich um eine auf der phänomenologischen Methode basierte Forschung. Zu diesem Zweck wurde nach Orientierungen von Edmund Husserl auf die phänomenologische und auf die eidetische Reduzierung ergriffen. Diese Arbeit möchte dazu beitragen, die vorhandenen Elemente in der Bildung, Umwandlung und Ausbreitung des Protestantismus in Anbetracht der protestantischen Mystik als religiöses Phänomen aufzuklären. Die mystische Erfahrung wird unter dem individuellen und dem kollektiven Standpunkt analysiert, da diese Arbeit eine soziologische Perspektive im Zusammenhang mit der Psychologie, der Anthropologie und, obwohl nicht im Wesentlichen, noch mit der Philosophie und der Geschichte bevorzugt. Als qualitative Forschung, von ihrem Studienobjekt abgegrenzt, kann der Mystizismus anfangs als eine direkte Beziehung zwischen dem Heiligen und dem Treuen angedeutet werden, auf dieser Weise individuell und von seiner dazugehörenden Gruppe anerkannt. Als theoretischer Bezugspunkt dienten, unter anderen Autoren, die Auffassungen von dem Soziologen Roger Bastide, mit dem Ziel, seine Hypothese, dass eine der Bedeutungen des Mystizismus die Auftauchung des wilden Heiligens darstellen könnte, zu bestätigen oder widerlegen. Dieser Ausdruck bezeichnet die Anwesenheit von symbolischen Elementen, die sich in spontaner oder explosiver Art in religiösen Ritualen äußern. Prozesse wie die Säkularisierung und die Laisierung, die sich von der Institutionalisierung und von der Modernität ableiten, bringen den wilden Heiligen zum Ausdruck und offenbaren den Rückstand von den anscheinend verborgenen oder sogar latenten soziokulturellen Produktionen. Die für die Forschung benutzte Instrumente sind Auszüge von literarischen Werken, die charakteristisch für den Protestantismus sind, wie: A Peregrina und O Peregrino (Die Pilgerin und Der Pilger) von John Bunyan, so wie Zeitungen und brasilianische evangelische Zeitschriften der zweiten Hälfte des 19. Jahrhunderts: O Estandarte (Die Standarte), Puritano (Puritaner) und Expositor Cristão (Ausgestellter Christ), die die Konzepte vom Puritanismus und vom Pietismus weitergaben. Auszüge von Tagebüchern der Missionare und autobiographische Texte von Pfarrern ergänzen die Analyse. Die Arbeit basiert historisch auf der Zeit vor der Reformation, ihrer Entwicklung und ihren Entfaltungen. Besonders bevorzugt werden die englischen und die amerikanischen Auffrischungsbewegungen mit ihren respektiven Einflüssen auf den Imaginären und auf die brasilianischen religiösen Praktiken. Nach sorgfältiger Lektüre, Auswahl und Organisation der analysierten Daten nach Bedeutungseinheiten ließ sich bestätigen, dass die Mystik ein grundlegendes Element des Protestantismus ist und Modalitäten von sozialen Bedeutungen darstellt, unter denen folgende kulturelle Vermittlungen hervorgehoben werden können: Vernunft/Emotion; Singularismus/Institutionalisierung; Teilung/Einheitlichkeit; Tradition/Innovation und Vereinheitlichung/Autonomie, was Beziehungen zwischen den Machtarten, der sozialen Veränderung und den Meinungsverschiedenheiten im sozioökononischem Bereich darstellt.Die Existenz von relevanten Indizen kultureller Annährung zwischen einigen Elementen von religiösen Praktiken des Pentekostalismus, verbunden mit dem afrikanischen und dem einheimischen symbolischen Feld, wurde besonders in den sozioökonomisch niedrigeren Schichten festgestellt. Es werden weitere Forschungen nach dem Sinn der mystischen Ausdrucksweisen des brasilianischen Protestantismus und ihrer Beziehungen zum Pentekostalismus empfohlen. Diese Nachforschungen könnten die Nebeneinanderstellungsprozesse von unterschiedenen kulturellen Elementen in den brasilianischen religiösen Praktiken aufklären, wie von Roger Bastide behauptet und in dieser Foschungsarbeit bestätigt.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................11

CAPÍTULO 1

MISTICISMO: PRIMEIRAS VISADAS.................................................................................41

1.1 Misticismo: Contribuições das Ciências Humanas....................................................48

1.2 Misticismo e Protestantismo .....................................................................................60

1.3 Experiência Mística e Fé............................................................................................78

1.4 Contextos Sócio-Culturais e Misticismo..................................................................89

CAPÍTULO2

MISTICISMOS E PROTESTANTISMOS..............................................................................95

2.1 Idade Média: Misticismo e Imaginário ..................................................................97

2.2 O Misticismo em Lutero.......................................................................................104

2.3 Pietismo.................................................................................................................115

2.4 Os Moravianos......................................................................................................125

2.5 Quietismo..............................................................................................................128

2.6 Calvino: Mística Interior e Transformação do Mundo..........................................131

2.7 Wesley e a Convivência com o Espírito Santo.....................................................141

2.8 A Herança Mística dos Primórdios do Protestantismo.........................................146

CAPÍTULO 3

LITERATURA PROTESTANTE E EXPERIÊNCIA MÍSTICA..........................................151

3.1 Literatura Religiosa e Sociedade..........................................................................151

3.2 A Jornada dos Peregrinos à Cidade Celestial: o Mapa do Protestantismo Rumo

ao Sagrado......................................................................................................................160

3.3 Sonhos, Fé e Imaginação.....................................................................................170

3.4 Misticismo e Protesto Social.................................................................................180

3.5 Graças Místicas....................................................................................................186

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3.6 Personagens e Símbolos.......................................................................................190

3.7 A Guisa de Conclusão..........................................................................................198

CAPÍTULO 4

MISTICISMO: DOS AVIVAMENTOS AO CAMPO MISSIONÁRIO BRASILEIRO.......201

4.1 Contexto Sócio-Histórico e Práticas Missionárias no Brasil do Século XIX.......202

4.2 Avivamentos Americanos e suas Influências na Formação Missionária ..............213

4.3 Mentalidade E Práticas Missionárias No Brasil Do Século XIX..........................224

CAPÍTULO 5

MÍSTICA E EMOÇÃO NO PROTESTANTISMO...............................................................250

5.1 Teorias da Emoção................................................................................................251

5.2 Reavivamento e Emoção.......................................................................................259

5.3 Misticismo, Medo e Pecado no Protestantismo....................................................269

5.4 Misticismo Interior e Misticismo Compartilhado no Protestantismo ...................280

5.5 Rituais Protestantes...............................................................................................289

CONCLUSÃO........................................................................................................................299

BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................315

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Introdução

A presente tese visa explorar manifestações do misticismo e experiências místicas no

campo religioso, desenhado pelo Protestantismo no Brasil, focando de modo mais específico

os primórdios de tal traçado. Objetivou aproximar-se das raízes culturais desse movimento

religioso e suas transformações, considerando-se as discussões das relações entre Religião e

Cultura. Essas relações apontam para uma pluralidade de experiências religiosas nas quais

processos de aproximação/distanciamento, criação/repetição e ligação/ruptura com o campo

simbólico se dão de modo fluido e mutante, possivelmente refletindo a sociedade governada

pelo imperativo da mudança, como nos mostra Danièle Hervieu-Léger (2000). As formas nas

quais se apresentaram os fenômenos religiosos na passagem da Idade Média à Modernidade

conduziram estudiosos do Protestantismo como Dario Paulo Barrera Rivera (1998, p.60) a

pensarem que:

Os fenômenos religiosos contemporâneos possuem uma estrutura e uma dinâmica própria que não são o resíduo de uma época pré-moderna em superação. O estudo dos fenômenos religiosos exige uma crítica séria das teorias da secularização, que não deve ser entendido como extinção da religião e sim como uma recomposição do religioso.

As idéias de Rivera (1998) citadas acima sinalizam a necessidade do pesquisador

manter uma abertura diante das manifestações religiosas. Tal atitude reflete na compreensão

de seus significados, tais como: desencantamento do mundo, direito à liberdade de

consciência, autonomia frente à verdade revelada e decrescentes processos de racionalização,

para que os critérios científicos dominem a esfera do saber. Jean Paul Willaime (2000)

observa que o Protestantismo guarda uma estreita afinidade com o advento do mundo

moderno, a saber: ética do trabalho e do esforço, afirmação do indivíduo e de sua autonomia

em relação aos quadros coletivos e aos magistérios e formação de um etos político-

democrático. Assim esse movimento religioso contribuiu para secularizar e desclericalizar o

cristianismo, conduzindo para a emancipação do indivíduo em sua autonomia temporal.

Comentando sobre as relações entre a modernidade e o Protestantismo, o autor de O

Protestantismo como Objeto Sociológico (2000, p.23) faz notar que há um projeto de

moralização do sujeito e de espiritualização da temporalidade, conforme apontou:

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Se a Reforma tirou o monge do mosteiro, foi para transformar o mundo em mosteiro, povoá- lo de indivíduos consagrados trabalhando para a glória do Criador. Se a Reforma desclericalizou o padre, foi para espiritualizar melhor a família e para fazer cada homem e mulher um evangelista. A afinidade do Protestantismo com a emergência da modernidade tem duas vertentes: a racionalidade econômica e a vocação do homem dedicado, o individualismo e a ética da responsabilidade, a democratização e a educação. (Willaime, 2000. p.23).

Entre os sociólogos que estudam os processos de secularização está Antônio Flávio

Pierucci (1997), que propõe aos pesquisadores dos fenômenos religiosos que se sustentem na

crítica moderna da religião, uma vez que esta apresenta em sua forma histórica, como meio de

dominação e não somente de relação com o sagrado, promovendo a criação de novos

elementos culturais. A característica acima citada parece ser um dos aspectos centrais dos

sociólogos de renome como Roger Bastide (1975) que estudam o misticismo, articulado aos

aspectos ligados à emigração. Observa que as camadas da população sem poder, expropriadas

dos seus espaços simbólicos e instituições religiosas pelo chamado intermediário religioso,

constroem através do misticismo uma espécie de ligação com o sagrado em estado bruto, o

qual foi designou como “sagrado selvagem”. Esse se alimenta do mistério, obscuro, secreto e

impenetrável à razão humana, do enigma. De certo modo, pode-se pensar que, nas práticas

religiosas marcadas pelo misticismo, traços perdidos na constituição de um movimento

religioso podem ser expressos novamente, produzindo efeitos nos modos de ser e de se

relacionar, incluindo as esferas de poder. Tem-se um exemplo desse processo nos escritos de

Bastide (1983) que se referem ao negro brasileiro, proveniente da África, portador de um

universo simbólico próprio e que foi gradativamente “estimulado” a anular o repertório de

valores originais. Considerando-se o Protestantismo, em seu processo de penetração em uma

realidade cultural distinta de sua origem, torna-se interessante observar as peculiaridades dos

processos históricos, sociais e simbólicos pelos quais desenhou e tornou viável sua difusão,

desenvolvimento e permanência no Brasil.

A transmissão dos valores e práticas religiosas da realidade européia, e norte-

americana para a brasileira, conforme ocorrida na cons trução do Protestantismo, ainda esta a

demandar estudos. De acordo com as afirmações de Bastide (in Queiroz, 1983) o negro

brasileiro gerou modos de conservar, ao menos em parte e de forma fragmentada, sua cultura,

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na chamada “tomada de consciência dos resíduos”, criando formas e estruturas religiosas que

se orientavam de maneira diversa conforme o lugar e o momento, alimentando um elemento

de mistério na sua aparição, que fugiu dos controles exercidos pelos discursos religiosos

europeus. Comparativamente é possível pensar que os missionários europeus e americanos

que vieram ao Brasil enfrentaram processos de mudança cultural, quer se pense na

modificação de um espaço simbólico para outro ou se considere os processos de

institucionalização do Protestantismo brasileiro, o que permitiria ao pesquisador observar os

elementos dessa transformação, em seus aspectos inovadores e conservadores. Apoiando-se

em algumas das idéias de Bastide, Antonio Gouvêa Mendonça (2003) traça hipóteses a

respeito do surgimento do misticismo nas sociedades modernas: camadas da população

dominadas e marginalizadas em seu universo simbólico, que tem nas religiões caracterizadas

pelo misticismo a possibilidade de construção e compensação do que lhe é inacessível.

Contextualizando para o Brasil, a partir da segunda metade do século XIX houve

migração significativa da população rural para as cidades. No universo simbólico do homem

do campo, a relação com o sagrado se dá de modo mais direto e sem intermediários, pois a

ligação com a natureza e seus ciclos serve de base a mitos que são representativos desse modo

de viver religioso. Já no meio urbano essa relação não pode ser estabelecida tão diretamente,

criando um hiato entre o sujeito e o sagrado. Aparecem os especialistas religiosos, que fazem

discursos tentando criar a mediação. No entanto, esse processo pode não ser adequado à sua

finalidade, especialmente quando se trata de substituição dos ritos pelo discurso religioso,

gerado nas instituições burocratizadas e racionalizadas. Nesse universo de reações sociais, é

possível supor que o crescimento das religiões ritualísticas, nas quais o misticismo é comum,

está sustentado na tentativa de recuperação do sagrado no seu estado de pureza primitiva,

conforme mostrou Bastide (1975). Assim temos elementos para interpretar o misticismo não

como um fenômeno em si, mas com as peculiaridades com as quais ocorre na sociedade

brasileira.

As Ciências da Religião1 constituíram-se como um campo que instrumentaliza o

pesquisador para observar e estudar fenômenos nos quais os homens produzem sentidos,

1 A cientificidade das Ciências da Religião bem como a discussão que implica a constituição do seu campo de investigação encontra-se referida em artigo de Mendonça (2001, p. 109, 110) que toma como ponto de partida a idéia de que o homem se situa de modo oscilante entre dois planos: o mundo dos deuses e o mundo dos homens. A Sociologia da Religião por si mesma, não pode dar conta de responder a todas as indagações que se tenha a respeito do que é religião e suas manifestações. Para ser possível uma ciência da religião seria necessário

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significados e ordenações na sociedade, que nascem do seu universo cultural de crenças e de

fé. Este texto busca situar-se entre aqueles que exploram a construção da sociedade como

interação entre aspectos da realidade subjetiva e objetiva. Tal proposta adveio das leituras de

sociólogos como Peter Berger (1985, p. 30):

O mundo é construído na consciência do indivíduo pela conversação com os que para ele são significativos. O mundo é mantido como realidade subjetiva pela mesma espécie de conversação, seja com os mesmos interlocutores importantes ou com outros novos. Se essa conversação é rompida, o mundo começa a vacilar a perder sua plausibilidade subjetiva. Por outras palavras, a realidade subjetiva do mundo depende do tênue fio da conversação. A manutenção dessa continuidade é um dos mais importantes imperativos da ordem social.

Nas relações sociais, diversos sistemas articulam lógicas e experiências produtoras de

sentido e, na modernidade, assiste-se a processos de transformação social e mudanças na

mentalidade religiosa que suscitam estudos mais aprofundados e minuciosos por parte dos

cientistas, que objetivam investigar o universo do sagrado e do mistério. As Ciências da

Religião, conforme Mircea Eliade (1992), tomam corpo a partir do século XIX, o que torna

recente, um campo próprio de pesquisa, apontando e estimulando os cientistas a efetuar

investigações que contribuam para ampliar seu conhecimento e precisar seu objeto de estudo.

A religião é considerada inicialmente como um fenômeno característico das

sociedades humanas, em temporalidade histórica e presente, no que estão de acordo as

grandes contribuições teóricas de sociólogos e antropólogos da religião como Marcel Mauss

(1872-1950), Max Weber (1864-1920), Roger Bastide (1898-1974). Os ensinamentos de

Weber nos mostram a eficácia social da experiência religiosa, uma vez que se pode traçar

relações entre a ética do calvinismo e o advento e desenvolvimento do capitalismo, um

aspecto que tangencia este texto tendo em vista seus objetivos e natureza do assunto. Já

Mauss, um dos discípulos de Émile Durkheim2, estudou temas como o sacrifício e a magia,

“determinar um método unificador, um referencial único que perpasse toda área de conhecimento chamada religião e que chame a si as contribuições das ciências que parcialmente delas tratam e as organize num sistema”. Consultar também as idéias de Mendonça (1999) expostas no artigo Fenomenologia da Experiência Religiosa onde traça a perspectiva de superação da multiplicidade acima exposta através de alcance dos “a priori religiosos”, separando-os dos seus elementos contingenciais. Uma reação e discussão dessas idéias pode ser achada no artigo de Lima (2001) que defende a posição de que a religião no caso das ciências sociais ( antropologia e sociologia) é apenas uma via para se compreender as articulações sociais e culturais mais amplas, opondo-se assim a visões “essencialistas”. 2Émile Durkheim (1858-1917) atribui a toda experiência social, desde que fosse plena, uma dimensão propriamente religiosa. “Na medida em que define a religião como a vida levada a

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apontando que o primeiro é um tipo de consagração no qual o objeto passa do domínio do

senso comum ao religioso, promovendo efeitos no sacrificante e na comunidade no qual está

inserido. A magia é vista como um ato transgressor e simultaneamente social, uma vez que é

mantida pela crença de sua eficácia pelo grupo que cria o mágico. Os aspectos sacrificiais da

jornada dos missionários ao Brasil e a magia implicada em suas crenças de transformar a

América em um espaço celeste, são pontos de reflexão nesta tese. Bastide considera que a

religiosidade é uma forma do homem construir sentidos3 para os conflitos sociais, idéias se

aproximadas ao do historiador das religiões Mircea Eliade (1907-1986). Esse último autor

ainda acrescenta uma dimensão existencial aos fenômenos religiosos, vendo-os também como

uma das possibilidades da consciência, em seu movimento de transcendência, saltar sobre si

mesma e perceber-se como consciência religiosa (estrutura). Essa idéia é aceita no campo da

Psicologia por Mauro Amatuzzi (1999), Paulo Giovanetti (1999) e Silvia Ancona Lopez

(1999). Tais autores deixam entrever um campo no qual ind ivíduo e sociedade se relacionam

intimamente, e o misticismo pode ser visto como uma das modalidades de religiosidade que

presentifica esse processo, criando espaços de ordem e de desordem, de vazio e de sentido.

Tempos dentro do tempo e tempo dentro dos tempos, ou seja, formas de transcendência e de

criação diante do ethos social vigente.

De acordo com Paul Johnson (2001), ao se aproximar da Reforma 4, nota-se que havia

a possibilidade de sustentar a idéia de que não podia haver intermediários entre a alma Cristã

e as escrituras. Todos os reformadores desejavam que a Bíblia fosse extensivamente difundida

e estivesse disponível em traduções vernáculas, transformando-se em um escudo contra a

sério, torna-a um componente universal da vida social”, conforme o comentário de (Boudon e Bourricaud, 2000, p. 467). Bronislaaw Malinowski (1884-1942) um autor que faz parte do funcionalismo inglês, valoriza os estudos dos símbolos e ritos, como parte da religião cujo papel tem destaque em sua obra, uma vez que se constituem em elementos das sociedades e obedecem a uma lógica social. Portanto pensar se existe ou não uma lógica para o aparecimento das manifestações místicos no protestantismo, é uma perspectiva de pesquisa interessante. 3 Mendonça (1994) nos clarifica que partimos do pressuposto que uma articulação de crenças recebe o nome de religião, mantendo uma coerência interna entre os princípios que estabelecem este sistema. Religião é, portanto, a aceitação, admissão de um dado sistema de crenças: algo em que um ser humano deposita sua fé, confiança, sendo verdadeiro na medida em que oferece a possibilidade de transitar da própria vida para o sagrado. 4 De acordo com Nicola Abbagnano (1998, p. 839) Reforma refere-se a renovação religiosa ocorrida na Europa durante o século XVI, como retorno às origens do Cristianismo. Foi preparada por Erasmo de Roterdã (1466-1536) e iniciada pelo monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546), que ao afixar nas portas da catedral de Wittenberg as noventa e cinco teses contra a venda das indulgências, traça um marco que abre uma perspectiva ampla de realização dos princípios e lemas do Renascimento.

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opressão institucional religiosa da época. As proibições papais de traduções das escrituras,

bem como de suas interpretações que não fossem autorizadas pela Igreja, tornaram-se

inaceitáveis5. O Protestantismo, embora defendendo posições como a exposta acima, desde

seu início se apresenta como pluralismo, quando se observa o movimento dos reformadores,

entre os quais Zwinglio6, Lutero, Martinho Bucer ou Calvino7. Para citar somente alguma

dessas diferenças, basta lembrar que enquanto o primeiro nome Zwinglio estabelecia através

da “Ceia do Senhor” uma modalidade própria de liturgia, que rompia com as características

medievais, Lutero8 era conservador em sua doutrina e estrutura, sendo visto por alguns como

uma proposta nova de catolicismo. Deste modo já é possível vislumbrar que não se trata de

um movimento homogêneo e que qualquer estudo que se faça em seu interior aponta para

fronteiras amplas e de difícil delimitação, o que justifica o uso do termo no plural.

Os movimentos anteriores à Reforma em sua quase totalidade se caracterizavam por

componentes de luta social e agrária, segundo José J. Chiavenato (2002, p. 321), entre os

quais podem-se citar os hussitas, joaquinitas, irmãos apóstolos, mauricianos, valdenses, que

na Idade Média foram acusados pela igreja de “exagerarem a pobreza evangélica e falsearem

a mística cristã”. A passagem da Idade Média à Modernidade propriamente dita implica em

5 Segundo Paul Johnson (2001, p.329: 334), a partir do século XIII passaram a circular muitas versões vernáculas do Novo Testamento em diversas línguas. Muitos conflitos se deram ao redor do acesso e da distribuição do texto, que passou a ser uma modalidade de distinção da democracia ou não das autoridades religiosas. Na Boêmia, que havia rompido com Roma em 1420, circulavam versões da Bíblia, feitas de modo popular, isto é sem a participação de um censor, nem com impressão de forma monástica. Um elemento importante é a relação entre os reformadores e Erasmo de Roterdan (1466-1536), um dos expoentes do Humanismo. Havia concordância com a necessidade de estudo e leitura da Bíblia. Seguido desse aspecto, estavam as idéias da importância da prática da devoção privada, sobretudo da oração, bem como a rejeição do cristianismo mecânico praticado por meio das indulgências, das privilégios especiais, missas para os mortos, e das peregrinações. Erasmo, porém, discordava dos luteranos e mais tarde dos calvinistas pois acreditava que o homem se salvaria através do conhecimento de Deus, realizado de forma direta e sem intermediação de uma instituição. Em 1524, Erasmo publicou sua obra Discussão do Livre Arbítrio, rejeitando a idéia de predestinação e dando ênfase a capacidade humana de se valer de seus próprios recursos para obter a salvação. 6 Ulrich Zwinglio (1484-1531) foi mais adiante de Lutero na negação das formas religiosas tradicionais, atribuindo ao sacramento da eucaristia o valor apenas simbólico e negando a obediência passiva à autoridade política (Abbagnano, 1989) 7 Calvino (1509-1564) considera o Antigo Testamento como uma das referências centrais aos princípios da Reforma, mostrando ainda que há uma unidade entre essa obra e o Novo Testamento, e que no modo de vida do homem podem ser encontrados os sinais do favorecimento de Deus, e sinal de sua predileção. Esta posição fez teóricos e sociólogos como Weber estabelecerem correlações entre a ética inspiradora do Protestantismo e as atividades exercidas pela burguesia, que faz predominar o sucesso dos negócios através de uma postura racional e pouco sentimental. (Abbagnano, 1898) 8 Segundo Abbagnano (1998, p. 839), Lutero no texto Contra Henrique VIII da Inglaterra (1522) faz contraposição à tradição eclesiástica e a quase todos os rituais praticados por ela, propondo o retorno a palavra direta de Jesus Cristo, conforme se apresenta no Evangelho. Este ensina principalmente a justificação por meio da fé, o que nega a necessidade das obras como técnicas religiosas (ritos, sacrifícios, cerimônias) e também a redução dos sacramentos, afirmando que sua prática só é válida como expressão direta do homem com Deus e, portanto, dispensando a supervisão e a referenda sacerdotal.

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diversos processos sócio-econômicos entre os quais: o crescimento da população urbana em

relação à população rural; a profissionalização dos operários, que se pautavam em satisfazer o

conforto e o prazer das classes privilegiadas; o surgimento de pequenos comerciantes, que

originários das camadas populares viram suas atividades crescerem e começaram a ganhar e

acumular bens. As ciências, artes, cultura cresceram e se ampliaram enquanto conhecimento e

prática acessível aos indivíduos que não pertenciam ao clero ou a nobreza.

Devemos a Alain Touraine (1994) a observação que a religião enquanto fenômeno

social pode explodir e se fragmentar na modernidade sem que seus componentes desapareçam

dentro desse contexto, o que promove o nascimento do sujeito enquanto humano, deixando de

ser elevado a divino, podendo ser definido a partir da razão. Torna-se então possível falar em

termos como subjetividade, personalização, singularidade, pessoal, individual. Ao lado desse

processo, o autor identifica nesse período, o estabelecimento de uma religião privada oposta a

uma vida pública moderna, onde as seitas9, no mundo católico ou protestante, permitem ao

indivíduo a vivência do contato direto com o sagrado e da experiência comunitária da

globalidade, sem intermediações de outros indivíduos, grupos, instituições religiosa, ou

mesmo do Estado. Essa perspectiva oferece um ponto de partida para a aproximação do

fenômeno do misticismo no Protestantismo.

Os esforços para a compreensão do misticismo geraram nos últimos cinqüenta anos

uma quantidade considerável de publicações e estudos, sendo a definição do termo

diversificada de acordo com os autores científicos que sobre ela escrevem, o que aponta de

certo ponto de vista, para a amplitude do assunto e de outro para o estágio de pesquisa onde

ainda ocorrem dificuldades de construção clara de seu objeto, de acordo com as observações

de Gershom Sholem (1972) e Faustino Teixeira (2004). É possível pensar que entre outros

aspectos, ao investigar o misticismo, o cientista se depara com dificuldades e contradições,

provindas da própria natureza do fenômeno que se mostra paradoxal em certas manifestações

9 Para explorar a conceituação e caracterização de diversas seitas uma leitura relevante é Juan Bosch, que escreveu a obra Para Conhecer as Seitas (1995 p. 13,14). Este autor aponta que a raiz etimológica da palavra portuguesa “seita” encontra-se exatamente no verbo latino secare: cortar. Separar, romper com... Ainda pode-se definir a partir do verbo sequi : seguir, optar por. Neste sentido a seita opta por um caminho novo, segue uma inspiração, toma como guia um líder capaz de arrastar atrás de si os mais seletos espíritos. As seitas protestantes são os grupos que não aceitaram firmar o compromisso entre a igreja, a sociedade e a confissão de fé que a sustenta. Geralmente seus membros são alvos de um chamado particular, foram eleitos, o que os fazem sacerdotes universais não necessitando de uma hierarquia, e dando importância ao tipo de experiência religiosa particular. No grupo social, as condutas como testemunhos, o valor profético da palavra extraída do texto religioso, funciona como fator de coesão e unificação.

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como, por exemplo: ocultamento/aparecimento, individual/coletivo, diferenciação/fusão,

mistério/revelação. A descrição da experiência mística já apresenta um conjunto de

dificuldades como mostra Sholem (1972), pois sua natureza ultrapassa o que a linguagem

pode exprimir, quando utilizada de acordo com a padronização científica. Além disso, quando

se estudam as relações entre o criador e criatura, entre o finito e o infinito, que comportam

concepções e experiências subjetivas, existem dificuldades para traçar correlações com outros

fenômenos, um recurso do cientista para se apoiar em modelos que permitam correspondência

entre diversas disciplinas da ciência, para compreender e clarificar certos pontos da pesquisa.

Os estudos comparados sobre o misticismo e os voltados às experiências inter-religiosas,

como a oração, fé, êxtase, sonhos, requerem uma aproximação entre tradições religiosas

diversas, estudos epistemológicos e pesquisa de campo com observações e registros

quantitativos e qualitativos confiáveis, conforme observa Silvia Schwartz (2004). Em outras

palavras, pesquisar e descrever o que o místico vê ou prova não é tarefa muito usual e requer

certa criatividade por parte do cientista, quer nos aspectos referentes à linguagem, quer no que

diz respeito à própria investigação e compreensão do fenômeno em si mesmo.

Scholem (1972) aponta que História geral da religião conhece a experiência

fundamental com o nome de uni mística, ou união mística com Deus. Suas afirmativas se

sustentam nos estudos sobre o misticismo, como os de Jones (1899): Studies in Mystical

Religion, que usa a palavra “mística” para designar o tipo de religião que coloca ênfase na

percepção imediata da relação com Deus, através da consciência íntima e direta da presença

divina. Grasserie e Kreglinger (s/d) observam que pode-se notar diferenças entre as concepção

místicas orientais e ocidentais. As primeiras geralmente se apoiam na “mentalidade religiosa

coletiva”, para a qual a personalidade é um fato não valorizado, quando comparada à

experiência de fusão com a alma cósmica, da qual se originou. O divino, Brahman é

impessoal, e pode manifestar-se nos feitos dos guerreiros, práticas sacerdotais, qualidades do

“homem bom”, sabedoria dos velhos, mas mesmo assim não é visto como atributo pessoal. Já

nas religiões de salvação do ocidente, o coletivismo se abranda, dando espaço ao surgimento

das experiências religiosas personalizadas, na qual o indivíduo não abdica de si tão

freqüentemente, em favor do grupo, mas apoiado na idéia de salvação pessoal, deseja ser

eterno, ultrapassar a morte, e assegurar-se de uma vida mais ditosa no futuro. Assim, oração,

sacrifício, culto, purificação, são experiências relacionais com o sagrado, nas quais a

autonomia e a singularidade do sujeito são afirmadas enquanto modalidades de identidade

religiosa e social. No ocidente, a experiência mística pode representar a individualidade,

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quando comparada ao oriente, no qual o princípio último, da alma, ao contemplar é alcançar o

mundo inteiro. Essa concepção oriental de misticismo se encontra presente de forma mais

direta ou indireta em certos filósofos e teólogos no ocidente. Pode-se citar Pitágoras (séc. VI

a.C.) que ensina ao mundo grego que o corpo não é mais que um túmulo para a alma, sendo

que a virtude é libertar-se dele, para reunir-se em um mundo melhor e espiritual com as almas

puras que desfrutam a felicidade eterna. Em Platão (427-347 a.C.) encontra-se a idéia de que

antes do nascimento e depois da morte a alma se encontra em um estado de contemplação das

idéias imortais. Os gnósticos cristãos acreditam que podem unir-se absolutamente a Deus,

fusionando-se a ele em sua contemplação. Já as especulações neoplatônicas vão encontrar em

Agostinho (354-430 d.C.) e mesmo em Plotino (205-270 d.C.) a concepção teológica e

filosófica da mística ocidental, segundo a qual, Deus não está fora do homem, mas em seu

interior, sendo acessível ao fiel, em atitudes de adoração, e pensamento, na qual a

comunicação é direta. A visão do misticismo como experiência íntima do sujeito com a

divindade, também é a idéia de Tomás de Aquino, (1225-1274). Em certos espectros da

história da Idade Média, se encontram, por exemplo, as idéias de João Scotus (segunda década

do século IX - 870?) que remontam a teologia de Dionísio Aeropagita, para quem existe: a

primeira natureza que cria é não é criada que é Deus e a segunda natureza, que é criada e

cria sendo as causas primeiras ou os arquétipos da tradição Platônica. Essa natureza aparece

como conseqüência da queda do homem através do pecado. A experiência mística é o retorno

do homem ao estado matriz, com sua absorção em Deus, conforme a visão de João Scotus.

De outro ponto de observação cultural, a mística islâmica proveniente dos primeiros

séculos comporta movimentos ascéticos que tiveram difusão no ocidente. A forma mais antiga

de sufism (cujo nome se refere à roupa de lã – suf - usada pelos que praticantes da ascese) é

praticada não como fim em si mesmo, mas como meio de alcançar experiências interiores de

união direta com a divindade. Sua proposta consistia em um caminho místico, composto por

vários e sucessivos estágios. Um dos passos desse percurso consistia no arrependimento,

seguidos pela paciência, gratidão, esperança e temor. Posteriormente seguiam a pobreza,

continência, confiança, satisfação e pensamento de morte. Finalmente surgiam o amor e a

gnosis que conduziam à contemplação de Deus como meta última. A sede de amor é vista

como desencadeante da busca, sustentação e “finalização” do caminho. A concepção do

caminho, percurso, jornada, não é linear ou cronológica, consistindo muito mais em

experiências emocionais e relacionais pelas quais passava o indivíduo. A Unidade de Deus,

desse ponto de vista é a unidade do universo, conduzindo algumas vertentes desse movimento

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ao panteísmo. Comparativamente ao cristianismo, pode-se encontrar a idéia do caminho,

enquanto peregrinação do fiel, para o mundo celeste, bem como os estados emocionais, vistos

como provas ou ritos de purificação. Outro aspecto que permite comparação é que para a

mística islâmica existe o espírito e a alma do universo, correspondendo de certo modo ao

paraíso e ao inferno cristãos. Essas forças tanto em um sistema cultural como em outro se

encontram em conflito e se combatem mutuamente, devendo o místico atravessá- las para

alcançar a relação direta com a divindade. A música também ocupa papel de ligação entre o

homem e a divindade nas duas culturas, constituindo-se como um elo que permite as

vivências de desprendimento, nostalgia, alegria, irradiação, indicando o tesouro interior, que

as passagens ou portas ritualísticas podem abrir ou deixar patentes.

O estudo da mística comparada é um recurso que sensibilizou a pesquisadora, para

vários aspectos da experiência mística protestante, embora não fosse seu objeto de estudo. São

citados alguns desses exemplos que permitem aproximação posterior do fenômeno religioso

visado. O místico sírio Isaac de Nínive constata que a alma purificada contempla em si

mesma as belezas celestiais, o mesmo que um espelho preciso faz. Desse modo, os sonhos e

as visões místicas são pensadas como essa experiência de contemplação do mundo

sobrenatural, que o ser humano pode vislumbrar em si, afirma Vindengren (1976). O

espelhamento entre o homem e o divino, aparece em processos milenarista. Da perspectiva de

Jean Delumeau (1997) o milenarismo é a espera de um reino deste mundo, que é uma espécie

de paraíso terrestre reencontrado, relacionado de forma estreita a idéia de uma idade do ouro

perdida. Há em geral uma ligação entre febres milenaristas e grupos sociais em crise. Os

autores dos movimentos escatológicos são freqüentemente pessoas marginalizadas,

desenraizadas ou colonizadas que aspiram a um mundo de igualdade e comunidade, posto

enquanto perspectiva temporal.

A dificuldade de comunicação e descrição da experiência mística foi observada pela

pesquisadora na escuta de pacientes em atendimento psicológico realizadas em instituições

hospitalares, consultório e supervisões de estágio, nas quais as pessoas freqüentemente se

referiam à experiência religiosa como um elemento relevante em suas vidas. Tal vivência

parecia associada à esperança de poder mudar um estado de sofrimento, relatando ser a fé e a

experiência religiosa integrantes dos elementos necessários para efetuar tal movimento, cuja

fonte não era só pessoal, ou relacional, mas atribuída ao contato com uma força transcendente.

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Alguns relatos se referiam a estados de graça, que forma ou seriam vivenciados como

componente fundamental da vida e do encontro com Deus.

Os depoimentos de pacientes continham referências a experiências de encontro com o

transcendente através de: luz, sentimento profundo e intenso de religiosidade, ser possuído

por um aspecto da divindade, fazer contato diretamente com ela. Independente de estarem ou

não filiados a uma instituição religiosa, os pacientes mencionavam esse tipo de dado,

especialmente quando se explorava durante as consultas, que possíveis recursos uma pessoa

podia usar para alcançar ou manter seu bem estar, visto que se encontrava em uma situação

onde a desordem e o vazio de sentido se faziam sentir. Interessante a observação que não se

estabelecia distinção entre bem estar psíquico e bem estar religioso. Isto indicava que poderia

haver uma região da existência em que as demandas convergiam ou se aproximavam, isto é,

experiência emocional e experiência religiosa se interpenetravam Iniciou-se assim uma

exploração informal que visou clarificar tal interseção, partindo do pressuposto que isso fosse

uma relação possível. Nessa direção encontram-se pesquisas que partindo da interface entre as

ciências humanas apontam que o homem vive crises e interrogações frente às instituições

produtoras de sentido para sua existência, tornado patente a importância de se investigar o que

ocorre nesse processo, entre as quais podemos citar José Queiroz (et. al, 1996) e Danièle

Hervieu-Léger (1990).

Algumas pessoas escutadas pela pesquisadora se referiam aos cultos e rituais

religiosos protestantes como possibilidades de se experimentar essa espécie de estado, porém

o que distinguiam claramente é que a vivência era pessoal e única, dizendo ser a mediação

religiosa apenas um estímulo para se alcançar o objetivo. Assim, partiu-se da idéia que se

tratava de uma experiência religiosa, cujo elemento central, seria o encontro com a divindade,

ou a produção de uma experiência religiosa, na qual o estado alcançado, relacionava-se à

mudança e esperança, sem que se tivesse atribuído relevância à instituição religiosa como

promotora desse estado religioso. Esse tipo de relato conduziu à observação de

comportamentos apresentados em cultos e comemorações religiosas, na tentativa de ampliar

os dados provindos de relatos de atendimentos psicológico, nos quais a experiência com o

sagrado parecia representar um fenômeno de intensidade afetiva significativa, relacionado a

um contato mais direto com a divindade. Tal atitude da pesquisadora, que se dava de modo

espontâneo e não sistemático, permitiu observar nos gestos, na convivência com o outro,

sinais do que se pode chamar de êxtase religioso, ou expressões como :

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“Tive um encontro especial com Deus” “(...) Ninguém me conhece mais do que Deus”, ou “(...) ainda bem que Deus existe, pois nunca me sinto sozinho: eu e Deus às vezes nos tornamos um só” “(...) Sou parte dele e ele é parte de mim Acontece algumas vezes no culto de eu ter um momento especial e de me sentir muito perto dele” “(...) Não preciso de ninguém que me conduza ao encontro dele. É só ler a Bíblia que logo acontece: me sinto nas alturas e logo passa, se você escuta o pastor não o que ele diz, mas as palavras da Bíblia, uma porta se abre e vê vai direto lá em cima” “(...) Meu pastor é mesmo especial, parece que uma luz o ilumina e ele sempre tem uma palavra para me dizer” “(...) Quando estou com meu irmão e leio a Bíblia parece um momento especial, no qual Deus fala comigo, ou através de mim” “(...) Não sei dizer ou que meu pai, ou minha mãe sentem quando vem ao culto, mais sei que alguma coisa muda, pois tudo que é complicado parece mais fácil. Isso nos une. Nós mudamos todos. Não conversamos sobre isso, mas é uma coisa natural ““ (...) A escola dominical, para mim que era professora, sempre foi uma forma de me sentir iluminada. Um dia uma amiga me disse: apesar de não haver pastoras na igreja, a gente sente quando uma mulher tem vocação. Isso não depende de sexo. É uma graça e ponto“.

Inicialmente, a pesquisadora nomeou de experiência mística as manifestações acima

descritas, empreendendo esforços para definir e compreendê- las, já que se transformaram no

ponto de indagação e construção do objeto de pesquisa. Trata-se, sobretudo, de considerar os

fenômenos religiosos como componentes do modo de ser do homem, característico de todas

as sociedades humanas, o que lhes confere uma abrangência que ultrapassa a sociologia da

religião, ponto de partida dessa pesquisa. Diante disso, primeiramente tem-se a esclarecer que

o interesse que se delineia é pensar de que se trata de visar o misticismo enquanto experiência

religiosa10, o que encaminha para um estudo fenomenológico visando voltar-se às coisas

mesmas, seguindo as orientações de Edmund Husserl (1859-1938) Busca-se ir descrevendo a

experiência mística na condição de sua revelação em sua natureza, isso é por si só. Indaga-se

inicialmente sobre a natureza, uma experiência religiosa mística e suas manifestações no

movimento protestante, buscando seus significados. As visadas das Ciências da Religião são

um movimento auxiliar na compreensão do misticismo, a partir da ampliação de seus sentidos

iniciais, em uma perspectiva mais totalizante do fenômeno religioso.

Este trabalho visa contribuir para as discussões sobre religião e modernidade, partindo

do ponto de vista do estudo das manifestações do misticismo ocorridas nas sociedades

10 José Paulo Giovanetti (1999, p 93:95) define experiência religiosa, distingüindo-a de vivência religiosa. “A experiência religiosa, no momento em que surge a interrogação mais profunda do ser humano, está presente em todo homem, independente desse homem estar ligado a algum credo ou não. Ele é constitutiva do ser humano, embora possa não ser vivenciada devido ao tipo de vida que a pessoa leva, isto é, uma vida mais articulada a superficialidade, sem se interiorizar sobre as expressões de sentido existencial da existência”.. a vivência tem um caráter imediato onde o vivido e o apreendido se confundem, onde há uma ressonância interna de uma experiência afetiva, muitas vezes intensa. Já a experiência se trata de um fenômeno humano mais integrado onde a consciência se movimenta em suas diversas funções, não apenas numa percepção propriamente dos afetos, mas faz uso das capacidades intelectuais e simbólicas, criando a possibilidade de gerar elementos que servem a atitudes reflexivas e construções criativas de sentidos. Pode-se então pensar que uma experiência uma vez movimentando-se em conhecimento permite uma expressão diversificada do seu gesto, que pode ser resignificado muitas vezes, pois se trata de uma abertura do ser.

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marcadas pelo advento da razão como prática de idéias e condutas nas relações humanas e na

cultura. Advento que não significa exclusão de outras modalidades como a emoção, sensação,

magia, e sim a convivência entre essas ou outras formas psicossociais e expressão religiosa,

em modalidades de justaposição, conflito ou interpenetração. Compreender o que é

modernidade é um objetivo visado por diversos especialistas das Ciências Humanas e Sociais.

Os sociólogos, por exemplo, tendo em vista a diversidade dos processos sociais implicados

em sua construção e transformação, necessitam estudar cada vez mais essa temática de forma

crítica. Alain Touraine (1994) escreve que a idéia mais ambiciosa sobre a modernidade é

calcada na afirmação que o homem é o que ele faz. Essa idéia implica em uma

correspondência cada vez mais estreita entre a produção mantida pela ciência, tecnologia,

administração, organização social, burocratização e a vontade cada vez maior de se libertar de

todas as opressões geradas através desses processos. Mesmo a razão prometendo que o

homem poderia caminhar em direção à abundância, liberdade e felicidade, fracassou. Pois não

foi bem isso que se assistiu durante os últimos quatro séculos, levando os críticos da

modernidade a enfatizarem os efeitos nefastos da ideologia, desigualdades do consumo

desenfreado, controles excessivos dos Estados11 modernos, da comunicação padronizada e

massificante, da construção dos regimes totalitários, para citar somente alguns elementos

contidos nos discursos do sociólogo. Nas palavras do autor:

A modernidade rompeu o mundo sagrado, que era ao mesmo tempo natural e divino, transparente à razão, e criado. Ela não o substituiu pelo mundo da razão e da secularização devolvendo os fins últimos para um mundo que o homem não pudesse mais atingir: ela impôs a separação de um Sujeito descido do céu à terra, humanizado, do mundo dos objetos manipulados pelas técnicas. Ela substituiu a unidade de um mundo criado pela vontade divina, a Razão ou a História, pela dualidade da racionalização e da subjetivação”. (Touraine, 1994, p.12)

A modernidade trouxe a questão da secularização, como um processo amplamente

discutido pelos teóricos das Ciências Sociais, entre eles Antony Giddens (1991) para o qual

este fenômeno implica em estudos de processos ligados à temporalidade. Desse modo,

11 Carneiro em artigo apresentado na VIII Jornada sobre alternativas religiosas na América Latina, tece considerações sobre as Trajetórias Espirituais Enquanto Projeto de Modernidade, apontando que a adesão a um universo mistico-religioso representaria uma alternativa a determinados setores sociais, particularmente as camadas médias que se defrontam com conflitos sociais vistos por elas como insolúveis, especialmente considerando-se que está de acordo com a idéia de que a quebra do monopólio de um Estado religioso implicou no surgimento e na expansão das particularidades religiosas. Diversidade de mercado e de bens de consumo religioso se correspondem, enquanto promotores de práticas pluralistas. A autora salienta ainda estar de acordo com as idéias de Lisias Negrão (1997, p. 73) de que no contexto brasileiro, a pluralidade de experiências religiosas pode ser visto como um comportamento comum em decorrência da formação histórica de seu campo religioso, desde o início já se mostrando com raízes diversas.

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compreende-se como alta-modernidade um período de expansão da modernidade, no qual

suas características estariam tornando-se mais marcadas e universalizantes, sendo a

reflexividade um dos seus marcos. Com a freqüência das mudanças gera-se mais insegurança

e riscos o que conduziria o homem a buscar novos significados e representações de

identidade, entre os quais a teodicéia. O paradigma evolucionista e iluminista, que estiveram

muito presentes no início da modernidade, têm força decrescente ou então encontram novas

formas de manifestação. Estes são aspectos que merecem maior investigação. Assim torna-se

importante pensar como as formas de misticismo podem aparecer revestidas dos valores

culturais de uma dessas etapas, ora carregadas de elementos do evolucionismo e do

iluminismo, ora apontando e antecipando os processos representativos da alta-modernidade,

ou mesmo mantendo significados relacionados à Idade Média. O estudo do misticismo no

Protestantismo brasileiro foi empreendido inicialmente por Mendonça (1998), que afirma

serem necessários esforços contínuos para abranger outros aspectos destas pesquisas.

As mudanças sócio-culturais são vistas pelo homem como risco de processos de

desorganização social e caos. O papel da religião como produto da atividade humana é criar

um cosmos sagrado que resista às forças do caos. Esta ordem tende a atingir dimensões mais

abrangentes, uma vez que as forças desorganizadoras são consideráveis, como por exemplo,

questionamentos sobre a realidade, a precariedade da existência social, conforme apontadas

por Peter Beger em sua obra O Dossel Sagrado (1985). Ao discutir a sociedade moderna e sua

relação com o sobrenatural, esse autor defende que a pluralidade religiosa é um fenômeno

relevante na esfera social diante da secularização12. Revestida das mais diversas formas, a

religião mantém sua função de criar plausibilidade para as questões da existência, mesmo que

a sociedade se torne mais e mais secularizada. As forças de secularização interagem com as

forças contrárias produzindo tanto nas sociedades industrializadas avançadas, como nos

primórdios da modernidade um jogo de formas religiosas visíveis aos estudiosos.

De acordo com Rivera (2000), a importância da relação entre racionalidade,

secularização e religião podem ser observadas a partir dos textos de Max Weber que se

orientam ao Protestantismo. Nessa perspectiva, o racionalismo é um conceito histórico que

envolve um conjunto de contradições, cujas investigações implicam a idéia de profissão e

12 De forma resumida, o conceito de secularização de Berger, embora apresente certas variações ao longo de suas obras, inclui dois processos sociais fundamentais: 1) autonomia em relação à autoridade religiosa e 2) restrição do universo simbólico e suas práticas relacionadas a essa autoridade mediadora das relações com o sagrado.

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dedicação abnegada ao trabalho, que estão presentes na Reforma, manifestando-se através de

distintas formas de piedade nas igrejas que as propagam. Há a presença da racionalidade que

se presentifica no seu sentido prático e instrumental, nas operações relacionadas ao trabalho,

mas adquire também outro sentido extra-econômico, ou extra-mundano, quando o agir

religioso passa a se orientar diretamente por formas de conhecimento e explicações

intelectuais de mundo, tornando-se assim irracional. Há, portanto, paradoxos no

Protestantismo entre a racionalidade e a irracionalidade, necessitando de investigações que

descortinem as formas e forças sociais aí implicadas.

As discussões das relações entre modernidade e secularização são amplamente

realizadas por Stefano Martelli13 (1995, p. 467), que defende que os sociólogos da religião

saiam de esquemas interpretativos dominados pela racionalidade instrumental e considerem

aspectos “da consciência pessoal, a formação de relações intersubjetivas a partir de processos

baseados na empatia, na confiança, na confidência, no amor”, uma vez que se considerem

seus efeitos no plano macro-sociológico.

A aproximação dos conceitos de modernidade14 já permite vislumbrar que as práticas

religiosas indicam a crescente autonomia do fiel em relação à autoridade e a instituição

religiosa, que as considera legítimas, mesmo com a discordância do poder religioso instituído.

Pode-se observar a aceleração do movimento nas práticas, experiências religiosas e crenças,

conduzindo a dificuldades nas tentativas de condutas homogeneizantes. Neste sentido, as

instituições católicas, que ideologicamente veiculavam a idéia de universalidade do seu

campo simbólico, se viram diante de questionamentos e perda de poder. As verdades

religiosas não mais tinham sentido para todos com o advento da modernidade. A autoridade

13 Para distinção de posições, conceitos e discussões das relações entre modernidade e secularização ver a obra de Stefano Martelli A religião na Sociedade Pós-Moderna (1995 p. 436-437), onde cita entre outros, estudiosos como Hervieu-Léger para quem a secularização seria uma atividade permanente da religião no sentido de reorganizar o mundo simbólico em uma sociedade estruturalmente impotente para oferecer respostas satisfatórias diante das dificuldades da existência. Já Vattimo atribui a secularização a retomada de processos simbólicos, como os que ligam a civilização profana às suas raízes judaico-cristãs, em um processo de conservação-distorção-esvaziamento. 14 Pode-citar o historiador Jean-Pierre Bastian com sua obra Protestantismos y Modernidad Latinoamericana, (1994), que estuda aspectos relacionados a demo cracia, a imigração as mutações do protestantismo latino-americano, os estilos de autoridade e mecanismos de dominação institucional, e que merece ser objeto de reflexão em outras etapas desse trabalho. Cipriani, Eleta e Neste (2000) fizeram estudos sobre a identidade e mudança na religiosidade latino-americana, enfocando os estudos e pesquisas dos sociólogos da religião neste continente. Há ainda a obra de Klaas Woortmann (1997) versando sobre religião e ciência no renascimento, tratando aspectos do mistic ismo e da reforma.

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religiosa passa a ser questionável e seu projeto de Paraíso, ve iculado à humanidade, sofre

mutações no imaginário coletivo, transformado em sua referência territorial e temporal.

Do ponto de vista de Urbano Zilles (1993), a modernidade modificou a mentalidade

humana do ocidente, anulando certas convicções do passado, e enfraqueceu os critérios de

vida e de julgamento moral, que eram parametrados na religião e forneciam ao mundo uma

orientação segura. Com isso, o homem moderno passa a viver com o um sentimento de um

mundo a deriva, sem rumo, caracterizado pela anarquia do pensamento. O mundo cinde-se

entre a lógica sistêmica e a experiência vivida. Na primeira, impera e atua a racionalidade

instrumental e técnica, na segunda, a liberdade subjetiva. Assim, a vida passa a ser

racionalizada e o relógio divide o tempo em ações rigorosamente medíveis, para que se possa

produzir em séries. Do ponto de vista do conhecimento, a razão passa a ser o modo de

iluminar, ilustrar e esclarecer, combatendo as trevas e o obscurantismo. Nessa perspectiva, o

homem é um ser capaz de modificar o mundo e a si mesmo, sendo o senhor do seu destino e

relativizando o poder da providência divina para fazê-lo. As influências no cristianismo se

fazem sentir em vários aspectos: busca-se a elucidação dos mistérios, opondo o deísmo à

revelação cristã. A tradição não vale por sua antiguidade, mas por ser criticamente justificada

pela razão.Para o Iluminismo, o homem não é decaído devido ao pecado, mas é decaído

devido às más leis, superstição religiosa e astúcia dos frades e padres, que ocupam um espaço

que cabe à ciência tomar.

Seguindo o curso das idéias acima expostas é possível pensar que o Protestantismo fez

uso da racionalidade como uma das formas de construção de sua tradição. Ora, essa tem por

finalidade constituir a identidade de um universo simbólico religioso, ora regular e legitimar o

poder religioso, que determina as verdades de suas práticas religiosas e sua reprodução.

Embora o Protestantismo proponha uma doutrina da salvação individual, e contrarie qualquer

forma de salvação coletiva, sua institucionalização exigiu formas mais padronizadas de

comportamento religioso, levando assim a contradições no interior de seu movimento. É

possível que as práticas místicas no Protestantismo sejam representantes dessas contradições,

se alimentem delas, ou ainda subsistam apesar delas, cumprindo funções religiosas pouco

visíveis ao olhar da instituição. Essas idéias são pontos de partida para a pesquisadora e serão

retomadas posteriormente.

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Há ainda dentro do projeto do Protestantismo a relação com o texto sagrado e a

literatura que serve de suporte à sua difusão. Segundo Rivera (2000), a tradução do texto já

requer uma escolha interpretativa. A leitura autônoma do fiel, já seculariza o leitor. Deixa de

ser um texto misterioso e passa a ser mais acessível e mundano. A leitura pode ser mais

alegórica e simbólica, ou mesmo mais racional, histórica, lógica. O leitor pode fazer dela um

símbolo, um ideal comportamental no mundo, criando modelos de “sacralização” ou

“dessacralização” do cotidiano, construir rituais de leitura e de eficácia da mensagem, ou pode

ainda banalizar o dito, tornando a divindade um ente próximo, e não mais distante e universal.

A modernidade dentro de seu movimento de quebra de paradigmas religiosos institui a

individualidade como uma de suas máximas. Com esse projeto, há que se pensar que a

pluralidade da experiência religiosa já está na base de construção de movimentos religiosos e

se estende à leitura, mesmo que as crenças aparentemente as articulem ilusoriamente como

significados universais. Considerar essas possibilidades quando se discute as formas místicas

aponta para diversidade de suas manifestações em um movimento religioso e suscita um

método científico que acompanhe seu estudo, sem a pretensão de qualquer universalidade do

conhecimento.

Dito de outro modo: as leituras da modernidade conduzem a uma visão da religião a

partir de sua mutabilidade. O movimento passa a ser um paradigma para o pesquisador, que

tem que observar: 1) os processos de desregulação do religioso, isto é a perda da instituição

para reger a dinâmica dos processos religioso; 2) os processos de singularização do sujeito

religioso, que tem o direito de fazer suas escolhas e oferecer à sua experiência religiosa um

sentido próprio; 3) crise das tradições religiosas, que lutam para se sustentar; 4) criação-

transformação de modalidades de experiência religiosa, que mesmo não reconhecidas como

relevantes para o Protestantismo, são significativas para sua constituição, propagação,

expressão e manutenção.

Considerando as idéias expostas até o presente momento, observa-se que os estudos do

Protestantismo ainda demandam maiores esforços, especialmente no que tange as

possibilidades de experiências religiosas que não se encontram dentro dos padrões mais

reconhecidos pelas instituições que compõem seu espectro, como o misticismo. Não foram

encontradas nas Universidades consultadas pesquisas ou teses que versassem diretamente

sobre o tema aqui pesquisado. Em relação aos estudos do Protestantismo no Brasil são

notáveis as obras de: Emile Léonard (s/d., 1988), Ruben Alves (1979), Duncan Reily (1993),

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Antônio G. Mendonça (1995); Mendonça e Velásquez Filho (1990), que se dedicaram a

investigar esse movimento desde suas origens, difusão, propagação e dinâmica na realidade

social, econômica, cultural e simbólica, contribuindo de forma significativa para iluminar as

pesquisas que buscam compreender esse campo. Os aspectos e problemas abordados pela

pesquisadora no que tange ao misticismo não são investigados por esses autores, embora

muitas vezes se reconheça esse elemento como um traço que pode se manifestar no

Protestantismo, especialmente observado por Mendonça (1995)

O misticismo tem sido visto pelos pesquisadores mais como um fenômeno individual

do que social, embora reconheçam que práticas e manifestações religiosas místicas ocorram

em universos simbólicos que são socialmente e historicamente delimitados. A atitude

científica de Roger Bastide (1931, 1934, 1974,1975), bem como as pesquisas e conceitos de

Max Weber (1969,1982), Peter Berger (1985,1996), Berger e Luckmann (1999), Henri

Desroche (1955) entre outros, fornecem indícios preciosos, considerando-se a idéia de que

existe uma estrita relação entre a objetividade e a subjetividade humana. Em outras palavras,

que o plano social e o individual são dimensões da existência humana que possuem pontos de

correspondência e de sustentação mútua.

Ao ver da pesquisadora, a literatura protestante que contribuiu para constituição e

difusão desse movimento pode conter idéias, metáforas e expressões indicativas das

modalidades místicas manifestas nas práticas religiosas que influenciaram a formação da

mentalidade de seus membros. Para estudo dessa literatura serão utilizados trechos de obras

literárias como O Peregrino e A Peregrina de autoria de John Bunyan. A escolha de tal obra

se dá pela freqüência de sua leitura entre os adeptos do movimento Protestante, constituindo-

se provavelmente como uma das fontes de divulgação das idéias relevantes da época. Serão

utilizados para análise outros instrumentos como jornais e periódicos da imprensa evangélica

que foram fundados e circularam após a chegada dos missionários protestantes no Brasil.

Foram selecionados para análise trechos dos jornais: Imprensa Evangélica, Estandarte,

Puritano e Expositor Cristão, bem como trechos de hinos considerados como representativos

do imaginário social da época.

Visa-se contribuir para clarificar o universo das relações sociais e culturais do

movimento protestante no Brasil, bem como exercitar as leituras interdisciplinares que as

Ciências da Religião sugerem na própria constituição de seu campo e objeto de estudo.

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Analisando as manifestações e expressões místicas à luz do modelo teórico formulado por

Roger Bastide, visou-se sua compreensão com criatividade e originalidade. A psicologia

ofereceu elementos para compreensão de fenômenos como emoção, símbolo, mito, percepção,

linguagem. A sociologia permitiu penetrar as relações sociais e humanas apontando as forças

sociais e culturais que as produzem, sustentam e transformam. A antropologia contribuiu para

se perscrutar o significado das práticas e manifestações sociais específicas de um grupo ou

movimentos religiosos. As relações entre essas ciências permitiu aproximações e descobertas

e um fenômeno tal qual ele se dá em si mesmo. Levantar dados e relações através de um giro

multifacetado sobre um fenômeno é uma prática científica que exercita o pesquisador através

da quebra de preconceitos e amplia sua percepção sobre a natureza mesma do fenômeno.

Analisando a expressão simbólica contida na literatura, estudos da identidade social dos

membros de um movimento religioso e as relações entre indivíduo-sociedade-cultura tendem

a se clarificar. Aspectos que não foram ainda objeto de estudo ou ocuparam apenas um lugar

irrelevante como é o caso do misticismo no Protestantismo, podem traçar perspectivas e idéias

novas sobre as relações entre cultura-sociedade, religião-modernidade, indivíduo-coletivo,

significado-aparência, forma-essência, rituais-espontaneidade, como elementos das práticas

religiosas e das relações sociais.

A pesquisadora espera que as investigações desse trabalho contribuam para: a)

clarificar as relações sócio-culturais que construíram o movimento Protestante no Brasil e

foram por ele construídas; b) ampliar os significados até então conhecidos de suas práticas e

manifestações religiosas; c) permitir traçar perspectivas longitudinais entre significados

simbólicos das práticas protestantes, d) esclarecer as diretrizes e conceitos de Roger Bastide

no campo das Ciências da Religião e mais especificamente: 1) auxiliar na

interdisciplinaridade entre psicologia e religião, que vem se desenvolvendo mais recentemente

no Brasil, bem como 2) ampliar e estimular os estudos de psicologia como integrante das

Ciências da Religião, 3) estimular e contribuir para pesquisas com o método fenomenológico.

Esse tracejar de perspectivas e idéias está por se fazer com amplitude, fundamentação teórica

e ética por cientistas, e espera-se com este trabalho integrar seu espectro.

Diante dos propósitos acima descritos, é possível imaginar que existem manifestações

de misticismo no Protestantismo, que puderam surgir ao longo de seu desenvolvimento, e

integrar sua constituição.Vale lembrar, conforme afirmam Eliade e Couliano (1994), que o

cisma religioso que separa o norte da Alemanha do restante da Europa, no início de século

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XVI, tem como uma das personalidades centrais a figura de Martinho Lutero e levou à

conclusão da inutilidade da intercessão da igreja na relação homem-sagrado, uma vez que

esse já nascera predestinado individualmente à salvação. Aproximando mais diretamente

Deus e homem, sem que a intermediação institucional se fizesse necessária, esse professor de

teologia amplia as possibilidades para a propagação das experiências religiosas enquanto

fenômenos místicos no Protestantismo. Essas manifestações devem assumir características

próprias que representam os processos de modernidade e que podem ser observados como

relação entre a cultura e a religião. As modalidades de misticismo no Protestantismo podem

ser representativas das contradições e tensões existentes entre individualismo e

institucionalização da religião, permitindo ao pesquisador vislumbrar o jogo das forças

simbólicas presentes no campo social. Em um exercício de imaginação, conforme sugere

Gaston Bachelard (1996), a pesquisadora perscrutou que o misticismo pode: 1) representar

uma forma de experiência religiosa que contém aspectos à priori do Protestantismo, sendo

uma possibilidade de estudo do que é contextual e do que é estrutural na sua composição; 2)

facilitar a compreensão de movimentos religiosos como Pentecostalismo e

Neopentecostalismo; 3) representar modalidades de experiências religiosas que deslocam para

o interior do indivíduo o resíduo das forças sociais, que não podem se manifestar enquanto

um certo tipo de razão, mas sim enquanto emoções e intuições do sagrado. A necessidade de

organização das relações entre elementos do fenômeno religioso inicialmente visados,

conduziu a pesquisadora a utilizar de hipóteses para essa finalidade, não atribuindo as mesmas

o propósito demonstrativo ou probatório. As hipóteses são propostas pela pesquisadora como

recurso metodológico para aproximação das experiências de misticismo, que circunscrevem

as indagações e amparam sua revelação. Feita essa consideração, optou-se por partir de uma

hipótese central e outras corolárias, como segue descrito a seguir:

a) Hipótese Central: As modalidades de experiências místicas no Protestantismo

missionário brasileiro são expressões de seus elementos constitutivos presentes na cultura

brasileira.

b) Hipóteses Corolárias;

b.1) A literatura Protestante apresenta modelos de experiências religiosas e

interpretações das idéias bíblicas com enfoque místico, contribuindo significativamente para a

difusão de elementos utópicos

b.2) Os missionários expressam a modalidade mística de forma justaposta a

racionalidade em suas práticas religiosas.

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b.3) As modalidades de práticas religiosas místicas contribuíram para a construção e

difusão do Protestantismo missionário no Brasil, facilitando sua integração à cultura

brasileira.

b.4) As práticas religiosas místicas constituíram-se como formas de reserva religiosa e

como elemento representativos das relações entre utopia e ideologia no Protestantismo de

missão.

b.5) As práticas religiosas místicas dos missionários expressam significados

relacionados aos elementos reprimidos pelas relações de poder advindas das transformações

institucionais e sociais presente no movimento Protestante que seguiu o período missionário.

b.6) As modalidades simbólicas do misticismo, tal qual expressas no Protestantismo

missionário, podem contribuir para compreensão do conceito de religião, formulado por esse

movimento enquanto identidade social.

Ao formular essas hipóteses, a pesquisadora tem como perspectivas as seguintes

limitações: 1) multiplicidade de conceitos de misticismo advindos das ciências humanas e

poucos estudos sobre manifestações de Misticismo no movimento Protestante Missionário; 2)

articulação de idéias claras no sentido interdisciplinar; 3) aplicação do método

fenomenológico às Ciências da Religião; 4) possibilidade de preconceitos na interpretação do

misticismo e seus significados no Protestantismo, que é considerado um movimento advindo

do racionalismo religioso. Ciente dessas dificuldades, a pesquisadora se dispõe a desenvolver

uma atitude de atenção e cuidado com esses aspectos.

Os objetivos gerais desse trabalho podem ser descritos como:

a) investigar modalidades de misticismo nas sociedades perpassadas pelos processos

de modernidade.

b) esclarecer como os elementos místicos presentes no Protestantismo influenciaram

suas formas de expressão no campo simbólico, especialmente considerando a tensão

indivíduo-coletivo.

c) traçar relações entre as modalidades místicas surgidas no Protestantismo

Missionário e as condições sociais do campo simbólico brasileiro.

d) estudar textos literários e jornalísticos utilizadas na difusão do Protestantismo

visando identificar elementos místicos em sua expressão.

Os objetivos específicos podem ser descritos como:

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a) identificar modalidades de carisma nas práticas Missionárias.

b) estudar formas de expressão místicas nos escritos e diários de Missionários

Protestantes.

c) investigar tendências místicas na Imprensa Evangélica Missionária.

d) buscar relações e correlações entre as expressões e manifestações místicas do

Protestantismo Missionário brasileiro e formas religiosas do Pentecostalismo no Brasil.

O método fenomenológico aplicado às pesquisas das Ciências da Religião parte do

pressuposto de que o pesquisador é membro de uma sociedade e tem sua própria concepção

de mundo, mas pode certamente ter empatia e compreender o modo como outros pensam,

percebem e constroem sua lógica e sua ontologia. Desenhar e perscrutar traços das culturas

distantes no tempo e suas expressões não é a única forma de estudar a história de um povo. Os

pesquisadores que utilizam a analítica intencional visam articulações e relações que a

consciência possa traçar no seu percurso de voltar-se intencionalmente a algum fenômeno,

enquanto interrogação e proposta de conhecimento. Trata-se do pesquisador enfrentar a tarefa

de compreender, isso é passar da percepção de um mundo conhecido para a de um mundo

estranho. A possibilidade apontada pelo pai da fenomenologia, Edmund Husserl (1859-1938)

constitui-se na atitude de reconhecer e conhecer através do paradoxo entre o estranho e o

familiar, isto é, de descrever o que há de diferente e singular no mundo do outro, e o que se

reconhece como o similar no mundo da experiência15. Lançando mão da singularização e

simultaneamente da correspondência, o pesquisador pode ir ao fenômeno mesmo, no caso o

misticismo manifesto no Protestantismo. O pesquisador pode lançar mão, entre outros

recursos, de um exercício de imaginação como forma de aproximação do fenômeno estudado,

inclusive para formular indagações e tentar respondê- las como hipóteses, conforme sugere

Eliade (1957), Desroche (1985) e Bachelard (1996). Nesse sentido, é isso que se pode

descrever como movimentos iniciais de criação de horizontes à consciência e suas idéias em

direção ao fenômeno intencionado por ela. A aproximação de fenômenos como o misticismo,

suscitam uma postura de caráter exploratório por parte do pesquisador, com a qual pode

15 É curioso observar, ao se pensar na história da Fenomenologia da Religião, que Husserl se interessou sobre a utilização da redução eidética e fenomenológica para as questões da religião, desenvolvendo-as em três direções como aponta Bello (1998): finalidade do cosmos, justificação da intersubjetividade e ética do ser humano. Manteve com Rudolf Otto correspondência, mencionando Heidegger e Oxner que lhe entregara o livro O sagrado, publicado originalmente em 1917. Foi Van der Leeuw que se esboçou em sua obra Fenomenologia da Religião , em 1956, um exercício da aplicação das orientações de Husserl na direção dos fenômenos religiosos. “A Pesquisa de Van der Leeuw parte de um plano existencial, para demonstrar que tudo o que é produzido pelas capacidades humanas é resposta à busca de um sentido. Nascem desse modo a cultura e a organização econômica e política dos povos”. (Bello, 1998, p. 109)

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perscrutar possíveis relações entre as percepções e as manifestações culturais com que se

apresenta.

A compreensão dos sentidos da experiência mística, conforme almejado pela

pesquisadora, supõe que a interpretação dos mesmos se dê por uma via metodológica. A

Hermenêutica aponta que mesmo uma intenção metódica descritiva inicial, já pode ser

considerada um ato interpretativo, requerendo do pesquisador uma atitude crítica de sua

percepção, seleção e organização de dados provenientes da aparência do fenômeno. Assim, a

Hermenêutica, conforme a conceituação de Fernando Montero (1987 p.25-26):

Designa el carácter fundalmentalmente móvíl del existir humano que constituy sua finitud y especificidade y, por tanto, abarca el conjunto de su experiência del mundo. (...) Em efecto, la teoria de Heideggerde que todo el mundo está constituído por complejos de cosas útiles, cuyas mutuas remissiones las hacen significativas, hace que el mundo sea um inmenso texto, cuya lectura ou interpretación está condicionada por las ocupaciones de queines lo hacen patente mediante el lenguaje 16.

A Hermenêutica mostra-se como campo de estudo das variáveis que conduzem o

pesquisador em sua atitude interpretativa diante do fenômeno, nesse caso o misticismo. A

expressão mundo vivido de Edmund Husserl (2002) pode ser utilizada para designar em um de

seus sentidos o campo objetivo totalizante que resulta da cultura de uma época e das que as

sucedem como o legado histórico herdado e assumido. De outro modo, aponta para um mundo

vivido originário que consta somente dos fenômenos genuínos que subsistem as criações

culturais e são seu fundamento, conforme propõe Montero (1987 p.39). Como converter o

mundo vivido em tema independente, absolutamente autônomo, fazendo enunciados

científicos que possam ser objetivos e válidos por meio da metodologia de pesquisa

fenomenológica, “ainda não sabemos”, afirma Montero (1987). Assim, utilizando as

orientações de Husserl, fenômenos como o misticismo mostram-se em sua aparência,

expressos em manifestações sócio-culturais relativas a um período historio e seus

desdobramentos nas épocas subseqüentes, porém remetido a uma experiência religiosa

originária, cuja natureza e sentido requerem um estudo contínuo a aprofundado por parte do

pesquisador. Essa proposta de investigação científica desafia o pesquisador para se aproximar

16 Na língua portuguesa: “Designa o caráter fundamentalmente instável da existência humana que constitui sua finitude e sua especificidade e portanto abarca o conjunto de sua experiência de mundo. (...) Com efeito, a teoria de Heidegger na qual o mundo todo está constituído por complexos de coisas úteis, cujas mútuas remissões as fazem significativas, fazem com que o mundo seja um imenso texto,cuja leitura ou interpretação está condicionada pelas ocupações de quem o faz patente mediante a linguagem”. (tradução nossa).

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do que seria uma vivência matriz, revelada em seu de seu aparecer. Porém tendo em vista os

limites dessa pesquisa, optou-se por redigir um ensaio fenomenológico cujo foco é a

experiência mística em sua expressa cultural representativa das relações sociais e seus

significados. Essa circunscrição da dimensão a ser pesquisada, delimita as tarefas e o alcance

dos procedimentos empregados e simultaneamente acena para uma possibilidade de

continuidade dessa mesma pesquisa na direção do revelar-se das experiências originárias, cuja

realização extrapola as fronteiras aqui delimitadas. As idéias e conhecimentos legados por

Husserl (1983) na direção de uma fenomenologia transcendental, tendo em vista a finalidade

dessa pesquisa, servem apenas como orientação de horizontes e não como metodologia

rigorosamente aplicada às suas finalidades máximas que revelariam o “mundo vivido

originário”. A reviravolta fenomenológica, enquanto direciona para o original, mesmo que em

proposta de “escavação” parcial, nos permite ver de forma opaca certos fenômenos. Porém

opaco não significa ilegibilidade, conforme afirma Luigino Valentini (1988).

Considerando que os propósitos dessa tese cumprem uma primeira etapa de um projeto

que ilumina sua continuidade, iniciou-se a aproximação do fenômeno com os sujeitos que o

experimentam e se colocam no centro mesmo da pesquisa, isso é como ponto de partida e

fonte da qual partem as atribuições de sentido as suas realizações no mundo. Esse viver no

mundo é experimentado na “totalidade de sua realidade, como corpo e como espírito”,

comenta Valentini (1988, p. 92). O caminho fenomenológico do fazer pesquisa compreende

que o sujeito é ele mesmo ser religioso em sua relação subjetiva e intersubjetiva, que

comportam a dimensão social da existência. O método fenomenológico pode ser aplicado de

diferentes formas e etapas conforme esclarece Moreira (2002). Da multiplicidade de visadas

sobre o fenômeno, surge o movimento de composição sintética, que permite ao pesquisador

elencar temáticas emergentes, ou criar tipologia. O movimento de oposição entre

multiplicidade-unidade é um fio condutor para a análise reflexiva da aparência do fenômeno

ao seu aparecer, conforme aponta Roberto Walton (1993).

Para se realizar esse tipo de investigação é necessário que o pesquisador tenha uma

atitude empática, que tome como ponto de partida a relação do eu com os outros. Assim,

esclarece Bello (1998, p. 94):

Justamente a comparação intercultural nos permite focalizar a sua novidade orientando-nos cada vez mais a conceber a fenomenologia enquanto arqueologia dos significados culturais, a qual se coloca a partir de uma nova perspectiva, e indo mais

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a fundo, não só não cede ao relativismo cultural, mas tenta a operação da comparação a um nível diferente. Nesse nível se instaura um novo conceito de universalidade; assim a regressão à esfera das experiências vivenciais e a redução dos significados culturais a essas experiências permite captar as estruturas de base das próprias experiências vivenciais junto com as diversas configurações que historicamente se apresentam. Desse modo, tanto a unidade quanto a multiplicidade são justificadas.

Seguindo essas orientações, o caminho metodológico adotado é o de aproximação dos

fenômenos místicos do Protestantismo, considerado em sua multiplicidade e em seus

possíveis sentidos. A ótica da temporalidade que contempla aspectos da história do

Protestantismo permite que se alcance uma variação de visadas desse movimento,

considerando-se, por exemplo, situações precursoras de seu surgimento, nascimento,

expansão e difusão. O espaço sócio-cultural do Protestantismo é observável a partir eixos

caracterizados por: 1) relação direta do homem com o sagrado, 2) acesso imediato à Bíblia, 3)

sacerdócio universal dos crentes, indicando uma nova forma de poder, de desejo e de cultura.

De acordo com Van der Leeuw (in Bello, 1998) cabe à fenomenologia da religião partir de um

plano existencial, analisando como o ser humano utiliza a estrutura da religião para fazer

entrar em sua vida o poder em que acredita: “isso é, procura elevar a sua vida, aumentá- la,

conquistar-lhe um sentido mais amplo e profundo” (Van der Leeuw in Bello, 1998, p. 109). A

relação entre a construção da subjetividade e os aspectos objetivamente descritos do contexto

sócio-cultural desenhado pelos Protestantismos, pode ser pensando como atitude de significar

a existência humana, conforme sugeriu Van der Leeuw em sua obra Fenomenologia da

Religião em 1932. Na concepção de Van der Leeuw o homo religiosus:

Gostaria de entender a vida para dominá-la e por isso procura sempre novos poderes superiores, porém, toma consciência de que jamais poderá superar a fronteira e que jamais poderá alcançar o poder supremo, mas é este que o alcança, de uma forma incompreensível e misteriosa (Van der Leeuw, in Bello, 1998, p. 109)

A relação do homem com o sagrado, conforme descrita por Van der Leeuw, na ótica

da fenomenologia da religião, requer do pesquisador uma atitude descritiva das situações

sócio-culturais do Protestantismo, percorrendo itinerários de dados históricos, e descobrindo

seus nexos, sem sobrepor julgamentos de valores prévios que possam prejudicar o descortinar

do fenômeno religioso. Já em um segundo momento, trata-se de realizar uma experiência

reflexiva, de cunho mais teórico propriamente dito, no qual se busca identificar unidades de

sentido, nas manifestações do fenômeno cultural, no caso o misticismo protestante, para

descobrir dimensões das experiências vivenciais presentes em vários âmbitos desse

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movimento. Comparativamente é possível aproximar a construção das unidades de sentido na

fenomenológica aos tipos ideais construídos por Max Weber em sua obra Economia e

Sociedade (2000).

Existem diferenças na visão e na atitude metodológica dos investigadores, conforme

adotem uma corrente científica como diretriz de seus trabalhos no campo das Ciências da

Religião. As escolas fenomenológicas se desenvolveram a partir de sua posição de superação

das tendências positivistas e evolucionistas nas ciências. Bicudo e Espósito (1997) lembram

que a partir da idéia da volta “às coisas mesmas”, enunciada por Husserl, não existem objetos

e sujeitos como entes separados, mas relações entre ambos, da qual brota o conhecimento.

Esta relação entre objeto conhecido e sujeito cognoscente é constituída pelo movimento da

consciência experenciar, conhecer, desejar, visar algo. O fenômeno não se situa dentro do

homem ou fora dele, pois está entre a consciência e o que é visado intencionalmente por ela.

Enfatizando a relação sujeito-objeto, a fenomenologia da religião traça algumas

diretrizes aos estudos que se realizem sobre a sua égide. Pode-se citar: 1) valorização da

experiência religiosa (Erlebnis) entendida como vivência básica do grupo ou do sujeito

humano em sua relação como o sagrado; 2) visão do fenômeno religioso aberta e sensível ao

diálogo inter-religioso, tal como se apresenta para Heiler (1892-1967), Otto (1869-1937), Van

der Leeuw (1890-1950); 3) descrição do fenômeno religioso, que pode ser objeto de

aproximação complementar através de interrogações existenciais, experenciais e essenciais.

Desse modo, o misticismo é um fenômeno humano a ser compreendido a partir da relação que

mantém com a consciência social e individual que o percebe, experimenta, acolhe e ilumina, e

produz. Há, portanto, uma certa autonomia na concepção do fenômeno religioso, que pode ser

apreendido no paradoxo de sua existência: o fenômeno é ao mesmo tempo um objeto que se

refere a um sujeito e um sujeito em relação com o objeto. (van der Leeuw, 1975).

Esta tese pretende desenvolver-se como uma pesquisa exploratória, que busca traços e

expressões de misticismo em um campo simbólico, sondando suas possibilidades enquanto

fenômeno intencionado pela pesquisadora. Entende-se por pesquisa exploratória, conforme

Antonio Carlos Gil (1994 p.44-45):

(...) tem como principal finalidade desenvolver, esclarecer e

modificar conceitos e idéias, com vistas na formulação de problemas mais precisos, ou hipóteses pesquisáveis para os estudiosos

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posteriores. De todos os tipos de pesquisa, estas são as que apresentam menor rigidez no planejamento.(...) são desenvolvidas com o objetivo de proporcionar visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato. (...) é realizada especialmente quando o tema escolhido é pouco explorado e torna-se difícil sobre formular hipóteses precisas e operacionalizáveis.

As delimitações das pesquisas exploratórias feitas por Gil (1994) mostram-se

adequadas à orientação da pesquisa em questão, uma vez tratar-se de compreender a

significação das manifestações místicas no universo no qual se manifesta tentando torná- lo

um fenômeno objetivo, tal qual orienta a abordagem fenomenológica em suas aplicações

científicas. A compreensão é uma possibilidade hermenêutica, geralmente utilizada nas

pesquisas qualitativas, que permite vislumbrar significações atribuídas às inter-relações

humanas. Do ponto de vista fenomenológico, é através da atitude compreensiva que o

pesquisador pode examinar formas e estruturas dos fenômenos religiosos, evidenciando

aspectos históricos e culturais presentes em sua aparência, mas nunca reduzindo-os a ela.

Perscrutar a expressividade de uma tendência religiosa, em sua realidade histórica

requer uma abertura sensível e ao mesmo tempo racional por parte do pesquisador, para que

representações simbólicas possam mostrar articulações e relações constitutivas do fenômeno17

estudado, ou intencionado. Para isso, conforme Antônio Chizzotti (1995 p. 82):

O pesquisador deve preliminarmente despojar-se de preconceitos e pré-disposições para assumir uma atitude aberta a todas as manifestações que objetiva, sem adiantar explicações nem se conduzir pelas aparências imediatas a fim de obter uma compreensão global dos fenômenos. Essa compreensão será alcançada com a conduta participante, que partilhe da cultura, das práticas, das percepções e experiências dos sujeitos da pesquisa, procurando compreender a significação social por eles atribuída ao mundo que circunda e aos atos que realizam.

Essa atitude indicada por Chizzotti (1995), a qual se atribui o nome de redução

fenomenológica, permite ao pesquisador tentar romper com as certezas ou articulações que

17 Filoramo e Prandi (1999) informam que inicialmente a expressão “fenomenologia da religião” foi utilizada pelo holandês Chantepie em 1878, para expressar que a história das religiões devia visar não só os processos constitutívos da história, mas também seus elementos permanentes, através do método comparativo. A partir de Wilhelm Dilthey (1833-1911) firmou-se a autonomia das ciências do espírito, ocorrendo um deslocamento de seu campo de estudo das ciências naturais para o mundo das produções humanas, o que abre caminho para as formulações de Husserl. Este último fez um esforço de libertar as ciências humanas da metafísica e possibilitar que as pesquisas se dessem de modo mais realistas, captando os fenômenos circundantes ao pesquisador.

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estão presentes inicialmente em sua consciência, advindas dos discursos que engendram a

aparência de um fenômeno. Essa “ingenuidade” diante do fenômeno pode ser objeto de

suspensão, ao menos temporária, das idéias iniciais do pesquisador sobre ao assunto, visando

possibilitar um descortinar do intencionado, não através de sua faceta aparente, mas de suas

articulações e evidências no ser no mundo fenomênico, que é em si mundo de relações, no

caso sociais.

Fazendo variações ao redor do fenômeno, revelam-se seus elementos invariantes, que

podem ser captados por intuição. Torna-se oportuno frisar mais uma vez que na presente tese

não se visa um estudo de cunho ontológico, chegar a essência mesma de um fenômeno, tal

como pretende a fenomenologia em sua atitude radical, mas apenas utilizá- la como método

que orienta e define tanto a postura do pesquisador, como suas atitudes diante da realidade

que lhe estimula a compreensão18. Por isso mesmo, Dulce M. Crittelli (1996, p. 69) considera

como processos de aproximação do real pelo pesquisador os seguintes movimentos: 1)

desvelamento: atitude de desolcultar o fenômeno; 2) revelação: a expressão do que foi

desocultado através da linguagem; 3) testemunho: visão compartilhada do que foi expresso; 4)

veracização: quando o que foi testemunhado é referendado como verdadeiro pela sua

apresentação a comunidade; 5) autenticação: quando o tornar púb lico se transforma em

elemento de conhecimento para uma comunidade. Tais indicações servem de orientação ao

processo a ser percorrido nesse trabalho.

Se aceitarmos a proposta inicial de Critelli (1996), o procedimento inicial da pesquisa

será utilizar as indagações como “forma-guia” para as explorações das possíveis

manifestações de misticismo no Protestantismo. Para esse estudo foram utilizados como

mediações, os seguintes procedimentos:

1) Pesquisa Bibliográfica sobre:

1.1) conceitos e processos histórico-culturais: misticismo, história do Protestantismo e

Protestantismo brasileiro. Esses temas foram utilizados como modo de aproximação do

fenômeno estudado e de sensibilização do pesquisador para o campo simbólico em questão,

definindo sua natureza e processos sócio-culturais pertinentes à sua construção.

18 Há indicações sobre as variações do método fenomenológico e sua cientificidade aplicadas as pesquisas qualitativas na obra de Daniel Augusto Moreira (2002), intitulada O método fenomenológico na Pesquisa. São Paulo: Pioneira/Thomson. Também se pode encontrar discussão semelhante no livro de Ângela A. Bello A Fenomenologia do Ser Humano: Traços de uma Filosofia no Feminino. Bauru: EDUSC, 2000.

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1.2) literatura protestante: obras A Peregrina e O Peregrino de John Bunyan

1.3) periódicos: Imprensa Evangélica, Puritano, Estandarte, Expositor Christão

1.4) diários: John Wesley e Ashebel Simonton

1.5) auto-biografia: Adolpho Machado Corrêa

2)Leitura cuidadosa das obras selecionadas

3) Seleção de trechos a serem objeto de comentários e exploração das perguntas

levantadas durante o processo inicial.

4) Comentários e análise dos trechos selecionados, agrupando-os por unidades de

significados.

5) Discussão das hipóteses levantadas inicialmente

6) Considerações finais sobre o tema em questão.

No que tange as considerações finais tenta-se buscar um nível mais avançado de

abstração que permite vislumbrar o fenômeno de modo mais abrangente. Esse ponto reinicia

mais uma atividade de questionamento que abre o tema a novas modalidades de pesquisa,

estimulando o cientista a prosseguir sua jornada, relacionando o fenômeno em questão às

outras formas de manifestação presentes nas relações sociais e no campo simbólico. De

acordo com Daniel Moreira (2002) rumar em direção aos significados da experiência, o

pesquisador emprega o método da variação livre que promove o movimento da evidência na

esfera perceptual à esfera imaginativa. A depuração do fenômeno do que não lhe é essencial,

dada pela consciência da impossibilidade da consciência pensar de outro modo, atentando-se

a temporo-espacialidade de uma pesquisa. A aplicação do método das ciências naturais às

ciências sociais conduz à elaboração de uma conclusão que não é adotada no método

fenomenológico. Antes, o método fenomenológico opta por conduzir a outras possibilidades

de vislumbrar o fenômeno. É necessário esclarecer que para a perspectiva fenomenológica, a

conclusão é uma síntese final da pesquisa, entendida paradoxalmente como ponto de chegada

e partida para novas investigações sobre o fenômeno, prestando-se a posteriores atitudes de

redução fenomenológica.

O primeiro capítulo explora a conceituação de misticismo considerando a

terminologia, as definições advindas da filosofia, teologia e sociologia com a finalidade de

construção do objeto de estudo, ou de hipotetizá-lo, em uma visada múltipla. A compreensão

da experiência mística em suas possíveis relações com a fé ofereceu a pesquisa uma

perspectiva de estudo das relações entre indivíduo e sociedade, como produtoras de

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construção, transformação e significação cultural. A busca da delimitação do campo religioso

protestante e sua mística intenciona de forma mais direta o fenômeno do misticismo,

desencadeando questões sobre sua natureza, manifestação e significado.

No segundo capítulo as indagações sobre as condições sociais promotoras do advento

do Protestantismo conduziram ao estudo de seus aspectos históricos em diversas vertentes,

possibilitando a visão do pluralismo religioso que se encontra em seu interior, que engendra

conflitos, diferenciações, associações, e construções de projetos expansionistas. O princípio

protestante da relação direta do homem com Deus, sem a necessidade de mediações

institucionais, foi explorado como um elemento promotor de conflitos entre individualização

e coletivização da experiência religiosa em suas relações com as forças constituintes da

Modernidade. Esse mesmo princípio, que se desdobra na concepção de sacerdócio universal

dos crentes, é pensado a partir de modos-de-ser protestante e suas relações com a liberdade,

que se expressam em experiências místicas letradas.

Já no terceiro capítulo, foco dirigiu-se a literatura protestante como meio de difusão

das concepções protestantes e construção de sua mentalidade. Visões, sonhos, fantasias,

mitos, são elementos construtores de crenças e comportamentos religiosos, que permitem ao

pesquisador penetrar o imaginário social que sustenta os protestantismos. Trechos das obras

de John Bunyan O Peregrino e A Peregrina foram selecionados enquanto instrumentos

investigativos para essa finalidade, uma vez que são consideradas representativas do

Puritanismo e do Pietismo, duas tendências que permeiam o Protestantismo no seu espaço de

produção cultural.

A compreensão dos movimentos missionários, em uma ótica dimensionada pelo

percurso migratório americano e inglês rumo ao Brasil, foi o foco do quarto capítulo.

Visaram-se os projetos de expansão do Protestantismo em busca da instaurar o “Paraíso” nas

Américas, utilizando como meios culturais a pregação e a acessibilidade da Bíblia. Os

movimentos de reavivamento religioso em contextos sociais mutáveis com a expansão do

capitalismo foram observados em suas facetas de comunicação, modelagem e engendramento

do homem moderno. A sociologia de Roger Bastide forneceu a ferramenta principal para a

compreensão dos possíveis significados da experiência mística dos missionários em suas

práticas religiosas itinerantes no Brasil e seus conflitos com a institucionalização do

Protestantismo. Trechos dos diários dos missionários ou de personagens significativos desse

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movimento foram utilizados como modalidades de acesso ao cotidiano e à história da

mentalidade protestante em suas transformações culturais.

No último capítulo a imprensa evangélica e suas expressões foram recursos

metodológicos para compreender aspectos da experiência mística relacionados à emoção, que

tem o papel promotor de expressão, identidade e identificação grupal. A emoção

simultaneamente oculta e apresenta elementos religiosos não letrados. Seu aspecto instantâneo

harmoniza-se com formas grupais instáveis, promovendo mutabilidade das relações sociais

em seus significados. É um recurso de comunicação social, que convive com transmissões

culturais orais, permitindo a construção e a desconstrução de experiências religiosas místicas.

Isso é, facilitando/dificultando a sua configuração. Vista por estudiosos como Rudolf Otto e

William James como elemento essencial da experiência religiosa ocupa um dos pólos das

discussões sobre a racionalidade das religiões na modernidade, na qual se situa em certas

concepções o Protestantismo. O cotidiano do fiel protestante foi o foco finalizador da

pesquisa, utilizando-se para tais trechos autobiográficos de pastores e membros desse

movimento, na tentativa de ampliar a compreensão dos significados atribuídos às experiências

místicas, em uma perspectiva que se delineia dos conceitos ao sujeito da experiência mesma,

ponto da partida primeiro e redutor para o método fenomenológico. Como problemática

central dessa pesquisa está a investigação dos fenômenos místicos no Protestantismo em sua

aproximação do cotidiano, seu traço existencial e o jogo de forma das essências, enquanto

construções de significados religiosos do ser-no-mundo.

Capítulo 1

Misticismo: Primeiras Visadas

O objetivo deste primeiro capítulo é propor uma aproximação com o fenômeno do misticismo por meio de um recurso metodológico de orientação fenomenológica, que indica a possibilidade de explorar um foco de interesse através da variação de visadas, não de modo a comprometer-se com o que delas decorre, mas sim de buscar clarificação de suas expressões e significados.

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O adjetivo Mystikós provém do grego myo, que significa “calar-se”, “fechar os olhos”.

Deriva-se desse significado, mysterion, mistério, como sentido helenístico do termo, enquanto

ritos secretos de iniciação, que encaminha o homem para a divindade. Em outra direção

deriva-se mysteriasmós, que aponta para a iniciação do Mystes (iniciado) no mistério. De

modo geral, o termo místico implica sempre em uma realidade secreta, oculta do

conhecimento comum, e que se revela, especialmente, pela experiência religiosa, segundo o

Dicionário de Mística (2003, p.399). No Cristianismo, o termo místico significou

primeiramente uma exegese espiritual, alegórica dos textos escriturísticos e litúrgicos,

orientados para Cristo e a Igreja. Em seguida, passou a representar o esforço da alma que

descobre a presença de Cristo na Bíblia e na liturgia, e quase simultaneamente a experiência

interior da posse de Deus. Ao longo do tempo, predominou o sentido mais subjetivo e

experimental ao significado exegético do termo. Pode-se citar que na Bíblia, o mistério da

salvação é primeiramente objeto de experiência. Foi assim com o apóstolo Paulo, que teve a

visão de Cristo na estrada de Damasco. A ênfase desse processo é dada pela revelação de

Deus em Jesus Cristo, e não na experiência do homem. Nessa direção, mística “passou a

designar o próprio Jesus Cristo, como manifestação visível do mistério da salvação de Deus,

que age pela palavra do Velho e do Novo Testamento. Contemplar, no sentido de

entendimento da palavra sagrada, passou a significar “visão dos mistérios de Deus”.

Já o substantivo Mistica só apareceu na primeira metade do século XVII, referindo-se

às pessoas que tinham uma experiência singular de conhecimento de Deus. Conforme Velasco

(1999, p. 21), a utilização do termo como substantivo é indicativa do estabelecimento de um

âmbito específico, passando a designar um modo de experiência, um tipo de discurso ou uma

região do conhecimento. Na dimensão social, é possível estudar os “tipos místicos”, e pensar

em um ramo da ciência que tomará o misticismo como objeto de estudo. Neste sentido, passa

a designar um fenômeno a ser estudado. Velasco (1999) observa que não se pode ter a

ambição de alcançar uma natureza comum a todas as formas de experiência mística, como foi

a pretensão de autores como Delacroix e William James. Não há como pensar “uma essência”

do misticismo, mas sim estudá- lo de modo comparativo e associado ao seu aparecimento em

fenômenos de ordem cultural e social. Nesse sentido Velasco sugere uma definição inicial do

termo que possa ser utilizada como parâmetro de pesquisa e estudo: “a palavra mística refere-

se a experiências interiores, imediatas, fluídas, que se passam na consciência, com a

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particularidade de indicar, em qualquer forma, a união do sujeito com o todo, como o

universo, o absoluto, o divino, Deus, ou o Espírito”.

O vocábulo misticismo 19 está posto como crença ou doutrina religiosa dos místicos ou

ainda disposição para crer no sobrenatural. O Dicionário de Termos Religiosos e Afins de

Áquilino de Pedro (1993) define a mística como a união interior com Deus, mas com

extraordinária profundidade. O místico é aquele que vive de forma habitual a relação com

Deus, por intermédio da oração e permanente contemplação. No estado místico, o indivíduo

pode ter clareza, pois conta com o Espírito que atua no interior do homem e o transforma à

imagem do Cristo. Também acrescenta Pedro que, como doutrina, a mística é a parte da

teologia espiritual que estuda o estado e os fenômenos próprios da vida mística.

Segundo o Dicionário de Filosofia de autoria de Nicola Abbagnano (1998, p. 671-

672), toda doutrina que admita a comunicação direta entre o homem e Deus é considerada

misticismo. Para ele, o termo misticismo foi utilizado neste sentido nas obras de Dionísio, na

segunda metade de século V, baseado no neoplatonismo original relacionado a Plotino (205-

270). Aqui aparece a idéia de que existe uma relação originária entre Deus e o homem, que

pode ser buscada através do êxtase, considerado um momento de união em que há a

deificação do homem, conforme vista por Dionís io. Empregava-se também essa palavra para

expressar a impossibilidade de se comunicar ou se aproximar de Deus, utilizando-se os

procedimentos comuns do saber humano, que define Deus de maneira negativa. Era chamada

de prática mística a busca de se estabelecer uma relação de ascensão do homem a Deus de

modo direto e progressivo, em que o êxtase é a metáfora para sua compreensão.

O esforço para compreensão do significado do termo êxtase é realizado por vários

autores, entre os quais pode-se citar Ioan Couliano (1994, p. 25) que esclarece inicialmente

que o verbo grego ex-istáno do qual deriva o substantivo ek-stasis, indica a ação de

desprendimento, levar para fora, mudar alguma coisa, ou um estado de coisas e ações como

sair, deixar, abandonar, evitar, ceder. Geralmente indica separação. O substantivo indica

19 Para uma aproximação inicial do termo místico, como patrimônio semântico de uma cultura, foi consultado o Dicionário da Língua Portuguesa (Ferreira, 1986). Seu uso encontra-se referido àquele que mediante a contemplação espiritual, procura atingir o estado extático de união direta com a divindade ou ainda as qualidades daquele que é devoto, religioso, contemplativo, piedoso.

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desvio, alienação, turvação, delírio, estupor, exitação. O campo semântico do termo que é

relativamente amplo pode ser orientado para o sentido geral de “disjunção”, com a implicação

psico-sociológica de “sair dos marcos que regulam em determinadas circunstâncias históricas,

os critérios da normalidade”. Esse autor lembra que Platão (427-347 a.C.) no livro X da

República mostra um personagem prestigioso que tem uma experiência extática involuntária,

diferentemente desse tipo de personagem, o iatromante grego, capaz de realizar façanhas

semelhantes às de seus colegas da mística asiática, entre elas a viagem extática. Surge dessa

forma, um tipo especial de relato, que transmite as visões e os conhecimentos adquiridos,

especialmente os voltados à cura. Nos fragmentos apocalípticos de Empédocles, Parmênides,

Aristeas, podem ser constatadas as descrições dessas experiências. Couliano estuda os

iatromantes e suas experiências extáticas, mostrando que na Grécia antiga, antes do século V

a.C. haviam diversas manifestações delas. Como exemplo pode-se citar o dionisismo, como

culto extático típico no qual um grupo constituído por sujeitos possuídos involuntariamente,

geralmente mulheres, utilizando bebidas e danças realizam um ritual, no qual dilaceram uma

vítima animal e muitas vezes ingerem sua carne. Já os iatromantes propriamente ditos são via

de regra médicos, adivinhos, purificadores e taumaturgos, do sexo masculino, que

isoladamente fazem viagens no espaço, em espírito e também no corpo. Não utilizam

qualquer droga ou substância, e podem ser considerados abstêmios para a comida e o sexo. A

literatura associada a esse período, descreve que as “viagens” incluíam arrebatamento por

Apolo e outros deuses, sendo que o possuído poderia acordar em local distinto de onde se

encontrava no início da experiência religiosa, assim como encontrar cura para doenças, fazer

previsões, anamnesis de vidas anteriores e alterações de forças da natureza.

Ioan Lewis (1977) estabeleceu uma tipologia dos fenômenos de possessão,

considerando a relação entre sujeito e as entidades que o dominam: 1) cultos extáticos no qual

o sujeito é possuído involuntariamente pelo outro; 2) Xamanismo: no qual o xamã domina o

outro (espíritos) segundo suas técnicas e vontade; 3) Feitiçaria: o feiticeiro domina o outro

(espíritos) com a intenção de jogá- lo contra outro que tem uma postura passiva de se deixar

ser dominado por eles. Assinala Lewis que a possessão costuma acontecer em situações

sociais de crise, significando necessidades de ajustes e mudanças, protestos, agressão entre

rivais e inimigos, reivindicações por atenção e respeito, lutas de poder, lutas contra a

dominação pelo sexo oposto, tentativa de possessão da religião “central”, ou mesmo de

enfrentamento, e de limitação. Esses últimos sentidos apontam que o fenômeno da possessão

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pode ser um processo da própria religião, em seu movimento de limitar-se, transformar-se,

confortar-se e ainda perpetuar-se, que são dinâmicos e indicativos da cultura viva, que a

Sociologia e a Antropologia tentam alcançar. Um dos exemplos desse tipo de processo é

relatado por Lewis quando uma moça assumiu um casamento forçado e depois fugiu para a

casa dos pais. Como o pai tivesse ficado furioso espancando-a, ela fugiu durante seis dias para

o mato. Quando regressou lamentando-se o pai mandou chamar uma xamã que diagnosticou

que ela estava possuída por um espírito. À noite ela ordenou que o pai lhe seguisse e como

falou com “voz estranha” aumentou seu poder de persuasão. Nas palavras do próprio Lewis

(1977 p. 114):

Esse episódio inicial foi de fato o início da assunção dessa mulher à carreira de mestra de espíritos. Depois de se tornar membro em período integral de um clube de possessão feminino, ela veio a se tornar uma das xamãs mais famosas da Vendalandia.

Do ponto de vista de Lewis (1977) em muitos casos, como o citado, as mulheres não

estão lutando por conquistar um paraíso perdido, mas aspirando a posições de poder e

independência. Assim, formas antigas de práticas religiosas, podem abarcar novos

significados, resistindo às mudanças culturais que as ameaçam, pela assunção de uma

expansão em seu campo de sentidos. Os casos de possessão também ocorrem com homens,

como no tarantismo, que tem relatos dos séculos XVII e XVIII observa Lewis. Assim,

homens que eram atormentados pela picada da aranha, que poderiam ser governadores,

fanfarrões, camponeses e mendigos, assumiam temporariamente o papel de possuídos,

ocupando posições de destaque como animadores da alta sociedade, despertando simpatia e

atração. Conflitos políticos ou de diferenças sociais, poderiam ser assim “ajustados”pelos

rituais religiosos, minimizando a possibilidade de expressão reivindicatória. Também nesses

casos, indivíduos desajustados nos mosteiros e conventos encontravam alívio nos rituais de

possessão” pela mordida das aranhas “que os levavam a participar de festividades nas quais as

mulheres podiam participar, sem a conseqüência de perda de status social, uma vez que não

havia penalidade para essa situação, interpretada como “religiosa”.

De outro ponto de vista, Lewis (1977) observa que os fenômenos místicos podem ser

modalidades de construção do sincretismo religioso, citando como um dos exemplos, os

rituais e a liturgia vodu, que usa como base o cristianismo, chamando os mistérios loa de

“santos” e “anjos” mesmo sendo em grande parte derivados da África ocidental. “Quando o

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loa” sai “em um novo devoto ele usualmente tem de ser batizado e muitos espíritos,

encarnados em suas montarias tomam a sagrada comunhão”, descreve Lewis, (1977, p. 131)

apontando que o que mantém o processo de sincretismo é a crença em sua eficácia e a

necessidade de sobrevivência de práticas religiosas diversas, que ainda são representativas das

relações e processos sócio-culturais de um dado contexto histórico. Já a bruxaria é a expressão

da diversidade social, vivida como opressão e conflito com os superiores, que

temporariamente assume a forma de ataque. Via de regra, é associada ao grupo como

necessidade de cura de doenças e tensões que a rodeiam, sendo que o sujeito enfeitiçado

ocupa uma posição de destaque e vítima inocente de “maquinações maléficas” realizadas por

outro, que é denominado de bruxo ou bruxa. Esse personagem se apresenta na interpretação

do grupo, como um desviante do sistema de crenças majoritário, identificando-se com o

provocador do mal, aflição e doença, devendo ser caçado, neutralizado ou eliminado. Para

essa tarefa, o contra-ataque é feito por “uma estratégia diretamente mística”, na forma da

acusação do bruxo, visto como agente causador de todos os males e desvios, afirma Lewis

(1977 p. 148).

As manifestações de êxtase e possessão se dão geralmente nos rituais de cultos, conduzidos pelo xamã, também chamados de sacerdote ou ministro. Segundo Luiz Gonzaga de Mello (1983), o xamã é alguém reconhecido pela comunidade como possuidor de virtudes que o possibilitam entrar em contato direto com a divindade. O sacerdote geralmente necessita provar esta capacidade ao seu grupo, passando por rituais de iniciação. Se reconhecido nesta função, o ministro de culto passa a gozar de poder e grande prestígio social, uma vez que se acredita ser capaz de dominar as técnicas de contato com o sagrado. Nos cultos afro brasileiros esta manifestação é constante, quando a possessão por divindades obedecem a um ritual padronizado. Nos rituais, o xamã assume estados alterados, que podem ser chamados de transe, possessão, êxtase, visão ou fenômeno mediúnico, dependendo das variações religiosas.

Ainda de acordo com Mello (1983), o êxtase propicia ao xamã o contato com o

sagrado motivado por preocupações sociais, como, por exemplo, cura de doenças. A

possessão se dá como processo de dissociação da personalidade. Tanto o êxtase quanto a

possessão provocam reações físicas no sacerdote, que sente forte tensão, seguido de colapso,

distensão e despertar, derivando em sensação de cansaço, serenidade e paz, sentidos também

por outros que fazem parte do ritual.

Montero (1990) estudou as relações entre magia e religião, como um modo de

misticismo. Essa pesquisadora vincula aspectos como magia e ciência, magia e pensamento,

magia e cura entre outros, explorando assim a eficácia simbólica desses processos. Os

sistemas mágicos, são pensamentos que tem função de ligação entre as representações do real

e do imaginário, podendo produzir mudanças em ambos. Apoiada nas idéias e Frazer e

Marcela Mauss, que estudam as leis que regem os processos mágicos, Montero aponta para a

lei da similaridade (na qual se baseia a imitação e a contigüidade (agir sobre um objeto que

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pertença a ágüem, equivale a produzir efeitos semelhantes na pessoa) que permite a

compreensão de uma série de processos sociais que ocorrem nas religiões ritualísticas. Essas

religiões se propõem a curar e produzir transformações corporais e mentais no sujeito, ou no

grupo cultural. Além disso, do ponto de vista de Montero, a magia como rito não é

homogênea, caracterizando-se por uma série de oposições como, por exemplo entre o sagrado

e o profano, masculino e feminino, superior e inferior, fora e dentro cuja função é promover a

integração dos elementos díspares no jogo simbólico. Assim, esse elemento lógico, facilita a

atribuição de significados às desordens, sendo elas sociais, culturais, orgânicas, psíquicas,

religiosas facilitando que planos diferenciados e opostos sejam justapostos, unidos, integrados

ou/e organizados, permitindo a criação e renovação cultural.

As pesquisas sobre misticismo têm aumentado de freqüências, e de quantidade de

publicação, especialmente nos últimos cinqüenta anos, observou Gershom Sholem (1995). Por

outro lado, Faustino Teixeira (2004) aponta que existem variados pontos de vista entre os

cientistas que se dedicam a esse objeto de estudo sobre as dificuldades de realizar estudos de

mística comparada. De um lado encontram-se as opiniões dos contextualistas, alertando para a

impossibilidade de fazer corresponder aspectos da experiência mística, tendo em vista

aspectos como linguagem, cultura, subjetividade, história que são fatores determinantes na

interpretação e compreensão do significado desse fenômeno. Já os cientistas que visam a

aproximação entre aspectos comuns ou semelhantes na experiência mística, utilizando-se de

uma postura de diálogo religioso, argumentam que é na dimensão mística que a religião

alcança sua estrutura mais profunda, não podendo, portanto ser desconsiderada. Teixeira

aponta que os defensores dessa segunda posição exemplificam que experiências como a

oração, são universais e transcendem a diversidade das religiões no mundo. Essa discussão

tem como referência processos de aproximação e diferenças entre as religiões, ecumenismo,

limites da compreensão científica em se tratando de mundos culturais diversos. Esse último

aspecto aponta para as dificuldades de comunicação em profundidade, seja relacionado a

processos de observação, relato, compreensão, teorização, quando de trata de fenômenos

como êxtase, afasia, glossolalia, visões, sonhos, estados de consciência alterada, para citar

somente alguns deles. Sobre os místicos e o misticismo assim escreve Teixeira (2004 p. 27):

As tradições religiosas encontram, certamente, na mística a sua dimensão de gratuidade e de provocação permanente à abertura. Os místicos são aqueles que conseguem captar a dimensão de profundidade presente na vida e reconhecer o

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outro lado das coisas. Em razão de sua experiência de proximidade ao mistério, conseguem com facilidade mover-se e comungar para além das fronteiras de usa inserção particular. Há um elemento de redenção na mística, que sinaliza os limites das rígidas fortificações religiosas e aponta para a arte de “transpor fronteiras”.

Diante dessa complexidade, no qual o misticismo aparece revestindo as facetas de

objeto de estudo para as diversas ciências humanas, esta pesquisa situa seu olhar nas

interfaces da Psicologia, Sociologia e Antropologia, que fazem parte integrante das Ciências

da Religião, especialmente nos conceitos e teorias que permitem o estudo da religiosidade

como fenômeno social e apontam na direção de uma abertura para o diálogo interdisciplinar.

Este ponto de vista de uma perspectiva integrativa e interativa entre as dimensões culturais,

sociais e psicológicas no estudo dos fenômenos religiosos foi defendido por Clifford Geertz

(2001) considerando-se a diversidade cultural da modernidade em seu desenvolvimento.

Geertz faz referência aos estudos de William James enfatizando a experiência religiosa em

sua faceta de interiorização e afetividade. O processo subjetivação da religião precisa ser

acompanhado de análises históricas e contextualizado de sua expressão, permitindo ao

cientista a compreensão do significado social e individual da experiência religiosa afirma esse

antropólogo. Dialogando com as idéias de Weber, Geertz tem como indicador fundamental a

“análise da religião enquanto sistema cultural e das coisas sagradas enquanto “símbolos”,

assinala Emerson Giumbelli (2003).

1.1 Misticismo: Contribuições das Ciências Humanas

Do ponto de vista teológico, Thimothy George (1993) observa que uma das vias para o

conhecimento de Deus é a teologia mística. Ela está situada ao lado da teologia natural, que

concebe a ação de Deus na criação e usa a razão para entendimento do mundo humano, e da

teologia dogmática, que estuda a revelação de Deus nas Escrituras, no credo e na tradição da

Igreja. A teologia mística pretende estudar os processos de ligação do homem com Deus

através de experiência de contato direto. Este ramo de estudos contempla o deslumbrar para

além de si mesmo, incluindo fenômenos como êxtase, arrebatamento e intuição. Foram

identificadas duas tradições místicas na Idade Média, entre outras. A primeira tradição é o

misticismo voluntarista, que faz conformidade dentre a vontade do homem e a vontade de

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Deus, com os estágios de purgação, iluminação e contemplação. A segunda é o misticismo

ontológico, tendo como ponto de partida o distanciamento entre Deus e o homem. A

aproximação se dá na proposição de que no fundo da alma humana existe uma centelha divina

conduzindo a união ou à absorção. Expoente dessa vertente é Mestre Eckhart (1260?-1328),

que aponta uma via de desprendimento de si mesmo e de outros seres, que poderia conduzir

ao nascimento do Filho Eterno dentro da alma. Esta idéia chocou-se com os interesses da

Igreja, que via nesse relacionamento direto do homem com a divindade uma ameaça à

necessidade de sua função, bem como uma oposição à formulação do nascimento humano de

Jesus. Mesmo sendo condenadas pelas autoridades eclesiásticas, as propostas de Eckhart

foram traduzidas para uma linguagem popular por seus discípulos Johanenes Tauler e Henrich

Suso (1300-1365). A piedade marcante de suas proposições foi radicalmente seguida por fiéis

na Idade Média e influenciaram, entre outros movimentos, a Reforma.

A experiência religiosa é um ponto central para a Psicologia da Religião, sendo

integrantes de sua composição, o conhecimento e o afeto. Na afirmação de Geraldo de Paiva

(1998), as categorias de numinoso, infinito, divino, mistério, tremendo e fascinante, alcançam

o campo científico, especialmente voltado à vivência da pessoa religiosa. O objeto religioso

passa a ser um dado a partir da adesão religiosa individual, social e/ou institucional. O

vocábulo “experiência” denota sempre apreensão imediata de seu objeto, nada dizendo da

modalidade dessa apreensão. Para Friedrich Schleiermacher (2000), trata-se da apreensão do

Infinito, para William James (1995) do Divino, para Rudolf Otto (1985) do Sagrado.

Schleiermacher (2000) afirma que todos conhecem através da própria consciência três

direções distintas dos sentidos: uma em direção ao interior, isso é ao próprio eu; outra em

direção ao indeterminado da visão do mundo; uma terceira que oscila e une ambas, que só

repousa a aceitação incondicional dessa união mais intima em direção ao perfeito de si. Em

seus escritos, se encontra assim:

Esse reconhecimento do estranhamento e a destruição do próprio que se impõe por onde for ao homem sensato essa exigência simultânea de amor e desprezo em direção a todo o finito e limitado estranhamento e a exigência simultânea de amor e desprezo em direção a todo finito e limitado, não é possível sem um obscuro pressentimento do Universo. (Schleiermacher, 2000, p. 95)

Existem dificuldades de circunscrever a experiência religiosa mística, nas

multiplicidades de formas e sentidos que lhe são atribuídos na história dos povos e das

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religiões. Raph Hood (1997) construiu uma escala para investigar características da

experiência mística, porém seu uso, fidedignidade e abrangência, estão limitados pelos fatores

acima descritos.Para o eminente psicólogo Willian James (1995), a experiência mística é a

fonte de referência para as demais experiências religiosas, uma vez que se constitui como o

modelo original de vivência da qual derivam. As características que distinguem a experiência

mística são: passividade, inefabilidade, qualidade noética e transciência. Esses elementos

conjuntamente indicam um estado de consciência especial. James observa que para os

místicos a experiência é uma autoridade praticamente inquestionável, tendo em vista que se

trata de uma dimensão da subjetividade, constituída pela característica da imediaticidade da

percepção. Nesse sentido o estado de fé e o estado místico são praticamente intercambiáveis.

Uma das funções mais relevantes dos estados místicos é sua capacidade de oferecer um novo

significado a eventos comuns do cotidiano, das relações sociais ou da subjetividade,

possibilitando que novas formas de expressão seja criadas e que se alterem afetividade

aspectos sócio-culturais de um dado contexto. Sobre esse aspecto, escreveu James (1995 p.

266):

É preciso que sempre permaneça em aberto a questão de saber se os estados místicos não podem ser pontos de vista superiores, janelas através das quais a mente olha para um mundo mais extenso e abrangente. A diferença das vistas percebidas das várias janelas místicas não nos impede de acalentar essa suposição O mundo mais amplo, nesse caso provaria que tem uma constituição mista como a deste mundo mais nada Teria as suas religiões celestiais e infernais, seus momentos de tentação e salvação, suas experiências válidas e infernais, seus momentos de tentação e salvação, suas experiências válidas e forjadas, precisamente como as tem o nosso mundo. Mas seria um mundo mais vasto do mesmo jeito. Teríamos de usar as suas experiências escolhendo, subordinando e substituindo, exatamente como costumamos fazer nesse mundo naturalístico comum, estaríamos sujeitos ao erro como estamos agora; entretanto a inclusão desse mundo mais amplo de significados e o trato sério com ele, apesar de toda a perplexidade, podem ser estádios indispensáveis do nosso enfoque da plenitude fina da verdade. (James, 1995, p.266).

A esta altura pode-se enfrentar a pergunta: de que maneira as Ciências Sociais tomam

o misticismo como objeto de estudo? A explicação sociológica para o misticismo baseia-se

assim na idéia de que a experiência mística não é um estado emocional individual apenas, mas

sim o acordo ou o produto dessas tendências com as forças sociais de um dado contexto. A

objetividade das representações sociais fornece a matéria prima para a construção dos estados

místicos subjetivos. É na tradição histórica, no campo dos valores simbólicos e morais que os

sentimentos surgem e se manifestam. Cada indivíduo enquanto elemento de um grupo social

tem que se haver com a tensão que emana dessas duas forças, cabendo- lhe encontrar

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modalidades de relação com as tradições e fazer delas a fonte de transcendência para um novo

eu. A originalidade do místico se compõe na forma como cria e tematiza essa tensão: parte é

individual, parte são os dogmas, as crenças, os gestos, a linguagem que o permeia enquanto

membro de um grupo religioso ou ao menos social.

Max Weber pode ser considerado um dos sociólogos que se interessou pelos

fenômenos místicos, haja vista que por ocasião de seus tipos ideais, encontra-se a oposição

entre magia e religião. Magia e religião se identificam enquanto conjunto de práticas e ações

que se constroem em torno do extraordinário, ou seja, do carisma. Para ele, o carisma se

identifica com o que se pode chamar de mana, prenda, maga, dom. A característica principal

é ser extraordinário, podendo ser atribuído aos indivíduos, objetos e em certos momentos a

toda coletividade. Um exemplo desse tipo seriam as orgias, o que Durkheim chamaria de

efervescência religiosa. Os tipos ideais para Weber são “construções heurísticas que não

podem ser comparados a fenômenos empíricos, mas a recursos metodológicos de valor

instrumental”, afirma Cecília Mariz (2003 p. 78). A coerência que se encontra nos tipos ideais

não é possível de ser observada na realidade. Assim podem ser considerados os três tipos de

ação social denominados por Weber de tradicional, carismática, que correspondem

respectivamente aos profissionais mago, sacerdote e profeta. Em sua obra Economia e

Sociedade, Weber (2000) afirma que o profeta tem seu poder sustentado pela tradição,

enquanto o mago tem seu poder conferido pela instituição, dogmas, doutrinas, teologias

racionais e finalmente o profeta por suas características extraordinárias, ou seja, seu carisma

pessoal. Já para realizar certos tipos de análises sociológicas, Weber opõe o mago ao

sacerdote nos seguintes aspectos: o mago tem qualidades (mana) que o fazem capaz do

“obrigar” o sobrenatural a realizar seu pedido, enquanto o sacerdote teria uma postura mais

submissa em relação à divindade, fazendo orações, súplicas pedidos ou rituais reconhecidos

pela instituição a qual pertence para tentar alcançar seu objetivo junto a divindade. O mago

tem uma postura de autonomia em relação à organização institucional, e quando falha em seus

pedidos pode perder o poder que o grupo lhe outorga, enquanto o poder do sacerdote emana

diretamente na confiança que o fiel depositaria na instituição, tendo um contato menos

personalizado com a divindade, pois fala em nome de uma crença ou dogma

institucionalizado.

Tanto a magia quanto a religião para Weber (2000) seriam racionais, mas obedeceriam

a lógicas diferentes. Enquanto religião pode tender para a sistematização da experiência

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religiosa, criando dogmas e doutrinas para a relação indivíduo-divindade, a magia utilizaria

um raciocínio prático e imediatista. Ainda pensando em certa variação da tipologia weberiana,

Mariz (2003) assinala que o racionalismo do ocidente não pode ser entendido através da

oposição simples entre magia e religião, sem se considerar a ação do profeta emissário que

seria um especialista do carisma, que tem o poder de efetuar rupturas fundamentais no sistema

religioso, podendo ocupar o papel do revolucionário. Nesse sentido são identificáveis dois

tipos de profetas: o emissário e o exemplar. Observa Mariz (2003) que via de regra os profetas

emissários pregam religião de salvação, em oposição à religião ritualística e práticas mágicas:

em nome da ética, fazem uma substituição da lógica da magia para princípios fraternais e

universalistas. Nesse sentido representaria uma postura mais moralista, favorável a

institucionalização da religião, sendo seu tipo o do “carisma racionalizante”. Em contraste

com esse tipo, a magia seria uma prática sustentada por regras particularista, enfatizando a

relação puro/impuro e os tabus. Os profetas emissários no oriente tem por objetivo a

transformação da religião e da vida, propondo para essa finalidade leis e práticas religiosas

que eram cobradas de todos os fiéis. Já os profetas exemplares defendem uma religião de

salvação de tipo contemplativo. O primeiro conduziria a ascese, enquanto o segundo a

mística.

Max Weber (1982) conceituou o fenômeno do misticismo em contraponto ao

ascetismo, a partir da visão de condutas sociais em polaridades opostas: onde o místico busca

minimizar sua ação no mundo, indo ao encontro com o sagrado, o asceta prova-se através de

sua ação no mundo. No misticismo, o fiel tem uma visão de si como receptáculo do divino,

enquanto na religião de ascese, ele buscaria controlar seus impulsos e comportamentos para

controlar o mundo, o que é interpretado como uma vontade divina. Como Weber tece seu

pensamento no modelo de tipos puros, convém atentar para a idéia de que na realidade das

relações sociais, torna-se necessário buscar aproximações e não o comportamento em si

mesmo. Diante dessas formulações weberianas, Mariz (2003, p. 83) assinala que:

Uma diferença marcante é que a religiosidade mística tende para uma imanência e despersonalização do divino. Além disso, se constituem em experiência apenas para iniciados, os virtuoses religiosos, como o seria também uma ascese fora do mundo. Por isso a mística e ascese fora do mundo não afetam a conduta da maioria de fiéis no cotidiano. Em contraste, a religião ascética dentro do mundo exige uma transformação de todos os fiéis e de cada um como um todo. A racionalidade do ocidente se construiu sobre uma idéia de ascese no mundo e personalização do divino, que para Weber já estariam presentes no judaísmo e cristianismo primitivo. (Mariz, 2003, p. 83).

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Alexandre Cardoso (1998) mostra a importância do conceito de misticismo subjacente

aos tipos ideais em Weber, tendo em vista que esse autor permite uma confrontação empírica

com vários tipos de conduta, que muitas vezes podem ultrapassar o realizado pelos estudos de

Weber. De acordo com Cardoso (1998, p.4), o indivíduo que tem uma conduta mística,

considerada em todas as suas variações, criaria rotas de fuga do mundo, que, consideradas na

sua relação com a modernidade, nada mais são em suas formas geradas no contexto da própria

modernização. Em oposição à sociologia de Durkheim, Cardoso evita o termo sagrado, “pelo

estatuto de realidade suprema que ela costuma assumir nessas tradições”, referindo-se

também a posição de Mircea Eliade. O termo extramundo é preferencialmente utilizado por

Cardoso (1998) para designar o território invocado pelo místico, em uma atitude de

passividade: deuses, espíritos, oráculos, forças telúricas, o milênio, a magia, seres extras e

infraterrestres, energias sutis que se comunicam. Vistas como rotas de fuga pelos fiéis, as

religiões tradicionais fariam uso da mística, muito mais do que da ascética, como estratégia de

crescimento. O misticismo pode ser definido como a orientação do indivíduo ou de grupos

sociais “para as realidades que se abrem para além dos limites definidos pelas relações e

percepções ordinárias e que são referências recorrentes, mais ou menos intensas, para a

orientação de quaisquer indivíduos que passam por situações consideradas por eles próprias

como limites” (Cardoso, 1998, p.9).

Aproximando-se das idéias do sociólogo Pierre Bourdieu, Cardoso (1998) afirma que

se podem reconhecer os agentes sociais e porta vozes especializados em religião, chamados

de “mistificadores”, em relação com os “mistificados”. O discurso mistificador é aquele que

consegue provar ao mistificado que sua experiência limite pode ter um significado e que ele é

o agente capaz de realizar essa tarefa. Assim, cria-se um contrato, no qual especialistas

religiosos sejam eles indivíduos ou instituições tradicionais, operam o campo simbólico, com

os elementos significativos da cultura religiosa, oferecendo uma organização aos estados

limítrofes experimentados pelos mistificados. O mistificador isenta-se de toda

responsabilidade por sua condição de sujeito, colocando-se na posição de quem apenas

representa as forças simbólicas do extramundo. O tipo extremo desse teatro social seria o

aprendiz de mistificador, como agente da razão, que coloca ordem no caos, vivido como

situação desaranjadora, ou limite pelo mistificado.

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Aqui se estabelece um jogo de poder, em que as imposições feitas pelo mistificador

lhe garantem um lugar neutro, ocupado tão somente pelo extramundo. Ao se colocar o

protestantismo como uma das religiões que comporta a presença do misticismo, pode-se

perguntar se não é a própria idéia de racionalidade que é mistificada, uma vez que é posta

como a modalidade por excelência de organizar a sociedade, tendo em sua forma ética, o pilar

dessa possibilidade. Ou ainda se os agentes mediadores da relação fiel-divindade não imantam

seu discurso, com a idéia de que uma vez que sejam naturalmente fundamentados na razão,

como as representações do próprio sagrado em pequenas porções de interpretações que não

estariam sujeitas a quaisquer tipos de questionamentos. Deste modo o mistificador cumpriria

o que Cardoso (1998) chama de dupla negação, a saber, do mundo e do extramundo, uma vez

que sua atitude se mostra desassombrada e manipulativa frente ao campo “do além” dos

limites com o qual opera.

A procura por orientações teóricas e conceituais que permitam clarificar o

fenômeno do misticismo a partir da ótica das Ciências Sociais encontra as idéias de Roger

Bastide (1959), que tem papel de destaque e relevância, dado sua literatura sobre o assunto,

já bastante conhecida. Além disso, Bastide realizou estudos na sociedade brasileira, o que

abriu um horizonte aos pesquisadores que se situam nesse universo. Bastide (1971) realiza

uma leitura que advém do contato constante com o campo, orientando como fazê- lo de

modo profundo, claro e fundamentado, o que serve de guia aos cientistas, em suas

diferentes tarefas metodológicas e teóricas. Ainda torna-se relevante considerar que, como

toda experiência religiosa, o misticismo se insere em uma esfera de poder, na qual o

indivíduo pode expressar modos de alienação frente ao seu grupo, bem como modos de

protesto contra uma ordem social e religiosa vigente, ou ainda intencionar a preservação de

certos valores e elementos enraizados na cultura.

De acordo com Bastide (1971), mesmo que o indivíduo esteja sujeito a influências da

tradição religiosa, guarda em seu interior algum elemento original que pode ser expresso em

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sua experiência religiosa. Essa singularidade por assim dizer vista em seu meio social,

interage com circunstâncias históricas, estruturas da sociedade, alterações econômicas e

morfológicas, dando origem a um misticismo em sua especificidade. Bastide (1959) afirma

que a religião nasce do misticismo, e que quase todas as Igrejas o concretizam. No entanto, se

o misticismo expressa o sagrado e o separa do profano, tende a ser canalizado, regularizado e

controlado, para finalidades de cada instituição, que, pela sua própria natureza, não pode

ceder tanto espaço para o espontâneo e o criativo que surge em cada grupo humano ou em

cada elemento de sua comunidade. Essa separação, no entanto, não significa seu

desaparecimento, mas sim que permanece como elemento oculto e presente na

intersubjetividade das relações sociais no seio da comunidade, ou ainda no interior do fiel,

resistindo a domesticação e constituindo o “sagrado selvagem”.

Nesse sentido, é possível afirmar que o misticismo está tanto no nascedouro e base de

qualquer religião, como também no topo, até porque uma de suas finalidades é conduzir o

homem a uma vida de santidade. Essas idéias de Bastide estão de acordo com as de Rudolf

Otto conforme observado por Bruno Birck (1993) quando afirma que o conhecimento do

religioso pode advir tanto pela via racional, que conduz a essência e existência de Deus, como

pela via extra-racional. Logo, o elemento intelectual de certo modo é anulado do ponto de

vista de ambos os autores.

Cabe lembrar que o sentimento tem uma relevância especial na percepção do objeto

para Otto (1992), uma vez que elimina as mediações, permitindo que se chegue a um contato

imediato com o sagrado. Ressalta Otto que a visada afetiva é que permite penetrar o mistério,

inacessível à razão, distinguindo dois estados: um de temor intenso (tremendum), que à

medida que enfraquece cede lugar ao estado de fascínio, e arrebatamento (fascinans), que se

expressa na embriaguez ou no desmaio, chamado de sentimento criatural. O temor intenso é a

percepção inicial da dimensão do sagrado, quando o fascínio denota a consciência da

pequenez e a prostração advinda desse contato com o numinoso em sua plenitude.

Clarificando a emoção que ocorre no contato com o numinoso, Otto (1992, p.21-23) afirma

que pode espalhar-se na alma como uma onda apaziguadora, seguido de quietude e profundo

recolhimento. Seus efeitos podem prolongar-se durante muito tempo, ou desaparecer quando a

alma se coloca novamente em seu espaço profano. Ressalta manifestações como choques e

convulsões, enebriamento, estranhas excitações e êxtase. Contempla o aparecimento de

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formas selvagens, demoníacas. Em graus inferiores, surge como manifestações bárbaras,

brutais, desdobrando-se em processos de refinamento, purificação e sublimação. Silêncio e

interdição de movimento são sinais da alma diante do mistério que está acima das criaturas.

Nesse estado, seus efeitos acessórios são a fé na salvação, confiança e amor.

Observa também Otto (1992, p. 30-33) que há pontos em comum entre as idéias de

Mestre Eckhart e Gerhard Tersteegem que apontam, nas tendências místicas, para

características como o juízo de que o ser humano não possui uma realidade plena e completa,

essencial, reduzindo-se às vezes ao puro nada quando contrastados com o sagrado. A

individualidade torna-se assim uma ilusão diante do objeto transcendente, fazendo com que a

pessoa tome consciência de que nesse tipo de experiência seu eu é aniquilado. Tem-se contato

com a glória, o desvelamento, a luminosidade e o esplendor. Toda a piedade e obediência

avaliadas segundo esse ponto de vista mostram sua origem divina. O numinoso comporta

ainda traços energéticos, podendo ser identificado simbolicamente, como vida, paixão,

movimento, vontade, atividade, excitação e impulso. Esse elemento anti- racionalista é

identificado por Otto (1992, p.34) em Lutero, contra Erasmo. “A Omnipotentia Dei é à força

de Deus que não conhece obstáculo, nem repouso, que age e subjuga, do Deus vivo”. Ressalta

ainda que, no misticismo, é a mesma energia que se mostra enquanto voluntarista. É um

movimento impetuoso, experimentado com sensações de devoração e queimação, fazendo

com que seja difícil tolerar a aproximação com o sagrado, que se mostra esmagador e

absoluto em seu poder. Ser devorado pelo fogo é uma expressão representativa dessa

experiência.

O estado de pecado é descrito por Otto (1992) como o “não-valor numinoso”, quando

há a falta de moral, a anomia torna-se infâmia e sacrilégio. Podem existir posições de

racionalismo moralista, demonstrando respeito pela lei moral, porém sem a necessidade de

redenção ou de expiação. Este último elemento é a base da piedade, especialmente no

cristianismo. A aproximação do sagrado faz nascer no homem a necessidade de purificar-se,

de pedir auxílio para que existam condições de apego e refúgio. Nesse processo, a fé tem um

papel fundamental como anunciante dessa possibilidade, como traço do devir, como intuição

do indefinível. O irracional é o elemento, que conduz da obscuridade à luz.

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Os estudos de Bastide (1959) concluem que existem dois movimentos místicos que

podem ser identificados: um afirmativo e outro negativo. O afirmativo segue a direção de

libertação do homem das estruturas sociais das quais se sente prisioneiro, e que tende para a

exaltação da vida, da alegria e do êxtase. O outro é um movimento em direção ao nada, ao

despojamento ou ao suicídio. Suas manifestações variam de acordo com a cultura e a visão,

ocidental ou oriental, com a qual se relacionam. A essência do misticismo seja qual for a sua

manifestação, é a atitude de purificação de todos os elementos que separam o homem da

divindade exteriorizada. Ha tensão entre o profano e o sagrado, que visa purificar o religioso

do que não lhe é próprio por natureza. Dessa tensão fazem parte imagens, idéias,

pensamentos, desejos, anseios e memórias, que anulam e desviam a alma de sua rota rumo ao

sagrado e ao misterioso. Nesse sentido, pode-se pensar, como Bastide (1959), que

modalidades como a oração e o ascetismo, podem ser utilizadas como meios para se atingir e

orientar os estados místicos, mas não como fins em si mesmas. Afirma Bastide (1959) que o

misticismo é um fenômeno raro para o qual as explicações de cunho sociológico estão postas

como complementares às explicações psicológicas, desde que essas não se atenham ao viés

psicopatológico.

Bastide (1974), que estudou as teses psicopatológicas dos autores de sua época,

apontou que se podem diferenciar os processos envolvidos na doença mental, daqueles que

compõem o misticismo; este é visto como um esforço de criação de um novo eu e não como

modalidades de desintegração e dissolução, como propõe alguns psicólogos e psiquiatras,

referindo-se a processos como hipertrofia da atenção, da vontade, esterilização da imaginação

e empobrecimento do eu. Embora possam existir certas analogias, Bastide (1974) pontua que

não se pode generalizar, e que um dos critérios que se pode usar para estabelecer diferenças

entre os aspectos patológicos e não-patológico é o reconhecimento da atitude dos místicos

como Tereza D´Ávila e Francisco de Assis, cujas ações exerciam a função de organizadores

sociais.

Apesar do misticismo poder ser visto como uma forma de individualismo religioso,

essa forma mesma advém de suas relações com meios religiosos específicos, que lhe orientam

a expressão, os valores, e a inserção na tradição. Schmitt (1993) recorda que mesmo a

experiência mística, como qualquer experiência religiosa, não ocorre de maneira pura, e sim

mediada pela cultura, cosmovisão, atrelada a um contexto sócio-histórico específico, que a

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organiza e a torna comunicável. Bastide (1959) mostra que o Deus que se encontra no interior

do místico e que em princípio lhe é único tem sua matriz no campo simbólico de seu grupo

social, podendo o cientista traçar relações entre forma e conteúdo. Mais do que isso, o contato

direto do místico com a divindade aponta para o passado, encoberto pela institucionalização

do sagrado, e pelo universo simbólico sustentado por interesses diversos da religião. Escreve

Bastide sobre as expressões e experiências religiosas do místico:

O que parecem trazer de novo, não é, mais do que o antigo, mas o antigo esquecido há muito tempo. E, ao fazê-lo, podem certamente arriscar-se a projetar no passado os seus atuais sentimentos pessoais, a sua maneira de ver, e a Igreja lá está, então para os expulsar da comunhão dos fiéis ou para controlar os seus êxtases e colocá-los nas normas da tradição eclesiástica. É assim que os místicos identificam os seus sentimentos confusos e suas iluminações rutilantes como os dogmas dos livros sagrados, do Corão ou da Bíblia. A respeito desta identificação do Deus interior inefável com o Deus da tradição tem a sociologia, ou pelo menos a psicologia social, qualquer coisa a dizer (Bastide, 1959. p. 172 -173).

O misticismo pode ser visto também como um método de conhecimento ou uma

tentativa de ultrapassamento de certas condições sociais e psicológicas que condicionam o

modo de ser do homem em sua busca pelo sagrado, e que assim propõe a intuição que se torne

o guia de sua abertura. A visão de Bastide (1959) nos conduz assim a um método que aponta

em um primeiro momento para o conhecimento do fenômeno em si, visando descrever suas

formas e manifestações de modo detalhado o que deve ser objeto de descrição cuidadosa e

minuciosa por parte do sociólogo. Os afetos, os gestos, os rituais, os estados e as experiências

místicas tornam-se assim objeto de rigorosa observação por parte do pesquisador. Para tal se

faz necessário que se construa uma atitude de despojamento de valores e preconceitos que

devem ser objeto de análise e suspensão, possibilitando um olhar mais aberto para o

fenômeno, que deve mostrar-se por si mesmo. “O preciso para emitir, a respeito do

misticismo uma opinião justa seria uma série de monografias laicas sobre contemporâneos e

feitas também por contemporâneos com uma sólida cultura científica e um sentido crítico

aguçado” (Bastide, 1959 p.17).

Visando encontrar elementos para uma antropologia mística, Velasco (1999) ressalta a

existência de três modalidades de reação do ser humano à presença de Deus. Pode-se não

perceber suas insinuações, mantendo-se na indiferença, e no controle de todos os fatores que

perturbem o andamento do cotidiano. A segunda maneira é a rejeição pura e simples,

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implicada na atitude atéia, na qual Deus passa a significar um tipo de conceito ou idéia que

circula na linguagem, sem distinção ou significância. Essa atitude pode ser reconhecida no

desespero diante da vida, no niilismo, no isolamento e na proposta de autonomia absoluta. A

terceira modalidade requer a aceitação e acolhida da presença de Deus pelo homem, o que se

traduz em uma atitude de fé. Abaixo dessa atitude está o desejo do encontro com a divindade,

posto de tal modo que ao seguir ao seu encontro já não é possível a distinção da origem de tal

atitude, o que freqüentemente é atribuído ao divino. A ocorrência da via mística pode se dar

fora do âmbito das religiões, exemplos que se encontram em Plotino e nos neoplatônicos. Ao

apontar o caminho místico, Plotino descreve seu início como uma visada do exterior para o

interior, do múltiplo à unidade. A atitude de conversão requer assumir o Bem como valor

supremo e dedicar-se a ele, através da força do desejo que o orienta.

De acordo com Velasco (1999), pode-se distinguir nas religiões dois traços análogos

aos descritos por Plotino (205-270?): 1) o reconhecimento da transcendência- imanência que

está em sua origem muda radicalmente a atitude, no sentido de que se torna passivo diante da

pretensão de ser controlador dessa experiência. Tal atitude manifesta-se como fé, provinda do

reconhecimento da alteridade e de quão passageiro é a estada nesse mundo, provocando a

necessidade do êxodo, da saída de si, do êxtase, da transcendência, que se apodera dos fiéis de

diversas tradições. Paradoxalmente, significa ser si mesmo, por intermédio do outro, logo, ir

ao encontro da verdadeira natureza humana, quer dizer salvar-se pelo outro e através do outro.

Cada forma de reação à presença segue os rituais, dogmas e modelos de concepção que essa

presença se faz marca e traço cultural, além de experiencial. 2) o olho da Alma, como

proposto por Agostinho, conduz à semelhança, à assimilação e à divinização do homem, que

assim se vê espelhado em sua natureza. A fé passa a ser a conversão do coração a Deus, o

qual é descrito, em sentido bíblico, como o centro ordenador e organizador da vida de uma

pessoa. Assim posto, o coração passa a direcionar-se para uma purificação de um modelo de

vida que faça a identificação entre o divino e o humano. Por isso, Velasco (1999, p.282)

sugere que a experiência mística assim concebida tenha sido condenada pelo Concílio de

Trento, uma vez que a graça vista dessa forma iria estimular a interpretação de que o fiel não

necessitaria das mediações institucionais para se tornar “a imagem e semelhança de Deus”.

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1.2 Misticismo e Protestantismo

Na História do Protestantismo Brasileiro, e a busca de suas origens Antônio Gouvêa

Mendonça (1990) observa que o movimento conhecido como “evangelical” surgido na

Europa e estendendo-se aos Estados Unidos, chega ao Brasil, em 1903. Seu objetivo era unir

as igrejas protestantes em torno de princípios ordinários comuns que a reforçassem

internamente para enfrentar o expansionismo do ultramontanismo católico. Essa proposta de

“frente unida” deu origem em São Paulo, a Aliança Evangélica, cujo presidente foi o

missionário metodista Hugh Clarence Tucher. Desse modo a Era Missionária percorreu todo

o século XIX até I Guerra Mundial que correspondeu em termos econômicos-políticos à

expansão do capitalismo mundial, que tinha por finalidade recuperar e preservar a força das

Igrejas da Reforma e unificar a mensagem religiosa de modo a evitar confusões

denominacionais nas áreas missionárias, afirma Mendonça (1990, p. 15). Esse autor esclarece

que a auto-identificação de “evangélico” era individual, significando o compromisso da

pessoa com o conjunto de princípios doutrinários, antes de pertencer a essa ou aquela

denominação. Algumas denominações adicionaram esses termos ao seu nome como as

Luteranas e Congregacionais. Quanto ao termo “protestante”, bem como “crente” suscitou

polêmicas quanto a sua utilização pelos fiéis e as denominações protestantes, uma vez tendo

sido alvo de identificação preconceituosa, especialmente por parte a Igreja Católica. A

assimilação dos valores do Protestantismo missionário brasileiro se deu especialmente pela

prática religiosa itinerante dos missionários, pela imprensa e pela literatura, paulatinamente ao

crescimento da Igreja Protestante, enquanto representante da institucionalização da religião.

Na perspectiva de Mendonça (1990) o Protestantismo missionário brasileiro teve sua origem

no continente americano e não no europeu. Evidentemente existem raízes da Reforma inglesa

na fundação do movimento protestante americano, porém sua característica principal, seria o

pragmatismo. Essa tendência impregnaria o modelo cultural brasileiro da idéia de “trabalhar

para transformar”, uma vez que o missionário tinha a sua identidade formulada a partir da

concepção de “obreiro”. Desse modo as observações de Èmile-G. Leonard de que o

Protestantismo missionário brasileiro de distanciou dos ideais da reforma do século XVI,

eram explicados quando se considera as diferenças marcantes da influência do roteiro

expansionista do protestantismo, que atravessou os Estados Unidos reproduzindo no Brasil

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traços da religião civil norte-americana, o que ao ver de Mendonça (1990) geraria uma tensão

entre culturas:

Na medida em que esse protestantismo reforça sua auto-identificação ao preço de seu relacionamento com a sociedade, torna-se pouco atraente para as camadas populares ao defender valores burgueses de colorido estranho ao spectrum cultural brasileiro (...) Há algumas causas prováveis que podem ajudar a entender e explicar como o protestantismo de origem missionária resistiu a essas tensões. Primeiro sempre houve forte apelo religioso no protestantismo em virtude do incentivo a piedade individual e da independência pessoal quanto à obtenção da salvação, por sua vez a ética ascética ligada á rejeição do mundo pareceu ir ao encontro daqueles que tinham motivos suficientes para não estar satisfeitos numa sociedade sempre desajustada e desigual como a brasileira. Segundo, o protestantismo no Brasil organizou-se e cresceu sob o primado do leigo (...). Terceiro, a hegemonia econômica-política do mundo anglo-saxão agora representada pelos Estados Unidos, nunca deixou de injetar energia nos grupos protestantes. (Mendonça, 1990, p. 22-23).

Entre as idéias principais da Conferência Missionária de Edimburgo (1910) está a equação de

que “cristianizar” é equivalente a “colonizar”, o que se afinou com as propostas calvinistas de

“reino de Deus” e “povo escolhido”. Os missionários americanos entendiam essas diretrizes

como “expansão do reino” e seus movimentos nessa direção incluem não só esforços

educativos, mas divergências quanto às estratégias e práticas religiosas para empreender essa

ação. Do ponto de vista de Mendonça (1990) o modelo conversionista preponderou no

protestantismo missionário, caracterizando-se pela experiência pessoal e emotiva, sendo um

movimento abrupto do indivíduo com seu meio cultural, adotando novos padrões de conduta

diferentes da sua cultura “de origem”. Desse modo, via de regra “conscientizava-se o fiel de

que era pecador”, e uma vez imbuído de culpa, eram anunciadas a salvação, justificação e

santificação. Paralelamente a esse processo havia uma tendência educativa, mais afinada com

o protestantismo calvinista, de transformação cultural, especialmente educativa, que culminou

com a fundação de escolas, no esteio das “escolas dominicais”, porém realizado de forma

mais lenta, e menor abrangência uma vez comparada ao movimento conversionista afirma

Mendonça (1990).

Ao estudar as representações do Protestantismo no Brasil Republicano (entre 1910-

1920), Santos (2002) aponta para as mudanças e particularidades que se processaram no

encontro entre a mentalidade protestante e a realidade brasileira. Os missionários protestantes

introduziram a Bíblia para leitura individual, de modo comunitário, depois da primeira metade

do século XIX. Essas práticas atendiam as demandas crescentes do mercado em expansão e ao

mesmo tempo instituíam legitimidade aos discursos dos missionários estrangeiros. Com isso,

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muitos outros textos foram se propagando, criando costumes e hábitos próprios ao

protestantismo, contribuindo para fixar e expandir sua doutrina e combater o catolicismo.

Jornais, sermões, doutrinas sistematizadas, manuais de culto, panfletos, traduções de textos da

Europa e Estados Unidos estão à espera de estudos mais especializados que possam apontar

não só a qualidade e o sentido de sua produção, bem como a forma de apropriação pelo leitor

brasileiro. Um aspecto importante a se considerar é que essas leituras eram valoradas de

forma significativa, tendo em vista que, no imaginário do fiel, representavam composições

“atemporais, e fundadoras de verdades inquestionáveis porque estavam revestidas de uma

autoridade”. (Santos, Ibid, p. 2). Os textos podem ser vistos como possuidores de um certo

carisma, ou seja, relacionados diretamente ao sagrado, ou escritos sobre sua inspiração,

estendendo esse valor cultural à autoridade que o anunciava, sendo muitas vezes portadores

de um sentido que ia se sedimentando desde a Reforma do Século XVI, e que ia se

especificando em cada ramo do Protestantismo.

Considerando que possam ter havido projetos protestantes para a realidade brasileira,

estes implicavam o domínio e a conquista do espaço simbólico através da conjugação entre

religiosidade, intelectualidade e política, na figura central, profética e messiânica do

evangelista. Conforme discurso colhido na época, e atribuída por Santos (2002) a um pastor

da Igreja Evangélica Fluminense, os evangélicos seriam brevemente uma força nacional, com

chefes intelectuais dispondo de uma grande massa, ciente de seu dever religioso, obediente

aos códigos e reconhecidos pela sua pureza de espírito e um senso moral inigualável. O

mundo é visto como um campo para o progresso através do trabalho, funcionando por si

mesmo, sem a interferência divina de modo direto, mas sim através de um discurso que traz a

felicidade. Nesse sentido, a prédica dos missionários reafirma os ideais protestantes baseados

na teologia pietista e nos avivamentos.

Dentro dos parâmetros acima mencionados, Santos (2002) refere-se ao clássico da

literatura protestante “O Peregrino”, de John Bunyan, que faz uma alegoria da situação de

conversão e da vida cristã do fiel. A mensagem central é que existe um plano de Deus para

cada fiel, que preexiste a sua vinda ao mundo e as suas decisões, fazendo de cada ser humano

um passageiro, um caminhante entre um mundo humano e um plano celeste, cujo destino já

está no horizonte. Veja-se o texto de Santos (2002, p.3):

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O Protestantismo tentou desconstruir o sistema religioso baseado numa culpa ritualizada e exteriorizada e internalizou-a como forma de domínio mais eficaz do corpo e das paixões, transpondo o conflito entre desejo e obrigação. O protestantismo projetou-se no cotidiano das pessoas no momento oportuno e coincidente das mudanças tecnológicas inseridas no espaço público e doméstico. Daí podermos relacionar a constituição do protestantismo com a modernidade e suas transformações.

Essas afirmações mostram como o pesquisador do Protestantismo, tem ainda pela

frente importantes tarefas na clarificação de como se deu a relação entre Protestantismo e

cultura brasileira, incluindo o que podemos vislumbrar como possíveis aspectos do

misticismo, quer considerando a figura do pastor, quer os processos implicados no imaginário

da leitura e nas ressonâncias do texto bíblico, bem como as diversas práticas religiosas,

envolvendo o culto e suas repercussões nos participantes. Ainda a iconografia, por mais

simples que possa ser, quando comparada ao catolicismo, requer um olhar pormenorizado,

para significados de suas formas simbólicas. A visão de paraíso, com seus braços estendidos

ao progresso, a tecnologia, a va lorização do trabalho e a razão impressa nas ações do

cotidiano, podem profetizar e iniciar sua presença.

Em seu ensaio sobre a hermenêutica protestante, Kawauche (2001) escreve que há um

elemento oculto na interpretação da Bíblia tal qual é ensinada nos seminários e faculdades de

teologia. Seu raciocínio segue na direção de que, embora a Reforma tenha intencionado o

livre exame do texto sagrado como uma postura que seria fundamental na construção da

subjetividade religiosa do fiel, sua prática interditou essa via. Baseando-se nas idéias da

Psicanálise e na tese de doutorado de Buchvitz (2000), Kawauche (2001) afirma que a

consciência da massa popular foi imposta pelos líderes religiosos. Isso conduz à idéia de que a

subjetividade das interpretações que possam ter ocorrido, permanecem inéditas na prática, ou

no discurso oficial, como se fosse um “quarto secreto (...) trancado a sete chaves, nunca visto

por ninguém, nem mesmo pelo próprio dono da casa” (2000, p. 6). Apoiando-se ainda no

filósofo Sören Kierkegaard (1813-1855), para quem verdade é subjetividade, Kawauche

(2001) sustenta que a verdade única não faz sentido algum, uma vez que cada sujeito pode ter

não só uma interpretação, mas várias as interpretações. A saber:

Afirmo que a essência da hermenêutica protestante se encontra na subjetividade de cada intérprete que tem acesso ao texto bíblico. Se a interpretação é alegórica ou literal, isso é uma questão secundária. A questão primária tem a ver com a subjetividade (ou interioridade) da interpretação. O que está em jogo não são

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modalidades hermenêuticas, e sim formas individuais de conhecer a realidade por meio de um símbolo (o texto da Bíblia). Afirmo também que o texto bíblico tem natureza simbólica e, portanto, limitar sua compreensão a uma leitura histórico-gramatical seria diminuir a riqueza do próprio texto. (Kawauche, 2001, p. 9-10).

Para os estudos do misticismo, Kawauche(2001) nos leva a pensar que a

“interioridade” pode corresponder aos estados descritos por Roger Bastide como “sagrado

selvagem”. Uma porção da experiência religiosa, oculta aos ditames oficiais da instituição,

está presente para o olhar aberto dos que vão além das aparências do fenômeno. Neste caso,

as relações entre a subjetividade e a objetividade são laços da construção cultural.

As idéias de Lutero são mencionadas por Jean Delumeau (2003) em seus estudos

sobre o imaginário social, que sustenta as idéias de paraíso. Ele faz referências a imagística

cavalheiresca, que exortavam o fiel a fugir da Babilônia e rumar para a cidade celeste. A

leitura da Bíblia seguia a rota de novo céu e de uma nova terra. Mostrava-se bem contido em

configurar imagens e detalhes da vida eterna. Direcionava os fiéis a frear sua imaginação

interpretativa e tecendo um giro ao indicar que o reino de Deus não estava no exterior, mas no

interior. Portanto, o reino não estava distante, mas dependia de cada um iniciar um processo

de buscá-lo em si mesmo. A presença do céu se dá pela fé, e todo fiel deve desconfiar da

imagem corporal do além. A fé é um movimento em relação à palavra divina e torna-se

necessário ser prudente em relação à imaginação, que bem pode servir para as ilusões do

diabo. Calvino, segundo Delumeau (2003), também estaria na esteira de Lutero, sugerindo

que não se desse muita importância às visões dos místicos. Ao invés disso, uma série de

práticas religiosas poderia compensar a ausência dessas visões, como, por exemplo, os

cânticos coletivos, especialmente os corais, que foram ganhando ao longo do tempo grande

destaque na difusão do protestantismo.

Utilizando o termo “sobriedade protestante”, Delumeau (2003) mostra que a imagem

do céu é vivida na alma, em um processo de internalização da escatologia e a recusa de

concretizar o paraíso. Ora, existem dois discursos sobre o paraíso. Um deles se realiza através

da criação imaginária de imagens e o outro, sem imagens, é recolhido da alma do fiel. Para

Delumeau, “o céu é vivido pela alma que soube fechar os olhos, tal é em suma a experiência

mística” (2003, p.476) vivenciada pelos fiéis que se situam no protestantismo. Assim, as

transformações sofridas pela fé com a Reforma conduzem a uma visão mais fideísta que

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realista, quando comparada à profusão de imagens criadas pelo cristianismo nos séculos

anteriores.

Esta idéia da interiorização da escatologia é também corroborada por Antonio

Nascimento Filho (1999), que mostra ser a teologia da Reforma dominada por duas perguntas,

a saber: como posso ter um Deus grandioso e onde posso encontrar a verdadeira Igreja. Essas

perguntas estão implicadas mutuamente tanto na teologia de Lutero, quanto na de Calvino.

Para ele, é a Palavra de Cristo que cria a Igreja e a torna viva, através da pregação constante.

Por meio desse ato, o Espírito Santo se presentifica e reúne a Igreja cristã. Esse seria um

aspecto de concordância entre as várias denominações protestantes, que perpassa o ensino dos

reformadores sobre o mistério e o seu conceito de missão. Em Calvino encontra-se a idéia de

povo reunido. O que constitui a Igreja externamente é a aliança entre Deus e seu povo e,

internamente, a união com Cristo por meio de Espírito Santo. O que Cristo recebeu por sua

união com o Espírito Santo, e que constitui os ofícios, transborda em bênçãos aos fiéis.

Cabeça da Igreja, Cristo opera em seu interior distribuindo dons distintos aos fiéis, que têm

então alguma tarefa a cumprir no interior dessa instituição, ou para seu crescimento. De certo

modo, isso mostra que todos os crentes são sacerdotes e, através de sua união com Cristo,

podem interpretar livremente a Palavra. Essas funções dos fiéis podem ser exercitadas por um

tipo de atitude mística, que é a devoção à Palavra. Todo leigo é parte do laos (povo) de Deus e

possui um ministério recebido de Deus que lhe permite edificar Sua Igreja.

Ao descrever o misticismo protestante secular, Mendonça (1998) afirma que uma de

suas formas é a relação com a letra, ou seja, com a leitura do texto bíblico. Mesmo que se

conceitue misticismo a partir de uma concepção de relação direta do fiel com a divindade, a

mediação da leitura bíblica está a serviço da busca da paz interior e de modos mais adequados

aos cristãos de estar no mundo. Para tal, encontram-se três finalidades: cognoscitiva, curativa

e exemplar. Seja o conhecimento de Deus, a busca da superação de problemas da vida

cotidiana ou ainda pelo estudo da vida de homens exemplares, para os protestantes trata-se do

reconhecimento de um desejo de uma união íntima com Deus, realizando as mais diversas

funções sociais, pessoais, psíquicas e teológicas. Ao ler algumas das idéias expostas no texto

desse autor, abre-se uma perspectiva de pesquisa sobre a intencionalidade do leitor do texto

bíblico. Isto é, como ele se dirige ao seu objeto de interesse, desejo, conhecimento,

imaginação? Aqui é possível atentar para os processos implicados na construção da

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intimidade. Intimidade é o sentido mais original da aproximação. É um tipo específico de

relação humana, cujo significado é levar adiante de si Maria Beatriz Cytrynowicz ( 1997, p.

37). Intimidade é, portanto, conduzir-se em direção ao que é próprio do ser. Ousar ir nesta

direção é experimentar a confiança, o riso, a tranqüilidade, o repouso, a familiaridade diante

do não saber, do insondável e do misterioso que permanece em si e no Outro.

Em se tratando da relevância atribuída à Bíblia pelo Protestantismo, vale lembrar que

o acesso às imagens e relatos de experiências místicas está ao dispor do leitor como fonte de

conhecimento, identificação, internalização e imitação, reprodução ou outras possibilidades

que merecem ser estudadas. Com exemplo das as experiências Místicas com Deus que

interpela o ser humano e se revela se encontram os escritos de João e Paulo, referidos como

conhecimento, experiência de transformação, comunhão com o Pai, e com seu filho Jesus

Cristo, mediante o dom do Espírito. A chamada atitude de passividade não pode ser

confundida com inércia ou inatividade, ao contrário é uma ação de conhecimento do mistério

divino, tal com esta nos Salmos que descrevem a vida espiritual de profetas e de experiências

de oração: doçura das palavras Sl 119, 103; bondade de Deus Sl 34, 6-9, preenchimento do

coração humano 63, 4; só Deus dá a satisfação plena Sl 73, 25-26. Assim, a eleição dos

profetas por Deus significou uma irrupção e uma interrupção no modo de viver deles, que os

impeliu a agir, que pode ocorrer como o encontro com a Palavra como está em Am 7, 14-15,

Is 6, 1-13, 40; Ez 1-3. A experiência mística dos profetas também podem ser vividas como

visão: da glória como em Ez 1-3; experiência da presença Is 6; 1-13; força de dominação e

posse Am3-9; mão de Iahweh que se estende sobre o profeta Ez 3, 22; 8,1. Já no Novo

Testamento, encontra-se o escrito de Paulo (Gl 2, 20) “Não sou mais eu quem vive, mas é o

Cristo que vive em mim”; Cristo como o grande místico que vive a experiência com o Pai e o

conhece: Jo7, 29; 8,55; 10,15 e o Pai manifesta- lhe tudo o que faz Jô 5,20; Jesus agindo sobre

a ação do Espírito Lc 3,22; 4, 1, 14,18 estão entre alguns trechos que forma citados como

exemplo, de acordo com Borriello et al. (2003, p.735-737).

No contexto protestante, quando se trata de construção de relação de intimidade com a

divindade, há que se falar em misticismo, abordando-o pela vertente pietista. O Pietismo,

através da obra de Spener Pia Desideria, deixa entrever quatro características principais desse

movimento, que podem ser descritas como: predomínio da experiência religiosa na vida do

crente, biblicismo, preocupação com o desenvolvimento espiritual de si e do outro, e reforma

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espiritual da Igreja quando houver tédio, letargia e práticas mundanas. Hermisten Costa

(1999) escreve sobre as ponderações de Paul Tillich ao avaliar o Pietismo, referindo-se a esse

movimento como mais moderno do que a ortodoxia, uma vez que está muito próximo da

visão subjetiva de homem moderno. Entender as idéias e a postura pietista de experiência

religiosa é dar um passo para a compreensão da teologia protestante depois da Reforma e até

hoje. Misticismo e racionalismo, nessa óptica, não só não se contradizem como são duas faces

do mesmo processo religioso. Conforme afirma Cardoso (2003), foi por meio do Pietismo

que:

(...) a fé passou a estar amparada não na palavra, mas sim em uma experiência mística individual. Dessa forma, ingressamos num subjetivismo religioso, que por vezes se degenerava numa preocupação exagerada com a situação da alma individual, que teria, necessariamente, de esfacelar-se em um número infindável de seitas, como de fato ocorreu. (...) Se o Pietismo chegou ao subjetivismo religioso por via espiritual, não tardaria a chegar à época em que outros concluiriam da mesma forma, só que por via racional. (2003, p. 10-11).

As idéias desenvolvidas por Cardoso (2003) se aproximam das posições de Velásquez

(1990) e Mendonça (1998). Para Cardoso, o Pietismo deu origem aos movimentos de

reavivamento e santificação que, aliados ao puritanismo, trouxeram o misticismo de volta

para o protestantismo. Trata-se de uma visão do ascetismo, que gerou o fanatismo como uma

forma de entusiasmo e tem relações diretas com o culto pentecostal. Ao ver de Velásquez

(1990), as chamadas religiões do espírito nascem, entre outros fatores, por causa da

incapacidade do Protestantismo de recuperar e manter o misticismo. Como foram reprimidas

as tendências ao fanatismo religioso, as manifestações de entusiasmo no culto, a fala em

línguas, a prática da cura divina e os sinais de salvação eram vistos como capacidade de

obedecer a regras, freqüentar as reuniões religiosas comportar-se de forma adequada e

exemplar em sociedade, prática de assistencialismo. Desse modo, o Pietismo passa a

encontrar nos ambientes mais informais como residências e pequenos templos um espaço

mais adequado à sua expansão e influência. Nesse sentido, a pesquisa pode se guiar por

documentação que revele a vida cotidiana das pessoas, como os jornais e a literatura escrita

por esposas de pastores, ou membros da comunidade que podem expor suas vivências em

situações não comprometedoras para a orientação protestante oficial.

Da perspectiva de Paul Tillich (1987) o Princípio Protestante tem caráter místico, uma

vez que é profético na sua proposta crítica e criativa. O primeiro aspecto (crítica) é voltado à

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idolatria, indagando sobre a qualidade da experiência religiosa. Já o segundo aspecto volta-se

ao estímulo da vocação ou do profetismo propriamente dito, no sent ido de visar uma

reconstrução do homem religioso baseada na busca do fundamento transcendente de toda

situação humana. Essa visão voltada para o real, enquanto profecia, tem sua origem na pulsão

mística. Tillich critica a forma como a razão é exercitada na modernidade, reduzida

praticamente aos procedimentos de planejamento, cálculo e lógica causal, perdendo sua

dimensão enquanto “logos” enquanto conhecimento que propicia a revelação. Ao visar o

mundo, a razão amplamente exercitada, pode se vincular ao divino, que sintetiza de modo

supremo a revelação objetiva, que vem de fora e o salto ou experiência da fé que se dá dentro

do indivíduo. Assim, Tillich (1987, p. 60) ressalta que Paulo foi o teólogo do Espírito assim

entendido muito mais que o teólogo da justificação por meio de fé. Na sua concepção sobre o

êxtase, Tillich mostra que não se trata de uma negação da razão, mas um estado de mente na

qual a razão ultrapassa a estrutura sujeito-objeto. Portanto é um movimento de transcender a

racionalidade finita. A esse respeito Jessé Pereira da Silva (1995) esclarece que no

pensamento desse teólogo não há revelação sem êxtase, uma vez que é um processo de

descoberta sobre as preocupações incondicionais do ser. Nessa visão existencialista, o êxtase

seria o momento da união do poder aniquilador da presença do divino com a experiência do

fundamento, sustentada pela razão, o que é diferente de excitação, ou compulsão. Sobre esse

aspecto escreveu Tillich (1987 p. 102):

Em última análise, uma forma mecânica ou qualquer outra doutrina não-extática de inspiração é demoníaca. Ela destrói a estrutura racional que pretende receber inspiração. É obvio que inspiração se é este o nome para a qualidade cognitiva da experiência extática, não pode mediar o conhecimento que é determinado pela estrutura sujeito-objeto da razão. Inspiração abre uma nova dimensão do conhecimento, uma dimensão de compreensão em relação á nossa preocupação última e ao mistério do ser. (Tillich, 1987, p. 102).

Assim pode-se observar que Paul Tillich distingue dois tipos de mística, sendo a

primeira relacionada à distância da divindade e vinculada ao culto à idolatria, e a substituição

dos meios da revelação pelos seus conteúdos sejam eles objetos da natureza, seres humanos,

eventos históricos códigos éticos, texto sagrados. Já o segundo tipo é a mística protestante

conduzindo o fiel a uma experiência profética e racional. “A mística protestante faz com que

as igrejas nunca se proclamem como portadoras totais do Espírito, pois há sempre uma

realidade que julga as confissões concretas”, observa Silva (1995, p. 63). Desse modo, a

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mística protestante é a salvaguarda do fiel, contra os desvios que o processo institucional

poderia imprimir ao Princípio protestante, na interpretação de Silva.

Mendonça (1998) discute os dilemas do Protestantismo Latino-Americano entre a

racionalidade e o misticismo, afirmando que se pode visualizar um Pietismo romântico. O

termo romântico advém de sua proximidade com o romantismo alemão. A idéia básica que o

sustenta é que o homem tem uma natureza bondosa, portanto contrária à concepção ortodoxa

do calvinismo de pecado original. Essa natureza pode ser aperfeiçoada constantemente pelas

experiências religiosas do indivíduo, por meio do cultivo de sua interioridade, com práticas

devocionais e piedosas. Desse modo, nasce uma ética individual e social, promotora de

transformações na cultura e nos modelos sociais vigentes, constituindo o Evangelho Social,

que é também um ideal romântico, provindo do século XVIII, e cuja expressão e incorporação

se dá através dos revivals. Segundo Mendonça:

O misticismo protestante tem as seguintes características: é um movimento, ou presença, no interior das igrejas, mas que corre à margem dos seus sistemas de poder, isto é dogmas e confissões, e que cultiva romanticamente a convicção no auto-aperfeiçoamento humano por intermédio da devoção disciplinada da leitura da Bíblia e da meditação nela. O componente central do misticismo protestante é a liberdade do cristão – livre exame e busca pessoal de Deus em Jesus Cristo - e tem como conseqüência a criação e manutenção de uma ética pessoal e social (1998, p.8).

Outro ponto interessante que pode prestar a objeto de análise é a figura do clérigo,

com a especificidade que o desenvolvimento dessa função tem nas igrejas presbiterianas e

reformadas. Jean Paul Willaime (1992) define o clérigo com um tipo especial de profissional,

pois instala uma ordem e um estado clerical, indo além de uma simples organização

profissional, uma vez que apresenta o divino aos fiéis em uma atividade de culto regular.

Assim, o pregador fixa uma certa imagem através de um discurso coerente, que transmite uma

imagem de Deus de uma geração a outra e enquadra a vida cotidiana do fiel com referência às

práticas e ao modo de viver religioso. Nas igrejas protestantes, o clérigo não é um elemento

constitutivo, mas ele lhe é necessário para o desempenho da pregação e dos sacramentos. As

funções do clérigo são legitimadas enquanto sacerdote (agente legal de uma instituição

portadora de um carisma da função); como doutor (que tem um saber ideológico e racional);

como um profeta (o carisma, a forma como exerce as revelações de forma personalizada); e

como autoridade mágica (as técnicas de acesso ao divino). O exercício dessa autoridade

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depende não só das relações que mantém com a Igreja enquanto instituição, mas também com

os fiéis que o legitimam e o controlam.

Para Willaime (1992), o pastor da Reforma tem que ser representativo desse

movimento, que contestou a autoridade racional legal da Igreja Católica a partir de um

trabalho da interpretação da bíblica e da teologia, não bastando apoiar-se somente na

revelação pessoal, vocação ou iluminação. A figura do doutor como soberano ao profeta nas

Igrejas Protestantes fez surgir, ao lado de outros fatores, uma série de conflitos como, por

exemplo, discussões entre liberais e ortodoxos, dando origens a dissidências como as Igrejas

Livres ou Independentes. Deste modo, a base social das Igrejas, ainda amparadas pelo conflito

entre Igreja e Estado ou entre culturas diversas, fazem preponderar um tipo ou outro de

legitimidade da autoridade clerical, suscitando várias contradições, ou sendo representativa

delas. O estudo do desempenho e da forma de exercício da autoridade clerical mostra-se assim

um ponto privilegiado para se analisar como se deram os conflitos e tentativas de equilíbrio

entre razão e emoção, ou entre misticismo e racionalismo nas Igrejas Protestantes.

Ainda com relação a este aspecto há que se citar que muitas vezes o fiel tende a buscar

no pastor um exemplo de comportamento religioso. Através de um processo social

identificatório, a busca de modelos de figuras exemplares e que promovam o modo de viver

religiosamente relevante aos moldes das Igrejas, percorre a relação do fiel e de seu pastor.

Mesmo no cerne da teologia protestante, o laicato e o sacerdote se aproximam enquanto

amparados pela visão humanista de ser. A figura idealizada talvez seja uma reminiscência da

busca pelo exemplo de Jesus, numa religião marcadamente cristológica. As práticas de

testemunho, bem como o impacto muitas vezes relatado das leituras que descrevem a figura

de Jesus e seu modo de viver o cristianismo, mantém os vínculos com as imagens e os

padrões religiosos de atitudes e comportamentos. Não se trata aqui de pensar em santos, ou na

imersão do místico em direção à autoridade divinizada. Trata-se mais de instaurar no viver

cotidiano, no espaço da vida, o modos vivendi do cristão. Mendonça (1998) relaciona esse tipo

de misticismo protestante ao liberalismo teológico, que busca um Jesus de Nazaré real e não

um mito, como pode ser visto em Harry Emerson Fosdick. Há que se perguntar a despeito

disso se, num país marcado por suas raízes místicas e afro-brasileiras conforme já descrito

estudiosos das raízes da cultura e da literatura brasileira, entre os quais está Buarque de

Holanda (2000), a figura do pastor não contém no imaginário de fiéis mais representações

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místicas do que as presentes em suas expressões oficiais proferidas no interior dos templos

religiosos.

Significativos são os aspectos organizados e anotados por Leonildo S. Campos (2003)

no que diz respeito ao processo de institucionalização da religião. Esse autor, em aula

proferida no curso de pós-graduação de Ciências da Religião, trabalha a questão das ligações

entre o sagrado, que considera o elemento a priori e irredutível às categorias humanas, e os

contextos históricos, sociais e culturais em que habitam os seres humanos. A

institucionalização de uma religião implica em padronização, disciplina, moralidade,

discursos oficiais, formas de culto específicas, bem como sua organização. Este último item é

constituído por processos de construção da autoridade, da liderança, de ordem administrativa,

de burocracia, de expansão e defesa das idéias e outros que podem promover conflitos com as

formas mais espontâneas do movimento religioso em sua origem. Pode-se pensar se o

misticismo não estaria representando uma dessas formas iniciais, que pode ser reprimida à

medida que se fizerem efetivos os mecanismos sociais que massificam os comportamentos

religiosos. Ou ainda se subsiste, como uma camada abaixo das formas comuns de vivências

religiosas institucionalizadas, ou ainda se não escapa desse controle e surge como elemento

questionador, apontando para um além do que é socialmente reconhecido pela comunidade,

conduzindo a processos de marginalização de membros que expressem essa modalidade. Um

exemplo desse tipo de experiência mística pode ser visto na vida e obra de Simone Weil,

escritora e pensadora francesa (1909-1934) que era judia e foi educada no agnosticismo,

declarando-se mais tarde como cristã em solidariedade às camadas da população mais pobres.

Abandonou a carreira de professora de filosofia para trabalhar como operária na fábrica de

carros Renault, chegando também a combater ao lado dos republicanos espanhóis por ocasião

da guerra civil, no ano de 1936. Relata que em 1936, “Cristo desceu e me prendeu” e em 1938

encontrou em Cristo “cara a cara” sem a mediação de homens, conceitos ou esforços acéticos.

O Cristo que a encontrou se faz representar na imagem e no ato do “Crucificado”, que

produziu o efeito de ressurreição, o que a fez tomar a partir dessa data a cruz com símbolo do

cristianismo, visto por ela como religião da contradição, desgraça e “mediação entre Deus e

Deus, entre Deus e homem, entre homens e homens, entre homens e coisas” (Weil, in

Borriello et al. 2003, p. 1070). A esse respeito, encontram-se seus escritos em sua obra A

Gravidade e a Graça (1993, p.126) que tem uma interpretação singular do ateísmo

purificador:

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O falso Deus que se assemelha em tudo ao verdadeiro, exceto que não o tocamos, impede para sempre o acesso ao verdadeiro. Crer num Deus que se assemelha em tudo ao verdadeiro, exceto que não existe, pois não nos encontramos no ponto em que Deus existe. Os erros de nossa época são cristianismo sem sobrenatural. O laicismo é a causa disso – e antes de tudo o humanismo. A religião enquanto fonte de consolo é um obstáculo à verdadeira fé: nesse sentido o ateísmo é uma purificação. (Weil, 1993, p. 126).

Referindo-se ao processo de construção do Protestantismo, Rubem Alves (1979, 1982)

aborda alguns componentes que estariam na nascente desse movimento e descreve

mecanismos e desvios do curso dessa religião presentes em seu processo de

institucionalização. Segundo Alves: “O herege é aquele que rejeita a verdade socialmente

definida, isto é aquela que é funcional a uma determinada situação de domínio político na

instituição eclesiástica, em nome de uma verdade mais alta” (1979 p.272). Para Rubem Alves,

o herege se afirma ao perceber a realidade de forma individual ou compartilhada apenas com

uma minoria, de tal modo que subverte uma visão de mundo e propõe sua percepção e

construção de uma outra forma. O livre exame do qual trata o Protestantismo indica que o fiel

pode livremente assumir a leitura bíblica, obtendo através dela uma compreensão que lhe é

peculiar. Porém, uma vez que essa hermenêutica singular se oponha enquanto interpretação à

verdade da instituição, ou da consciência coletiva, lhe é negada o estatuto de validade. A ética

protestante constrói-se pela negação do corpo, que deve ser disciplinado por uma norma de

conhecimento absoluto, assim como o pensamento do crente deve ser uniformizado, ou

identificado à norma ortodoxa. Assim, o amor à verdade que define o Protestantismo mostra-

se como intolerância e dogmatismo. Temos assim formas funcionais de experiências

religiosas, encenadas pelos crentes como modalidade correta de fé. Portanto, dentro de uma

racionalidade única não há lugar para o discurso que expresse as contradições ou dúvidas que

devem, portanto, se manifestar através das heresias ou de formas não visíveis ao viés do olhar.

Talvez essa cegueira encontre, uma vez questionadas, as modalidades místicas de

experiências religiosas.

De acordo com Antonio Carlos Magalhães (1999) a respeito das relações entre

Evangelho e cultura nos movimentos missionários iniciados no século XVII, é importante

atentar para as modificações que ocorrem na teologia a partir das modalidades de

compreensão do texto sagrado. Discutindo a questão dos modelos e sistemas religiosos,

aponta que na teologia atual são reconhecidas três formas de sincretismo religioso. A primeira

se caracteriza pela fusão de elementos da tradição cristã com os da tradição africana. Os

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adeptos dessas religiões conseqüentemente se sentem pertencentes a ambos os sistemas

religiosos. É a idéia apontada por Roger Bastide (1971) ao se referir às religiões africanas no

Brasil. O segundo tipo de sincretismo traz a idéia de que, embora possa ocorrer a fusão, ainda

assim predominam os traços católicos como estruturantes da identidade da religião. O terceiro

modelo de sincretismo comportaria o processo de seletividade de elementos da tradição cristã,

que podem conviver ao lado de elementos de outra religião sem que ocorra a fusão, mas

apenas justaposição. Ao abordar o tema do sincretismo religioso, Magalhães (1999) mostra

que se faz necessário descortinar as mudanças ocorridas dentro do processo de interação entre

o enunciado da mensagem religiosa e as formas de recepção e elaboração através dos

processos culturais. Assim, pode-se pensar que, em se tratando de América Latina, os estudos

sobre o protestantismo têm dedicado pouca atenção às transformações exercidas a partir do

cristianismo no contato com as formações culturais, como também no sentido inverso.

Segundo o enfoque da teologia, caberia estabelecer o diálogo com essas mudanças.

Significativos estudos podem ser empreendidos tanto no sentido de observar a leitura religiosa

da realidade contextualizada, quanto no sentido comparativo, que compreende o tempo e o

espaço socioculturais. No caso do misticismo, esses estudos, além de indicarem a

relativização que decorre da convivência entre as grandes religiões no que diz respeito à

relação com o mistério, apontam também na direção de diferentes prismas históricos e

culturais das experiências religiosas, bem como a ética que norteia sua prática,

reconhecimento e legitimação.

Um estudo que permite vislumbrar aspectos pertinentes à relação do homem com

Deus na perspectiva reformada foi desenvolvido por Antônio Máspoli Gomes (2000):

Solidão, uma Abordagem Interdisciplinar pela Ótica da Teologia Bíblica Reformada.

Segundo o olhar de Gomes (2000), a solidão como condição humana não existiria antes de

Gênesis 3, isto é antes da queda de Adão. Pois teria sido a experiência da alimentação do fruto

do conhecimento do bem e do mal que teria conduzido a mudanças na consciência do homem.

Não só o espírito ficou abalado por essa situação, mas também suas formas de conhecimento,

que se tornaram assim insuficientes para o entendimento direto de Deus, necessitando de

providências da divindade nesse sentido, criando assim as Sagradas Escrituras. Nessa visão,

“a queda” teria rompido a comunhão existente entre Deus e o homem, lançando-o no estado

de solidão. Segundo a teologia reformada, esse estado pode ser restituído através da obra do

Espírito Santo no coração do cristão, conforme proposto em II Coríntios 5:18-21. Tal

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acontecimento permitiria a superação do estado de estranhamento que se estende da relação

do homem com o sagrado, para consigo mesmo e para com o outro. Sobre isso escreveu

Gomes (2000, p. 83): “A solidão também pode ser vista como uma grande oportunidade para

ficarmos a sós com Deus e recebermos aquela Bênção especial que o Senhor pode dar”. Para

exemplificar, Gomes cita como exemplos desse tipo de experiência: Moisés no Monte Sinai,

Davi, no Vale da Sombra da Morte, Paulo, em Roma, João, na Ilha de Patmos e Jesus, na

preparação para o Gólgota. Desse modo, a conclusão reformada é implacável, pois leva à

conclusão de que o monastério do protestante calvinista está nele mesmo, uma vez que ele

próprio é o templo do Espírito Santo. O individualismo e o intimismo com Deus iriam abrir

brechas no racionalismo protestante, preparando o caminho para o arminianismo, cujo

exemplo poderia ser lembrado na figura de John Wesley.

Protestantismo e Modernidade

O papel da religião como produto da atividade humana é criar um cosmos sagrado que

resista as forças do caos. Esta ordem tende a atingir dimensões mais abrangentes, uma vez que

as forças desorganizadoras são consideráveis, como por exemplo, questionamentos sobre a

realidade, a precariedade da existência social, conforme apontadas por Beger em sua obra O

Dossel Sagrado (1985). Ao discutir a sociedade moderna e sua relação com o sobrenatural,

defende que a pluralidade religiosa é um fenômeno relevante na esfera social diante da

secularização20. Revestida das mais diversas formas, a religião mantém sua função de criar

plausibilidade para as questões da existência, mesmo que a sociedade se torne mais e mais

secularizada. As forças de secularização interagem com as forças contrárias, produzindo tanto

nas sociedades industrializadas avançadas como nos primórdios da modernidade um jogo de

formas religiosas visíveis aos estudiosos.

De acordo com Rivera (2000), a importância da relação entre racionalidade,

secularização e religião podem ser observadas a partir dos textos de Weber que se orientam ao

Protestantismo. O racionalismo pode ser visto como um conceito histórico que envolve um

20 De forma resumida o conceito de secularização de Berger, embora apresente certas variações ao longo de suas obras, inclui dois processos sociais fundamentais: 1) autonomia em relação à autoridade religiosa e 2) restrição do universo simbólico e suas práticas relacionadas a essa autoridade mediadora das relações com o sagrado.

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conjunto de contradições, cujas investigações implicam a idéia de profissão, de dedicação

abnegada ao trabalho, que estão presentes na Reforma, manifestando-se através de distintas

formas de piedade nas Igrejas que as propagam. Há a presença da racionalidade, que se

presentifica no seu sentido prático e instrumental nas operações relacionadas ao trabalho, mas

adquire também outro sentido extra-econômico, ou extramundano, quando o agir religioso

passa a se orientar diretamente por formas de conhecimento e explicações intelectuais de

mundo, tornando-se assim irracional. Há, portanto, paradoxos entre a racionalidade e a

irracionalidade no Protestantismo, cabendo investigar as formas e forças sociais implicadas

nesse processo.

As discussões das relações entre modernidade e secularização são amplamente

realizadas por Stefano Martelli21 (1995, p. 467), que defende a saída dos sociólogos da

religião de esquemas interpretativos dominados pela racionalidade instrumental para poderem

considerar aspectos “da consciência pessoal, a formação de relações intersubjetivas a partir de

processos baseados na empatia, na confiança, na confidência, no amor”, uma vez que se

considerem seus efeitos no plano macro-sociológico.

Ao discutir misticismo e novas religiões, Carlos Rodrigues Brandão (1994) afirma que

cada sujeito produz uma concepção individual no contato com diferentes sistemas de valores

religiosos construtores de uma verdade em conjunto, no qual cada expressão de religião ou

mística representa uma parcela. Ao referir-se à multiplicidade de vertentes religiosas na

atualidade, diz “como se num processo o juiz não fosse mais o meu confessor, o meu pastor,

nem sequer Jesus Cristo, mas eu mesmo e a representação que faço de mim. Pode-se passar

por vários sistemas, transitar por muitos deles, sem que eticamente isso apareça...” (p.57) e

mais adiante chama essa possibilidade de transeância historico-biográfica:

Queria dizer que comecei a leitura de A máquina do Mundo (poema de Carlos Drummond de Andrade) exatamente porque acredito que existe algo que não é apenas uma constituição sociológica, que se discute num encontro como esse e

21 Para distinção de posições, conceitos e discussões das relações entre modernidade e secularização, ver a obra de Martelli A religião na Sociedade Pós-Moderna (1995 p. 436-437), onde cita, entre outros, estudiosos como Hervieu-Léger, para quem a secularização seria uma atividade permanente da religião no sentido de reorganizar o mundo simbólico em uma sociedade estruturalmente impotente para oferecer respostas satisfatórias diante das dificuldades da existência. Já Vattimo atribui a secularização à retomada de processos simbólicos, como os que ligam a civilização profana às suas raízes judaico-cristãs, em um processo de conservação-distorção-esvaziamento.

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que, conscientes ou não todos vivemos em nossas vidas cotidianas. O mistério, a possibilidade de uma apreensão intuitiva, não propriamente do conhecimento racional, mas talvez, até, de segredo ou de conjugação de gerações de segredos da ordem cósmica e do meu próprio destino: eles estão ai e me são dados... Qualquer um de nos pode ser hoje o seu próprio xamã pode produzir a sua própria síntese, pode criar a sua própria teologia aquilo que eu chamei de uma teologia pessoal. (p.54-55)

Esse ponto de vista, no entanto, reafirma o aspecto individualista do contato com o

sagrado, na medida que o apresenta como uma prática religiosa acessível ao fiel, em que o

narcisismo mostra sua faceta, não necessariamente como encerramento sobre si mesmo, mas

como cultivo e possibilidade da experiência religiosa a partir de si mesmo. O poder de

comunicar-se com a divindade se encontra na relação do sujeito com o sagrado, e não

dependente de sua pertença institucional, que passa a ser coadjuvante nesse aspecto, uma vez

radicalizado seu movimento. Há que se acrescentar que a modalidade de vínculo que se

estabelece entre o sujeito e a divindade apresenta traços e aspectos culturais, que são foco de

interesse dessa pesquisa, que visa observá- los e descrevê- los como fenômenos religiosos.

Portanto, mesmo considerando que a experiência religiosa se passe no intimo do ser, suas

formas, características e expressões são portadoras de significações e modelos sociais

presentes na cultura na qual se insere.

Ioan Lewis (1997, p.37) trata a questão do êxtase religioso apontando ser

reducionismo científico considerá- lo apenas do ponto de vista da secularização. Ao seu modo

de ver, os sociólogos e antropólogos da atualidade deixaram sem explicação os aspectos

místicos que podem diferenciar a religião do secular, não considerando a diversidade dos

conceitos e crenças religiosas: “... procuro revelar algumas de suas funções, tanto

psicológicas, quanto sociais, sobre as quais é baseada a resposta mística”. A universalidade de

experiência mística é defendida por Lewis (1997), bem como a semelhança significativa entre

a linguagem e o simbolismo místico.

A utilização de termos neutros como transe, possibilita uma definição como “estado de

dissociação, caracterizado pela falta de movimento voluntário, e freqüentemente por

automatismo de ato e pensamento, representados pelos estados hipnóticos e mediúnicos,

retirado do Penguin Dictionary de Psychology (1985). Através dessa conceituação, pode-se

interrogar sobre como as culturas e grupos religiosos interpretam o transe. Como esse

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processo ocupa o imaginário do indivíduo e da coletividade religiosa a qual ele se sente

vinculado? Que efeito produz no sistema de pensamento religioso? Que funções têm para o

indivíduo esse sistema? Como é controlado? Lewis (1997) mostra que os componentes

relevantes da religião são o rito, a crença, e a experiência espiritual. Interessantes são os

apontamentos sobre a concepção de união espiritual, que imita o casamento humano, utilizada

com a função de aproximar o espírito e seu devoto. O autor coloca que a possessão por

espírito e a perda da alma são as explicações mais comuns encontradas para os estados de

consciência alterada e dissociada.

O percurso dos conceitos de modernidade22 já permite vislumbrar que as práticas

religiosas indicam a crescente autonomia do fiel em relação à autoridade e a instituição

religiosa, que as considera legítimas, mesmo com a discordância do poder religioso instituído.

Pode-se observar a aceleração do movimento nas práticas, nas experiências religiosas e nas

crenças, conduzindo a dificuldades nas tentativas de condutas homogeneizantes. Nesse

sentido, as instituições católicas, que ideologicamente veiculavam a idéia de universalidade

do seu campo simbólico, se viram diante de questionamentos e perda de poder. As verdades

religiosas não mais tinham sentido para todos com o advento da modernidade. A autoridade

religiosa passa a ser questionável, e seu projeto de Paraíso, veiculado à humanidade, sofre

mutações no imaginário coletivo, transformado em sua referência territorial e temporal.

Seguindo o curso das idéias acima expostas é possível pensar que o Protestantismo fez

uso da racionalidade como uma das formas de construção de sua tradição. Ora essa tem por

finalidade constituir a identidade de um universo simbólico religioso, ora regular e legitimar o

poder religioso, determinando as verdades de suas práticas religiosas e sua reprodução.

Embora o Protestantismo proponha uma doutrina da salvação individual, e contrarie qualquer

forma de salvação coletiva, sua institucionalização exigiu formas mais padronizadas de

comportamento religioso, levando assim a contradições no interior de seu movimento. É

possível que as práticas místicas no Protestantismo sejam representantes dessas contradições,

22 Pode-citar o historiador Jean-Pierre Bastian com sua obra Protestantismos y Modernidad Latino-americana, (1994), que estuda aspectos relacionados à democracia, à imigração, às mutações do protestantismo latino-americano, aos estilos de autoridade e aos mecanismos de dominação institucional, e que merece ser objeto de reflexão em outras etapas desse trabalho. Cipriani, Eleta e Nesti (2000) fizeram estudos sobre a identidade e mudança na religiosidade latina americana, enfocando os estudos e pesquisas dos sociólogos da religião neste continente. Há ainda a obra de Klaas Woortmann (1997) versando sobre religião e ciência no renascimento, tratando aspectos do misticismo e da reforma.

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ou se alimentem delas, ou ainda subsistam apesar delas, cumprindo funções religiosas pouco

visíveis ao olhar da instituição. Essas idéias são hipóteses iniciais dessa pesquisa e serão

retomadas posteriormente.

Há ainda dentro do projeto do Protestantismo a relação com o texto sagrado e a

literatura, que serve de suporte à sua difusão. Segundo Rivera (2000), a tradução do texto já

requer uma escolha interpretativa. A leitura autônoma do fiel já seculariza o leitor. Deixa de

ser um texto misterioso e passa a ser mais acessível e mundano. O texto pode ser lido de

forma mais alegórica e simbólica, ou mesmo mais racional, histórica, lógica. O leitor pode

fazer dela um símbolo, um livro que indica como se conduzir no mundo, criando modelos de

“sacralização” ou “dessacralização” do cotidiano, construir rituais de leitura e de eficácia da

mensagem, ou pode ainda banalizar o dito, tornando a divindade um ente próximo, e não mais

distante e universal. A modernidade dentro de seu movimento de quebra de paradigmas

religiosos institui a individualidade como uma de suas máximas. Com este projeto, há que se

pensar que a pluralidade da experiência religiosa já está na base de construção de movimentos

religiosos na modernidade, mesmo que as crenças aparentemente se articulem ilusoriamente

como universais. Considerar essas possibilidades quando se discute as formas místicas aponta

para diversidade de suas manifestações em um movimento religioso e pede um método

científico, que acompanhe seu estudo, sem a pretensão de qualquer universalidade do

conhecimento.

Dito de outro modo: as leituras da modernidade conduzem a uma visão da religião a

partir de sua mutabilidade. O movimento passa a ser um paradigma para o pesquisador, que

tem que observar 1) processos de desregulação do religioso, isto é, a perda da instituição para reger a dinâmica dos processos religiosos; 2) processos de individuação do sujeito religioso, que tem o direito de

fazer suas escolhas e oferecer a sua experiência religiosa um sentido próprio; 3) crise das tradições religiosas,

que lutam para se sustentar; 4) criação-transformação de modalidades de experiência religiosa, que mesmo não

reconhecidas como relevantes para o Protestantismo, são significativas para sua propagação, expressão e

manutenção.

1.3 Experiência Mística e Fé

A descrição da experiência mística por outro lado apresenta um conjunto de

dificuldades, como mostra Gershon Sholem (1995), pois sua natureza ultrapassa o que a

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linguagem pode exprimir, principalmente quando utilizada de acordo com a padronização

científica. Além disso, quando se estudam as relações entre o criador e criatura, entre o finito

e o infinito, existem dificuldades para traçar correlações com outros fenômenos, o que muitas

vezes é um recurso do cientista para se apoiar em modelos que permitam correspondência

entre diversas disciplinas da ciência, para compreender e clarificar certos pontos da pesquisa.

Em outras palavras, pesquisar e descrever o que o místico vê ou prova não é tarefa muito

usual e requer certa criatividade por parte do cientista, quer nos aspectos referentes à

linguagem, quer no que diz respeito à própria investigação e compreensão do fenômeno em si

mesmo. Também informa Sholem que a história geral da religião conhece a experiência

fundamental com o nome de uni mística, ou união mística com Deus. As afirmativas de

Sholem (1995) estão de acordo com os estudos sobre o misticismo, como os de Jones (1930),

que usa a palavra “mística” para designar o tipo de religião que coloca ênfase na percepção

imediata da relação com Deus, por meio da consciência íntima e direta da presença divina.

Assim, a religião pode ser pensada no seu estado mais nascente, puro e intenso. O misticismo

pode ser encarado como uma experiência íntima do sujeito com a divindade. Também é a

idéia de Tomás de Aquino, que deixando claro caber aos estudiosos do fenômeno religioso

investigar a forma e a essência dessa experiência, ainda devem encontrar um modo de

descrevê- la.

Ainda sobre experiência mística, Nicola Abbagnano (1998) distingue os graus de

ascensão mística: 1) pensamento (cogitatio), que tem por objetivo as imagens vindas do

exterior e destina-se a considerar as marcas de Deus nas coisas; 2) meditação (meditatio), que

é o recolhimento da alma em si mesma e que tem por objeto a imagem de Deus; 3) a

contemplação (contemplatio), que em si mesmo tem por objeto a imagem de Deus. Os

místicos costumam dividir o processo de ascensão em diferentes etapas ou graus. O êxtase é

visto como o grau final de um processo de ascensão, que passa ainda pela visão do bem. De

Dionísio até nossos dias, o misticismo teve representantes expressivos, passando pela Idade

Média, onde se pode encontrar nomes como Bernard de Clairvaux (1010-1153), o misticismo

especulativo alemão, com Mestre Eckhart, Suso, e ainda os místicos do Cristianismo: Tereza

D´Ávila (1515–1582), Catarina de Siena, (1347–1380) e Francisco de Assis. No

Protestantismo, o termo misticismo muitas vezes se acha relacionado à atitude religiosa e a

teologia de Martinho Lutero e John Wesley. Estudando o entusiasmo em Lutero, Joaquim

Fischer (1981) assim escreve:

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Provavelmente até teria sido muito difícil para ele delimitar-se de maneira clara e convinnte contra os espiritualistas (ou “pentecostais”) de sua época. Pois ele mesmo, principalmente no inicio de sua atividade pública, foi um espiritualista23 que pode afirmar, por exemplo, o seguinte: “Os cristãos autênticos não precisam nem do poder nem do dinheiro secular..., porque tem em seu coração o Espírito Santo que os orienta e faz com que não façam mal a ninguém, amem a todos, estejam dispostos a sofrer injustiça e até a morte com alegria, seja quem for”.Num outro lugar Lutero manifestou sua convicção de que os cristãos não precisam de uma ordem para o seu culto e sua adoração externa, pois “têm seu culto e sua adoração a Deus no Espírito... Assim como um cristão como tal não precisa nem do batismo nem da palavra nem do sacramento (da Santa Ceia), porque já tem tudo. (Fischer, 1981, p.50,51).

Atribui-se na história da Filosofia a Dionísio Areopagita, filósofo, teólogo e místico

do séc V as primeiras reflexões sobre o conhecimento de Deus, como o ápice da experiência

religiosa. De acordo com o Dicionário de Mística (2003, p.400), embora tenha sido Orígenes

(185-251?) quem primeiro buscou o conhecimento através do contato direto com o sagrado,

na obra intitulada Nomes Divinos, Areopagita menciona que “ao interpretar as Escrituras,

estava arrebatado, fora de si em Deus”. A partir de então, se tornou no meio cristão o teólogo

normatizador da mística. Para ele, o ser de Deus não pode ser conhecido totalmente, por

extrapolar o que a razão e a experiência podem revelar. Há sempre facetas misteriosas desse

encontro, cujo exemplo é Moisés no Monte Sinai. A imagem de Deus permaneceu

impregnada de obscurantismo e trevas durante toda a Idade Média Porém, já nos séculos XVI

e XVII, as concepções psicológicas começam a ganhar ênfase, deslocando a atenção para as

condições subjetivas da experiência mística, ressaltando modalidades de contemplação

mística, caminhos e degraus para a ascensão, fenômenos parapsicológicos a ela relacionados.

No século XVII, inicia-se a distinção entre experimentar o mistério e o mistério em si. A

tendência passou a apontar para os elementos da experiência mística, muitas vezes

confrontando-a em sua ocorrência em sistemas religiosos diferentes. Há estudos sobre graus

de consciência e construção de uma experiência fora dos limites comuns. Nesse sentido, o

estudo da experiência mística corre o risco de definir-se como acontecimento difuso, sem

objeto, sentimento sublime do divino, visto de forma superficial e sem fundamento, uma

espécie de loucura, ou excentricidade.

23 Sobre o espiritualismo de Lutero cf. Karl Gerhard Steck Luter und die Schwärmer, Theologische Studien, ed. Por Karl Barth, 44, ( Zollikon-Zurich, 1955) pág. 10-21.

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Na teologia posterior ao século XVIII tornou-se significativo o questionamento da

mística enquanto forma de intensificação, prolongamento da experiência de fé ou dom

extraordinário e qualitativamente novo de Deus (Borriello, 2003 p.400). Outras indagações se

somam a esta questão, como por exemplo: a experiência mística necessariamente tem que ter

uma característica sobrenatural, ou a utilização de um método mais sensível conduz ao seu

aparecimento, mesmo que de modo mais atenuado? Na tentativa de responder a essa

indagação, há concordância de que na mística cristã, o uso de métodos pode conduzir a

aproximação do sagrado, uma vez que insiste nos “dons gratuitos do Espírito”. Assim,

enquanto plenitude da vida cristã, para certo tipo de elaboração teológica, a experiência

mística é um dom gracioso de Deus ao ser humano, relacionado a um ato de amor. Embora

essa concepção possa ser aceita, há muita controvérsia nos meios intelectuais cristãos, que

equacionam práticas místicas e espiritismo.

O termo experiência origina-se do verbo latino ex-perior, que tem o significado de

atravessar, passar através de. É ação, acontecimento, visto como passagem que permite

alcançar o conhecimento de uma situação até então desconhecida. As características que a

definem são a percepção da relação própria consigo mesmo e com Deus, reconhecendo-se as

diferenças entre um e outro. Desdobra-se em mudança de consciência, surgimento de novas

atitudes, interpretações do ocorrido, e compreensão profunda de certos aspectos da existência.

A experiência religiosa brota naturalmente de um desejo natural em relação a Deus, que

incluem afetos, idéias e sentimentos nos quais Deus surge como ente necessário. Existem

aspectos também perceptivos que incluem a inefabilidade, ilimitação, incondicionalidade na

medida em que o ser humano se torna um com a divindade, na plenitude e no amor do ser

criatural de Deus (Borriello, 2003).

Na reflexão teológica, a principal característica da experiência cristã é ser oferecida

pelo Espírito por meio de Cris to Jesus. O conhecimento que se origina é experimental e se

refere a realidades divinas, que vão além do conhecimento especulativo. Trata-se, portanto, de

uma experiência de fé, conforme afirmação de Borriello (2003 p.401). Todo cristão seria

chamado a essa experiência, como uma forma de antecipação e conhecimento da vida futura.

Uma vez tendo a experiência de plenitude, realiza-se o projeto salvífico de Deus para com o

fiel. Portanto Deus não é percebido nem como humano, nem como objeto, mas como mistério

oculto, que se deixa revelar através da sabedoria.

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Quanto à experiência mística, White (1979, p.9) observa que pode ser caracterizada

por um estado de consciência específico, como que se despertasse para além do cotidiano ou

como se os próprios acontecimentos da vida humana adquirissem um valor e um significado

especial. A consciência neste caso passa por uma experiência autotransformadora, de união do

eu com o infinito, numa espécie de atemporalidade, eternidade e unidade ilimitada com toda

criação. É a partir dela que o eu se vê ampliado, se harmonizando e se estendendo por toda

vida, humanidade e universo. Tal acontecimento representa para o psiquismo humano uma

mudança no sentido de que o que anteriormente era obscuro passa a ganhar uma conotação de

esperança e alegria, uma vez que se abre um devir sem fronteiras.

Quando ocorre essa experiência, a linguagem simbólica passa a ser um veículo para a

transmissão dessa experiência, cuja natureza não se contém nos encadeamentos do discurso

cotidiano, necessitando da multiplicidade de interpretações, para significar, ao menos em

parte, a dimensão excepcional do vivido em sua revelação. Simbólico também pode ser o

viver total, de forma modificada pela experiência mística, que modela e organiza a atitude do

fiel. É então procedente pensar, segundo White (1979), que o corpo tenha que se adaptar às

cargas emocionais e cognitivas, experimentadas nos estados místicos, obrigando a

modificações nos modos neurológicos de funcionamento mental. Sugere-se assim que se

utilize o termo arracional para se referir a essas experiências, nas quais o conhecimento brota

da fé, plenamente vivida na experiência mística, uma vez que se trata de um outro tipo de

lógica, que implica em múltiplas integrações de significados, de forma simultânea, alineares e

seqüenciadas no plural. É quase como se sugerisse um novo paradigma para seu

entendimento, que estaria em construção. Esse novo conteúdo da consciência pode chocar-se

contra outros, que se mantém no já vivido anteriormente e socialmente reconhecido, criando

crises para o fiel, ou entre esse e sua comunidade.

Para Velasco (1999), a relação entre a experiência mística e a fé pode ser traçada

claramente, na medida em que se apresentem os seguintes aspectos: 1) que a experiência

mística é um evento individualizado, personalizado, de um sujeito com o Mistério; 2) que esse

sujeito, pertencente a uma instituição religiosa, não se contenta com os caminhos comuns dos

dogmas, ritos, rituais e segue em busca de um contato direto com o sagrado; 3) que a

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experiência mística é uma forma radical de viver a fé. Concluindo: a experiência mística

permite a vivência da fé de modo mais subjetivo e real para o sujeito que dependia da

mediação do outro, de um fiel, ou instituição. Portanto, místicos são todos aqueles que

realizam a experiência de fé por si mesmos, mesmo que ela venha a ocorrer em diferentes

formas, graus, intensidades. Logo, as experiências místicas são registradas pela cultura,

constituindo-se parte da história da mística e integrando a mística da cotidianidade, num

modelo disponível para a comunidade que a transforma em memória viva.

A experiência mística, embora individualizada, serve de apoio ao testemunho da fé,

afirma Velasco (1999). Sinalizando o contato mais próximo e familiarizado com o sagrado

corroborado pela não institucionalização do discurso e da expressão, o místico pautado na

personalização da transmissão, aumenta o poder de verossimilhança entre sua experiência e o

imaginário, sobre o sagrado. Seja a força de expressão realizada de modo singular e direto,

seja de modo imaginativo, intelectual ou sensitivo, amplia a interpretação do ocorrido

enquanto veracidade. A comunicação realizada com essas características torna-se eventos

sociais, sucessivos à experiência mística, abrindo dessa maneira caminho para a mensagem

mística e sua peregrinação no espaço religioso. Por isso mesmo, aqueles que passam por

experiências místicas não se colocam no mundo como seres espaciais, ou mesmo especiais.

Sua caracterização reside no modelo de prática religiosa, enquanto peregrino. Porque ele está

sempre como ser de passagem na sociedade, pois a realidade suprema de sua natureza

encontra-se mais além desse mundo. Assim, é um companheiro de viagem dos que se

relacionam socialmente e culturalmente. Dispondo-se assim a colaborar para a realização do

que considera os projetos sagrados para o mundo e a sociedade, conforme afirma Borriello et

al. (2003).

Borriello et al (2003) fazem observar que há relação tangível entre fé, mística e amor,

que são elementos propiciadores da participação dos fiéis no mistério de Cristo. Possuem em

comum a propriedade de ampliar a tomada de consciência da relação do homem com Deus,

especialmente, na cotidianidade, transformando a relação deste com a realidade social. Em

cada situação humana, estes elementos apontam para a possibilidade de mudança, que

conduzem à maior participação na experiência divina. Essa possibilidade não ocorre por

méritos humanos, mas pelo plano e graça divina, conforme esclarece Borriello et al. (2003

p.645). A fé e o amor acompanham o fiel para a realização do matrimônio espiritual. A fé

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conduz às núpcias com o Espírito e vários autores místicos fazem menção a esse fenômeno,

como Orígenes, entre outros: “Cristo é o esposo ao qual a alma se une quando chega à fé”.

Daí decorre a idéia de matrimônio, no qual a alma se torna participante dos dons divinos, tem

clareza da graça e de seus desdobramentos. João da Cruz coloca como pré-requisito para se

chegar às núpcias que o fiel tenha muita fé, permanecendo assim junto ao divino, conhecendo

o sentimento do sublime. A graça é o noivado que antecipa o matrimônio, vivido na

experiência mística, que não é contínua. É uma centelha do paraíso vivida antecipadamente. A

graça dá o sentido de continuidade, entre a possibilidade de uma experiência mística e outra.

O amor faz a transformação diária, e a vida se transforma em testemunho precoce do paraíso

ou em um processo de purificação constante.

De acordo com Glock (1965) a experiência religiosa, mesmo que considerada do ponto

de vista de originalidade e intimidade, tem que ser pensada como relacionada a contextos

sócio-culturais para que se possa chegar em seus possíveis significados. Esse autor distingue

quatro dimensões da experiência do fiel com o sagrado, relacionando grupo religioso e

indivíduo: 1) dimensão ritualística; 2)dimensão ideológica (crenças e doutrinas); 3) dimensão

experiencial (singular e única, geralmente acompanhada de emoção); 4)dimensão das

conseqüências (conduta moral e comportamental na relação grupo-indivíduo). Esses aspectos

podem servir de objeto de análise, uma vez considerados de forma integrada, acrescentados de

dados biográficos, históricos, institucionais, culturais, existenciais. Desse modo esse tipo de

conceituação oferece uma definição e um instrumental de análise a pesquisadores, uma vez

que se trata do contato de um grupo ou indivíduo como divino, visto em sua faceta dinâmica.

Assim, a definição de experiência religiosa para Glock (1965, p. 42) é:

O conjunto de todos os sentimentos, percepções e sensações que são experimentados por um sujeito ou grupo vinculados a um certo tipo de comunicação, precária ou não, com a essência divina, isto é, com Deus, com a realidade última, com a autoridade transcendente.

Do ponto de vista de Edênio Valle (1998) a distinção entre experiência mística e

experiência religiosa, não é tarefa conclusiva, tendo em vista que para o indivíduo ou grupo

que a vivenciam elas se apresentam em um continuum de emoções e sensações, que se

intensificam. Valle lembra que a mística em seu sentido psico-espiritual, não se limita ao

fenômeno religioso, podendo ter um cunho estético, afetivo-sexual, político, ideológico,

cognitivo, musical, relacionando-se geralmente às situações sociais e individuais fronteiriças,

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nas quais existe a possibilidade de rompimento com as condições existentes, o que suscita

movimentos de superação. Nesse sentido todas as culturas produziriam experiências místicas,

diante de contextos de mudança social, o que é mais reconhecido pelas camadas populares em

seu processo de transformação cultural e de resistência a ela. A palavra “experiência” vem do

grego empeiria, cuja matriz é empírico. Já o latim usa o termo experientia utilizado

derivativamente em português como “experiência”. Em situações de mudanças sócias muito

velozes, o grupo não consegue articular os aspectos sócio-culturais em unidades de sentido

que possam orientar as relações sociais, gerando estados de confusão, justaposição,

compartimentação dificultando a organização social e a geração de significados atribuídos aos

acontecimentos sociais. Nesse sentido a experiência mística tem a função de buscar no

contato direto com a divindade, um traço organizativo, ou ao menos representativo “da

desordem ou da fragmentação social”, refugiando-se imagens utópicas.

Já na perspectiva da língua alemã, na qual escreveram alguns reformadores como

Lutero, utilizam-se dois termos que podem ser alternados: Erlebnis e Erfahrung. O primeiro

tem geralmente o significado de vida em tonalidade emocional, enquanto o segundo designa

uma experiência mais prática, sem as conotações próprias a subjetividade. Respectivamente, a

correlação na ênfase interioridade e exterioridade da experiência pode ser pensada. Do ponto

de vista da experiência mística pode-se dizer a partir dessas correlações que Erlebnis seria o

termo mais adequado para exprimir aspectos como a tomada de consciência do peso do

sentido e do valor que pode ser atribuído à relação com o sagrado. Categorias como

imediaticidade, excitação, emoção, pensamento, penetração poderia ser a ele associados. Já

Erfahrung se refere ao senso de certeza, impressão clara, presença da divindade. A essa altura

vale a pena complementar essas considerações com as noções do filósofo Martin Heidegger

(1969) sobre experiência, uma vez que considera a existência como um modo de ser-no-

mundo (Dasein), no qual a consciência se relaciona consigo e com o Outro, mas pode ter

consciência dessa relação, isto é atribuir-lhe sentido. A existência do homem para Heidegger

alcança sua essênc ia, quando revela suas potencialidades concretas, justamente no horizonte

da situação no qual ocupa no mundo, afirma Heidegger. Em sua obra Fundamentos

Filosóficos da Mística Medieval (1999, p. 177) Heidegger defende a idéia da autonomia da

vivência religiosa e de seu mundo, visto pela intencionalidade da consciência de forma

inteiramente originária, com um caráter de existência originário assim como sua consistência

mundana e valorativa. O filósofo assinala que somente na consciência histórica é que a

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religião, assim como todo o mundo vivencial pode adquirir forma a aceder a uma totalidade,

não a uma universalidade, no sentido correspondente a ela (consciência). Portanto, afirma:

Um dos elementos de sentido mais importante, fundamental na experiência vivencial religiosa é o histórico. Mas na própria experiência radica a doação de sentido especificamente religiosa (...) Na experiência religiosa se objetiva certamente para o sujeito que a vive (...) O valor absoluto coincide com a absoluta falta de oposição e antagonismo interno, isto é, com a falta de determinação na qual o objetivo é exclusivamente objetivo. Só assim se presentifica o sujeito místico. (...) está acima de contrapontos e antagonismos, é um sujeito prévio a toda contradição. O espaço e o tempo são as formas do diverso, de do contraponto, não oferecendo resguardo, nem morada ao instante eterno, de uma “sobretemporalidade”. (Heidegger, 1999, p. 172-173, tradução nossa).

A relevância atribuída por Heidegger ao elemento histórico na apreensão da

experiência mística recebe apóio de pesquisadores das Ciências da Religião, entre os quais

esta Lauri Emílio Wirth (2001) ao afirmar que para compreender os povos colonizados, é

necessário ultrapassar alguns preconceitos científicos que levaram os pesquisadores a se

distanciarem dos sentidos atribuídos pelos sujeitos das experiências mesmas, o que para ser

ultrapassado está e exigir novas posturas metodológicas diante dos estudos de História do

Cristianismo. Assim, é necessário que o pesquisador se familiarize com o cenário que

investiga, tentando compreender seus códigos de linguagem e sua rede de sentido. Um dos

modos de aproximação da experiência religiosa sugerida por Wirth é voltar-se aos dados

provenientes da memória religiosa e do cotidiano das pessoas que a vivem, buscando pistas

sobre as relações dessa experiência com os espaços e micro-processos articuladores da vida.

Esse procedimento conduziria a percepção da subjetividade que perpassa a experiência

religiosa, como um dado historicamente relevante, que no caso dessa tese são as situações

missionárias que são por sua natureza múltiplas, plurais e sincréticas, não podendo ser

reduzidas a conceitos unitários. A esse respeito, Wirth observa que o universo cultural da

América Latina é fragmentado, coberto por uma memória pluralista e um imaginário social de

variados sentidos, requerendo uma metodologia que possibilite o diálogo, o que significa

dizer: que ela se adeqüe a exploração as memórias marginais, culturas religiosas não letradas,

ou experiências religiosas não reconhecíveis pelos grupos religiosos dominantes, apontando

justamente dos dados contraditórios e estruturais da vida religiosa cotidiana, em suas relações

de poder, cultura e de transformação social. Essa direção metodológica, afirma Wirth (2001)

não está comprometida a priori com um determinado fim, mas com sujeitos concretos da

história. Ao ver dessa pesquisa essa posição parece indicar direções a serem seguidas

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metodologicamente diante do fenômeno do misticismo, orientando a coleta de dados para

fontes de registros pessoais como diários, autobiografias, jornais, que possibilitem investigar

o que as práticas religiosas socialmente reconhecidas apontam e escondem em sua realização.

Por outro lado, do ponto de vista histórico, aspectos como a construção de uma

concepção coletiva de destinação, apontam para os estudos sobre o imaginário da morte no

ocidente, conforme aponta Phillippe Áries (2003). Durante a Idade Média que compreende os

séculos XI e XII, surgiu uma nova atitude em relação à morte, a partir da inserção na velha

idéia de destino coletivo de espécie, uma preocupação com a particularidade de cada

indivíduo, afirma Áries. As representações do Juízo Final, os significados individualizados

dessa mesma representação, os temas macabros e imagens da decomposição do corpo, à volta

a epígrafe funerária são aspectos que marcam a constituição de uma nova concepção do fiel

em relação à morte. Comparando essas representações Áries mostra que as figuras dos

sarcófagos foram se transformando ao longo da Idade Média, abrindo espaço para uma

biografia individual que não se conclui com a morte, mas no final dos tempos, ou sejam

deixam de representar a segurança da salvação, que se manifestava nos primeiros séculos de

cristianismo, nos quais os mortos que pertenciam a Igreja, e lhe haviam confiado seus corpos

“adormeciam como os sete adormecidos de Éfeso te o dia do segundo advento, do grande

retorno, quando despertariam na Jerusalém celeste, ou seja, o Paraíso” afirma Áries ( 2003, p.

47-48). Essas transformações de significados da morte não param aí, estendendo-se as

gravuras do quarto do moribundo (Ars Moriendi, no final do século XII) que acrescentam a

imagem da disputa cósmica entre o bem e o mal pela posse do doente, aquela que se refere

aos momentos finais, no qual a divindade se aproxima, propiciando ao doente que reveja

sinteticamente sua vida, que está então sobre julgamento. “A iconografia das artes moriendi

reuni, portanto, na mesma cena a segurança do rito coletivo e a inquietude de uma

interrogação pessoal”, afirma Áries (2003, p. 53) No fim da Idade Média, solenidade ritual da

morte no leito, tomou um caráter dramático e emocional, que não possuía associada à revisão

da vida e a aproximação da divindade.

Ainda se referindo as Artes Morandis, Ariés (2003) mostra que começam a surgir na

literatura, nas pregações e nas artes gráficas, as representações da morte como imagens de

cadáveres decompostos, especialmente no período que compreende do século XII ao XVI. A

despeito da história econômica da Idade Média e da freqüência da morte a ela associadas,

Áries aponta para a consciência da corrupção e da idéia do fracasso do homem para realizar as

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finalidades de sua existência social, fazendo surgir o sentido do macabro de modo original.

Sobre esse aspecto escreve Áries (2003 p. 63):

(...) No espelho de usa própria morte, cada homem redescobria o segredo de sua individualidade. Essa relação, entrevista pela Antiguidade greco-romana, mais especificamente pelo epicurismo – e logo a seguir perdida nunca deixou depois de impressionar nossa civilização ocidental. O homem das sociedades tradicionais, que era não só o da primeira fase da Idade Média, mas também os de todas as culturas populares e orais, resignavam-se sem grande dificuldade à idéia de sermos todos mortais. Desde meados da Idade Média, o homem ocidental rico, poderoso ou letrado reconhece a si próprio em sua morte – descobriu a morte de si mesmo.

Com o desenvolvimento da modernidade a carga emocional que se apresenta na

imagem do moribundo se desloca para a família e mais tarde, para proteger-se dela, ou cuidá-

la surgem os profissionais de saúde: o médico e a equipe hospitalar, que ocupam os lugares do

“curandeiros”. A partir do século XVIII a morte vai ganhar o significado de “aceitável” ,

como sendo aquela que possa ser tolerada pelos familiares, cabendo nessa interpretação à

cultura religiosa, tecer a memória do morto de acordo com os valores ideais de um dado

contexto histórico, colocando-o junto à divindade, santificando-o, ou relembrando seus feitos,

como indicadores da graça. Com o advento da tecnologia da cremação, o morto vira cinzas e

com ele a morte, sendo que o simbolismo associado às cinzas, pode remeter ao renascimento,

ou ainda o simbolismo vinculado às chamas que contém o divino em si, iluminando a

eternidade. Esse processo foi desembocar na “alta modernidade” no “American Way of

Death”, que sintetiza ao ver de Áries a tendência puritana com a do consumo dos bens da

morte (caixão, coral, pregação, aparatos, cemitérios). A primeira ressalta a memória do morto,

como um predestinado, a segunda faz desaparecer a dor e os sofrimentos ligados à morte,

transformando-a em um supermercado de produtos especializados. Assim, o misticismo

relacionado à morte, subsiste no ícone da salvação, embalado como produto das grandes

sociedades industriais, e interditado como “morte nominável”.

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1.4 Contextos Sócio-Culturais e Misticismo

O advento da modernidade mudou a qualidade da consciência humana, no sentido de

que colocou formas de racionalidade em dimensões até então não observáveis, bem como

promoveu o conflito das lógicas. Sociologicamente, chamado de aspectos multifacetados de

percepção e construção da realidade, assiste-se ao evento das racionalidades: política, social,

psicológica, pedagógica, médica, tecnológica, ecológica, pessoal, que muitas vezes

apresentam conflitos e contradições entre si. Marsahl Bermam (1987) aponta que um

sentimento que aflora diante da modernidade é o desejo de mudança, de transformação, de

autotransformação, ainda que a insegurança mostrasse facetas do universo sócio-cultural que

poderiam se desintegrar e se destruir. As concepções de tempo e de poder também se

multiplicam, criando ao lado da imagem do tempo da eternidade, a do tempo ininterrupto para

o novo, a instanteneidade da história e construção de vários paraísos, utopicamente projetados

nos séculos anteriores a reforma. A própria racionalidade tem a questão de controlar-se a si

mesma, e aos sistemas e mentalidades que passam a projetá- la e são por ela projetados. É

necessário redefinir a territorialidade entre o sagrado e o profano, as esferas de poder político-

religioso, as relações entre sociedade civil e cultura religiosa, somente para citar alguns dos

processos sociais envolvidos. Sobre esse aspecto, assim escreve Rita Paiva (1998 p. 92):

Propalando-se por todas as esferas sociais esta racionalidade desintegra as antigas legitimações pertinentes às sociedades tradicionais, e aliando-se a institucionalização do progresso tecnológico e científico, traduzinado-se na mensuração entre meios e fins, termina por relegar à categoria da ineficácia e do anacronismo a razão reflexiva. (Paiva, 1998, p. 92).

A compreensão dos contextos sócio-culturais contemporâneos, e as formas de

misticismo a eles vinculados, não deixam de se remeter às construções históricas e aos

sentidos que lhe são inerentes. As lutas em torno da desigualdade de poder e de autoridade

percorrem a modernidade, que nos termos weberianos é uma autoridade racional. Nessa

perspectiva visou traçar pontos de sustentação para esse empreendimento, incluindo alguns

aspectos das relações Estado, igreja nos reformadores.

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Referindo-se as concepções de Lutero e suas conseqüências políticas, Walter Altmann

(1994) esclarece que existem interpretações de que os cristãos não devem se envolver em

política, baseada na “doutrina dos dois reinos”, que passa a ser usada como legitimação

ideológica para posições omissas e de alianças com setores autoritários, como pode ser visto o

apóio oferecido na Alemanha ao regime nazista do Terceiro Reich. Do ponto de vista de

Altmann, Lutero fez uma distinção das competências do Estado e da Igreja, sem considerá- los

como autônomos. Assim, Lutero teria se dirigido à nobreza cristã, descrevendo seu ofício

como realização da tarefa necessária que seria a reforma política, social e econômica da nação

Alemã, cabendo ao Estado limitar e regulamentar a Igreja enquanto instituição social. Já a

Igreja caberia proclamar a vontade de Deus ao Estado, criticando suas arbitrariedades e

convocando sua vocação para o exercício da administração pública, em nome da comunidade.

Desse modo Altmann (1994, p.161 e ss.) afirma que não há em Lutero uma concepção de

“secularização” no sentido moderno- liberal da separação da Igreja do Estado, que só ocorreria

com o advento do Iluminismo. A autoridade secular, na visão de Lutero, baseia-se na idéia de

sacerdócio universal com pessoas cristas batizadas, descrevendo seu ofício. Para que se

compreenda melhor a posição de Lutero, Altmam traça correspondências do que seria próprio

ao Estado e a Igreja, aqui citado pareadamente e respectivamente: secular/espiritual; ordem

social/ordem eclesiástica; ordem púplica/ordem privada; corpo/alma; poder da espada/poder

da palavra; lei/evangelho; coerção/amor; punião/perdão. No desenvolvimento da Igreja

luterana são encontradas diferentes posições, que podem privilegiar o Estado ou a Igreja,

como por exemplo, quando se justifica certa ação do Estado como obra do demônio, está se

privilegiando o poder da Igreja, ou ainda quando se exercita a visão oposta. Nesse caso o

Estado é concebido de forma otimista, como criação de Deus, estendendo suas ações ao

âmbito social e econômico.

As interpretações de Altmann (1994) sobre as concepções Luteranas e seus

desdobramentos na esfera socio-política se estendem à compreensão sobre as diversas formas

de manifestação da fé no mundo das experiências religiosas e o imaginário social com elas

relacionado. Assim, quando o fiel divide suas concepções em dois reinos: terreno e celeste, os

concebe com certas características, sendo o primeiro a sede da injustiça, mentira,

desesperança, pecado, alienação, exploração, opressão, dominação, egoísmo, discriminação,

morte e o segundo o lócus da justiça, verdade, esperança, fé, consciência, amor, liberdade,

fraternidade, igualdade, ressurreição. O demônio preponderaria no reino terrestre e Deus no

celeste, conduzindo ao conflito e guerra constantes. Desse modo a experiência mística é uma

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forma de acesso ao reino de Deus, usando como instrumento a fé e a crença na doutrina da

graça. A conversão já seria um dos sinais dessa nova ordem espiritual a qual se vincula o fiel,

conduzido por sua fé. As ressonâncias das experiências de fé na dimensão política vão

depender da posição de cada fiel e da cada Igreja em seu contexto sócio-histórico e das

interpretações do significado da fé-no-mundo.

A esse respeito, Richard Heitzenrater (1996) comenta que setores do puritanismo calvinista desenvolveram a piedade individual que se tornou características das posições políticas não conformistas. Diferente da posição “moralista” que dá ênfase à necessidade do cristão ser uma “pessoa boa”, ou do “arminianismo” que declarava a necessidade de uma vida santa (se seriam acusados de defender a “justificação pela obras” para a salvação), os calvinistas “pietistas” pensavam ser indispensável o reconhecimento de sua posição de “eleitos”, evidenciando pelo seu comportamento serem capacitados pela graça de Deus. A primazia da graça, afirma Heitzenrater era o ponto central da disposição dos “calvinistas pietistas” em sua devoção e comportamento religioso. Paralelamente a essa concepção, existiam os calvinistas que desenvolviam o pensamento teológico e sua metodologia se rivalizava com a escolástica medieval, procurando debat es intelectuais, geralmente travados entre as idéias empiristas e institucionalistas. Esses confrontos marcam o início do Iluminismo, que daria ênfase cada vez maior as especulações racionais em lugar dos assuntos ligados à natureza da fé, enquanto relação direta com o sagrado. A primeira tendência vai se desenvolver na Alemanha com o nome de Pietismo, tentando renovar a Igreja Luterana, exigindo que os fiéis tivessem uma posição ativa diante dos assuntos da igreja e da realidade social, assumindo assim o “sacerdócio universal”. Um de seus mais significativos representante foi Philipp Jacob Spener que criou um programa para esse tipo de movimento, cujos itens eram: o estudo das Escrituras, afirmando a autoridade da Igreja e seu papel; zelo evangélico e não habilidades em debates; foco no modo de viver cristão e não na perspicácia intelectual; pregação dirigida à salvação do fiel e não para sua correção ou punição. De modo geral, pode-se dizer que o Pietismo alemão apoiado nas idéias de Spener, August Hermann Frencke e Nicholas Ludwig Von Zinzendorf é caracterizado pela “teologia do coração”, uma vez que enfatiza mais a sensibilidade religiosa no coração do que na mente.

A contrapartida inglesa dos grupos religiosos pietistas na Alemanha, foram as

“sociedades religiosas” inglesas, surgidas após a Restauração, “quando o povo inglês estava

reagindo dolorosamente ao seu recente encontro com o puritanismo politizado” observa

Heitzenrater (1996). Esse período se caracteriza por um clima de aversão geral pelo

fanatismo, tanto moral, quanto político da comunidade puritana, o que era motivo de

preocupação dos pietistas ingleses, que viam o aumento de imoralidade e irreligiosidade como

decorrência possível desse tipo de mentalidade. Surgiram assim em 1670 as sociedades

religiosas, constituídas pela fusão espontânea de moralismo e devoção, cujo objetivo era

promover “a real santidade no coração e na vida”. Um dos desdobramentos dessas sociedades

é a Sociedade Para promoção do Conhecimento Cristão (SPCK) que tinha como um de seus

membros Samuel Wesley, pai de João Wesley, considerado o fundador do Metodismo.

Samuel adotou na paróquia rural a qual pertencia, os lemas da SPCK entre os quais pode-se

citar: criação de escolas para os pobres, tradução e veiculação de idéias bíblicas através de

panfletos, manter correspondência e comunicação com as demais Igrejas de Inglaterra para

que se possam edificar mutuamente, cuidar dos pobres e enfermos proporcionando- lhes alívio

espiritual e corporal. Participando das atividades culturais e literárias de seu tempo, Samuel

estimulava os filhos para que seguissem seu exemplo. Heitzenrater relata que os métodos de

propagação das idéias protestantes desenvolvidos por essas sociedades eram individualistas,

baseado em um trabalho de relação pessoal com cada novo membro em potencial. Portanto

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entre as influências de João Wesley certamente se encontram essas concepções herdadas de

seu pai, mas a forma de difusão do metodismo vai transformar-se sobre os efeitos de suas

pregações que passam a atrair grande número de interessados com expressões emocionais e

devocionais.

Paralelamente a essa vida pública, Wesley manteve em Oxford a prática religiosa de

escrever um diário como forma de reflexão, diálogo com o sagrado e auto-exame que

recomendaria aos membros de seu grupo. Tornava assim sua busca de santidade cada vez

mais singular, desenvolvendo um modo próprio de devoção. Uma das influências sofridas

nesse comportamento foi a imersão nos escritos dos místicos conduzida por William Law, que

lhe deu uma cópia do tratado medieval Teologia Germânica. Nas palavras de Heitzenrater

(1996, p.52) “Wesley vibrava com a espiritualidade de escritores místicos, e era capaz de

olhar para além do que ele sentia que fossem algumas de suas limitações teológicas a fim de

compartilhar o interesse deles pelo viver santo”. Essas leituras eram obras de Antoinette

Bourignom, Madame de Guyon, arcebispo Féelon, o marquês de Renty e outros místicos.

Entre os efeitos dessa leitura estavam os aumentos da freqüência da atividade de auto-exame,

que se transformava em uma vigilância espiritual, cuja concepção subjacente era de que

nenhuma conduta era moralmente indiferente. A radicalização dessa postura provavelmente

produziu uma crise de identidade religiosa, registradas em seu diário em 1734, no seguinte

questionamento: “Como se conduzir entre a hesitação de instancias particulares de

autonegação e autoindulgência?”, referindo-se a obra clássica “A Imitação de Cristo” cuja

autoria é atribuída ao místico medieval Thomas Kempis. Para solucionar esse conflito, entre a

lei e o evangelho, Heitzenrater (1996, p. 54) indica que Wesley teve que lançar mão de

testagem de regras, para verificar se elas estavam ou não de conformidade com a vontade de

Deus, em um jogo de “lançar sortes”. Acreditando que Deus direcionava esse tipo de

atividade, Wesley testava regras como: levantar cedo ou não, fazer jejum aplicar-se mais nos

estudos, o que se aproxima do pensamento mágico-religioso.

A observação das múltiplas dimensões; política, cultural, religiosa, social, psicológica

implicadas na expressão dos fenômenos místicos apontam que há uma leitura relacionada as

processos sociais em seus aspectos temporo-espaciais de continuidade e descontinuidade,

integração/fragmentação; organização/caos; crença/descrença entre outros que permitem aos

indivíduos e grupos construírem seu universo simbólico. Karl Mannheim (2001) trabalhando

com a Sociologia da Cultura, observa que se torna necessário ao pesquisador atentar para os

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processos e traços mentais distintivos de cada grupo, ao movimento de inovação e tradição

básicos da ontologia social, a construção de estereotipia na dinâmica religiosa, ao hermetismo

dos grupos na busca de segurança, as rupturas dos modos de pensamento e sentimento grupal,

bem como a expressão de fenômenos intermediários e complexos diante das transformações

históricas. Esse tipo de conduta científica, contribui para a construção de uma Sociologia do

Espírito ao ver de Mannheim.

A essa altura do texto, essa tese situa-se como estudo exploratório sobre os fenômenos

místicos do Protestantismo, dada a dimensão múltipla e complexa que as primeiras visadas

sobre esse campo parecem descortinar. Assim, os aspetos elencados nesse capítulo

constituem-se apenas como ponto de partida e de indagação para a tarefa de desvelamento de

seus possíveis significados. Para dar prosseguimento a pesquisa, paralelamente a leitura dos

textos teóricos, utilizou-se da leitura dos jornais evangélicos do século XIX como fonte de

indagação sobre as expressões místicas e suas possíveis relações com o contexto sócio-

cultural brasileiro. Isso conduziu ao vislumbre da história dos pioneiros do movimento

protestante no Brasil, e o tipo de mentalidade que os sustentava no seu papel social de

apresentação e difusão das idéias e práticas protestantes no Brasil. Vale observar que em

07/02/1874, o jornal A Imprensa Evangélica, fundado pelos missionários, tecia comentários

sobre a questão da separação entre a Igreja e o Estado no Brasil:

O governo dignou-se afinal publicar no Diário Oficial do 1 do corrente, a sua participação official da missão Penedo em Roma; a qual consta além da necessária narração do negocio, das instruções do governo a seu enviado, memorandum deste apresentado à Santa Sé de uma nota do Cardeal Antonelli em resposta ao mesmo. Segundo entendemos estes documentos, o fim especial dessa missão a Roma era pedir ao Papa que empregasse sua autoridade espiritual para auxiliar o Governo Brazileiro a cohibir seus bispos dentro dos limites legaes no exercício de suas funcções oficiaes. Sobre este ponto o Apostolo de 30 de Janeiro já cantou o triumpho do episcopado.

A política brasileira, nos aspectos relacionadas a liberdade religiosa e atuação das

autoridades católicas para impedir a expansão do Protestantismo foi foco da inúmeras

publicações nesse periódico, durante o final dos século XIX, apontando para um contexto

sócio-político de luta para a aceitação e difusão da religião dos missionários (protestantes).

Esse aspecto marca as modalidades de inserção do protestantismo no Brasil relacionando-se

as práticas religiosas que permitiram a expansão desse movimento. A história dos

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reformadores é um ponto de referência na busca de um recorte que investiga a História das

Mentalidades visando observar as transformações ocorridas por ocasião da chegada dos

missionários ao Brasil. De acordo com Rivera (2001) as hipóteses sobre a sociologia da

memória de Maurice Halbwachs mostram que a preservação e a reprodução das tradições

religiosas dependem da memória do grupo religioso. No caso do Brasil com suas raízes

culturais diversificadas pela presença da cultura portuguesa, indígena e africana, a inserção do

Protestantismo vai encontrar na multiplicidade dos fenômenos religiosos um campo para a

criação de uma identidade singular, na qua l os fenômenos místicos podem adquirir sentidos

próprios. Observá- los em sua natureza, diversidade, expressão e significado requer uma

abertura à história, a cultura e aos processos sociais com ele relacionados.

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Capítulo 2

Misticismos e Protestantismos

O exame das relações entre misticismos e Protestantismos, configura os propósitos

desse capítulo tomando-se como referência a história de seus fundadores e movimentos,

focando-se as mentalidades e idéias que foram construindo os significados matrizes do campo

simbólico e de suas práticas religiosas. Evidentemente dada à complexidade e extensão dos

elementos envolvidos, optou-se por circunscrever os dados conforme atendessem aos

propósitos dessa tese. Para isso buscou-se utilizar os termos “misticismo” e “protestantismo”

no plural, uma vez que se pensa a complexidade desse movimento religioso, assim como as

expressões de misticismo que possam acompanhá- lo e se apresentem em mais que uma

modalidade e significado.

Em 1500 a Igreja unia a Europa e quase que a definia enquanto identidade social24,

conforme observou Roberts (2001). Porém, meio século depois, os homens que ainda

conservavam uma mentalidade medieval, de respeito à autoridade religiosa, que remontava há

mil anos terminaram com a suposta unidade do Cristianismo. Nesse sentido, reformadores e

pré-reformadores encaminharam a história rumo a ideais de liberdade religiosa25 tanto do

ponto de vista individual como social: maior tolerância com interpretações divergentes da

mensagem e da conduta religiosa; separação entre aspectos seculares e religiosos da vida, que

são características presentes na história da Modernidade.

24 Roberts (2001) comenta que a religião era tão embrenhada na vida cotidiana que nas aldeias e pequenas cidades não havia outro prédio público além da igreja, o dízimo era cobrado as custas de ameaças de excomunhão e de arder no inferno, e, além disso, as indulgências eram vendidas às custas da promessa de alívio do purgatório, no qual a alma se purificaria de suas culpas antes de poder entrar no céu. 25 Entre os eventos religiosos da Idade Média que foram propulsores da Modernidade estão a fundação da ordem dos dominicanos, em 1216 que não mais moravam reclusos nos conventos, mas que saiam para pregar livremente. Nessa época Francisco de Assis pregou o Evangelho através de uma vida humilde e desprovida de acúmulos materiais, proposta e conduta religiosa que foi seguida por muitos na Europa Cristã. Tais processos podem ser vistos como forma de luta contra a modalidade de exercício religioso vindo de Roma, e que conduzia a um desgaste do poder político dos Papas.(Johnson, 2001).

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Os pré-reformadores entre os quais pode-se citar John Wycliff26, os Lolardos27, John

Huss28 e Jerônimo Savonarola, são expoentes de profundos movimentos religiosos, que se

deram em condições políticas, econômicas e sociais, que fornecendo as bases para a Reforma

propriamente dita. Nessa mesma época o modo de produção feudal entra em declínio e

transformação, relacionados a alguns fatores; a instabilidade política, o fim das cruzadas29, o

crescimento populacional, o declínio da agricultura e a peste bubônica.

Em meio a esse cenário político e social, a Igreja pode ser vista como um dos maiores

senhores feudais da Europa, taxando os Estados nascentes e intervindo em seus domínios.

Mantendo essa condição social a Igreja teve que enfrentar interesses antagônicos da burguesia

enquanto classe social promissora da modernidade, aliada ao Estado. No campo da Teologia

havia o impasse gerado pela concepção de Tomás de Aquino que descortinava a idéia da

26 Em 1380 John Wycliff escreveu o Trialogus que precedeu a teologia de Lutero. Escrevendo na forma de prosa, o que era pouco comum para a época, facilitou a divulgação de suas idéias entre as camadas mais populares. Entre suas formulações estavam os ataques contra as doutrinas da eucaristia, a posse de bens materiais de forma desmesurada pelo clero, o que inspirou os parlamentares ingleses a produzirem os 140 artigos que corrigiam os abusos eclesiásticos. Identificou o Papa como Anticristo, afirmando que a Igreja poderia subsistir sem sua presença. A partir das idéias de Agostinho Wycliff adotou a idéia de predestinação, sendo a Igreja a Assembléia dos predestinados. Informações disponíveis em: www.stprj.br/prereforma.htm consultado em: 01 de agosto, 2003. Também pode ser consultado Paul Johnson: História do Cristianismo (2001). 27 Os Lolardos, cuja expressão holandesa, significa murmuradores, foram um grupo surgido nos círculos acadêmicos, influenciados inicialmente por John Wycliff (1320). Alcançando adeptos entre as classes menos favorecidas, tinham pregadores leigos, que anunciavam e mostravam os desvios do clero como as aberrações sexuais, o culto às imagens, e a doutrina da transubstanciação. Foram perseguidos e condenados à morte, estando entre eles Sir John Oldcastle. Em 1431 fizeram uma conspiração com a intenção de reformar a igreja inglesa e derrubar o governo, sendo massacrados e subjugados. Os que restaram se uniram aos primeiros protestantes. Informações disponíveis em: www.stprj.br/prereforma.htm consultado em: 01de agosto de 2003. 28 Os movimentos Husssitas, que se constituíram sobre a influência das idéias de Jonh Husss, tiveram entre seus expoentes os Taboritas e os Horebitas, cujos membros eram originários das classes humildes. Os primeiros eram apocalípticos e radicais em relação às críticas quanto aos desvios do clero, bem como a pompa dos cultos e a vida secular. Defendiam a liberdade de pregação, a administração do pão e do vinho, que o clero fosse privado das riquezas, e que os pecados públicos fossem passíveis de punição e castigos o que constituía os quatro artigos que eram um acordo seguido pelos Husssitas de maneira geral. Como venceram muitas batalhas, inclusive uma cruzada a igreja fez com eles um acordo, e os que não concordavam com ele, fundaram a Unitas Fratrum, que foi numerosa na Boêmia e na Morávia. Disponível em; www.stprj.br/prerforma.htm consultado em: 09 de agosto de 2003) 29 As cruzadas transformaram as aspirações sociais da população. O ideal de vida era tornar-se santo ou herói. O desejo de enriquecimento foi fomentado pelo contato com o modo de vida luxuoso do Oriente. As reuniões entre os cavaleiros formaram as tertúlias, onde em meio às disputas militares se ouvia música e havia conversas sobre literatura. Aperfeiçoaram-se as línguas e os trovadores e poetas viram florescer as línguas românicas, das quais fazem parte o italiano, o francês o castelhano e o português. Com o desenvolvimento dos estados absolutistas, desenvolvem-se as línguas e literatura que nelas se originam. Nesse mesmo clima histórico surgem as ordens mencidantes, ou de pedintes, cuja existência denunciava a decadência dos costumes e da moral da Igreja de Roma.

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revelação e da reflexão autônoma, sob a síntese da fé cristã, do pensamento aristotélico e a

abrangência da Teodicéia30.

2.1 Idade Média: Misticismo e Imaginário

O trecho a seguir visa elencar elementos presentes na mentalidade31 e no imaginário

medieval que permitam identificar a permanência de certos traços e valores na construção da

mística protestante. Portanto a seleção e a delimitação dos assuntos aqui tratados tem por

objetivo verificar como esses dois elementos nos auxiliam na compreensão do Protestantismo

sobre a ótica pretendida na pesquisa, consistindo sua forma em anotaçõe e comentários.

A Idade Média foi objeto de muitos estudiosos das Ciências Humanas, entre eles Le

Goff (1994) que faz referência significativas experiências com o “transcendental” datadas do

século VII ao início do século XIV. A maioria desses escritos são registros de visões de

monges, como por exemplo: Visão de Bonellus (séc. VII), De Borontus (séc. VII), Wetti (séc.

VIII) Carlos o Gordo (séc. XIII), Alberico de Settefrati (séc. X) entre outros. As narrativas

descrevem geralmente uma visão ocorrida nos meios monásticos, que podem ser agrupadas

em configurações: 1) descida ao Inferno e o julgamento do herói que falha; 2) viagem ao além

da apocalíptica judaico-cristã; 3) viagens ao outro mundo geralmente irlandesas e celtas. Na

perspectiva do estudioso da História das Mentalidades Le Goff (1994) os sonhos e as visões

abriam as portas ao transbordamento da imaginação popular, permitindo a inclusão de amplas

camadas da população na participação da construção das utopias. No entanto sonhos e as

30 As formulações de Duns Escotos e Guilherme de Ockham não foram capazes de resolver tal impasse. A teologia da época era influenciada por três grandes propostas: o realismo, realismo moderado e o nominalismo. Na primeira forma derivada do Platonismo, existe formulação de que as idéias existem independentemente das coisas particulares e são seus adeptos Agostinho e Anselmo. Os segundos concebem a idéia de que os universais têm uma existência objetiva, ainda que não existam separados das coisas individuais, sendo seus representantes Tomás de Aquino e Abelardo. Para os nominalistas acreditam que as verdades e as idéias não têm existência fora da mente, sendo apenas idéias subjetivas formadas pela observação das coisas, o que foi defendido por Guilherme de Ockham e Duns Escotos. Informações disponíveis em: www.stprj.br/prereforma.htm consultado em 10 de agosto de 2003. 31 A História Nova é uma proposta de estudo através da interação entre os campos das ciências humanas como a Psicologia, Antropologia, Literatura entre outras, na construção de um pensar típico da interdisciplinaridade, esclarece Marotta (1991). Propõe-se estudar os acontecimentos da grande maioria da população e suas atividades, sendo que a História das Mentalides é considerada uma modalidade de construção da História Nova que abarca o cotidiano dos indivíduos, que lhes escapa conscientemente, muitas vezes fazendo com que a coexitência de vários pontos de vista prevaleça sobre a ideologia dominante, abrindo espaço para novas práticas e formas de visão de mundo. O texto literário, pequenos eventos de uma época, hábitos, rupturas de tradição são instrumentos significativos para se escrever história. “Pode-se dizer, que a História das Mentalidades é o estudo da parte mais lenta da história, e que se refere mais ao espírito que a matéria, visto que esta última se tranforma mais rapidamente que o primeiro” (Marotta, 1991, p. 24).

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visões não se prestavam ao domínio das instituições eclesiásticas, embora pudesem ocorrer

em seu interior. O imaginário do além32 é um lócus privilegiado para processos de

compensação dos fantasmas sexuais, da libertação do maravilhoso, abundância e preguiça que

se pode desfrutar nas florestas, no paraíso, no contato com a natureza. O espaço do além é

submetido, no processo de cristianização da cultura, a esforços de racionalização e de

organização. Vejamos a citação de Le Goff (1994 p. 140):

Manifesta-se, a princípio, pela substituição das concepções e dos elementos pagãos por temas cristãos. Se bem que, por vezes, tenham sido conservados os animais como os pombos, guias e auxiliares do herói viajante transformaram-se já em santos e anjos. O objeto, o gesto ou a palavra mágica que protege o viajante durante a sua viagem é de natureza especificamente cristã (o sinal da cruz, o nome de Jesus). E principalmente os lugares do Além se tornaram lugares cristãos e receptáculos das almas acabam por fixar-se em três lugares principais: o inferno, o céu e depois o purgatório, e por vezes o quarto, quando se lhes acrescenta o Paraíso terrestre ou a cinco ou seis, como os limbos.

Os elementos culturais acima citados são acrescidos posteriormente com a emergência

da burguesia com seu lócus nas cidades que se tornam objeto de personagens e histórias da

literatura européia, como, por exemplo, Perceval o conce du Graal romance escrito por

Chrétien de Troyers, na liberatura francesa, que ficou inacabada. As duas partes da obra,

narrram seqüencialmente a iniciação do herói, na forma de ritual, e também sua educação.

Parsival ruma do universo da infância que é uma vasta floresta, na qual conviveu com sua

mãe, sendo visto como um jovem selvagem, chamado de besta, animal e grosseirão. Chega à

corte de Artur para que o selvagem se torne cavaleiro. É o reino do pai, que exige para

pertença muita luta, uma vez que permite o acesso a beleza, as mesas cobertas de ouro e

brilho, com trabalhadores que cantam alegremente, em uma feira perpétua, na qual há

alimentos, riquezas, e todo tipo de mercadoria que se pode imaginar, conforme descreve Le

Goff (1994 p. 246).

Na Idade Média os guerreiros tinham que se manter ocupados, para não correrem o

risco de se interessar demasiadamente pela educação, conforme orientava a Igreja. A imagem

mental ou cultural para adquirir força referenciava-se na Bíblia, que era objeto de exposição

32 Le Goff (1994, p.142) aponta que se pode vislumbar uma história sócio-cultural das viagens do Além na Idade Média, que podem ser periodizadas da seguinte maneira: 1)até o século VII, no qual a Igreja tentou fazer desaperecer as visões porque se associavam ao paganismo e ao folclore; 2) do século VII ao X com expansão das visões, devido ao mo vimento do monaquismo que filtrava os elementos populares; 3) do século XI ao XII com expansão das visões ligadas à promoção dos leigos e a pré-reforma; 4) o contra-ataque da cultura erudita, caracterizada pelo advento da racionalização e da infernalização do outro mundo subterrâneo.

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oral ou de pregação. Le Goff (1994) afirma que o Antigo Testamento mostra as cidades e o

urbano como mau ou maldito, como por exemplo, nos episódios de Sodoma e Gomorra,

Babel, e as recomendações para que se viva em cabanas, ou de modo errante. Ao caminhar na

direção do Novo Testamento, esse panorama vai mudando a tônica, iniciada pelos livros

históricos, valorizando o crescimento e a expansão de Jerusalém, que deve ser conquistada

pela mentalidade e hábitos Cristãos. Na literatura que abarca o período histórico da passagem

da Idade Média para a Modernidade, reforçam-se as imagens associadas à luta entre a cidade

má e a cidade boa, como na oposição Jerusalém-Babilônia, que já se encontra prenunciada em

Isaías. Jerusalém uma vez conquistada abrirá a porta para a salvação de todas as nações.

Porém a Jerusalém ligada ao nome de Jesus apresenta os lados positivos e negativos. Esses

aspectos se ligam aos temas ideológicos e valores culturais fundamentais, que se transmitiam

com o cristianismo.

Conforme Le Goff (1994, p. 253), nesse mesmo período histórico surgem dois

movimentos essenciais: as muralhas, torres e monumentos ao céu e os relacionados às portas

que representam e instauram o vaivém entre a cultura interiorizada e a natureza exterior, o

mundo da produção rural e o mundo do consumo, o mundo da fabricação de objetos e o

mundo da troca de bens, enfim o refúgio e a partida para a aventura e a solidão. A

modernidade começa a nascer traçando novas representações valorizando o interior/exterior;

alto/baixo; enfatizando a verticalidade e a interiorização. A emergência da modernidade

também se traça com a utopia de que nas cidades poderão conviver livremente cidadãos de

variadas origens sociais e culturais. Essa idéia relaciona-se a presença no imaginário da

cidade maravilhosa, com seus lugares mágicos, e manifestações do sobrenatural, com belezas

e monumentos luminosos, cujo expoente se volta à literatura dos peregrinos.

A História das mentalidades estabelece por outro lado um ponto de junção entre o

medieval e o coletivo, visando às intencionalidades construídas a partir da interação entre o

estrutural e o conjuntural, o marginal e o geral, afirma Hilário Franco Junior (1992),

indicando que os sonhos, fantasias, angústias e esperanças são componentes da história, tanto

quanto as guerras, reinados, leis e datas. Nesse sentido tais elementos prestam-se a

compreensão do que escapa ao domínio dos sujeitos singulares da história, revelando o

conteúdo impessoal de seu pensar e agir. É importante lembrar que o reconhecimento do

cristianismo como religião pode ser representado nos sonhos, cuja interpretação central se

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apresenta primeiramente no interesse, inquietação e depois na incerteza, que se torna objeto

da proposta dos reformadores. Segundo Le Goff (1994) os sonhos encontram-se

estreitamente relacionados à conversão, ao conhecimento e contato direto com Deus, bem

como ao martírio e à heresia. Pode-se citar o exemplo de Montano (por volta de 150 d.C.),

que tinha crises extáticas, durante as quais proferia advertências proféticas. Seguindo seu

exemplo seitas ascéticas, proféticas e milenaristas tinham membros que esperavam a descida à

terra da Jerusalém celestial. Tais idéias faziam a Igreja negativizar o êxtase e o sonho,

associando-o à heresia e ao mau.

Assim a comunicação entre o mundo humano e o divino estava sempre aberta no

imaginário da Idade Media enquanto a liturgia era vista como uma modalidade de ritos e

idéias, das quais se esperava tirar algum benefício da divindade. O céu e a terra estavam se

movimentando ao mesmo tempo, e o Purgatório era uma forma de criação do terceiro espaço

amenizador do dualismo e “adequava o imaginário às transformações sociais do período,

completando a geografia do além”, esclarece Franco Junior (1992 p.154). Desse modo, o

maravilhoso e o divino estavam paradoxalmente distantes e inseridos no cotidiano do homem

medieval, não produzindo interrogações sobre sua presença, mas sim reafirmando a cada

momento. A visão clerical, é que distoa dessa concepção, na medida em que ideologicamente,

propõe uma fronteira, na qual a magia natural se opõe a uma magia maléfica. Tal ponto de

vista se firmou com a monarquização e a dogmatização da Igreja, no século XIII, mas se

manteve presente no pensamento medieval, que sofreu influências de Agostinho (354-430)

quando afirmou que “pelas artes mágicas se fazem milagres semelhantes aos feitos pelos

servos de Deus” e posteriormente Tomás de Aquino (1225- 1274) que escreveu: “os demônios

podem fazer milagres”. Mesmo os malefícios poderiam se produzidos por origem divina, de

modos que certos santos deveriam ser evitados, pois poderiam causar doenças. Dentro desse

ponto de vista, os acontecimentos e objetos eram passíveis de serem vistos como hierofanias,

como algo mais que sua aparência, sendo o universo interpretado como um conjunto de

símbolos.

Vale lembrar, afirma Hilário Franco Junior (1992), que o termo grego symbolon

designa cada uma das metades de um objeto que se dividiu para que sua junção funcionasse

como uma senha, ou seja, um sinal que faz reconhecer o mais além. Esclarece ainda esse autor

que se trata de um véu que recobre a realidade transcendente, apontando sua existência,

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presentifica sua ausência, fazendo, por exemplo, que a palavra, linguagem simbólica33 por

excelência, revele o oculto. Para Agostinho, tal mentalidade se manifesta na idéia do

paralelismo: o Novo Testamento revela o Antigo, que já o contém.

Os componentes bélicos da mentalidade medieval associam-se a presença constante do

bem e do mal. Na visão do clero, que apontava os elementos do mal a serem combatidos, as

guerras eram a condição para a paz. A vitória poderia restabelecer a harmonia perdida do

paraíso. Quando Carlos Magno executou os quase cinco mil soldados saxões que estavam

revoltados, foi interpretado na perspectiva medieval como um ato religioso cristão voltado à

conquista e expansão do que consideravam “o bem”. Os rituais cristãos como a missa, eram

considerados como guerra contra o demônio, luta para defender a sociedade dos inimigos

invisíveis, que a sobriedade da batina representava como armadura indicativa simbolicamente

do conflito.

Os monges também guerreavam contra as forças demoníacas, cantando e orando pelas

almas dos mortos, na atividade espiritual dos oratores, ao lado dos guerreiros corporais, os

soldados, o sbellatores. Entre as melhores formas de guerrear, dos monges, encontram-se as

seguintes práticas religiosas: a luta contra a matéria (especialmente contra o corpo), através da

evitação do prazer e restrição da vida sexual e os atos de pureza, evitando a relação sexual

durante a menstruação e a gravidez. Os recém casados conviviam em abstinência, sendo

possível a consumação do casamento, somente se não houvesse uma força maligna. Os

sacerdotes faziam bênçãos e exorcismos nos casos de impotência masculina ou frigidez

feminina. Nos casos mais graves, era comum que a população além dos sacerdotes,

chamassem os feiticeiros.

Os monges realizavam práticas ascéticas em sua luta contra a matéria, como

mortificação, meditação, oração, procurando libertar-se dos desejos para se aproximar do

sagrado. O sofrimento voluntário não tinha a finalidade de garantir um lugar no paraíso, mas

33 Hilário Junior (1992) esclarece que não havia fronteiras claras entre o indivíduo e o mundo, sendo que todo homem pode ser visto como uns microcosmos, não apenas um fragmento do todo, mas uma réplica dele miniaturizada, sendo cada parte de seu corpo e de sua mente um pedaço do universo, ao qual se liga intimamente. O homem se sente um cosmos vivo, que pode vislumbrar em si mesmo, não se reduzindo a existência fragmentada e alienada do homem dos tempos atuais, o que também está de acordo com as idéias de Mircea Eliade (1997).

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sim de restaurar a inocência perdida, constituindo-se em rituais de purificação e de caminho

para o divino. Nesse contexto, muitos que se flagelavam e se fortificavam com chicotes,

correias e pontas de ferro, acreditando que poderiam se purificar, sendo muitas vezes

considerados mártires. Diante deles, muitos se prostravam buscando cura, expiação dos

pecados, exorcismos ou até ressurreição dos mortos.

A busca pelo sagrado, a expiação da culpa, a evitação do prazer, já indicavam que o

sacerdócio universal mostrava suas faces, nessas práticas, que eram condenadas pela igreja,

quando capazes de se transformar em movimentos sociais. Já os laicos, como não poderiam

tornar-se monges, buscavam através das práticas eremita e ascéticas purificação, santificação

e aproximação do sagrado. Outra modalidade de guerra com as mesmas finalidades, era a

peregrinação. Veja-se a esse respeito às explicações de Hilário Franco Junior (1992):

Ao deixar a segurança de sua casa em busca de um santuário distante, o peregrino sofria todas as dificuldades do caminho, realizando assim um exercício ascético e uma forma da penitência. Outro termo importa mais numa peregrinação é a rota comparada ao objetivo: o sofrimento do caminho é que permitia depois receber a sacralidade emanada do corpo santo ou do local visitado. Vistas assim, entendem-se porque as cruzadas mobilizaram tantos indivíduos por quase dois séculos e mesmo depois continuaram a ser sonhada. Que elas tenham tido forte motivações econômicas, sociais e políticas é inegável, porém nos moldes em que ocorreram revelam, sobretudo a mentalidade da época. O belicismo das Cruzadas é primeiramente mental, depois corporal.(Hilário Junior, 1992, p.163).

Considerando ainda a perspectiva do belicismo, observa-se a prática do

contratualismo, que na mentalidade do homem medieval o ligava por direitos e deveres a uma

das duas forças presentes no universo: o mal ou o bem. O contrato com as forças do mal

poderia ser feito em caso de alguma necessidade urgente do homem, como doença, promoção,

fome, conflito com opositores, mas depois deveria ser alvo de arrependimento e busca de

perdão. Já o contrato com Deus possuía cláusulas de direitos e obrigações recíprocas: saúde,

poder e riqueza eram trocados por reverências, orações e sacrifícios. As instituições sociais

políticas e econômicas se adequavam a esse contrato, afirma Franco Junior (1992)

constituindo o sacrifício uma de suas modalidades. Para o Cristianismo, por exemplo, o

próprio Jesus Cristo, tinha um contrato dessa natureza para salvar a humanidade. O

contratualismo medieval obedecia a modalidades coletivas até o século XII, uma vez que se

acreditava, que os efeitos de um contrato eram extensivos a todo um grupo de pessoas. As

penitências que eram trocadas pelo perdão dos pecados visavam não somente salvar o

indivíduo, mas toda a comunidade que deveria ser purificada.

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Há analogias possíveis entre a relação servo-senhor feudal e homem-divino. As

atitudes e comportamentos com relação ao sagrado são semelhantes às da relação vassalo-

senhor. Para recuperar a idéia do paraíso perdido, o homem deveria rezar ajoelhado, cabeça

descoberta, mãos juntas, reproduzindo a postura do vassalo diante de seu senhor. Desse modo

compreende-se que essa modalidade, era a forma como Cristo se colocava diante do Pai. Essa

analogia ideativa possivelmente colaborou para manter a coesão grupal e social em momentos

de conflito. No entanto ao promover modelos de contato mais diretos com o sagrado, como a

peregrinação e a santificação, o Protestantismo passa a instituir modalidades de práticas

religiosas que comportam a individualidade, enquanto exercício de autonomia, para além do

controle das instituições medievais. A valorização da capacidade de autonomia está na base

de muitos conflitos entre o Protestantismo e outras religiões como o Catolicismo, bem como

entre as diversas correntes em seu interior, indicando as divergências entre as concepções de

liberdade que marcam a modernidade. Assim o direito natural moderno será um direito

subjetivo, como observa Alain Renaut (1998), marcado pelo racionalismo jurídico ou pela

vontade humana (voluntarismo jurídico). Os contratos entre os homens a partir desses

processos passam a não obedecer à máxima daqueles inscritos sobre a crença de uma ordem

imanente ou transcendente ao mundo. O Humanismo emergente aponta para a possibilidade

de que o homem é o princípio de toda normatização, sendo o autor de seu direito, e que vai

regular o contrato entre as partes interessadas nos tempos vindouros. Ao discutir a relação

entre a mentalidade da Idade Média e o Protestantismo, Franco Júnior (1992, p. 171-172)

comenta que:

O Protestantismo (...) foi em última análise apenas uma heresia que deu certo. Isto é, foi o resultado de um processo bem anterior, que na Idade Média tinha gerado diversas heresias, várias práticas religiosas laicas, alguma crítica a um certo formalismo católico. Nesse clima, a crise religiosa do século XIV comprovou ser inviável para a Igreja satisfazer aquela espiritualidade mais ardente, mais angustiada, mas interiorizada. Foi exatamente neste espaço que se colocaria o Protestantismo. E sem possibilidade de ser sufocado pela ortodoxia católica, por ele atender às necessidades profundas decorrentes das transformações sócio-culturais verificadas desde os últimos tempos da Idade Média.

Observa-se que na Idade Média o homem se colocava em busca do divino, convivendo

com o mal e o bem como componentes simbólicos de seu modo de ser cotidiano, de suas

crenças, de suas esperanças e modos de agir no mundo. As variadas formas de caminhar em

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direção ao Divino desafiavam a Igreja enquanto práticas que fugiam as propostas de

sustentação da instituciona lização da religião e seu poder. Por isso mesmo, as guerras santas

são facetas não só religiosas, mas político-sociais que anunciavam o devir da modernidade e

indicavam as diversas tensões culturais presentes nas relações de poder, tecendo uma

possibilidade de compreensão de seus significados.

O misticismo em seu sentido mais amplo de relação direta com o divino pode

significar não só uma das modalidades dessas práticas que fogem ao controle da Igreja, mas

também um traço significativo de ajuste entre as tensões culturais que se faziam presentes

entre as tendências individualistas e coletivas de práticas religiosas. As práticas coletivas

atendem a certas demandas sociais, enquanto as práticas individuais, parecem abrigar demandas

que não se asseguram pelas primeiras, mas mantém na singularidade sentidos coletivos que se ocultam nessa aparência. Se

assim for, exigem da pesquisadora que desloque a investigação da aparência para o aparecer do fenômeno religioso. Roger

Bastide (1975) observa que “o sagrado” em sua leitura sociológica propriamente dita, comporta uma dimensão do imaginário,

mais do que a da memória, diante de certos fenômenos. Quando a civilização e a institucionalização forçam os sentidos do

sagrado para modalidades que não alcançam a dimensão das relações sociais que se estabelecem, surgem os processos de

alteridade, recriando possibilidades de novas práticas religiosas e seus significados, mesmo que estas sejam vistas como

“selvagens” ao olhar de que hegemonicamente, tenta conduzí-los para uma direção. Neste sentido relembremos a afirmação

de Bastide:

Dois pilares que nos permitirão colocar, não propriamente o problema das relações entre a natureza e a cultura, nem aquele que lhe é vizinho, as relações entre a psicanálise e a sociologia, mas aquele puramente sociológico da domesticação do sagrado; as sociedades tradicionais se dedicam, como tentaremos demonstrar, a passar do sagrado selvagem ao sagrado domesticado – nossa sociedade ao contrário, a desagregar o sagrado domesticado para fazer brotar, ou baixar o sagrado selvagem em toda sua fúria.(Bastide, 1975, p. 1-2).

Da perspectiva de Bastide (1975) as necessidades religiosas de um grupo não deixam de existir em função de forças

sociais, culturais e econômicas. Embora se relacione com essas proximamente, tem uma natureza própria que permite nos

casos de incompatibilidade permanecerem ocultas, em posição de justaposição, podendo em circunstâncias favoráveis

emergir provocando rupturas e transformações nas configurações de um campo cultural e simbólico, mais

especificamente no espaço e no tempo religioso. Essa proposição de Bastide permanece como

um horizonte fértil para analisar os reformadores e suas práticas religiosas, que será realizado

a seguir.

2.2 O Misticismo em Lutero

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Martinho Lutero (1483-1546) contrariou o pai, que era camponês e o desejava na

carreira de Direito, entrando para o mosteiro agostiniano, prestes a completar 22 anos de

idade. Os temas da salvação e da condenação estavam em foco na sua época: a vida presente

de uma pessoa não era mais que uma preparação e uma prova para o devir. A vida monástica

era uma das propostas da Igreja, que oferecia a salvação. De acordo com Gonzalez (1995) a

visão de Lutero sobre Deus era de austeridade, severidade e temor. Costumava castigar seu

corpo constantemente, conforme ensinavam as autoridades monarquistas e utilizava o

confessionário constantemente. Mesmo tendo memorizado os pecados muitas vezes, na

ocorrência de esquecimento na confissão, passava por momentos de desespero.

Este temor e horror por si sós já bastam (para não falar de outras coisas) para produzir a pena do purgatório, uma vez que está próxima do horror do desespero. É-me certíssimo que existe um purgatório. Não me impressiona muito que blateram os hereges, visto que, já há mais de 1.100 anos, no livro IX de suas Confissões, o B. Agostinho ora por sua mãe e seu pai e pede que se ore [por eles], e sua mãe, ao morrer (como ele lá escreve), desejou que sua memória [fosse lembrada] junto ao altar do Senhor; mas ele conta que isso também aconteceu com o B. Ambrósio. E mesmo que na época dos apóstolos o purgatório não existisse, como se estabelece o altivo Begardo – acaso deve-se, por esta razão, crer num herege que nasceu mal-e-mal há 50 anos e pretender que a fé de tantos séculos seja falsa? Principalmente porque ele não faz outra coisa exceto dizer: “Não creio”, tendo assim, provado todas as suas [asserções] e rejeitado todas as nossas, como se também a madeira e a pedra não crescem. Mas isto ficam para uma obra e um tempo apropriados.Portanto, está admitido que há horror nas almas. Agora vou provar que esse horror é uma pena do purgatório, ou melhor, a máxima. (Lutero, 1987, p. 97).

No ano de 1517, o professor universitário Martinho Lutero, sem saber que se tornaria

um agente da história mundial, exteriorizou seu inconformismo com a venda das indulgências

fixando na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg as noventa e cinco teses. A incursão na

biografia de Lutero aponta para momentos de experiência mística. Um desses episódios

ocorreu após sua sobrevivência em uma tempestade, na qual vendo-se terrorizando diante da

imaginação que seria atingido por um raio devido aos seus pecados, Lutero converteu-se.

Posteriormente, formou a convicção que Deus se importava com ele e o salvaria. Durante a

primeira missa que celebrou teve uma experiência arrebatadora, da qual resultou a idéia que

deveria lutar pela dignidade da condição sacerdotal. Em outro evento de sua vida, Lutero

acreditou que lançara um tinteiro contra o demônio, quando esse lhe aparecera. Pode-se

assistir na História, o desabrochar das idéias teológicas de Lutero na declaração que os

homens podiam ter esperança na salvação sem a Igreja, confiando no seu relacionamento

particular com Deus, desde que tivessem fé em Jesus. Deste modo, simbolicamente pode-se

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dizer que o Papa foi destronado, e a Bíblia, enquanto Palavra de Deus, foi colocada em seu

lugar. Nesse período histórico havia mais de uma forma de autoridade, uma vez que cada

governante na Alemanha decidiria a religião que prevaleceria em seus domínios: protestante

ou católica. Tal possibilidade desdobrou-se em muitas lutas e guerras por convicções, espaços

religiosos, formas de conduta social, e poder.

Importante mencionar que Agostinho, uma das referências de Lutero, escreveu vários

volumes sobre a Cidade de Deus, tratando da história temporal e eterna da humanidade,

representada em duas cidades: uma terrena, cujo amor a si mesma, chega ao desprezo de Deus

e a outra, seu oposto. Tomando como referência o apóstolo Paulo, Agostinho aponta para a

união do fiel com Cristo mais que com Deus. À distância entre Deus e o homem é diminuída

ou superada não por atitudes do próprio homem, mas pela graça do próprio Deus. A

revelação de Deus não se encontra no aspecto da subjetividade humana, ou da objetividade

dos atos cotidianos, mas, sobretudo através da pessoa de Jesus Cristo e em sua morte na Cruz.

Na origem da identidade Cristã pode-se pensar que há ao menos um ponto comum entre

Paulo, Agostinho e Lutero, que implica em uma concepção de que o encontro do homem com

a divindade depende de Deus, mais do que da vontade humana. Do ponto de vista da

eclesiologia protestante, o movimento de Lutero como reformador foi o deslocamento da

concepção de salvação da Igreja como intermediária, tal como se encontra no catolicismo,

para a fé e a graça agindo no indivíduo, conforme faz observar Mendonça (1998). Ainda em

uma ótica comparativa ao catolicismo pode-se afirmar que esse movimento enfraqueceu o

poder da Igreja sobre os fiéis protestantes, uma vez que qualquer um pode se salvar mesmo

sem participar da instituição, já que considera sua comunidade formada pela “comunhão dos

santos”, ou seja, a “comunidade dos salvos” afirma Mendonça (1998 p.83). Para manter os

fiéis unidos no caso do luteranismo de origem missionária, fatores como a liturgia e os

sacramentos, bem como no caso do Brasil, a proximidade étnica tornou-se relevante.

As concepções de Lutero são mencionadas por Delumeau (2003) em seus estudos

sobre o imaginário social que sustenta as idéias de paraíso, fez referências a imagística

cavalheiresca, que exortavam o fiel a fugir Babilônia e rumar para a cidade celeste. A leitura

da Bíblia seguia a rota de novos céus, e de uma nova terra. Mostrava-se bem contido em

configurar imagens e detalhes da vida eterna. Direcionava os fiéis a frear sua imaginação

interpretativa, tecendo um giro ao indicar que o reino de Deus não estava no exterior, mas no

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interior. Portanto, o reino não estava distante, mas dependia de cada um iniciar um processo

de buscá-lo em si mesmo. A presença do céu se dá pela fé, e todo fiel deve desconfiar da

imagem “corporal” do além. A fé é concebida como movimento em relação à Palavra Divina,

e torna-se necessário ao fiel ser prudente em relação à imaginação que bem pode servir para

as ilusões do diabo. Calvino, segundo Delumeau (2003) também estaria na esteira de Lutero,

sugerindo que não se desse muita importância às visões dos místicos. O invés disso, uma série

de práticas religiosas poderia compensar a ausência dessas visões, como por exemplo, os

cânticos coletivos, especialmente os corais, que foram ganhando ao longo do tempo grande

destaque na difusão do Protestantismo.

O referencial teológico permite inicialmente clarificar algumas das influências de

Paulo e Agostinho sobre Lutero, relacionado algumas das observações de Borriello et al.

(2003) sobre esse processo. Paulo em sua linguagem mística refere-se não tanto a união do

cristão com Deus, mas com Cristo. Dois fatores distinguem Paulo do Helenismo e do

Judaísmo: o primeiro é que à distância entre Deus e o homem geralmente é superada por um

ato da graça do próprio Deus, não havendo nada que o homem possa fazer por isso. A

revelação de Deus não se encontra no aspecto da subjetividade humana, tão pouco na

objetividade, mas, sobretudo através da pessoa de Jesus Cristo, e sua morte na Cruz. Na

origem da identidade Cristã há um extra, que é um ponto comum entre Paulo, Agostinho e

Lutero, isto é, algo que se processa fora e sem o nível humano. Um ponto semelhante e ao

mesmo tempo divergente entre Lutero e Paulo, é que o primeiro fala de uma justiça forense,

enquanto Paulo fala de uma união que une o Cristão ao seu Senhor. Quando Lutero fala de

um renascimento, ou uma nova criatura, refere-se ao processo de imputação, enquanto Paulo

fala de uma verdadeira transformação. Portanto observa-se que tanto o apóstolo como Lutero

postulam a existência da mesma identidade mística para todos os cristãos. A santidade é uma

espécie de a priori, que não se mede em termos morais, mas por seus frutos. Por essa graça o

homem já está salvo, mediante a fé, cuja origem é atribuída a Deus. A santidade define a

mística de todo batizado. A perfeição é o status de todo indivíduo que crê. Há interpretações

sobre a frase de Paulo “não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim”. Não se sabe se

estaria ligada a influência helenística, na qual uma divindade cultural como Perséfone, ou

mesmo Osíris, se tornava um com o fiel. Tal concepção o afasta das idéias judaicas da época,

mas o aproxima das concepções pagãs de seu tempo. Já o conceito de fé o afasta da mística

pagã. Pela fé se mantém a idéia de diferenciação entre Cristo e o cristão, não permitindo que

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se confundam. O termo “místico” mostra aí toda sua ambigüidade34, na qual a diferenciação é

a condição da busca de união, e a imitação é o legado da união obtida pela semelhança

ilusória que atesta uma presença distante. A temporalidade da experiência mística que se

encontra em Paulo e Lutero mostra uma concepção de futuro, deslocando-se a esperança

sobre a experiência intima e pessoal com Cristo, aguardada, mas imaginariamente vivida no

presente.

A construção da experiência mística com características de intimidade com Cristo, não

se encontra somente em Lutero, mas também em expoentes como A Devotio moderna.

Chama-se Devotio moderna movimento do início do século XIV, originalmente surgido nos

países baixos, que exaltava a purificação da alma e o crescimento nas virtudes. Opunha-se às

penitências extraordinárias e tradicionais. Mantinha uma oposição a um aspecto anti-

intelectualista e anti-escolástico. Acentuava uma parte afetiva da espiritualidade, centrada na

pessoa de Jesus, mas que em seus atributos divinos. O livro a Imitação de Cristo, muito

difundido é um exemplo típico desse movimento. O ponto importante é seguir o modelo de

Jesus, assimilando maximamente suas virtudes e aplicando-a a vida terrena. Poderia haver

orações comunitárias, leituras de texto bíblico, seguidas de meditação, na quais os fiéis

poderiam dar sugestões de aplicação dos ensinamentos em sua vida e na vida de outros. Não

eram simpáticas as tendências humanistas, e tão pouco as posturas dos eremitas. O autor que

mais popular foi Tomás Hemerken de Kempis a quem é atribuída à obra acima citada. Esse

tipo de prática religiosa presente no tempo de Lutero, já indicava o papel do indivíduo como

agente de sua experiência religiosa, independente de seus conhecimentos ou estudos bíblicos.

De acordo com Vicente T. Lessa (1960) há influências Agostinho, Tauler e dos místicos

alemães em Lutero, que o fizeram desaminar-se diante dos ensinos da escolástica, ou ao

menos relativizá- los.

A respeito da mística é preciso lembrar que Lutero fez um pequeno tratado Sobre a

Liberdade Cristã (1520) no qual estabeleceu duas proposições iniciais, que partiam de idéias

bíblicas contraditórias sobre a liberdade espiritual e à servidão. A primeira postula que o todo

homem cristão é livre de todos os senhores não devendo a eles se sujeitar e a segunda que

todo homem cristão é o mais cumpridor de todos os servos e está submetido a todo o mundo.

34 Uma possibilidade interpretativa é pensar que Paulo se aproximaria das histórias das heresias cristológicas, que dizem que há uma inserção do Divino em Jesus, o que o despersonaliza e o desresponsabiliza por seus atos, tal como ocorreu no apolinarismo.

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Nas concepções de Lutero, o homem tem uma dupla natureza, a saber: espiritual e corporal. O

homem espiritual é interior e é novo, uma vez que se renova dia a dia. Por sua vez, o homem

corporal está sujeito à corrupção do mundo, uma vez considerado é físico, exterior, antigo.

Faz menção direta a Paulo em 2Cor. 4,16. Ainda frisa Lutero que se pode encontrar no texto

bíblico, várias alusões a essa dupla natureza, que se mostra em oposição. O homem só é livre

quando se considera a sua interioridade, que se alimenta da palavra de Deus e não pode jamais

dispensá- la. O ver de Lutero, quando a alma possui a palavra está em uma condição de

riqueza, não precisando mais nada, uma vez que “se torna o Verbo da vida, da verdade, da

luz, da paz e da justificação, da salvação, da liberdade, da alegria, da sabedoria, da virtude, da

graça, da glória e de todos os bens”. (Dunstan, 1964, p.33). A alma só necessita do Verbo para

sua vida e justificação, portanto não inclui qualquer obra.

Tomando como ponto de partida que o homem cristão já está ligado a Deus desde o

início, Lutero firma uma espécie de misticismo, como constitucional dessa relação, e não

como algo a ser alcançado, mas sim alimentado e reconhecido em si, pela fé. A intimidade e

diretividade da relação entre Deus e o homem cristão já está posta como gênese inicial, não

necessitando de qualquer mediador terreno. O homem bom, aquele que pela fé mantém o

cultivo dessa relação, praticando boas obras. Claro está que as obras decorrem da fé e não que

essas possam fazer o homem bom. A fé torna o homem livre de toda lei: os homens

interiores, habitantes da Cidade de Deus. A relação dos homens entre si pode estar permeada

de obras boas, às quais se dedicam com alegria e amor, de formas vo luntárias e generosas,

apoiadas apenas na plenitude da fé.

Há, portanto em Lutero a contribuição para o surgimento de um paradigma

individualista de prática religiosa, que aponta para a pluralidade da institucionalização

protestante, palco no qual se debaterão a autonomia própria à ligação do indivíduo com o

sagrado, e as modalidades de exercício de poder, autoridade, dogmas, crenças e organizações

presentes nas relações sociais próprias aos contextos sócio-econômicos nos quais se

historicizaram. Lutero a princípio enfrentou as autoridades religiosas, na medida em que

negava os diversos princípios católicos como o poder espiritual do clero, o direito exclusivo

do magistério de interpretar a Bíblia, o privilégio do Papa de convocar o concílio geral, os

sacramentos, o celibato dos padres, o jejum, os votos monásticos e todas as imposições feitas

pela Igreja para defender os interesse materiais. Apesar da condenação da intelectualidade

pertencente à Universidade de Sorbonne e as faculdades de Colônia e Louvain, Lutero passou

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a receber apoio de todas as camadas sociais da Alemanha, principalmente da pequena

burguesia. Do ponto de vista da história, vale lembrar que o luteranismo esteve durante muito

tempo ligado ao Estado alemão, embora para alguns fiéis isso não significasse a sujeição total

às diretrizes governamentais, como ocorreu posteriormente diante do advento do nazismo na

Alemanha, quando se constituiu a Igreja Confessante, cujos membros se recusavam a servir

de propagandistas ao III Reich. Na perspectiva política, pode-se observar que as divergências

de Lutero com o catolicismo romano convergiam com os interesses dos nobres que desse

modo secularizavam os bens do clero, apoiados inclusive pelas Guerras dos camponeses, até

que essa tomasse às feições próprias a um movimento de classe social. E vale lembrar ainda

que Lutero seguia os passos de Wyckif (1370), Wat Tyler (1381), Huss (1400) Joan Darc

(1430). Havia novas forças sociais em conflito envolvendo o clero, príncipes, nobres e a

burguesia nascente, compostas pelos pequenos artesãos e comerciantes. Em 1525, dentro de

uma visão conservadora, Lutero escreve contra os Bandos de Pilhadores e Assassinos

Camponeses solicitando dos príncipes que massacrassem os anabatistas revoltosos, o que

ocorreu em 1536.

Da perspectiva da relação do Protestantismo luterano com o paradigma da liberdade

humana, as posições políticas de Lutero lhe custaram o distanciamento dos humanistas, que

esperavam da Reforma um resgate dos valores relacionados á a origem da doutrina cristã,

levando Erasmo a denunciar o pessimismo do reformador na obra De Libero Arbítrio. Essa

questão percorre as discussões sobre a modernidade, que conta com a contribuição da

antropologia comparada de Louis Dummont (1983), para quem nas sociedades tradicionais,

sejam primitivas ou medievais, a tradição se impõe ao individuo, sem que a escolhesse,

geralmente na forma de transcendência radical que deve ser obedecida de forma semelhante à

obediência às leis da natureza. A característica básica é a dependência do indivíduo ou do

grupo dessa tradição. Já a dinâmica das sociedades moderna, que se abre à democracia, será

conquistada pela erosão progressiva dos conteúdos tradicionais, minadas pela idéia de auto-

instituição. O principio norteador é a fundação da lei sobre a vontade dos homens, subtraindo

a autoridade das tradições. Esse princípio está vislumbrado na idéia de livre arbítrio, presente

no Protestantismo na forma inicial de individualidade, presente enquanto “espírito

protestante”, que vai desenvolver-se conflitivamente entre individualidade/democracia;

democracia/totalitarismo nos séculos vindouros a Lutero, permeando as posições das

instituições protestantes e dos fiéis. Certamente o conceito de fé como relação direta com o

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sagrado e não mediatizada pela autoridade religiosa, contribuiu para a instauração do conceito

de liberdade na modernidade e os conflitos sociais a ele relacionados.

A menção a um estado de alegria e bem estar, que sustenta as ações humanas no

mundo, é uma decorrência do estado de união da alma com a divindade e da liberdade que

assim é vivida. Há semelhança com os estados emocionais místicos, nos quais se observa esse

mesmo estado de espírito, que espontaneamente nasce de um encontro entre o homem e o

sagrado. Na sua dupla identidade, o homem tem como modelo maior Jesus Cristo, que

enquanto encarnado, segundo a teologia cristã, se mantinha em contato com a divindade.

Imagem e semelhança do homem e de Cristo, com exceção, que esse não era pecador. Lutero

afirma que Cristo chama a Si mesmo e aos apóstolos de homens livres, uma vez que, são

filhos do mesmo Pai. A Obra de Cristo é apenas uma submissão ao sagrado, mas não

necessitava dela para sua salvação. É ao poder da fé, ligação suprema e máxima do homem

cristão com o sagrado, que a consciência se transforma, tornando-se reta e invulnerável,

fazendo com que as obras boas possam se realizar. Os preparativos são válidos, mas não como

a garantia da salvação: as cerimônias, os cultos, os rituais, não são um fim em si mesmo, mas

apenas manifestações de que o homem interior está possuído pela palavra, ou seja, pela fé.

“Deus escreverá a Sua lei em nossos corações; de outro modo, não haverá esperança para

nós” (Lutero, 1996).

Vês, portanto: se reconhecermos as grandes e receiosas coisas que nos são dadas, como diz Paulo, logo se difunde por meio do Espírito, em nossos corações o amor, pelo qual somos obradores livres, alegres, onipotentes e vitoriosos sobre todas as tribulações, servos dos próximos e assim mesmo senhores de tudo. Os que, porém não reconhecem o que lhes é dado através de Cristo, para estes Cristo nasceu em vão, estes vivem pelas obras, sem jamais chegar ao gosto e a percepção daquelas coisas. (Lutero, apud De Boni, 2000, p.70).

A proposta de Lutero sobre a justificação pela fé e sua presença no mundo interior,

com posterior manifestação nas obras, comporta uma experiência subjetiva. Pode ser pensada

como uma subjetividade já numa proposição da modernidade, onde a individualidade se

coloca como centro da organização do homem, e a plausibilidade com o mundo exterior, é

buscada, e visada a partir dessa condição primeira. Não se nega a força dos fatores exteriores

ao homem, nem a necessidade de atentar-se a eles, mas o que se sobressai é que já não são

mais imperativos para a concepção da relação homem-divindade, conforme aponta De Boni

(2000).

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Esta idéia da interiorização da escatologia é também corroborada por Nascimento

Filho (1999) que mostra ser a teologia da Reforma dominada por duas perguntas, a saber:

como posso ter um Deus grandioso e onde posso encontrar a verdadeira Igreja. Essas

perguntas estão implicadas mutuamente tanto na teologia da Lutero, quanto na de Calvino.

Para ele é a Palavra de Cristo que cria a Igreja e a torna viva através da pregação constante.

Por meio desse ato, o Espírito Santo se presentifica e reúne a Igreja cristã. Este seria um

aspecto de concordância entre as várias denominações protestantes e perpassa o ensino dos

reformadores sobre o mistério e o seu conceito de missão. Em Calvino encontra-se a idéia de

povo reunido. O que constitui a Igreja externamente é a aliança entre Deus e seu povo, e

internamente a união com Cristo por meio de Espírito Santo. O que Cristo recebeu por sua

união com o Espírito Santo e que constitui os ofícios transborda em bênçãos aos fiéis, para

aqueles que seguem a Jesus. Cristo sendo assim a cabeça da Igreja opera em seu interior

distribuindo dons distintos aos fiéis, que tem então alguma tarefa a cumprir no interior dessa

instituição, ou para seu crescimento. De certo modo isto mostra que todos os crentes são

sacerdotes e através de sua união com Cristo podem interpretar livremente a palavra. Essas

funções dos fiéis podem ser exercitadas por um tipo de atitude mística, que é a devoção à

palavra. Todo leigo e parte do laos (povo) de Deus, e possui um ministério recebido de Deus

que lhe permite edificar Sua Igreja. “Todos devem encontrar um significado pessoal ao

compreenderem o que é ser uma das pessoas convocadas por Deus” (1999 p. 10).

De Boni (2000, p.) faz comentário interessante sobre a postura de Lutero, e a

duplicidade nos dizeres referentes à esfera política35, que merecem citação, pois guardam

certa semelhança com a visão de Bastide de forças sagradas que se mantém latentes na

postura e no discurso social:

Tal como São Paulo, Lutero foi um autor cujos enunciados práticos em sempre correram paralelos com os teóricos. Paulo afirmou mais de uma vez que todos somos iguais em Cristo, sem distinção de raça, de classe ou de sexos, entretanto ao voltar-se para os problemas do dia a dia, aceitou como pertencentes à ordem

35 Comentando sobre a questão da fé no Protestantismo, Dunstan (1964) afirma que o livre arbítrio do homem o faz colocar em questão os credos de confissões que se elaboram permanentemente. Lembra que nos cinqüenta anos que se seguiram á Confissão de Ausburgo, houve muitas controvérsias dentro das igrejas Luteranas, inclusive tentando uma “Fórmula da Concórdia” em 1580. Nos próximos séculos o mundo vai passar por muitas mudanças, que passam a exigir do homem que para viver pela fé e ação redetora de Deus por intermédio de Jesus Cristo, passe a tentar interpretar e compreender qual a vontade Desse em cada uma das situações. Muitas respostas foram sendo dadas, por cada seita, ou grupo que dizia fiel aos ensinamentos das Escrituras, e acordado com as idéias de Lutero. Geraram-se constantes tensões e divisões nas igrejas, conforme descrito por Dunstan (1964).

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divina entre autoridades e súditos, entre senhores e escravos, a submissão da mulher ao homem, e recomendou a cada um manter-se na vida que estava, pois tal era à vontade de Deus. Isso criou uma tensão entre o dogma e a ética. Lutero surge como um conservador em questões políticas, mas o embasamento teórico eu dá a seus argumentos mostra que por trás do conservadorismo do momento, fervilhava a revolução do futuro. Essa tensão permeia a obra de Lutero e a história do luteranismo, nesta por vezes há momentos de conciliação, por vezes de oposição, quando então se confrontam o peso da tradição e o novum do cristianismo.(De Boni, 2000, p. 22).

Os séculos que se seguiram a Lutero36 e os reformadores trouxeram questões sobre a

interpretação correta das Escrituras, uma vez que a visão humana também sofre influências do

contexto sócio-cultural no qual se encontra incluída. A Sociedade dos Quacres conforme

afiram Dunstan (1964) insistia que as obras do Espírito Santo na alma são imediatas, diretas, e

perceptíveis claramente, através de sensores internos especiais, que dão a conhecer sua voz.

Uma vez que o homem siga fielmente suas determinações será conduzido para a felicidade

verdadeira, que está em harmonia com a vontade de Deus.

Não vejo razão, quando na Escritura tão freqüentemente se diz que o Espírito disse, se moveu, impediu ou ordenou a tal e tal sujeito que fizesse ou desfizesse uma coisa, para que se conclua ser essa uma voz exterior ao ouvido corporal, em vez de se tratar de uma voz interior ao ouvido da alma. Além disso, tais revelações divinas interiores, que se tornaram necessárias para a edificação da verdadeira fé não contradizem nem podem jamais contradizer, o testemunho externo das Escrituras, ou a razão correta e sólida. (Schaff, 1890 apud Dunstan, 1964, p.75).

Fé e razão foram dois elementos que geravam tensão entre si, ou podiam se

harmonizar, produzindo novas proposta de inserção no mundo, nos anos que seqüenciaram as

obras de Lutero. Um dos desdobramentos da questão da liberdade levantada pelos

reformadores foi o rompimento com a Teologia escolástica37, o que promoveu a autonomia

36 É interessante pontuar, de acordo com Themudo Lessa (1960) que o nome Protestante teve sua origem por ocasião da segunda Dieta de Espira, quando em 19 de Abril, os príncipes luteranos tiveram que fazer um protesto, por que Otto Von Pack, político da época, levantou a idéia de que havia uma liga de extermínio contra os próprios luteranos, apresentando falsos documentos que lhe forma vendidos a bom preço. O partido reformador se viu pressionado, até que a fraude fosse denunciada, mas optou por não permanecer no silêncio, reação que foi vista como protesto. Essa forma de ação dos luteranos foi segundo Lessa (1960, p. 196) uma repercussão da posição de Lutero em Worms. 37 Etimologicamente deriva do grego “schola”, que pode ser traduzido por escola, e geralmente é utilizado para descrever o saber adquirido nas escolas através de um mestre designado como “scholasticus”. Refere -se a um saber adquirido em origem literária, e se opõe ao conhecimento que se origina da práxis e da experiência científica. Somente as pessoas que tinham uma condição de vida que permitia dedicação à leitura das obras e dos textos que continham o saber de uma época podiam aprender com dessa via. O termo é uma abstração, uma vez que não se pode considerar que a Idade Média tinha somente um tipo de filosofia e de saber relacionado a esse tipo de atitude, portanto seria segundo Miguel Spinelli mais correto referir-se aos pluralismos das escolásticas. Nesse sentido pode-se pensar não só como uma modalidade específica de doutrina, mas também como ume método e modalidades de sistematização do conhecimento. O

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humana diante dos assuntos sociais e culturais, vinculados a existência. Desde modo o

homem de fé reformada38 esforça-se legitimamente por conhecer o mundo e faz progredir as

ciências e os métodos de organização do conhecimento e da sociedade. Por outro lado, o

desenvolvimento da razão na direção acima descrita, mostrava que o homem era uma criatura

limitada por sua ignorância e falta de experiência, que poderiam ser superadas, enquanto a

razão voltada à crença ensinava que ele era um eterno pecador. Nesse último caso a razão se

coloca em oposição à revelação. Em resposta a pretensão da razão de se tornar autoridade

sobre a fé, surgiram duas reações no Protestantismo, de acordo com Dunstan: 1) buscar as

provas históricas em apoio às Sagradas Escrituras, ou o fundamento de sua lógica, por meios

de estudos sistemáticos de teologia. 2) manter a idéia de que a razão tem domínio e validade

na experiência humana e a religião tem domínio em outro. Na segunda proposta reconhece-se

o valor da razão no domínio da ciência, que a própria revelação admite, mas existe

independência da razão para se tratar de assuntos e verdades da esfera espiritual. Essas duas

vertentes prosseguirão nos próximos séculos, associando-se as manifestações místicas de

forma diversa, o que será tratado oportunamente.

Para encerrar essa pequena incursão pelas idéias de Martinho Lutero e seus

desdobramentos, pode-se citar ainda seu reconhecimento ao misticismo alemão, e a teologia

de Tauler, a quem cita textualmente, por ocasião de suas digressões sobre o inferno e o

purgatório, nas quais afirma que os seres humanos provam o inferno e o purgatório na vida

terrena, e também como destino:

método consiste em adaptar a dialética ou o discurso lógico e racional dos gregos aos problemas da religião, suas indagações e propostas de resolução. Embora comportando diferentes possibilidades de entendimento da natureza da escolástica, fazem parte de seus elementos comuns: a) originariamente vinculada ao ambiente medieval, nas vertentes filosóficas e metodológicas; b) de certa forma seu conteúdo depende da revelação cristã; c) o método formal provém da exegese (lectio) e do método lógico silogístico (disputátio). Esses elementos pertencem não só ao pensamento cristão, mas também ao judaico e islâmico. Elas são religião de um livro, de um Deus e usam de filosofia grega para expressar racionalmente sua fé. 38 Harvey Cox (1968) faz uma importante observação a respeito do papel da fé bíblica na tensão entre Igreja e Estado. Nos cultos de mistério a fé teria um sentido antipolítico, pois não se volta a questão advinda do contexto social, deixando o campo aberto às variadas formas de exercício de poder, que podem ser inclusive tirânicas e autoritárias. Se Comparado aos cristãos primitivos, a fé tinha o sentido oposto, pois não conseguiam culturar o imperador, visto que este não era santo. Dessacralizavam a política, sendo nesse sentido secularizadores. Jesus era visto como o único Kyrios (Senhor, Soberano). Esses cristãos mantiveram a tensão entre a santidade e o mundanismo, representando uma ameaça à tirania romana, e desencadeando perseguições por parte do império.

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Quantos há que ainda hoje provam dessas penas! Pois que outra coisa ensina também João Tauler 39, em seus sermões alemães, senão os sofrimentos dessas penas, das quais também aduz alguns exemplos? Sei que este mestre é desconhecido das escolas dos teólogos e, por isso, talvez desprezível. No entanto, nele (embora esteja todo escrito na língua dos alemães) eu encontrei mais teologia sólida e pura do que foi encontrado em todos os mestres escolásticos de todas as Universidades ou que pode ser encontrado em suas sentenças. (Lutero, 1987, p.98).

A herança do romantismo alemão aponta para a criação de um imaginário rico em

símbolos que vinculam o homem ao sagrado, comportando manifestações do sobrenatural,

que podem representar um campo que relaciona o homem primitivo ao homem moderno. Na

interpretação de Amaral (1995), Bastide considera que a vida primitiva é representativa do

ato original, assim, agir de modo primitivo é re-executar o ato original. Enquanto o homem

moderno pensa que pode se arvorar mais ou menos em criador, criando o mundo”. Os

Protestantismos, portanto, enquanto heranças de um imaginário vinculado à sociedade

medieval e ao mesmo tempo geradores e gerados nas práticas religiosas modernas, podem ter

no misticismo seu elemento de ligação entre o homem primitivo e o homem moderno.

2.3 Pietismo

O Pietismo foi um movimento nascido dentre da tradição luterana associado ao nome

de Philipp Jakob Spener (1635-1705), que fazia parte da confissão luterana, mesmo tendo

entrado em contato com a Teologia reformada de influência Calvinista. Spener exerceu

atividade de pastor em Frankfurt e Berlim, foi capelão na Saxônia (Dresden), professor nas

universidades de Wittenberg e Leipzig e inspetor eclesiástico em Bradenburgo a convite de

Frederico III. As influências no pensamento e nas atitudes de Spener devem ser buscadas na

mística do dominicano Johannes Tauler (c.1300-1361), que por sua a vez se formou sobre as

influências de outro místico alemão Mestre Eckhart (c. 1260-1327) conforme observa Costa

(1999). Daí ser importante investigar o pensamento desses místicos, na formação do pietismo

alemão.

39 1290-1361- místico alemão e pregador em Estrasburgo, voltaram-se contra o acento excessivo nas boas obras, existente na Igreja de seus dias. Em contraposição, acentuou a graça divina que tudo opera e a necessidade de prepararmos o coração para recebê-la, através da imitação da vida de Cristo e da libertação de todas as influências terrenas.

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Essa modalidade de religiosidade mística requer se compreenda que o significado do

movimento alemão, que foi marcado pelo misticismo que envolve os nomes de Eckhart,

Tauler, Henrique Suso (1270-1350), João Ruybroeck (1293-1381), Gerson (1364-1429),

Tomás Kempis (1379-1471), Nicolau de Cusa (1401-1464), Dionísio Cartusiano (1422-1471)

levando-se em conta o cenário da Europa dos séculos XIV e XV. Ora, antes desse período os

povos europeus enfrentaram uma série de revoltas populares. No cenário político e social,

que envolvia conflitos entre o clero, os príncepes, nobres e interesses das camadas sócias

desprivilegiadas, pode-se citar ainda a Revolta de Beauvais e Rouen (1280), Paris (1295 e

1307), e na Alemanha: Ulm, Frankfurt, Nuremberg, Mainz, Strasbourg, Basle e Cologne

entre outras, afirma Heer (2003). Muitos trabalhadores lutavam por seus direitos, mas os reis

e príncipes sempre venciam a luta. Surgiam grupos como o “People of God” liderados por

Michele Lando, que lutou em Florença. Almejavam purificar a terra dos homens pecadores, e

fundar um reino de Deus no mundo. As taxações da Igreja para promover a salvação e a

ministração dos sacramentos eram elevadas, fazendo com que o sentimento anticlerical fosse

intenso. Para a Igreja esses atos eram condenáveis como heresias, ilegalidade, merecendo

perseguições e extermínio, conduzindo ao isolamento e intervenções em instituições

religiosas ligadas a esse modo de pensar e proceder. O pensamento dos místicos alemães

pode ser visto como uma forma de luta e resistência desses movimentos, ou ao menos a eles

relacionados.

Assim como Eckhart40, Lutero pensava que Deus estava perto das pessoas. Antes que

os sacramentos, ou mesmo a graça, a alma humana é divina e pode imergir em si mesma,

encontrando o incomensurável, ou seja, o coração de Deus, que é simultaneamente tudo e

nada. Essa mensagem do místico alemão era significativa para aqueles que estavam sendo

perseguidos, eram pobres, marginalizados e estavam em grande estresse. Era como se eles

tivesse encontrado a palavra de consolo e esperança diante daquelas condições sociais

marcadas por precariedade econômica, exclusão social, guerra, perseguição e desamparo

político. O pensamento dualista: natureza/pensamento; objeto/conceito; foi substituído. A

alma era posta como topo do sistema de pensamento místico alemão, um refúgio, uma

perspectiva e uma experiência de contato com o divino, que retirava as pessoas da relação de

dependência e desespero diante do sistema político e social, liderado por Frederico II. Pode-se

40 Mestre Eckhart foi filósofo escolástico alemão, nascido em Hocheheim, próximo da Gotha. Pertenceu a Ordem dos Dominicanos, dede 1275. Tornou-se bacharel Sentenciário, depois mestre em Teologia em Colônia, e Doutor em Paris. Chegou a lecionar nessa cidade. Na Alemanha ocupou as funções de Provincial de sua ordem em Saxe, Vigário Geral na Boêmia e Provincial da Alta Alemanha, a partir de 1314.

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encontrar a idéia de que todos os bons homens faziam parte do Paraíso Celeste, do Divino e

que Deus tinha todo poder sobre o Paraíso e a terra, com exceção do homem injusto ou

desmerecedor dessa condição.

Eckhart acentuou a teologia negativa, tomando esse aspecto como ponto de partida de

acesso ao supra conceptual e místico da alma que vai ao Uno primitivo, Deus. O homem já é

visto com a possibilidade de caminhar em direção ao divino, graças a uma Centelha que está

na profundidade do seu ser, e com a qual sensivelmente se liga ao sobrenatural, sem a

necessidade de qualquer imagem. A idéia de cada homem pode realizar tal movimento em sua

individualidade, já é um pressuposto da modernidade. Na perspectiva de Eckhart, no contato

com Deus o homem desaparecia, o que era expresso em símbolos de origem panteísta. Esse

último elemento o separava de Johan van Ruybroeck, místico belga, um sacerdote, que

comungava com os agostinianos. Os escritos do belga não têm, contudo os formalismos

intelectuais ligados à escolástica, destinando-se ao leitor simples, que podia assim alcançá- lo

e popularizá- lo. Em sua obra O Adorno das Bodas Espirituais descreve as formas de vida

espiritual ativa, contemplativa, muitas vezes atribuindo sete moradas no interior da alma, se

espelhando na imagem de Deus, e vivendo-se no reino dos amantes de Deus, desfrutando dos

dons do Espírito Santo. Eckhart considerado pela literatura mística como um dos seus

representantes ortodoxos, se opondo aos “Irmãos do Livre Espírito”.

Tauler foi místico alsaciano, nascido em Strasburgo. Pertencia a ordem dominicana, e

estudou com Mestre Eckhart, a quem se manteve fiel, identificando-se com várias de suas

idéias. No entanto, sua mística é mais orientada às questões éticas, sendo que seus sermões

eram reconhecidos por essa característica, conforme reeditados durante a Renascença. O

pensamento de Tauler alcançava a alta Idade Média, na qual os movimentos populares

defendiam a volta à pureza e pobreza evangélicas e pretendiam a reforma do clero. Deve-se

ressaltar que desde o século XI já apareciam esses movimentos, como, por exemplo, os

patarinos em Milão, que queriam reformar a Igreja, seus ritos e sacramentos. A idéia de um

messias que libertaria o homem do pecado e estabeleceria um reino de justiça e paz, que

acompanhava os milenaristas (duraria mil anos) reapareceu com força nos contextos sociais

dos séculos XII e XIII. O abade Joaquim Fiore elaborou idéias teológicas segundo as quais,

viria à época do Espírito, que sucederia a época do Pai (Antigo Testamento) e a do Filho

(Novo Testamento). Essa época mais avançada suprimiria todo clero e a hierarquia decorrente

desse. Os Valdenses, liderados por Pedro Valdo, eram conhecidos como “pobres de Lyon”, ou

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“pobres de Cristo”, que pregavam livremente, apesar de serem leigos e não letrados. Foram

condenados por essa prática não autorizada, e porque questionavam a autoridade religiosa, a

concepção de purgatório e as indulgências. Foram seguidos em suas idéias por vários grupos

de pobres, entre eles os “pobres da Lombardia”. Todos esses movimentos eram considerados

heresias pela Igreja. Vegetarianismo, jejum, castidade, associada às idéias maniqueístas e ao

dualismo de origem gnóstica, eram as idéias e práticas que compunham os movimentos

sociais de dois grupos franceses, provenientes da cidade de Albi (albineses) e do Cátar

(cátaros). Parte deles praticava o rito do consolamentum, que incluía a imposição das mãos,

buscando o perfeccionismo. Desse mote de movimentos sociais, pode-se encontrar

posteriormente os precursores mais próximos da reforma do século XIV e início do XV,

através das doutrinas de John Wycliff e o boêmio John Huss, que anteciparam várias teses

luteranas. O primeiro atribuía a Deus todo o poder e mérito do que ocorresse. Deus

predestinava o homem ao bem, através da Igreja Invisível. Desse modo a Igreja e suas práticas

visando à salvação, perdiam importância e significado. Já Huss reivindicava a Boêmia livre, o

que constituía uma revolta política e não só uma proposta teológica. Assim o Iluminismo

(indicativo de luz interior) e o Quietismo, movimentos surgidos nos próximos séculos, vão

apresentar-se no seio da Igreja enquanto representantes das idéias de heresia, que a Santa

Inquisição visava atingir e condenar.

Lutero proclamou a doutrina do livre-exame da Sagradas Escrituras, mas mostrava-se

pouco tolerante junto a aqueles que não concordavam com sua interpretação. Concordou com

a guerra contra os movimentos anabatistas e milenaristas, e excomungou líderes protestantes

como Tomás Muntzer e Storch. Tais atitudes contribuíram para as opiniões que o luteranismo

era demasiadamente ortodoxo, institucionalizado, dando margem ao Pietismo de Spener. O

nome Pietismo se relaciona aos Collegia Pietatis, fundados pelo autor da Pia Desideria, que

instituiu os pequenos conventos semiclandestinos, dentro das igrejas, para manter o fervor

espiritual dos fiéis em uma espécie de células religiosas, que se multiplicaram rapidamente na

Alemanha. A expressão “Ecclesiola in Ecclesia”, era utilizada para designar esse processo dos

que utilizavam a palavra “pietas”, cuja característica era recusar qualquer dogmatismo,

estrutura institucionalizada, não tendo contornos precisos, mas envolvendo muitas das seitas

protestantes. Sobre isso escreve Spener (1996 p. 50):

Deveríamos antes dizer que, se o mais brilhante dos apóstolos voltasse ao nosso convívio hoje, ele próprio não compreenderia muitas coisas que as nossas engenhosas mentes proclamam dos púlpitos e das cátedras. Isto se deve ao fato

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de que o seu conhecimento não se origina da sabedoria humanas, mas da iluminação do Espírito. Esses dois tipos de conhecimento estão separados um do outro como o céu está separado da terra. Assim como a sabedoria divina não pode ser captada pelo esforço intelectual do homem, também as almas cheias do Espírito não se dispõem a entregar-se a essas fantasias. (Spener, 1996, p. 50).

Um dos objetivos do Pietismo era unir os cristãos. Essa meta era tão importante, que

fazia com que alguns abandonassem suas crenças e dogmas, em função da idéia de uma

integração entre todos os irmãos em Cristo, através do amor. Essa concepção de fraternidade e

amizade se estendia à figura de Jesus Cristo, que era visto como homem, amigo, irmão. O

Pietismo em certo sentido pode ser considerado como uma religião da amizade, sentimento e

igualdade. Tal idéia influenciou o conde de Zinzendorf, que pretendeu agenciar um

movimento de união de todos os irmãos em Cristo, não importando suas crenças e filiações,

que está na base de uma certa visão de ecumenismo e do estímulo às práticas missionárias que

se aventuraram pelos continentes e povos, enfrentando as dificuldades nas relações com a

alteridade. Nas terras de Zinzendorf, os irmãos dividiam seus bens, colocando suas posses a

disposição dos demais, conforme sua necessidade, a começar pelo próprio conde. A

Santíssima Trindade era composta por Deus-pai, o Cordeiro- irmão e a Pomba-mãe, conforme

era designado o Espírito. O dogma aceito era a Redenção por Cristo, mas circunscrito à

concepção enunciada. Ainda segundo Spener (1996 p.54):

Mesmo que a comunhão de bens praticada entre os cristãos da primeira comunidade, em Jerusalém, não seja um mandamento, será que não se percebe que se faz necessária uma comunhão de bens totalmente diferente da que temos? Porquê? Porque sou obrigado a reconhecer que não possuo nada de meu, tudo é propriedade de meu Deus, eu sou apenas um mordomo encarregado de cuidar dessas coisas. Além disso, não tenho direito de retê-las em minha posse, quando e por quanto tempo me aprouver. Pelo contrário, quando e onde eu perceber que o amor, para servir a honra de Deus e saciar a necessidade do próximo, exige que eu entregue o que é meu, devo fazê-lo, pois se trata de uma propriedade Comunitária. (Spener, 1996, p. 54).

Embora o Pietismo nem sempre tenha deixado seus contornos e características bem

definidas, admite-se que sua origem possa estar relacionada a Jacob Boehme (1575-1624),

que propagava a religião do coração, do sentimento e que marcava oposição a uma certa

forma de luteranismo que caminhava para o racionalismo, instituindo dogmas, cerimônias e

condenações aos movimentos populares. Os fiéis que se vinculavam ao Pietismo

consideravam que o Espírito de Deus se revelava em suas almas, e que as Igrejas Luteranas

haviam se corrompido, do mesmo modo que a Igreja Católica. Para Boehme, filho de pai

luterano e com a profissão de sapateiro, a Igreja era invisível e pneumática, uma vez que

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Cristo poderia se manifestar na alma de qualquer pessoa e a fé seria a expressão dessa

experiência. Partindo desse ponto de vista, dogmas não poderiam ser impostos, devendo

reinar entre os cristãos, a tolerância e o ecumenismo, procedentes da livre interpretação do

texto sagrado. A comunidade da Igreja Invisível seria composta por membros que seguissem a

revelação interior, uma vez que tal vivência conduziria a prática do amor. Esse contato com a

divindade levaria a renuncia dos desejos e anseios particulares, reconduzindo-o a um estado

de união com o sagrado em um processo de redenção quase que natural. Tudo se origina em

Deus, o bem e o mal e tudo retorna à sua origem. Adão perdeu seus poderes mágicos, quando

se encantou pela materialidade do corpo, mas poderia recuperar o estado inicial, de intuição e

união com Deus, livrando-se da queda. Conforme as observações de Koyré, o “Quid” divino

na natureza humana poderia elevar o homem promovendo seu encontro com o sagrado. A

finalidade do processo histórico é promover esse reencontro entre criador e criatura, no

chamado Tempo dos Lírios, aquele relacionado à felicidade perfeita e eterna, em uma

concepção de Cristo cósmico, que é a integração dos opostos: espírito/máteria;

feminino/masculino; bem/mal; trevas/luzes; tudo/nada e os demais paradoxos da existência

dos cristãos.

Entre as influências que estão presentes nas orientações e concepções de Jacob

Boehme encontram-se Para Celso, Valentim Weigel, Frack, e autores vinculados à astrologia,

alquimia, e outros místicos. Declarava que escrevia suas obras após suas visões místicas.

Reconhece-se aproximações entre as idéias místicas de Boehme e o pensamento cabalístico e

gnóstico de Basílides e de Valentino. Esse ponto comum se encontra na concepção distinta

entre Deus e a Divindade. Esse segundo termo deveria ser associado ao não-ser, ao vazio,

abismo, nada absoluto.Isso pode ser percebido em Boehme, ao escrever que:

(...) visto que o Abismo, isto é, o Sem-fundo (Ungrund), Deus, é um eterno falar, um soprar de si mesmo, então o Abismo ou Sem-Fundo também fala na vida resignada: o sopro do Sem-fundo fala através do imóvel fundo (grund) da vida. A vida elevou-se a partir do sopro divino e é uma semelhança dele, por isso uma semelhança apreende a outra. É possível entender isso tomando como base os pensamentos. Eles também são afluxo do sopro da mente, como a mente é um afluxo e contrarium da Mente divina, do Conhecimento divino. (Boehme, 1998, p. 56).

A perspectiva de Boehme propõe-se à compreensão do ser como o Uno Absoluto, a

Liberdade Absoluta que compõe o paradoxo entre o ser e o não-ser, encontrada no movimento

dialético entre a vontade e o desejo, que se encontra na obra de Boehme Mysterium Magnun.

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Para se fazer conhecer a divindade se manifestaria na “Sofia” ou “Virgem Eterna” (feminino

de Deus), que condensaria todas as idéias, conhecimento e verdades a serem reveladas.

Quando o criador processa a gênese do mundo inicia-se seu processo de visibilidade enquanto

ser. Para ele:

O início de todos os seres foi o Verbo ou a Palavra, como o sopro exalado de Deus. Desde a eternidade Deus é o eterno UM e assim permanecerá eternamente, mas o Verbo é o afluxo da Vontade divina ou o Conhecimento divino. (...) Dessa revelação das forças (a Sofía), na qual a Vontade do eterno UM se contempla, flui a Inteligência e o conhecimento de todas as coisas. (Boehme, 1998, p.61).

Existem muitos pontos comuns entre a cabala, a alquimia 41 e o pensamento de

Boehme, que forma objeto de investigação de estudiosos como Koyré e Scholem (1972) entre

os quais pode-se citar a afirmação de que “o universo é o corpo de Deus”; “o universo é um

ser vivo”; “há uma estreita relação entre a magia e a palavra”; “há uma estreita relação entre o

ser e a liberdade”. Vejam-se trechos em que Boehme se refere à contemplação divina:

Se fosse capaz de permanecer quieto para sua vontade própria e para sua palavra interior por uma hora ou até menos, a Vontade divina falaria nele. Deus apreenderia em si sua vontade e falaria do interior da criada, natural e externa vida da razão, iluminando a imaginação terrestre e dissolvendo a vontade da razão. Com isso, as supra sensíveis Vida e Vontade divinas imediatamente floresceriam no centro da vontade da razão. Boehme (1998 p. 55).

O Pietismo relacionado a Boehme, faz com que o fiel busque Deus no íntimo de seu

coração e não se atenha à razão ou à vontade, que podem se tornar obstáculos para a

integração com o Uno Universal. Deve-se, portanto livrar-se do egoísmo 42, das imagens

ilusórias provenientes dos sentidos, das qualidades pessoais, e caminhar para fundir-se a

natureza, que emana divindade, espírito de Deus, assim como todos os outros homens, que

merecem receptividade enquanto refletem a centelha do criador. A atitude política decorrente

41 A observação da relação entre alquimia e o pensamento de Boehme, pode ser esclarecida através da leitura de seu livro A Revelação do Grande Mistério Divino (1998) conforme traduziu para o português do título original Mysterium Magnun no qual escrevem sobres os tipos de espírito e sua ligação com o processo alquímico, como por exemplo “Nas forças as coisas que crescem há três tipo diferentes de spiritus em distintos centra , mas em um só corpo. O primeiro, o exterior (o espírito dos elementos) é o rude espírito de enxofre, do sal e do mercúrio, que é uma essência dos quatro elementos ou das estrelas, conforme a qualidade da rudeza”. (Boehme, 1998, p. 66 e ss.). 42 Para Jacob Boehme a alma também continha em si uma região de Limus do mundo, espiritual e interior relacionada à mesma fonte que é o Myisterium Magnum, “contrária ao afluxo da Força do Conhecimento divino e que tem que receber amor por alimento. Se o amor não é suficiente, a alma separa-se do Sem-Fundo, isto é, da resignação ou da renúncia, e torna-se pungente, ígnea, tenebros, rude, invejosa, hostil, rebelde e completamente inquieta. Entre numa ponte mortal e irada, que é sua danação e morte. Foi justamente isso que ocorreu com o demônio e é o que ocorre com todos os homens maus”. (Boehme, 1998, p. 59).

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dessa concepção é de passividade, uma vez que a ação preocupada com os acontecimentos

contextuais, afasta o homem de sua verdadeira natureza, que se liga originalmente ao Uno.

Spener (1996, p. 57-58) distingue dois tipos de fé, fazendo alusão clara a Lutero:

Quantos levam uma vida manifestamente não-cristã, de tal maneira que não o podem negar, pois se afastam da regra em cada um dos seus pontos. Essas pessoas também não têm o propósito de viver de modo diferente no futuro. Apesar de tudo isso, entretanto, alimentam uma firma convicção de que alcançarão a salvação. Se alguém lhes perguntar em base de que mantém a esperança da salvação, responderão que confiam em que ninguém será salvo por causa de seu modo de vier, que crêem em Cristo e nele colocam toda a sua confiança, por isso certamente serão salvos. Assim, eles substituem a fé que salva por uma imaginação carnal de fé – pois a fé divina não pode estar sem o Espírito Santo, o qual não existe onde há pecado proposital e contínuo. A fantasia de uma pessoa segura de si que descreve desta forma a salvação, é um engano diabólico tão horrível, como nenhum outro pode haver. Nosso caro Lutero, entretanto, fala da fé de uma forma bem diferente. Lutero distingue a fé humana da fé divina, contrastando-as.

A música vai se tornar à arte preferencial dos Pietistas, uma vez que provoca os

sentimentos, que são a função humana mais diretamente relacionada ao encontro com o

divino. O sentimento era considerado íntimo e individual. Deus estaria aprisionado na alma

humana e seria o centro de toda vida. O contexto terrestre, não deveria interessar o homem a

voltar-se para seu interior, criando as condições para entrar em contato com a divindade. Essa

primeira forma de amizade com o próprio interior, como lócus divino, seria de acordo com

Spener o modelo para todas as outras formas de relação humana. Desse modo, afirma Spener:

Penso que o mais importante seja o seguinte: uma vez que o nosso cristianismo consiste no homem interior, ou novo, uma alma é a fé e cujas expressões são os frutos da vida, é para este objetivo que as pregações devem estar dirigidas. Por outro lado, os poderosos benefícios de Deus, que se dirigem ao homem interior, devem ser expostos de tal maneira que á fé e próprio homem interior, devem sejam mais e mais fortalecidas (...) Não é suficiente que se ore exteriormente, com a boca, pois a oração verdadeira e mais necessária acontece no nosso ser interior, podendo expressar-se em palavras ou permanece na alma, mas de qualquer maneira, lá acha e encontra Deus. (Spener, 1996, p. 118-119).

As células pietistas eram organizadas por três pessoas, que tinham uma amizade mais

íntima, sentimental e mística. O “Trevo” estabelecia uma comunhão, uma primeira capela,

dentro de uma unidade maior, que poderia ser uma instituição religiosa, mas sobre ela teria

soberania, ou seja, era a forma de fidelidade espiritual preponderante. Muitas vezes, esse trio

simbolizava uma par principal, e o terceiro elemento deveria ter uma atitude de renúncia ao

par central, preconizado por Cristo diante do pai e do espírito (feminino). Essa espécie de

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ritual amoroso era chamada de amor filadélfico, diferente do amor filantrópico, que os

religiosos racionalistas preconizavam como amor igualitário entre todos os homens. Há ainda

um componente que merece atenção nas idéias de Boehme ligadas à mística gnóstica:

sexualidade. Havia uma concepção de que Adão era um ser andrógino originariamente, e que

seu não conformismo com essa característica, com a decorrente revolta, levou Deus a castigá-

lo separando os sexos. A mulher seria, pois o fruto dessa revolta, e deveria ser vista como

uma lembrança da chaga narcísica do confronto entre Adão e Deus.

Havia uma espécie de ritual para os adeptos do Pietismo, que consistia em passar por

um período de solidão, no qual se reconheciam como ser insignificante, pequeno diante da

totalidade, criatura corporal, até que ao interiorizar-se percebesse que estava próximo da

divindade. Aproximar-se e distanciar-se de Deus era um paradoxo vivido nesse processo. Os

diários íntimos eram uma espécie de registro desses acontecimentos que envolviam crises

consigo mesmo e com a divindade. Muitas vezes para escapar desse sentimento de pequenez,

tristeza e solidão se aventuravam a abrir e ler a Bíblia de modo espontâneo, casual,

desprendendo-se de qualquer intenção de busca de um trecho específico, na concepção de que

Deus lhes mostraria um caminho, idéia, propósito, vontade ou mesmo sua presença.

O mundo era um ser vivo, cujo centro era Deus, que poderia se manifestar a qualquer

hora. Reunir-se em casa, em pequenos grupos, capelas, ou lugares íntimos era preferível à

igreja, e mesmo essa não deveria ultrapassar um certo número de fiéis. Tal configuração era

uma forma de luta contra a institucionalização religiosa em massa. Não deveria haver figuras

hierarquicamente superiores, mas apenas irmãos que se reuniam com equivalência de

propósitos, para compartilhar a mesma natureza divina. Surgia assim uma tradição secular,

que influenciaria a cultura protestante, de modo mais oculto, mas muito eficiente e perceptível

ao olhar sensível: construção de seus templos iniciais (pequenos), interiorização do contato

com a divindade, proximidade com o divino, livre interpretação da sagrada escritura, registros

dessa memória, entre outros aspectos. Veja-se as orientações de Spener (1996, p.98), quanto a

condução das reuniões:

Se tivermos alguma esperança de reunião das diversas religiões existentes entre os cristãos, talvez o principal meio, e o que Deus abençoará, será o de não as colocarmos lado a lado em polêmicas. Pois as mentes se encontram chias de zele, tanto carnal, quanto espiritual, o que torna toda argumentação infrutífera (...) A Convictio intellectus da verdade ainda não é, nem de longe a fé. Esta compreende mais que isso.

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Para um conhecedor inicial do Pietismo, pode parecer que esse movimento era anti-

intelecualista, porém os dados apontam para outra direção. De acordo com Gonzalez (2003),

August Hermann Francke (1663-1727) um dos nomes mais conhecidos desse movimento ao

lado de Spener, com quem esteve se aconselhando em Dresden em 1689, regressou a Leipzig

onde aprofundou a leitura bíblica, de forma exegética. Havia estado antes como estudante na

universidade de Erfurt, Kiel onde recebeu a influência do pietista Chirstian Kortholt (1633-

1694). Estudou especialmente línguas como o hebreu e o grego e em nas leituras bíblicas

fazia utilização desse conhecimento, para estudos de hermenêutica. Fundou o Collegium

Philobiblicum no qual os alunos se dedicavam ao estudo sistemático da Escritura Sagrada,

incluindo Filosofia e formas práticas de se tornar um cristão atuante. A preocupação de

Francke não era simplesmente formar pastores, mas estudantes de línguas, física, química,

anatomia, zoologia, botânica, astronomia, advocacia, entre outras profissões.

A preocupação com o “Evangelho Social” pode ser reconhecida como herança pietista,

além da ênfase na educação e no conhecimento. Por ocasião de sua estada em Galocha,

subúrbio de Halle, onde foi professor na universidade luterana, Francke sensibilizou-se com o

estado de pobreza, criminalidade e abandono no qual se encontrava a população local. Ali ele

fundou uma escola para órfãos, e crianças emocionalmente desamparadas, retirando-as das

ruas que era sua habitação. Dela saíram muitos profissionais liberais, tornando-se uma das

maiores referências pedagógicas da Europa. Formaram-se líderes e professores, que

posteriormente inauguraram outros centros educacionais, chegando suas influências até

Moscou e Sibéria.

Francke e seus seguidores enfrentaram muita pressão por parte das autoridades universitárias pela modalidade com que faziam a leitura bíblica, conforme Smith (1993) suas características eram o fervor, o emocionalismo, o entusiasmo, o que atraía muitas pessoas para a sua pregação. De certo modo pode-se pensar que isso era feito nos moldes avivalistas, pois tudo ocorria de maneira espontânea, podendo acontecer em lugares variados e não somente em cerimônias religiosas. Assim de maneira semelhante à expulsão de Spener de Dresden, Francke “aceitou” o convite para ir a Universidade de Halle, deixando Erfurt em 1691, após ser proibido de realizar leituras bíblicas no local. Foi através dessa cátedra, da Fundação Francke, da proposta pedagógica, e da prática religiosa que o Pietismo foi se difundindo na Alemanha em larga escala. A idéia luterana de que a fé tem uma concreta expressão na sociedade, realizava-se nesse e em outros movimentos semelhantes.

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2.4 Os Moravianos

O misticismo alemão foi uma vertente significativa dos movimentos culturais que

surgiram como reação à ênfase da escolástica na razão, focando-se na emoção. Duas

tendências se fazem presentes: o misticismo cristocêntrico, cujo centro é a figura de Cristo

como modelo de devoção e de conduta religiosa e o misticismo neoplatônico de tendência

filosófica e especulativa, que se desenvolveu principalmente na Alemanha às margens do rio

Reno, mas que influenciou grandemente os reformadores, impulsionados pela idéia do contato

não mediado com a divindade. O misticismo que reinou na Alemanha, do ponto de vista de

Lefébvre (1951) foi alimentado pelo luteranismo, pietismo e irmãos moravios. Estes últimos

habitavam a região da Moravia, de onde origina seu nome, e da Boêmia, atual República

Tcheca. Sofreram influência das idéias de John Wycliff, que foi professor de alguns de seus

estudantes que freqüentavam a Universidade de Oxford. Nas terras de Zinzendorf, onde da

Boêmia, foi fundada uma vila, Herrnhut (1722) onde os moravianos, louvavam

ininterruptamente, sob a “Guarda do Senhor”. O conde garantiu que seus arrendatários nunca

seriam seus servos feudais ou sua posse pessoal, mas sempre poderiam viver como homens

livres, o que naquela época na Alemanha, era algo excepcional. Essas idéias e processos

históricos e sociais estavam presentes quando da escrita de Bunyan e pode-se apreciar sua

influência ou não na construção de seu pensamento e suas imagens alegóricas. Uma das

possibilidades está na afirmação de Halbwachs conforme faz observar Bastide (s/ data, p. 172)

ao esclarecer que o místico realça e faz emergir partes da primitiva história cristã que a

tradição oficial, por várias razões ocultou, ou deixou de sublinhar.

Sobre Zinzendorf sabe-se que era introspectivo, solitário e voltado a vida devocional,

pois tinha hábitos de orar, ler a Bíblia, conhecendo as idéias de Lutero. Nascido em Dresden,

na Alemanha, em uma família de alta sociedade, seu pai chegou a ocupar o cargo de

secretário de Estado, residindo com sua mãe na fronteira tcheca. Tinha como padrinho Philipp

Jakob Spener (1635-1705) um dos grandes promotores do Pietismo alemão. Por isso mesmo,

o Pietismo estava presente na família, incluindo a tia, Baronesa Henrietta Catarina Von

Gersdorf, que o criou após a morte do pai e do segundo casamento da mãe. É notável o

envolvimento do Conde ao longo de sua vida com a religiosidade, como o pacto que realizou

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com um amigo Friedrich Von Watteville para converter os pagãos; fundação da ‘Ordem do

Grão de Mostarda “cujo objetivo era ser fermento entre os cristãos, e dedicar-se a salvação e

comunhão entre os homens, não importando sua classe social e inserção eclesiástica. Cursou a

Universidade de Wittenberg, que nessa ocasião já estava sobre a influência de uma linha de

pensamento luterana ortodoxa e dogmática. O destino das pessoas que lá estudavam era

geralmente encaminhar-se para os cargos governamentais, porém os estudos particulares de

Zinzendorf enfocavam a teologia e o Pietismo”.

Ao tomar conhecimento da frase “Tudo fiz por ti o que fazes tu por mim?” que se

encontra junto ao quadro Cristo Coroado de Espinhos, Zinzendorf sentiu-se próximo de Deus

e resolver dedicar sua vida a Ele. Depois de longas viagens pela Europa, tendo casado,

conduz-se para a construção de seu projeto, abrindo suas terras, em Dresden, para cultivar a

“Religião do Coração”. O local passou a ser chamado pelas famílias que para lá se dirigiram

de “Guarda do Senhor”, em substituição a Hutberg. Inicialmente o pequeno grupo era

composto pelo pastor Christian David (1690-1751) que lá chegara por intermédio de outro

pastor João André Rothe, que o apresentou a Zinzendorf, contando que este se dedicava a

pregar, ler a Bíblia e converter outras pessoas. Juntou-se a esse núcleo, por volta de 1723

anabatistas, calvinistas, schwenkfeldianos e os membros da Unitas Fratrum. O conde juntou-

se a esse grupo em 1726, pretendendo conduzir o grupo a associar-se a comunidade luterana,

porém enfrentou dupla pressão: da falta de consenso do grupo e dos ortodoxos luteranos, que

os viam como rebeldes.

Os habitantes de Herrnhut eram homens livres, sob a guarda de anciãos chefes, e se

organizaram para prestar serviços uns aos outros, como por exemplo, o cuidado com

enfermos, pequenos reparos, e assistência básica, tecendo um acordo em 1727 de “Concórdia

Fraterna”. Entre suas atividades religiosas, encontrava-se a oração, o cântico e o estudo da

Bíblia, realizado de maneira regular. Esse tratado se baseava no “Manual de Disciplina” da

Unitas Fratrum, feito por Comenius43, que visava uma igreja fiel a Deus. Quando Zinzendorf

43 Jan Amos Komensky, nome original de Comenius nasceu em 28 de março de 1592 na Moravia, região da Europa central, pertencente à Boêmia. Seus pais foram adeptos dos Irmãos Morávios, uma seita que remonta à época de Jan Huss, líder religioso que foi reitor da Universidade de Praga. Essa seita se destacava pelas seguintes características: extrema fidelidade às Escrituras, piedade e humildade. Seus membros seguiam uma vida austera, fazendo orações constantemente. Adotavam o checo, no lugar do latim para a leitura da Bíblia. Comenius tinha a convicção de que o importante era buscar o reino de Deus e não a erudição. Tal proposta feita por um estudioso da teologia calvinista da faculdade de Herbom na Alemanha, vem a significar uma opção teológica, e um veio

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fazia orações e pregações, a multidão costumava expressar claramente as emoções, diante dos

pedidos de perdão, união do grupo e bênçãos. Eram realizadas orações com petições tanto

pelos membros do grupo presentes, quantos por aqueles que estavam ausentes. Em 1727,

houve uma pregação, que emocionou fortemente seus membros, que consideraram que estava

renascendo espiritualmente a Unitas Fratrum. Passaram a ter práticas como intercessão diária,

ininterruptas, todos os dias da semana. O grupo se dedicava ao estudo da Bíblia, medicina,

letras, línguas, geografia, história, considerando que eram inspirados por Deus. Esperavam

que Esse lhes indicasse os caminhos a serem trilhados. Um dos desdobramentos dessas

práticas foi à organização de missionários, desde 1732, que partiram para vários lugares,

sendo que inicialmente se dirigiram à Ilha de São Tomé. A evangelização dos indígenas da

América do Norte está entre os roteiros dos moravianos, observa Neill (1998), encontrando-se

Augusto Gottlieb Spangenberg (1704-1792) que foi para a Geórgia, levando suas influências e

visão de mundo para o novo continente,

Um dos grupos moravianos que seguiu para a América do Norte, a bordo do navio

“Simomonds”, enfrentou tempestade e turbulência no barco, que poderia ter afundado. A

bordo estava John Wesley, que registrou no seu diário a admiração pela calma com que os

moravianos enfrentaram a situação, cantando e louvando a Deus, em uma demonstração de fé

e esperança que não encontrara anteriormente. Esse encontro marcou as práticas religiosas de

Wesley, que se tornaria depois um dos expoentes do Metodismo, registrando esse episódio em

seu diário, conforme relata Lane (1999).

Do ponto de vista de Zinzendorf era desejável que os missionários fossem leigos, pois

isso facilitava seu trabalho, que tinha por referência a devoção e a entrega a Deus, e não a

teologia. Os missionários se auto-sustentavam, com trabalhos profissionais e ofícios,

colocando-se como semelhantes aos outros leigos com quem conviviam. Eram

desaconselhadas as práticas missionárias nos modelos institucionais da Europa,

preponderando a aproximação da cultura local, sem formalizações, apenas obedecendo

espontaneamente o que seu entendimento do texto bíblico orientava. Por sua vez os hinos e a

místico no Protestantismo. Aperfeiçoou estudos de matemática, astronomia, procedendo a uma reforma pedagógica no ensino da época, criando métodos para ensino das ciências e das artes. Entre suas idéias se encontra a proposta de que as ciências são formas de aproximação com Deus. Os fundamentos de seu sistema filosófico estão nas escrituras, que é vista como fonte primeira da sabedoria. Ciência e religião podem se unir, conforme afirma Walker (2004).

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liturgia poderiam obedecer a criações próprias da comunidade ou ao fiel, enquanto a atividade

missionária, seguia o princípio de que Deus está agindo no coração de todos os homens.

Nesse sentido acreditava-se que o Espírito está sobre a comunidade e indica os caminhos a

serem percorridos. A ação de proclamar o Evangelho é menos importante do que descobrir

qual a direção que sopra o Espírito. Os missionários servem a essa orientação, devendo ser

humildes e diante disso, eles estariam livres para o exercício de práticas que o Espírito lhe

indicar, não devendo se ater a qualquer modelo, afirma Cook (1977). Cada missionário ou

leigo, que amasse a Deus, deveria tomar nas mãos a função de exprimir o ardor que estava em

seu coração, e com isso ampliar o reino de Deus no mundo. Tal função não cabe aos

governos, Estado, autoridades, mas aos que diretamente se vinculam a Deus.

Ao comentar os desdobramentos das práticas dos moravianos, Schalkwijk (2000)

mostra que as missões não se iniciaram em 1800 com os trabalhos de William Carey. O

modelo de missão colonial, tal como se deu nas missões católicas romanas e com alguns

missionários protestantes, encontrou uma alternativa com “os seguidores do Cordeiro”,

conforme se denominavam os companheiros de Zinzendorf. Seu lema era: “Nosso cordeiro

venceu. Vamos segui- lo” (Vincit Agnus Noster. Eum Sequamur!). As influências de Martinho

Lutero são significativas, especialmente nos seus aspectos místicos, ajudando Zinzendorf na

superação dos problemas que ocorriam com seu grupo. Em ensaio comemorativo do

tricentenário de Zinzendorf, que reconduziu a Boêmia e Moravia ao evangelismo,

Schalkwijk44 comenta que houve um convite formal para que viesse ao Brasil, feito pelo padre

Diogo Antônio Feijó (1835-1837), em missão de trabalho com os indígenas brasileiros.

Considerando o roteiro das missões que chega ao Brasil, proveniente da América do Norte, é

possível pensar que as influências de Zinzendorf, tenham deitado raízes no campo religioso

do Sul do Equador, o que será tratado em capítulo posterior.

2.5 Quietismo

Este movimento se constituiu como uma proposta mística, representado na história das

religiões especialmente pelas idéias do espanhol Miguel de Molinos (1628-1697). Nascido em 44 Schalkwijk (2000) recomenda uma literatura especializada no movimento Moraviano, que inclui muitos autores e pesquisadores desse campo de estudos. Ver o ensaio O Conde e o Avivamento Morávio: Um Ensaio Histórico por ocasião do tricentenário de Zinzendorf. Fides Reformata 5(2). São Paulo: Universidade Mackenzie

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Saragoça, de família nobre, foi educado em Colégio Jesuíta de São Paulo. Sua proposta

religiosa correlaciona-se em muitos pontos com a dos Pietistas, sendo considerado por isso

próximo do Protestantismo. Molinos tinha um estilo de vida contemplativo, dedicando a vida

a conviver com pessoas, que dele necessitassem, sem qualquer tipo de ganho financeiro, ou

reconhecimento institucional. Sacerdote ocupou a função de confessor em Roma e era

considerado um diretor espiritual das almas. Sobre seus auspícios de aconselhador estavam o

Cardeal Benedetto Odescalchi (1611-1689), que se tornou Papa e a Rainha Cristina da Suécia

(1626-1689).

Em 1673 Molinos escreveu o método para o aperfeiçoamento espiritual “Il Guida

Spirituale” no qual expunha suas idéias místicas. Este guia teve um largo alcance, atingindo

não só pessoas das camadas mais abastadas socialmente, como outras em situação diversa.

Alguns monges tomavam as instruções de Molinos como uma modalidade de aproximação

com o sagrado, divulgando sua proposta em várias instituições religiosas da época. Molinos

enfrentou a Inquisição, pela primeira vez, acusado pelos Jesuítas e Dominicanos, que viam em

sua popularidade, perigo de cismas na Igreja. Porém o caso foi encerrado até que começou a

se tornar um líder religioso, com pessoas ao seu redor, que seguiam sua orientação referente

às práticas espirituais e as crenças que as fundamentavam.

Nas concepções religiosas de Molinos o homem deve caminhar para o

aperfeiçoamento espiritual, cuja finalidade última é a suprema comunhão com Deus. A

vontade espiritual do homem deve ser anulada nesse processo, submetendo-se inteiramente

aos desígnios de Deus. A vida do homem em seu contexto social deve se pautar por um

modelo sustentado em atos de amor e fé. A quietude era uma prática religiosa de silenciar o

próprio desejo, para que o fiel pudesse ouvir a vontade de Deus. O homem deveria se esforçar

para isso, aprendendo a contemplar, e a desenvolver uma atitude de passividade e paciência

diante de Deus. Esse comportamento de busca deveria ser preponderante nas atividades

humanas, sobretudo diante dos anseios e prazeres mundanos. Assim, conforme o homem

conseguisse, por esse tipo de postura religiosa, anular sua vontade pessoal e egoísta, rumaria

para uma santificação, advinda do contato cada vez mais íntimo e próximo à divindade.

Portanto a realidade de seus atos por meio do método da quietude seria o sinal da santificação

e aproximação do divino.

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Como um líder carismático, Molinos foi se tornando cada vez mais alvo de acusações

de heresia. Entre as acusações que lhe faziam estavam as de que aconselhava os cristãos a

abandonar os sacramentos, o confessionário e a Igreja. Desse modo sua obra literária e

religiosa, passou por considerações negativas, diante do clero, que a via como blasfema

difamadora da doutrina, com idéias perniciosas e ofensivas à moral cristã. Os escritos de

Molinos foram entregues à Inquisição para serem queimados, e sua condenação foi feita pelo

Papa Inocêncio XI na Bula Coelistis Pastor de 1687. Os seguidores desse movimento, que

eram muitos, foram denominados pela Igreja de Iluminados, e comparados às pessoas que

viviam a experiência de êxtase religioso como prazer condenável. Para desacreditá- lo,

discursou-se sobre seu não batismo, o que para a época era uma acusação grave, comparável

ao crime, dado o terror que se espalhava com a “Santa Inquisição”. Mesmo tendo morrido na

prisão e silenciado em suas orientações, várias edições do Guia Espiritual circulavam na

Europa, difundindo seu pensamento e sua proposta de prática religiosa, durante vários

séculos. A prática religiosa pautada no silêncio, renúncia às necessidades imperativas e

imediatistas, busca de contato direto com a divindade, cultivo de processo de santificação e

iluminação, faz da proposta de Molinos um modelo contemplativo de misticismo, próximo à

atitude devocional, praticada no Protestantismo.

A essa altura pergunta-se qual o sentido de uma experiência religiosa mística

contemplativa no Protestantismo, tendo em vista que caminhava para propostas de práticas

religiosas vinculadas ao cuidado dispensado a vida mundana voltado à organização social e

comunitária? A perda do paraíso e a tentativa de resgate, ao menos parcialmente, contribui

para o surgimento das missões e em certo sentido, o movimento de colonização religiosa. Ora,

o mito do paraíso funda-se em uma concepção de homem envolto na ordem divina em que os

primeiros seres humanos eram acompanhados diretamente por Deus conforme afirma Azzi

(1987 p.85-86). Porém, ao perderem o Éden, a relação com a alteridade representada pela

divindade, criou o distanciamento necessário, para que reconhecessem a estrutura hierárquica

como fundamental e o respeito a ela, pois era essa a condição básica para a proteção divina na

terra. A graça implicava em fidelidade e dependência permanentes, ou seja, “as realizações

humanas só teriam sentido desde que mantivessem contínua referência a matriz”. A

contemplação pode ser pensada como a tentativa de habitação do paraíso, mesmo que de

forma passageira. Este parece ser um dos significados da contemplação: a manutenção dessa

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relação direta entre o sagrado e o fiel é um ritual que funciona como disparador da esperança

do paraíso e de sua fagulha presentificada na experiência religiosa. Ajusta o homem mundano

ao homem espiritual, criando um sistema cultural que é simultaneamente individual e

coletivo, estando permeado pelas necessidades sociais de um contexto em permanente

mudança.

Pode-se encontrar um representante do Protestantismo contemplativo na pessoa de Eli

Staley Jones (1884-1972), missionário metodista americano, que esteve na Índia, sofrendo

influência da filosofia e das práticas religiosas desse país. Formou-se em advocacia na

Faculdade de Asbury, Wilmore, Kentucky em 1906. Missionário na Índia dedicou-se ao

trabalho de evangelização no modelo Gospel, voltado às camadas mais desfavorecidas da

população, respeitando o sistema cultural daquele pais e mostrando que havia muitos modos

de se alcançar o sagrado, não necessariamente modelados pela cultura ocidental, da qual se

originava. Sua atitude chamou a atenção das castas mais elevadas da sociedade indiana,

sendo convidado a proferir palestras nas universidades. Escreveu obras literárias nas quais, a

imagem de Cristo, era encontrada em símbolos orientais. Essas se transformavam em obras

populares, best-sellers e leituras referenciais de seminários.

Jesus era visto por Stanley Jones como um homem que esteve a serviço de todos os

povos, como filho Universal. Fundou a partir de suas experiências culturais ocidental e

orientais, o chamado Ashram Cristão e espalhou essa proposta por vários lugares, incluindo

Os Estados Unidos e Canadá, território que percorreu de forma missionária. Pregava e

realizava conferências, preconizando reconciliação entre o homem e Deus, entre o homem e o

homem e entre o homem e si-mesmo. Jones fez muitas tentativas de diplomacia entre os

povos em guerra, como Japão e Estados Unidos, sendo muito respeitado por sua postura. Foi

amigo de Mahatma Gandhi, influenciando homens como Martin Luther King para construir

uma postura de resistência pela não violência. Do ponto de vista de Stanley Jones, cada

denominação religiosa poderia manter sua própria identidade, sem ferir a outra, em uma

proposta de paz e respeito mútuo.

2.6 Calvino: Mística Interior e Transformação do Mundo.

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João Calvino nasceu no ano de 1509, em Noyon, região da Picardia, França. O nome

Calvino foi adotado quando se tornou teólogo. Deriva do nome de seu pai, funileiro de

profissão, Gérald Chauvin, ou Cauvin, que remete ao latim Calvinus. Recebeu da mãe Jeanne

Le Franc e depois da madrasta uma educação baseada na piedade austera, e no isolamento.

Inclinou-se para os estudos das Ciências Humanas e recebeu lições de um aristocrata que fora

hóspede de seu pai, sendo encaminhado mais tarde para a Universidade de Paris.

Posteriormente estudou Direito na Universidade de Orleans, como alternativa para o declínio

das funções eclesiásticas. Nesta ocasião, Calvino aprendeu grego com Melchior Wolmar,

helenista alemão.

Retornado à Paris, Calvino publicou um livro a favor de Sêneca, a fim de demonstrar

sua simpatia com os protestantes. Tornou-se pregador tentando auxiliar aos protestantes

perseguidos, proporcionando certa popularidade na França. Posteriormente enfrentou

perseguições nesse país, devido à intolerância com os protestantes.

Em 1536 na Suíça encontra-se com Farel que o convida a permanecer nesse local.

Eleito pastor e doutor da Igreja de Genebra, na qual apresenta confissão pública de fé, integra-

se definitivamente ao movimento Protestante. Na sua declaração, os pontos principais são a

Bíblia tomada como única fonte da verdade; a natureza do homem considerada como perversa

e incapaz do bem; o homem como possível tocado pela graça de Deus; reconhecimento das

autoridades civis constituídas como vindas de Deus. Firma a doutrina da predestinação, na

qual Deus já teria escolhido seus eleitos e as obras humanas não poderiam alterar esse roteiro.

Nega a validade do celibato, da confissão da missa e da autoridade do Papa. Intencionou

instalar em Genebra uma disciplina austera, presentificada na forma de culto e na aceitação

das propostas acima como dogmas. Enfrentou a oposição do partido da cidade composto pelos

“libertins” e acabou sendo expulso de Genebra. Retorna à Suíça anos depois, quando é eleito

o Papa de Genebra. Morre vítima de asma e dispnéia em 1564.

Calvino, um dos principais exegetas da Reforma, fez comentários sobre a Epistola de

Paulo aos Romanos, publicados em março de 1540, acreditando que esses escritos eram porta

aberta para a compreensão das Escrituras. Postulou que as Palavras de Deus devem ser

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entendidas a partir de Toda Palavra de Deus. Nesse sentido, o exegeta busca apoiar-se no que

o autor do texto sagrado quis dizer e qual o seu propósito. Calvino afirma em As Institutas III

(1985-1989) que as Escrituras são a “Escola do Espírito Santo”. O leitor deve ater-se ao que

ela revela, mantendo-se fiel aos seus limites na compreensão e no ensinamento, ou

testemunho. O Livro dos Salmos (1999) traz o seguinte comentário:

A função peculiar do Espírito Santo consiste em gravar a Lei de Deus em nossos corações. (...) O ensino interno e eficaz do Espírito é um tesouro que lhes pertence de forma peculiar (...) A voz de Deus, aliás, ressoa através do mundo inteiro; mas ela só penetra o coração dos santos, em favor de quem a salvação está ordenada. (Calvino, 1999, p.228-229).

É notável que em muitas passagens de suas obras Calvino clarifica seu ponto de vista

que as Escrituras são a escola do Espírito Santo, bem como a Escola de Cristo (Efésios, 1998).

O Espírito é o mestre, o mestre interior (As Institutas III, 1985-1989). Assim o primeiro

ponto que deve ser notado em relação uma concepção de misticismo em Calvino pode ser

encontrado na relevância que é dada função e ao papel do Espírito de Deus. A compreensão

das escrituras, seu ensinamento emanam do único interprete capaz de torná- la próxima e

íntima em sua mensagem para o leitor: o Espírito de Deus. Assim é a comunicação entre

mistério e homem que se dá mediante o conhecimento do sentido da Palavra. O revelar-se da

palavra torna-a sagrada, quando tal processo se dá pela relação que emana com Deus de modo

direto e confiável. Com essa concepção, Calvino dedicou-se a exegese ampla do texto

sagrado, buscando com o tempo tornar sua teologia acessível, incluindo as crianças, conforme

observa Lindsay (1985). Para tanto, Calvino fez traduções para o latim visando integrar as

diversas igrejas e criou formas pedagógicas que promoviam a compreensão através de

perguntas e respostas. Essa postura indicava a importância da Palavra como meio de

comunicação entre homem e divindade, promovendo uma espécie de misticismo letrado, e ao

mesmo tempo indicando que essa relação era o ponto central e inicial da atitude humana para

com o divino. A leitura (e o conhecimento) da Bíblia passa a ser um traço primordial que

marca a identidade protestante ao ver de Calvino.

O segundo ponto a ser demarcado na visão de Calvino, no que tange ao misticismo é

sua perspectiva de que foi à Igreja que Deus confiou o cuidado com seus ensinamentos e a

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orientação às práticas que se desdobravam desse conhecimento. Aos pastores45 cabe zelar pela

relíquia da preservação da Palavra sobre as quais tem responsabilidade. Visto que se trata do

sacerdócio universal dos crentes, então de certo modo pode-se entender que a autoridade

sobre as escrituras emana não só do especialista, mas de todo aquele cuja compreensão

basear-se no ensinamento de Espírito de Deus. A pregação é instrumento central da

transmissão da Palavra, ocupando parte das preocupações e recomendações de Calvino. Tal

ponto de vista esta de acordo com a idéia de edificação da Igreja. Porém, parte dessa igreja

será visível, parte dela invisível, na medida em que surgem recomendações para práticas não

só coletivas, mas também solitárias, como a oração. Esse aspecto pode ser observado em sua

obra O Livro da Oração (2003), no qual Calvino mostra não só sua concepção da prática da

oração, como enuncia uma série de regras para o fiel atinja sua finalidade, apontando

inclusive as modalidades inadequadas46 de orar, como mostra essa citação:

Esta, na verdade, é aquela filosofia secreta e oculta que ao pode ser apreendida por silogismos; uma filosofia entendida completamente por aqueles cujos olhos Deus tem de tal forma aberto para que vejam a luz em sua luz. (...) Primeiramente, para eu nosso coração possa sempre estar inflamado com um contínuo e ardente desejo de buscá-lo, amá-lo e servi-lo enquanto nos acostumamos a recorrer somente a ele, como uma âncora sagrada em cada necessidade. (...) Isso nós realizaremos ao admitirmos à mente se deixando de lado os pensamentos carnais e os cuidados que podem interferir com a contemplação pura e direta de Deus e isto não seja apenas em relação á oração, mas também te onde possível, nasça e erga-se acima de si mesmo.(...) Deus nos concede a liderança do Espírito em nossas orações para ditar aquilo que é certo e regular nossos sentimentos (...) para que enquanto a inspiração do Espírito é efetiva para a formação da oração, de nenhum modo impede ou retarda nosso próprio empenho; visto que nesta questão Deus se agrada de provar quão eficientemente a fé influencia nossos corações (...) a oração propriamente não é outra coisa que este afeto interno do coração que se manifesta diante de Deus que esquadrinha os corações. (Calvino, 2003, p. 14 e ss.).

A visão Calvinista da oração aponta para as condições da existência humana,

permeadas pelo sofrimento, o que conduziria o fiel a fazer petições e pedidos a divindade para

45 Em sua obra As Pastorais (1998) Calvino orienta os pastores sobre a importância de suas atividades de pregação, como modalidade de transmissão e difusão da Sagrada Escritura, através do qual a Igreja se mantém fiel à verdade que emana de Deus. 46 Referindo-se aos aspectos subjetivos da oração, Calvino (2003) mostra que é necessário que o fiel proceda com dois afetos e que os mantenha durante essa prática: gemer pelos males que sofre em seu presente e tema pelos novos. Deus responderia ao fiel de acordo com sua fé, não devendo se pedido mais do que Deus permite, para não ofender a majestade divina. Assim, Calvino ressalta a importância da fé, diante dos sofrimentos humanos, fazendo menção ao parentesco que existe entre a oração e a ação de graças, dizendo que se pode compreendê-las com o mesmo nome. Afirma que Cristo querendo estabelecer uma lei perfeita de oração, mandou que o fiel entrasse em seu aposento, fechasse a porta e orasse secretamente ao Pai, para que esse que também vê em secreto, o escutasse e recompensasse.

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que se minimizasse ou alterasse essas situações. Calvino parecia ser sensível às situações de

seu contexto sócio-cultural, uma vez que dá relevância a esses aspectos da oração. Não exclui

a ação da graças e o louvor da oração, mas o foco dessa prática, parece ser a esperança de

mudança da condição do fiel, baseada na relação de confiança de que alcançaria um futuro

melhor. A emoção na oração é uma referência constante, sendo que o lócus para seu

aparecimento e reconhecimento parece ser a subjetividade do fiel. Calvino também faz

referência a orações feitas em grupos como a família e a igreja, porém alerta o fiel para que a

reverência e o respeito sejam mantidos, parecendo referir-se a uma certa sobriedade e a

limites comportamentais. Portanto, a emoção religiosa para Calvino permanece como um

elemento central na relação do fiel com Deus, para ser manifesta ou experimentada apenas na

intimidade, com a finalidade de resguardo da igr eja ou do próprio fiel, separando assim o

sagrado do profano, constituindo-se como uma espécie de linha demarcatória de um ritual.

A concepção Calvinista da oração remete o fiel a um tipo de prática religiosa caracterizada

pela individualidade, intimidade, dependência e afirmação da relação direta com o sagrado,

firmando um dos elementos de identidade desse tipo de protestantismo. As influências dessas

orientações Calvinistas sobre a oração podem ser observadas na publicação do jornal

evangélico Puritano, datado de 25/12/1919:

“Quanto mais o crente depender de Deus, mais independente será ele dos homens; e quanto mais depender dos homens, mais independente será de Deus”. Reverendo A. C. Menezes de Lavras “A Deus revelamos cousas que nem aos amigos mais íntimos poderíamos revelar”. Reverendo S.R. Gammon, em aula bíblica. “Comunicarmos-nos com Deus é comunica com a maior potencia que há no universo todo: que força então receberemos dessa potencia extraordinária”. Quanto mais oramos, mais dominados ficamos pelo Espírito Santo, mais agarrados com Jesus, menos presos ao mundo. As orações que saem do fundo da alma expressam o estado espiritual ou mural em que nos achamos A oração é a alma do Evangelho: a pessoa que não ora não é crente! O crente que ora torna puro e santo o ambiente em que se acha, e faz em espiritual a aqueles com os quês convive ou fala.

Vale lembrar que as práticas religiosas medievais místicas ressaltavam as ordens

divinas, mantendo com ela vínculos profundos especialmente através da oração e da

contemplação. A dimensão histórica da realidade era pouco significativa, quando comparada

a sua dimensão espiritual, observa Azzi (1987). A valorização da atividade espiritual trazia

conseqüentemente uma visão de desvalorização das práticas terrenas associadas ao trabalho.

Castigo e trabalho eram, pois associados aos escravos vistos como herdeiros da culpa original

que tinha de ser expiada do mundo. Os cristãos são os escolhidos como guarda-fiel da boa

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nova, a ser anunciada a todos e comprovada ou iluminada pelas Escrituras Sagradas. Essa

atitude era divinizada e não vista como humana. O homem tinha que encontrar em sua

privacidade e intimidade a maneira de salvar-se do dilúvio dos pecados mundanos e de não se

perverter. A Reforma, pensada simultaneamente como abertura de um campo religioso que

aproxima diretamente o homem do sagrado, ao mesmo tempo em que o lança como

participante de uma comunidade (Igreja), promove uma tensão entre ação no mundo e a

preservação do mundo celestial. Podem-se observar traços das recomendações de Calvino

sobre a oração, prática que aponta e traduz essa tensão. As relações entre cultura e

protestantismo, serão um lócus privilegiado para observação desses conflitos, como se verá a

seguir.

O processo de secularização abre as portas para o conhecimento investigativo

possibilitando ao leitor da Escritura uma interpretação sustentada nas descobertas científicas.

Todavia as populações pobres não teriam acendido democraticamente a esse conhecimento,

mesmo que tendo acesso ao texto bíblico diretamente, gerando uma multiplicidade de

interpretações subjetivas, possivelmente sobre a influência sócio-cultural do meio no qual se

encontravam. Calvino valoriza muita a simplicidade da interpretação do texto bíblico, uma

vez que faz correlação entre esse traço e a luz do Espírito de Deus. Nesse sentido dá

importância ao conhecimento científico, a retórica, a erudição, mas concede superioridade à

ciência celestial, que emana de Cristo. “O conhecimento de todas as ciências não passa de

fumaça quando separada da ciência celestial de Cristo” (1996 p.60). Assim, a interpretação

bíblica, conforme a concepção de Calvino, já está orientada em uma visão mística, que parece

ter aqui o sentido de organizar o mundo social, pautado nas diferenças sócio-econômicas. O

misticismo parece ter um papel de acordo social entre o intelectualismo leigo e o

intelectualismo letrado e institucionalizado, que deixa antever os processos sociais que os

produziram e foram por eles produzidos, assunto que foi explorado por autores como Max

Weber (2000).

A relativização dos valores culturais e religiosos realizada pelos processos de

modernidade modifica as bases da coesão social, abrindo brechas para o pluralismo de idéias

e posições. Surge então a necessidade de buscar outras formas de coesão social, que

compensem o aumento de autonomia, para se manter minimamente a unidade de um grupo ou

de um movimento religioso. No processo de institucionalização do Protestantismo, ao mesmo

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tempo em que, se reconhece o valor da subjetividade da experiência religiosa, há que haver

um ajuste no sistema cultural e simbólico, para que a integração do grupo não se desfaça. Um

novo padrão ou traço cultural tende a funcionar como sistema unificador dentro da

diversidade das construções de subjetiva dos fieis. Essas considerações fazem pensar na

relação existente entre um sistema racional de pensamento religioso, como o proposto por

Calvino, e a coexistência de elementos místicos no interior desse movimento. Aqui

novamente encontramos traços desse processo no Brasil, conforme o jornal O Puritano

(10/4/1919), que descreve discurso realizado no Seminário Theológico das Egrejas

Evangélicas Congregacionaes:

(...) Reverendo Álvaro Reis, pastor da Egreja Presbyteriana do Rio de Janeiro proferiu em vibrante discurso de animação aos novos estudantes, fazendo-lhes ver que, a bem da dignidade do sagrado mister que é dado ao homem exercer, eles se deviam aplicar ao estudo procurando adquirir a maior soma possível de conhecimento, por outro lado, sendo certo que o Brasil do futuro, pela sua extensão e pelos seus recursos naturaes, está fadado a ser uma das primeiras, sinão a primeira nação do mundo – a nos competia desenvolver o trabalho evangélico em nossa pátria, de modo a ganhar o Brasil para Cristo.

Dentro de um sistema de valores morais, e da organização da Igreja como proposta por

Calvino, nota-se ambigüidade e contradição. Porém se mantém a configuração de certos

elementos e linhas mestras que embasam a crença e a ação, de modo que não se imprensa de

que qualquer líder ou grupo dirigente se torne de caráter último e absoluto. Harvey Cox

(1968) afirma que na modernidade dois aspectos subsistem como unidade, apesar de sua

aparente diferença. São esses traços: a necessidade de controle, através de elementos formais

e técnicos que forneçam um padrão identificatório do grupo, e o pluralismo nas relações

sociais, vistas como uma rede de possibilidades culturais. O grupo religioso é o horizonte de

criação do homem anônimo, despersonalizado, inexpressivo e pertencente a um todo, maior

que ele. Simultaneamente à impessoalidade da massa de crentes, ditada um sistema de

valores, a proposta da subjetividade, se dá como o produto final do todo. Privado e público de

distinguem na modernidade, constituindo-se em campos coexistentes, no homem urbano

nascente. Encontraremos sinais dessa concepção calvinista de mundo conforme escrito por

Harold Cook, no jornal Puritano (13/3/1919) intitulado Ofensiva Evangélica:

O terceiro ponto esforce-vos para imitá-lo em tudo. (João X. 27) trata da Organização da Egreja (...) Devemos distinguir entre os methodos e modos, e o poder divino com que procuramos por em pratica taes arranjos ou planos. Em outras palavras, entre a machina e o fogo que a machina precisa para ir adiant e. A força é um assunto tão importante que merece ser tratado separadamente, e voltaremos ao assumpto oportunamente. Aqui trataremos da machina.

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Melhorá-la, lubrificá-la, parafusar os parafusos soltos, etc. (...) Por exemplo, instalar uma biblioteca evangélica; pagar e melhorar as finanças da Egreja.

Calvino sustentou muitas posições e idéias nem sempre coerentes entre si:

predestinação e esforço dos eleitos para purificar os pecadores. Defendeu a teocracia como a

forma de governo por excelência. Rejeitou os sacramentos, conservando apenas a eucaristia e

o batismo. Negou a existência do Purgatório e a idolatria, representada pela imagem dos

santos. Chegou a estabelecer uma ordem eclesiástica, admitindo autoridades religiosas como

os pastores, os doutores, os anciãos, e os diáconos. Instaurou por último uma instância de

governo e poder da igreja composta por pastores e anciãos que deveriam se responsabilizar

pela doutrinação e repreensão dos fiéis, administrar as posses da instituição, fazer censuras

eclesiásticas e condenar os que merecessem através de excomunhão. Baseou-se em Lutero na

visão da predestinação, em Zwinglio na interpretação da eucaristia e em Bucer nas noções

contraditórias sobre a vontade divina como causa última de todos os acontecimentos e a

necessidade de uma vida pura para testemunho da predestinação. De certo modo as idéias de

Calvino correlaciona-se com o crescimento do capitalismo, uma vez que seus sistemas éticos

estimulam as virtudes comerciais e econômicas, dando respeitabilidade ao lucro, considerado

antes como pecado, conforme apontam os estudos de Weber (1981) na obra A Ética

Protestante e o Espírito do Capitalismo. Sinais das posições Calvinistas podem ser

encontrados no jornal Expositor Christão de 15/11/1889, que foi uma pub licação quinzenal da

Igreja Metodista Brasileira, com o artigo intitulado: O Evangelho faz progredir aos países:

Como já dissemos aonde quer que vá adiante o Evangelho, alli progredirão também os interesse materiais. Quanto mais evangelizada for uma nação, tanto mais próspera, mais diligente e mais dedicada será ela ao desenvolvimento de seus pais. Há anos que está sendo evangelizada a terra dos cafres, isto é, a Zululandia. Outrora os cafres eram selvagens. É fato que esses zulus hoje gastam quantias imensas nos Estados Unidos com a compra de arados modernos.

Há uma importante observação de Harvey Cox (1968) sobre o protesto persistente

contra os ídolos e ícones na história da fé bíblica. Tal atitude, enfatizada pelos reformadores

como Calvino e Lutero, contribui de modo relevante para um relativismo construtivo, no qual

todas as criações culturais e sociais pelas quais as representações religiosas se imbricam são

passageiras. Mesmo que se possa radicalmente pensar que essa postura se manifeste através

das interpretações subjetivas das experiências religiosas, guarda uma relação estreita com as

representações coletivas. Cox (1968) aponta que Émile Durkheim já havia postulado que um

certo relativismo é uma conseqüência da fé no criador. A alteridade firmada da divindade,

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alcançada de modo mais direto, retira de outro homem a hierarquia do ídolo e do ícone.

Interessante observar como as idéias calvinistas chegavam ao Brasil, cerca de trezentos anos

depois e através da imprensa iam norteando a conduta do fiel e delineando uma proposta de

campo religioso, havendo mudanças no enfoque sobre certos aspectos das regras norteadoras

do comportamento religioso, abaixo elencadas, provavelmente de acordo com a relação entre

religião e cultura representando as práticas missionárias possíveis no contexto social. Essas

regras já sinalizam as tentativas de institucionalização do Protestantismo brasileiro, ainda no

final do século XIX, de acordo com o jornal Expositor Christão, datado de 15/08/1889: com o

artigo intitulado: Sete Regras Christãs para Christãos Novos:

I) Nunca vos esqueçais de fazer oração diária em particular e quando orardes, lembrae-

vos que Deus está presente, e ouve as vossas orações (He. XI: 6). II) Nunca vos esqueçais de ler a Bíblia diariamente e quando a ledes lembrai-vos de que

Deus está falando convosco e que deveis crer no que Elle diz, obedecendo-o. III) Nunca peçais a Deus cousa alguma a menos que não da desejaes sinceramente.

Confessae perante Elle a verdade a vosso respeito embora Elle vos faça parecer muito mal, e então pedi que elle por amor de Christo vos perdoasse o serdes o que sois e que vos faça o que deveis ser.

IV) Nunca deixeis passar um dia sem que façaes alguma cousa por Jesus. Ao anoitecer, refecti sobre o que Jesus tem feito por vós e então perguntae a vós mesmos Que fiz eu hoje por Jesus? (Mat. 13-16).

V) Si, em alguma occasião, duvidardes a respeito de qualquer cousa, não sabendo si ella é licita ou illicita, entre para vosso quaro, e ajoelhado, invocae a benção de Deus, para que a luz se faça em vosso espírito (Col. III, 17). São não puderdes proceder assim, está claro eu ella é illicita. (Rom. XIX, 23).

VI) Nunca tomeis pessoa alguma como modelo de perfeição, nem julgueis que, pelo fato de ter alguém feito isto ou aquillo, vos também podeis fazê-lo. Esforçae-vos para imitá-lo em tudo. (João X. 27) (Cor. X 12 – Almeida).

Deveis pergurtarvos a vós mesmos Que faria Christo si estivesse em meu logar. VII) Nunca deis ouvido ao que sentis, se isso está em contradicção com a Palavra de Deus.

Perguntae a vós mesmos; Pode ser verdadeiro o que sinto, si a Palavra de Deus é verdadeiro? Si uma cousa não combina com a outra então crede em Deus, que é rezar e fará com que o vosso coração seja mentiroso. (Rom III. 4; IJoão V 10-11).

A obra de Calvino de 1541, As Instituições Cristãs escrita em latim aumentou a

perseguição contra suas idéias e sua pessoa. No prefácio do livro há palavras explicitas a

Francisco I, dizendo que Cristo punira com rigor as injustiças de seus atos. Sua atitude

religiosa implica em uma ação no mundo, característica pela qual passa a ser representado.

Possivelmente as práticas religiosas Calvinistas representaram ameaças ao campo simbólico,

mais que sua teologia, ao menos no Brasil, tendo em vista, suas implicações no modo-de-ser

do fiel, alteram os sistemas de poder vigente. Vejam-se os reflexos da posição calvinista e

metodista no jornal Expositor Christão, de 01/11/1889 - artigo intitulado: O progresso do

Evangelho aparentemente vagaroso.

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(...) Da mesma maneira, a obra do Evangelho entre os pagãos não é inteiramente nem pela mor parte simplesmente superficial. O fermento do Cristianismo está operando sobre o monte inerte e morto das superstições fétidas. Algum dia há de haver um grande levantamento religioso. Por levantamento e cataclismos o Todo-poderoso, às vezes opera os seus grandes desígnios na graça, bem como na natureza. Pa preparação para estas transformações estupendas é vagaroso, e muitas vezes imperceptível no seu progresso, mas quando o caminho do senhor estiver, parado, nascerá uma nação um dia.

Bastide (2001, p. 4 e ss.) pontua que as sociedades ocidentais, ao caminharem para a

modernização, esforçam-se para submeter o “sagrado selvagem” ao controle da coletividade,

o que obedeceria não só a razões de ordem social, mas também de ordem religiosa.

Supostamente os códigos e caminhos de contato direto com o sagrado, não podem ser

utilizados pela coletividade. A presença do sagrado selvagem se presentifica, então nas

contradições e “fissuras de controle” das sociedades modernas. Uma das formas de controle é

através da padronização do comportamento religioso, em forte oposição ao comportamento

social profano. O comportamento do fiel, equacionado ao divino ou a uma figura divina nos

moldes que conduzem a padronização, ganham no imaginário um valor de sobrenatural, mas

ao mesmo tempo retiram das práticas religiosas, o espontâneo e o criativo, habitado

supostamente por uma relação com o sagrado criativo, que expressa mais as mudanças sociais

em curso. Enquanto a institucionalização da religião parece relacionar-se a uma ordem social

vigente, o sagrado selvagem parece denunciar a tensão diante das mudanças em curso, ou com

os traços marginais e ocultos da cultura, que a aparência das práticas místicas parecem ter a

dupla finalidade de mostrar e fazer latente, interiorizado, como nos Protestantismos.

Um aspecto relevante da relação entre o homem religioso, que se volta ao mundo está

na necessidade de resolução da tensão entre os poderes humanos e os poderes divinos. O

homem pode gozar de autonomia e cuidar do contexto social no qual se encontra, desde que

se coloque como respeitoso do papel da divindade e não ultrapasse seus limites, movido pelas

ambições de seu crescimento. Se a humanidade ultrapassar certos limites, a experiência da

perda do paraíso lhe ensina as conseqüências. Para garantir que isso não ocorra novamente,

torna-se necessário lembrar ao homem que é um pecador, e de que é capaz de semelhante

façanha, devendo nesse sentido submeter-se ao cuidado religioso direto, e não a outro de igual

condição. O demônio aparece como uma figura tentadora que deve ser evitada. O mito firma a

origem divina do homem, mas ao mesmo tempo alerta-o para sua dupla natureza,

incentivando o vínculo constante com a divindade, conforme observa Azzi (1987). A

utilização ideológica e utópica do mito pelos sistemas culturais e religiosos diversos, entre

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eles o Protestantismo, cria possibilidades de surgimento do Pietismo, Quietismo, ou

Puritanismo, ajustando o mito à realidade social que o mantém e é por ele mantida.

A atitude cristã puritana obedece ao modelo de Jesus como filho obediente ao projeto

divino, relacionada à idéia de redenção da humanidade, que a paixão e morte do cordeiro, tem

como exemplo máximo. Deus é onipresente e princípio ético de toda realidade, constituído de

bondade absoluta. O mal é a insubordinação a essa característica essencial que está presente

em todo o universo, devendo ser reconhecida pelo homem como marco inicial de sua relação

com Deus. O conhecimento humano a ser produzido nessas condições deveria estar submetido

às regras da boa conduta, sendo a própria razão um subproduto da relação primeira entre Deus

e o homem. Quando tal reconhecimento não se dá, instauram-se uma espécie de guerra santa

do homem com o conhecimento, ou do homem consigo mesmo. O fundamentalismo, neste

sentido é uma proposta de ganhar a guerra, instituindo uma verdade absoluta, contrária a

qualquer pluralismo, advindo da diversidade de cosmovisão.

O conceito de progresso envolvia diversos aspectos que se opunham dialeticamente à mentalidade dominante na cristandade. Em seu conteúdo mais profundo, representava a ênfase no conceito de “mundo construído”, deixando para trás ou sobrepondo-se ao próprio “mundo-dado”: à concepção de “dependência” das forças da natureza opunha uma consciência cada vez mais nítida da autonomia do homem e de seu domínio sobre o mundo natural. (...) Pouco a pouco, o homem passava a considerar-se como dono de sua vida, de sua história de seu próprio destino. Ao mundo dado por Deus, exigindo como penhor a fidelidade do homem ao seu pré-destino, contrapunha-se um mundo resultante da livre opção da consciência racional. A idade da razão emergia com força, provocando uma crise na idade da fé.(Azzi, 1987, p. 132).

2.7 Wesley e a Convivência com o Espírito Santo

A relação entre fé e razão, tem em seu bojo a relação que o Protestantismo tenta

estabelecer com o mundo no qual se insere o homem. De um certo modo, pode-se pensar que

as missões foram vistas dentro dessa óptica, ao menos pelos que nelas tomaram parte, o que

não nega outros elementos relacionados ao desenvolvimento das forças históricas e produtivas

da época. Um exemplo dessas idéias se destaca no sermão de John Wesley, de 1774 em

Oxford. Para esse reformador, o Cristianismo pode ser visto a partir de três princípios:

1)como inerente ao ser humano enquanto cristão; 2) como meio de propagação da mensagem

cristã de um ser humano para outro; 3) para transformar o mundo. Na concepção de Wesley,

Deus é o desejo dos olhos dos Cristãos e a alegria de seu coração, o que os conduziria a amar

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os outros como manifestação de que eram amantes de Deus. A visão de mundo de Wesley,

sua forma de explicar os acontecimentos do cotidiano, geralmente eram permeadas pela

presença do sagrado que se apresentava assim em estreita relação com o homem. A esse

respeito, registrou Wesley em seu diário de 12/3/1743:

Completei a segunda série de visitações, em que indaguei particularmente acerca de duas cousas: 1) a causa daqueles que, quase cada noite durante a semana, gritaram durante a pregação. 2) o número daqueles que se separaram de nós, e o motivo e a ocasião disso. Quanto à primeira, achei: 1) que todos (creio sem exceção) eram pessoas de saúde perfeita, e não tinham sido sujeitas a ataques de espécie alguma, até que foram assim afetados. 2) que isso lhes sobreveio num instante, sem aviso prévio, enquanto escutavam a palavra de Deus, ou pensavam no que tinham ouvido. 3) que, naquele instante, caíram perderam as forças, e se viam atacados de dores fortes. Isto eles explicaram de diversas maneiras. Alguns disseram: “Sentimos como se estivéssemos transpassados por espadas”; Outros: Pensávamos que grande peso repousava sobre os comprimindo-nos no chão. Outros ainda afirmavam: “Que era como se o coração, o peito interior, e todo o corpo, estivessem sendo despedaçados”. Esses sintomas não os posso atribuir a causa natural senão ao Espírito de Deus. Não duvido que era Satanás que os rasgava quando eles iam a Cristo; daí os gritos pelos quais pudesse desacreditar a obra de Deus, e espantar o povo para que ao escutasse aquela palavra que lhe podia salvar a alma. (Wesley, 1965, p.40).

Esse registro das idéias de Wesley descritas acima, provenientes de seu diário pessoal,

indica que seguia uma via distinta dos que preferencialmente se atinham ao método analítico e

racional, como forma de saber e fazer progredir o homem. Conseqüentemente, a imaginação e

o sentimento, podem ser vias privilegiadas para o conhecimento de Deus. A proposta de uma

vida interior intensa, da oração, da meditação dos textos sagrados e da conformidade de

atitudes do ser humano com as indicações do Evangelho se delineia como meio adequado

para encontrar as verdades cristãs. Em 1728, Wesley, participou da fundação de um grupo de

estudo religioso, ao lado de seu irmão Charles e de seu amigo George Whitefield, chamado de

Holy Club. Situado em Oxford, Inglaterra, esse grupo, visava potenciar as obras religiosas da

Igreja, e difundir o comportamento religioso no centro da universidade, dando ênfase ao

método atividade acadêmica e devoção, o que lhe valeu o nome de Methodista Influenciado

pela doutrina luterana da salvação pela fé e pela espiritualidade moraviana a proposta

weslyana manteve um certo distanciamento das congregações oficiais da Igreja da Inglaterra,

orientando sua ação para o povo mesmo. Anos antes Wesley convivera com os irmãos

morávios, tecendo críticas às práticas religiosas da igreja, a qual ele classificava como fria e

impiedosa para com as populações menos abastadas. Criou Wesley uma teologia eclética,

voltada para essa população, a qual dirige suas pregações, práticas e ações religiosas, em uma

postura itinerante, percorrendo grandes distancias no território inglês. Socorrer os pobres

engajar-se em lutas pelos menos favorecidos eram provas da presença e das operações de

Deus na alma do crente. Wesley exortava a criação de sociedades e grupos de ajuda aos

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menos favorecidos como os doentes, viúvas, analfabetos, pobres, que incluía empréstimos,

construção de escolas, campanhas, e imprensa que se organizava também para essa finalidade.

Sobre as atividades de Wesley voltadas às populações economicamente menos abastadas,

vejam-se abaixo os registros de seu diário de (5/3/1784) e (10/3/1765) respectivamente:

Voltei a Kingswood, e indaguei a respeito da administração da escola. Descobri que algumas regras não estão sendo observadas, particularmente aquela acerca do levantar cedo de manhã. Certamente Satanás tem ódio a esta escola! Quanta preocupação esta escola me tem dado por estes trinta anos! Faço plano, mas quem é que vai executá-los! Eu não sei; o Senhor me ajudará! (Wesley, 1965, p. 66).

Levantamos uma coleta em nossa congregação em prol dos tecelões que estavam sem emprego. A coleta importou em quarenta libras. Na reunião da nossa Sociedade, á noite, levantou-se outra coleta que importou em catorze libras, e forma aplicadas para socorrer os necessitados da nossa Sociedade. (Wesley, 1965, p. 108).

Wesley orientava as sociedades metodistas que iam se constituindo para o modelo de

comunidades moravianas, com pequenos subgrupos que confiavam sua vida entre si,

estudavam e se repreendiam quanto ao seu comportamento. O mesmo grupo lhe provia a

sobrevivência e se auto gestava, tendo autonomia na decisão de assuntos que eram

concernentes ao grupo, realizando trocas de serviços necessários ao cotidiano.Surgiram

muitos grupos metodistas em Londres, Bristol, e várias cidades. As pregações de Wesley

ocorrem em um tempo de muita precariedade econômica e social. Vale lembrar que o século

XVIII foi marcado por muitas transformações na Inglaterra, que inaugurou a era industrial

com os processos de migração da população do campo para as cidades, o que inicialmente

representava uma grande massa de homens sem perspectiva de trabalho. Lelièvre (1988)

afirma que nessa época, as classes populares inglesas eram ignorantes, desorganizadas e

suscetíveis à violência e agressão. Os bares e tabernas estavam lotados, sendo o consumo de

trezentos mil litros por ano. As ruas de Londres eram povoadas de pessoas que as utilizavam

como dormitório, necessidades de “higiene”, ficando inertes. De cada seis casas dessa cidade,

uma era taberna. Mesmo que o Parlamento inglês proibisse a venda de bebida, a

clandestinidade garantia o consumo. A diversão eram os jogos, prostituição e a superstição ao

lado da criminalidade freqüente. Aqui novamente o diário de Wesley nos ajuda a

compreender suas experiências, conforme ele registrou (11/04/1751):

O barbeiro que me barbeava disse: Senhor, eu louvo a Deus por sua causa. Quando o senhor estava em Boston, a última vez, eu era o ébrio mais notável da cidade; fui ouvi-lo pregar, fiquei perto da janela e Deus me feriu no coração. Então orei pedindo poder sobre o meu vício de beber, e Deus me deu mais do que pedira, tirou-me o desejo de beber; contudo, eu me sentia pior sempre pior, até que no dia 5 de Abril, p.p. não me agüentava mais. Sabia que cairia no inferno naquele instante, se Deus ao me

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socorresse. Mas Ele me apareceu, e me fez saber que me amava. Então senti a doce paz. No entanto não podia eu dizer que tinha fé; mas ontem fez um ano que Deus me deu fé, e seu amor me têm transbordado o coração até agora. (Wesley, 1965, p. 88).

A preocupação de Wesley com a criminalidade talvez tenha razões de ordem

biográfica, pois aos seis anos de idade, quase perdera sua vida em um incêndio em sua

residência, ateado por delinqüentes. O fogo se alastrou pela casa da paróquia onde a família

morava. A família conseguiu sair do local em chamas, mas o mesmo não se deu com Wesley

que ficou preso, até que um homem conseguiu salvá- lo. Esse episódio teve suas influências

sendo citado no diário pessoal com a expressão “arrancado das chamas”. Esse evento foi

interpretado por Wesley como manifestação do sagrado em sua vida, a quem daí por diante

deveria consagrar sua existência. Ora Wesley foi o 12º filho de 18 irmãos do reverendo

Samuel Wesley, pároco em Epwort e de Twice Susanna Wesley. Nesse meio religioso, era

comum ouvir frases como a do piedoso bispo de Lighton, “A Igreja já não é senão um

esqueleto sem alma”, conforme observa Lelièvre (1988 p.26). A data de início de sua

pregação religiosa é 1738 em Oxford, na qual afirma que a fé que salva não é só racional e,

sobretudo uma atitude do coração. Wesley atribuía a sua modalidade de pregar fora dos

templos e de modo espontâneo, como fatores que atraíam as pessoas e as atingiam no coração,

de acordo com o que escreveu em seu diário datado de 18/06/ 1765:

À tarde cheguei a Cork (Irlanda); às sete horas fiquei admirado com o aumento da nossa congregação. Muitas vezes fiquei triste por causa de tão pequena congregação neste local; e não se podia esperar outra cousa, enquanto ficarmos, engaiolados na casa; mas agora soou a voz de rebate e o povo vem de todos o lado. Assim fica demonstrado que as pregações ao ar livre são os meios mais eficientes para desfazer o reino de Satanás. (Wesley, 1965, p. 30).

A modalidade espontânea das práticas religiosas, em contraste com as mais formais

que ocorriam no interior do movimento Protestante, parece ter sido um ponto comum entre

Zinzendorf e Wesley. No ano de 1738 deu-se à visita de Wesley a Herrnhut, a primeira

comunidade que se pode dizer metodista-moraviana-anglicana. O relacionamento estreito

entre o conde e metodista durou até 1742, quando os metodistas se separaram por pontos

doutrinais e certas incompatibilidades entre eles. Após essa separação, Wesley seguiu pela

Inglaterra, acentuando a perfeição da vida cristã, a evangelização popular, o poder da graça, o

sacerdócio universal. Enfatizou o sentimento pessoal, incentivando os leigos a predicar e a

realizar os sacramentos, o que pode ser observado de acordo com registro em seu diário de

01/06/1740:

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Expliquei: resta um repouso para o povo de Deus de manhã em Kingswood-School, e à tarde em Rose-Green, a mais seis ou sete mil pessoas. Depois exortei a nossa Sociedade a orar sem cessar, para que não desanimasse nas suas mentes, ainda eu a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os admiradores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestiais. (Wesley, 1965, p.64).

Os leigos que se dedicavam ao modelo religioso de Wesley eram vistos como agentes

comunitários, capaz de estimular a fé e de certo modo representantes das idéias divinas

(especialmente atribuídas ao espírito divino) no mundo, assim como ele. O rápido

crescimento do movimento metodista, possivelmente tenha sido um dos fatores que tornou os

leigos responsáveis por anunciarem o evangelho e se responsabilizarem pelos trabalhos

sociais, embora essa não fosse a intenção de Wesley, que visava à união canônica de seus

pregadores à Igreja e fossem por ela ordenados. Nesse cenário, porém, a fé era vista como um

elemento místico, que em muitos momentos aliviava os sofrimentos e as “crises religiosas”, e

aflições que Wesley atravessava, o que foi escrito em seu diário de 05/01/1745:

Muitas vezes tinha admirado de mim mesmo (e muitas vezes dito a outros), que dez mil cuidados de diversas espécies sobre a minha mente não pesavam mais que dez mil cabelos na minha cabeça. Talvez eu tivesse atribuído isto a minha própria força; e ode ser que no domingo, dia 13 minha força foi retirada e senti o que era ser atribulado acerca de muita cousa; uma cousa ou outra me oprimia continuamente, tais cousas se me apegaram no espírito mais, até que eu não podia agüentá-las mais, tinha de fugir para poupar minha vida, e isto já e já (...) Na hora em que entrei em casa em Bristol, minha alma foi aliviada do seu fardo, um peso insuportável que me afligiria a mente por alguns dias. (Wesley, 1965, p. 56).

Enquanto a fé pode ser vista dentro de um sistema de pensamento que percorre as

experiências subjetivas e íntimas, sendo um elemento místico de encontro com o sagrado que

opera mudanças na percepção e na concepção de mundo, as manifestações do Espírito, ao ver

de Wesley parecem mais relacionadas ao misticismo coletivo, compartilhado pelos fiéis em

ocasiões como as festas e pregações, conforme registrado em seu diário datado de 18/02/1750

e 19/07/1961, respectivamente:

(...) Hoje, também, onde nós nos reunimos, Deus manifestou seu poder; mas particularmente em nossa festa de Amor. A simplicidade com que muitos falaram, declarando a maneira como Deus lhes tinha falado, inflamou o coração de outros; e a chama se espalhou mais e mais, e, tendo ficado quase uma hora mais do que o costume estávamos constrangidos por ter de separar-nos. (Wesley, 1965, p. 104). (...) Apressei-me para voltar com o fim de assistir à Festa de Amor em Bristol. Foi a primeira que se realizou ali. Muitos ficaram surpreendidos quando lhes falei que o desígnio da Festa de Amor e é a convocação familiar, em que todas as pessoas homem ou mulher, tem liberdade de falar alguma cousa que seja pura a glória de Deus. Então, diversos falaram e não em vão, a chama passou de alma para alma; especialmente enquanto uma declarou com toda a simplicidade a maneira como Deus, durante a pregação

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àquela manhã tinha libertado completamente sua alma. (A pregação fora sobre as palavras: quero, sê limpo) Mais dois falaram no mesmo teor, e ainda mais dois, que tinham alcançado a paz, falaram. Então louvamos a Deus, agradecidos pela suas obras maravilhosas. (Wesley, 1965, p. 104).

A relevância que Wesley atribuía a emoção religiosa especialmente nas pregações que visavam à

conversão parece relacionar-se a sua compreensão de que havia uma espécie de anomia, enquanto processo de

desordem social, na realidade que se inseriam os indivíduos aos quais se dirigia. Mendonça aponta que é

importante atentar para a idéia Psicanalítica, de que a cultura é o resultado do abandono voluntário, mas

sacrificial do princípio do prazer para o princípio da realidade, conforme descrito por Sigmund Freud em O mal

estar da Civilização (1974). A conversão pode significar uma necessidade de reorganização do mundo social,

concomitantemente ao mundo psicológico, implicando um conjunto de emoções. Nesse sentido, significando

misticamente, morte, regeneração e ressurreição, isto é, um “novo homem”. Mesmo que a mudança social, não

possa ocorrer com a rapidez e as características necessárias para o fiel, os elementos imaginários e emocionais

vividos no tempo presente, abrem um horizonte de perspectivas, que alimenta a esperança. A memória do estado

anterior à conversão, que pode incluir a sensação de “estar perdido” diante de uma ordem social marcada pela

precariedade e ameaçadora à sobrevivência, altera-se pela identificação com um novo grupo e seus valores,

promovendo a sensação de “estar salvo”. De acordo com Mendonça (1998, p.86), a fenomenologia da conversão

resume-se assim “pecado (morte-social); conversão (ressurreição para a vida social) e regeneração (vida social

nova)”.

Na perspectiva de Wesley, a conversão é o início do processo de santificação do fiel nas esferas do

mundo exterior e interior. A caminhada do ser humano rumo à santificação é comparada a uma peregrinação,

dirigida por um guia que é o Espírito Santo, que proporciona crescimento na graça. Conforme observou Reily

(1992) na concepção metodista, o Espírito faz morada no coração e no cotidiano humano, removendo as culpas,

criando disposições de luta social e religiosa, tendo como exemplo a imagem de Cristo. O processo de

santificação na visão do pai do metodismo tem, portanto duas facetas: a vida interior do fiel e a vida exterior. A

primeira é mais voltada à devoção e a segunda especialmente para as relações sociais, implicando a participação

do fiel na comunidade, praticando atos de solidariedade (koinonia). Reily (1992) ainda pontua, que a biografia

de Wesley, assim como suas orientações aos fiéis estão marcadas pela piedade espiritual e práticas religiosas

comunitárias, que dão ênfase à “valorização social da religião”. Pode-se compreender a extensão do significado

que Wesley dava a transformação das pessoas e da sociedade, no seu testamento, no qual ordena que seu corpo

fosse sepultado atrás da Capela de City Road, carregado pelos seus colaboradores mais pobres, e não pelos mais

conhecidos e destacados. Portanto, o misticismo para Wesley, quer se considere a relação fiel-espírito, ou fiel-

comunidade-santificação, é uma faceta constitutiva de sua forma de ser protestante.

2.8 A Herança Mística dos Primórdios do Protestantismo

O estudo da Reforma aponta a presença da experiência mística, quer se considere um

âmbito mais individual ou como fenômeno coletivo. Enquanto processo individual e

personalista tem como um dos possíveis significados a afirmação da autonomia e da

subjetividade do ser humano, que toma como ponto de partida sua relação direta com o

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sagrado, assumindo o poder que antes pertencia exclusivamente à Igreja enquanto instituição

possibilitadora da salvação. O domínio religioso sobre a vida humana na Idade média,

estendia-se da esfera “pública” ao que a modernidade nomeou posteriormente de “vida

privada”, englobando profissão, nascimento, morte, casamento, vida universitária, entre

outros aspectos, conforme fez notar Lucien Febvre (1962). Quando os reformadores como

Lutero, Calvino, Wesley propõem que o indivíduo se relacione com Deus, sem

intermediações, tomando conhecimento da Sagrada Escritura, promovem um novo horizonte

de relações sociais diante dos modos-de-ser católicos, abrindo um campo de liberdade e de

construção de identidade para o indivíduo, até então desconhecido. A construção de

identidades psicológicas e sociais que o pluralismo protestante gesta, abrange também seu

interior enquanto movimento, o que implica em que o misticismo possa ser uma das formas

de afirmação desse mesmo pluralismo, já que é a radicalização, o testemunho da

singularização da relação com o sagrado, se opondo as formas de totalitarismo religioso

dependentes da condição institucionalizante da religião. A hipótese de uma mística

protestante apoiada na experiência religiosa de união da interioridade do crente com o divino

esta de acordo com a posição teórica de Luís Henrique Dreher (2004), que sustenta herança

religiosa da Reforma, baseada especialmente o Pietismo do século XVIII em diante.

Referindo-se a mística protestante em sua expressão alemã, Dreher distingue entre uma

mística de cunho eclesiástico e por outro lado, um misticismo originário das idéias de

Paracelso (1493-1541), o protestantismo de Weiguel e Boehme, que se tornaria autônomo na

cultura, influenciando autores como Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), Gotthold Ephrain

Lessing (1729-1781) e Johann Gottfried Herder (1744-1803), o idealismo e o romantismo. A

mística protestante seria originária do pensamento de Lutero, quando desvinculou a tradição

mística do papismo, e assumida socialmente por Jacob Spener, conforme assinala Dreher. Já

Walter Von Loevenich (1988) em seu estudo da teologia da cruz sustenta que no pensamento

de Lutero há um ponto central que é a ética da comunhão. Enfim, esses autores consideram

que existe uma herança mística que se prolonga de Lutero aos movimentos religiosos

luteranos, incluindo aspectos filosóficos e a idéia de uma experiência mística interior e

imediata, que se opõe à prevalência de uma visão meramente letrada de misticismo, conforme

afirma Dreher (2004, p. 213). Ao ver desse autor a oposição à mística luterana e sua herança

pode se encontrada na teologia liberal baseada nas idéias do filósofo Immanuel Kant e a

teologia dialética, em um de seus expoentes: Emil Brunner.

A experiência mística no moldes individualistas é condizente com a modernidade e o

advento do individualismo representando a fronteira e a barreira, contra as formas de religião,

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que não passem pelo desejo subjetivo, ou seja, a posição que permite ao ser reconhecer-se

como singularmente pertencente a uma cultura religiosa, exercendo sua espontaneidade e

criatividade diante das mudanças sociais, em possibilidades contestatórias, reivindicatórias,

idealizadas e marginais. Essa possibilidade de cultura religiosa, traçada pela Reforma vais se

tornar um palco de conflito religioso, especialmente diante da institucionalização fazem uso

extremado da razão, padronização, sistematização das relações religiosas. No campo da

cultura, nem tanto da letra em si, o misticismo protestante, aponta para o sentido da letra e da

imagem não hierarquizada da santificação, mas da imagem da graça que atesta a santificação.

Na intimidade da subjetividade nas um campo de experiências místicas que se justapõe as

formas sociais de experiências religiosas protestantes. As concepções calvinistas de oração e

seu significado parecem condizentes com esse tipo de experiência, na qual o sujeito cria uma

linha divisória entre o público e o privado na relação com Deus, parecendo fazer uso da

emoção como característica distintiva entre esses dois modelos de ser-religioso.

A mística de Jacob Boehme tem característica mais especulativas quando comparada

a de Lutero, a qual de certo modo se opõe, propondo que a natureza é uma fonte de revelação

assim como a Bíblia. Boehme formula a concepção de um Deus absconditus, que transpõe a

barreira teológica de Lutero da doutrina da graça e da salvação. Assim, escreve Boheme

(1998) sobre a natureza e a matéria:

(...) o que quer que seja duro ou pungente, como os ossos, a matéria, as plantas, os metais, o fogo, a terra, as pedras e as coisas semelhantes, é resultado de um movimento análogo ao da força divino quando se depara com a rudeza e a aspereza da Natureza. Pois então ela encerra-se em si mesma e passa a subsistir ali apenas como uma centelha ou como uma nobre jóia. Portanto tais coisas são duras ou ígneas por que tem seu fundo no encerramento divino, que ocorre quando o eterno UM ao introduzir-se continuamente no fundo (grund) da triplicidade para suscitar o movimento das forças torna a se fechar de novo diante do afluxo da vontade da própria da Natureza a fim de poder operar, através da Natureza com a força da unidade. (Boehme, 1998, p. 59).

De outro lado, quando se trata de um misticismo socialmente praticado pelo grupo

como, por exemplo, na pregação, devoção, “encantamento do texto bíblico” e padronização

de comportamentos religiosos, parece haver a tentativa de construção de uma identidade

protestante, que não se deixa ser única, e alimenta-se da oscilação entre

indivíduo/coletividade, gerando tensões constantes entre os dois pólos. Emoção/razão;

memória/projeto de futuro; erudito/leigo; institucionalização/mutação; singular/coletivo;

revelam alguns dos paradoxos, que permitem a compreensão do Protestantismo, uma vez que

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se considere, que esse é um movimento em busca de emancipação do sujeito de parte do

imaginário medieval e simultaneamente a tentativa de realização do mesmo, enquanto

aproximação do mundo sobrenatural de modo direto. Vale lembrar que as missões nascem

dessa necessidade de romper um certo campo de relações humanas, e inaugurar ou abrir novas

possibilidades, que o sonho e as visões místicas vão anunciar como real, antes que as relações

sociais possam tentar realizá- los. Afirmando que o indivíduo já alcança por si o contato direto

com o sagrado na experiência mística, o fiel protestante interroga e questiona o coletivo, sobre

suas reais condições de realizá- lo, apontando para abertura da fronteira para o “novo mundo”,

inaugurando o projeto de paraíso na “América”, o que vai ser descrito nos próximos capítulos.

O pietismo garantiu a legitimidade e a continuidade da mística em solo protestante

afirma Dreher (2004). Do seu ponto de vista essa ação foi graças a Gottfried Arnold, que

apontou como heresia a interpretação privilegiada da “igreja visível” ao invés da idéia de

“igreja invisível”, existente em Lutero e Calvino. Mesmo que as ortodoxias das igrejas

calvinistas e luteranas dessem ênfase à exterioridade, as transformações sócio-culturais,

teológicas e lingüísticas da modernidade, criaram as condições de sustentação da experiência

mística protestante, com suas variações e significados. A interpretação subjetiva da Bíblia

pode na modernidade se justapor a àquelas socialmente formuladas, criando possibilidade de

uma mística até então inexistente. Mesmo que teologicamente e ideologicamente se propague

que o Protestantismo admitiria no máximo uma visão de união com a divindade post mortem,

a Psicologia postula que o indivíduo busca “experiências de fusão” com o outro, além de

modalidades de trabalhar simbolicamente com o paradoxo existencial da

alteridade/semelhança como será descrito nos próximos capítulos. Outrossim, é que mesmo

que essa situação não fosse válida cientificamente, ainda restam ao menos dois argumentos:

que o indivíduo desconhece a si mesmo, se vendo na tarefa de gerar sua plausibilidade

continuamente (Berger e Luckmann, 1999) diante de circunstâncias sociais mutáveis, não

podendo, portanto ser objeto de afirmações finalistas. Da perspectiva desses sociólogos,

quando se trata de uma igreja, torna-se mais difícil alcançar o reconhecimento subjetivo de

um sentido global “por trás” dos motivos do indivíduo, necessário às integrações sociais, o

que constitui um dos elementos a ser enfrentados pelo Protestantismo visando sua

sobrevivência social enquanto instituição. Um segundo ponto de vista se baseia na idéia do

radicalismo da modernidade, que comporta a idéia de que no intimo do eu, não há teologia

que se formule, pois o mistério domina e se ausenta do máximo alcance que o mito gerado

pela herança iluminista se propõe a realizar nas investigações científicas. Resta, portanto um

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resíduo que resiste ao saber institucionalizado, deixando aos indivíduos a possibilidade de

encontrarem significados a suas experiências religiosas, ou criar socialmente os sentidos que

lhe permitam enfrentar a insegurança advinda das transformações sociais. Esse resíduo parece

ser uma das fontes do conceito de Bastide (1975) de “sagrado selvagem”, tornando-se um

depósito simbólico do não reconhecido pelas instituições, mas nem por isso com menor

caráter sócio-cultural. A natureza da inovação histórica das comunidades pietistas parece

representar uma amostra desses processos.

Prescindindo dos instrumentos institucionalizantes que mantiveram o catolicismo, tais

como o apelo às imagens de santos e a hierarquia das autoridades religiosas, o Protestantismo

vai ter que lançar mão de recursos para a ocorrência da integração necessária a sua

configuração, para além de seus princípios. No Brasil, Etienne Higuet (1984) lembra que

cerca de 90% da população se declara pertencente a Igreja Católica, mesmo participando

pouco dos rituais oficiais e admitindo idéias e práticas rejeitadas pela autoridade eclesiástica.

O catolicismo popular, afirma Higuet (1984, p. 25) caracteriza-se por uma “religiosidade

simples e espontânea que se contrapõe a organização e aos aparelhos de poder da religião

oficial, dispensado-se os serviços especializados do sacerdote e sistematização dos conteúdos

da fé”. Desse modo o devoto cultua seu santo de devoção geralmente com oração, velas,

promessas, demonstrando devoção e necessidade de proteção. O catolicismo santorial e

devocional é uma forma de expressão religiosa mística. “A espinha dorsal da religiosidade

popular é mística, ou seja é a sua espiritualidade. Está presente em todas as expressões do

catolicismo e em todos os graus da consciência popular”, afirma Higuet (1984,p. 29). A

literatura protestante, por outro lado parece ter sido uma das modalidades de expressão do

misticismo protestante, especialmente nas camadas populares, que tendo sido em parte

expropriada dos seus espaços simbólicos pela institucionalização da religião, que tem em

formas como o êxtase religioso “o mais forte componente de recusa da intermediação do

discurso articulado e do esforço de fuga para um outro universo que corresponde a essa

negação ou inversão” observa Mendonça (1984, p. 19) A criação da uma literatura, que lança

mão da imagem, alegoria e metáfora, comunica-se com o leitor em sua simplicidade, gerando

um imaginário que promove mais que a construção de conceitos, a manutenção da esperança,

vivida em um teatro do futuro e da fé?

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Capítulo 3

Literatura Protestante e Experiência Mística

Explorar trechos das obras de John Bunyan A Peregrina e O Peregrino como

pertencentes à literatura caracterizada como protestante, é o objetivo desse capítulo. O estudo

de obras literárias descortina um conjunto de articulações e interações entre as forças sociais

que as constituem e por elas são constituídas enquanto imaginário, representações, criações e

ideais sociais. Em outras palavras a literatura é produto de um tempo social, como todas as

obras de arte e ainda pode ser vista como uma forma estratégica de veicular idéia, ideologia e

criar utopias. Roger Bastide (1971, p. 75) comenta que o criador de valores nunca trabalha só.

A sociedade se faz presentificar nele, moldando em uma dimensão significativa seu produto:

fornece a tradição que disciplina sua inspiração, e mais que isso está a seu lado sobre a forma

de público. A opção do estudo de obras de arte representativas do Protestantismo, embora não

sendo o único recurso para penetrar o universo cultural desse movimento, permite

aproximação e ampliação das manifestações místicas presentes em seu interior, auxiliando na

compreensão das relações entre as idéias que associam a razão, a ética e os significados

afetivos e sociais atribuídos às idéias e práticas religiosas.47 Dentro das indicações acima

delineadas, este capítulo pretende explorar amostras de duas obras literárias características do

Protestantismo, de modo que as relações entre idéias vigentes e as forças sociais possam se

tornar mais evidenciadas, no que são as indagações da pesquisadora.

3.1 Literatura Religiosa e Sociedade

O Misticismo Protestante é particularmente mediado pela letra, conforme Mendonça

(1998) podendo sua leitura ser solitária ou grupal. Sobre a literatura piedosa, Mendonça 47 Atualmente pode ser encontrada na Abadia de Westminster no interior de seu museu uma urna de cristal, na qual se lê: os livros mais famosos do mundo são: A Bíblia, O Peregrino e O Paraíso Perdido. Jonh Bunyan era filho de um funileiro que trabalhava em todas as tarefas que podia para sustentar a família, Durante certo período de sua vida Bunyan teve que enfrentar o preconceito de que era descendente das camadas sociais que davam origem aos ladrões e trapaceiros da Inglaterra ( Gypsies of England) . Sua prisão se deu em função de pertencer a uma seita religiosa, cujas atividades assim como de todas as demais foram proibidas por Charles II, quando este subiu ao trono, sendo que havia prometido ao povo liberdade religiosa. Na ocasião de sua prisão foi oferecido a Bunyan indulgências para que ele fosse solto, com a condição que se integrasse a Igreja da Inglaterra, o que ele recusou, e continuou sua pregação para os presos. Essas informações são procedentes do site www.regard.eu.org/Livres5/BunyanJohn/09.html consultado em 22/06/2003

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(1998) observa que esta assume em geral três finalidades: cognoscitiva, curativa e exemplar.

No primeiro caso visa facilitar o conhecimento de Deus através de comentários exegéticos-

hermenêuticos; na segunda forma, promove um exercício prático da fé que busca curar e

resolver os problemas existenciais; na terceira forma, tende a se constituir como modelo de

conduta religiosa. Esses elementos servem de referência para a realização da aproximação

inicial das obras de John Bunyan (1628-1688).

De acordo com Berger e Luckmann48 (1999) a Sociologia do Conhecimento trata das

relações entre o pensamento humano e o contexto social dentro do qual este surge. Desta

forma, esta disciplina constitui o foco sociológico de um problema mais geral, a saber: da

determinação existencial do pensamento enquanto tal. Karl Mannheim pode ser visto como

um autor que contribuiu de forma relevante para essa área das Ciências Sociais, uma vez que,

em uma de suas obras principais Ideologia e Utopia (1986) afirma que o centro da análise da

Sociologia é basicamente a expressão dos problemas que uma dada comunidade enfrenta num

dado momento. Afirma ainda que as Ciências Sociais para se desenvolver, dependem do

conhecimento intercambiável entre os diversos campos das ciências humanas, que promovem

uma visão integrada do homem no mundo. Orienta que os sociólogos devem aprender a

perceber de modo distinto as inter-relações que existem entre os vários objetos das ciências,

criando uma perspectiva que tem um denominador comum em sua visão da sociedade: a

interação, a ideação e a comunicação. Da obra citada acima emerge a tese do

condicionamento existencial do conhecimento. Pode-se pensar que cada fase da humanidade

seria dominada por um certo estilo de idéias e concepções. Em cada uma delas surgem idéias

conflitantes, apontando para as mudanças e para a conservação dos processos sociais

presentes. As primeiras tendem a produzir utopias e as segundas ideologias. A jornada do

peregrino apresenta-se longa e repleta de imprevistos, que deverão ser enfrentados, para que

se transforme um estado de estranhamento, em um estado de integração e familiaridade.

Cabe a Sociologia do Conhecimento procurar através da análise sistemática do maior

número de posições possíveis, radicar ou minimizar as influências da ideologia sobre o saber

tornando o pensamento progressivamente mais transparente e nítido. Deste modo as

48 Esses autores esclarecem que o termo “sociologia do conhecimento” foi utilizado por Max Scleler em 1920, que analisou como o conhecimento humano é organizado pela sociedade, constituindo-se como um dado à priori, perceptível pela experiência pessoal, e fonte referencial para sua significação e sentido.

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colocações de Mannheim49 indicam um caminho para o estudo das idéias e sua

correspondência com os fenômenos sociais que as sustentam, as produzem e são por elas

sustentados e produzidos. A partir desse ponto pode-se fazer aproximações com as Ciências

da Religião. Na ótica de Mannheim o traçado das relações entre pensamento religioso e

condições sociais e políticas, descortina as forças de conservação e de mudança. O problema é

mostrar como em toda história do pensamento, certos suportes intelectuais acham-se

vinculados a certas formas de experiência, delineando a íntima interação entre as forças em

curso presentes nas mudanças intelectuais e sociais.

A postura fenomenológica permite ao pesquisador utilizar as interrogações como

forma aproximativa de um fenômeno. As perguntas disparadoras são indicativas de

inquietações e tecem uma perspectiva e uma direção, cujo guia é em um primeiro momento é

o envolvimento sensível, e em um segundo passo as reflexões, utilizando como instrumento

mediador idéias teóricas. Interroga-se pela presença de elementos místicos na construção do

pensamento de uma obra literária representativa de um movimento religioso, que no caso é o

Protestantismo. Em caso positivo pergunta-se: que misticismo é esse e como se relaciona com

os elementos que estruturam essa modalidade religiosa. Que manifestações de traços e

expressões de ideologia utopia podem ser observadas? Quais o significados do misticismo

para esse movimento? Existem relações entre as idéias e concepções veiculadas por John

Bunyan nas obras estudadas e as formas de mis ticismo que surgem no Protestantismo

Missionário Brasileiro?

Para tal o estudo de obras literárias escritas por John Bunyan oferece –se como um

instrumento científico de relevância, tendo em vista sua divulgação no Brasil, bem como em

outras partes do mundo. Segundo Garcia (1986) a obra O Peregrino (1969) circulou no

mundo mais que qualquer outro livro, com exceção da Bíblia, sendo que as edições estão

traduzidas em mais de cento e vinte idiomas e dialetos. Vale lembrar que o título da obra

como um todo, parece indicativo de sua intenção e conteúdo, uma vez que mostra o ponto de

partida da jornada e seu destino: The Pilgrim’Progress From This World To That Which Is to 49 Essa modalidade de visualizar os fenômenos coloca Mannheim (1986) em estreita relação com teóricos que deram importância aos estudos do universo simbólico como uma força relevante na produção das mudanças e transformações sociais. Pode-se citar entre eles Weber, que em sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo traça correlações entre as idéias, motivações religiosas e forças econômicas no desenvolvimento do sistema capitalista. Mannheim (1986) se refere a Weber, observando que dessa perspectiva podemos dizer que em um sistema em evolução muitos fatos sociais que ocorrem em uma fase inicial de desenvolvimento são coincidentes e não estruturados, mas a medida em que essa nova ordem se expande, áreas cada vez maiores do comportamento social, são englobadas.

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Come que tornou-se conhecida como Pilgrim’s Progress, e no Brasil, O Peregrino. A questão

do corte de parte o título original na língua inglesa mercê ser discutida, obviamente não nessa

tese, pois foge aos seus objetivos, mas observa-se que os críticos literários fazem sua

correlação com a obra Imitação de Jesus Cristo de autoria de Thomas Kempis, afirmando que

o texto de Bunyan é a obra clássica do pietismo protestante, enquanto a de Kempis

representativa da piedade católica, o que fornece um interpretação ao título integral como

tentativa de distinção entre ambas e ironia, firmando os propósitos da reforma. Bunyan era

pregador laico da Igreja Batista de Bedford (Inglaterra), tendo nascido na vila inglesa de

Elstow em novembro de 1628. Bunyan somente teve acesso formalmente a uma educação

primária e básica, sendo proveniente das terras agrícolas da Inglaterra, assim como seus pais

Thomas Bunyan e Margaret Bentley. Em sua autobiografia Grace Abounding To the Chief Of

Sinner, relata sua condição social influenciou a temática de suas obras, que foram escritas na

prisão motivada por perseguições por parte da Igreja Anglicana. Enquanto esteve na prisão

além de escrever, sabe-se que Bunyan mantinha atividades como estudo, e pregação dirigida

aos demais prisioneiros que considerava seus amigos.

Bunyan com a idade de 16 anos já estava no exercito do parlamento inglês, lutando na

guerra contra o Rei Carlos I, cujo líder nessa ocasião era Oliver Cromwell (1649-1658). Não

se pode esquecer que esse era um congregacionista fervoroso e que lutava pela liberdade

religiosa e por melhorias na educação inglesa. A guerra na qual lutou Bunyan vinculava-se a

insistência de Carlos I na superioridade dos direitos divinos do rei sobre o Parlamento. A

“Revolução Puritana” foi uma reação à essa posição, na qual se uniram o Parlamento, o povo

do campo e os puritanos contra o rei, lordes e a Igreja Anglicana, configurando-se como

movimento social, político e religioso. Um dos efeitos da guerra foi o Ato de Tolerância

(1689), que como diz o próprio nome significava uma “abertura religiosa” na Inglaterra e

posteriormente ampliação das idéias de liberdade política nas assembléias, nos discursos e na

imprensa, além do estabelecimento do poder do parlamento. Porém o processo de conquista

da liberdade exigiu muita luta por parte de seus defensores, a julgar pela quantidade de atos e

leis proibitivas estabelecidas pelo novo monarca, Carlos II: em 1964 houve um ato

governamental que impedia as pessoas de se reunirem em “cultos secretos” para adoração, a

menos que utilizassem o “Livro de Oração” e não ultrapassassem a quantidade de cinco

membros. Outro desses atos, chamado de “Cinco Milhas” vetava aos ministros ensinar nas

escolas e cidades, devendo manter a distância de cinco milhas delas, ao menos que

prometessem não tentar modificar a Igreja ou o Estado. Nesse contexto, a participação dos

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puritanos na Revolução Gloriosa (1688) não deixa de ser uma posição contrária às inclinações

do rei na direção da Igreja Católica. Portanto o período histórico no qual Bunyan viveu, foi

marcado por intensas lutas sócio-políticas que possivelmente são representadas em suas obras,

que não podem ser avaliadas somente pela dimensão religiosa, mas antes apontam para as

relações significativas entre as concepções religiosas e seu contexto sócio-cultural.

Nos estudos de Detweiler e Jaspers (1966) sobre religião e literatura, essa é

considerada como uma forma de propagação de valores e imagens culturais, constituindo-se

como campo interdisciplinar, subsidiário à compreensão da relação leitor-autor-sociedade, na

atividade de dar sentido ao mundo, retratá- lo e criá- lo. Dentro desse ponto de vista é que se

observadas as obras de John Bunyan, representando na opinião deles “o melhor” que se

conhece ao nível da alegoria na literatura inglesa de sua época Como alegorista, Bunyan

utilizava das figuras de linguagem como as metáforas para representar situações complexas,

contraditórias, dizendo indiretamente, mas claramente sua concepção de mundo, de Igreja e

religião. Sua obra O Peregrino (1684) teve uma profunda influência no desenvolvimento da

novela inglesa. Sem uma educação formal, Bunyan integra o segmento dos pregadores

inconformistas, fazendo de sua obra um relato que em parte é autobiográfico, uma fotografia

das condições de opressão da sociedade de sua época e finalmente um meio de difusão das

idéias puritanas, alimentando o imaginário sócio-cultural de muitas gerações.

De acordo com Mendonça (1999) as influências marcantes no pensamento de John

Bunyan advém de duas obras, sendo a primeira de Arthur Dent: O Caminho do Céu para o

Homem Simples e a segunda de Lewis Bayley: A Prática da Piedade. Esses títulos por si só

já são sugestivos dos traços das obras de Bunyan, uma vez que representam duas tendências

do Protestantismo claramente perceptíveis nos textos literários de sua autoria: pietismo e

puritanismo. O estilo de Bunyan é marcado por expressões do cotidiano, clareza e concisão,

sendo acessíveis ao entendimento do homem simples. Talvez esses aspectos possam ser

compreendidos a partir de dados biográficos como sua profissão de funileiro, na qual havia

sido treinado pelo pai, mantendo uma oficina ao lado da casa na qual vivia de modo modesto.

Viveu com a primeira esposa, que chegou a falecer, após o nascimento do quarto filho.

Bunyan se dedicava a pregar o evangelho, muitas vezes de forma itinerante. Sua forma de

pregação era espontânea e improvisada, baseada nas tendências puritanas de sua época, o que

foi visto como desobediência civil e desse modo foi conduzido à prisão. Posicionava-se em

seus escritos contra o que considerava radicalismos protestantes, entre os quais podem-se citar

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frações dos grupos quakers, batistas, anglicanos, representando tendências sectárias e

belicosas de sua época. Da perspectiva de Mendonça (1999) essa postura de Bunyan era

comum em seu meio religioso puritano, como já foi apontado, e não se pode considerá- lo

intransigente dentro de seu contexto histórico-cultural, que seria perpassado por guerras

religiosas. Sua obra As Guerras da Famosa Cidade de Alma Humana mostra que o cristão,

em sua concepção está continuamente em guerra contra o mal, que podem ser suas próprias

tendências, as de outrem ou mesmo as da Igreja.

Os apontamentos de Hilário Franco Junior (1992) sobre as utopias na Idade Média,

indicam que havia uma preocupação significativa com a prática da justiça, que pode ser

constatada nas especulações dos teólogos, legislação dos monarcas, sermões dos clérigos,

narrativas dos cronistas, versos dos poetas, representações iconográficas dos artistas. No

entanto, a freqüência dessas expressões parecem apontar para outra direção: a deficiência na

aplicação da lei e suas teorizações. Vale lembrar que o indivíduo na Idade Media não tinha

identidade, enquanto ser social autônomo, o que equivale dizer que dependia de sua

comunidade que estabelecia o critério de justiça para o grupo. Mesmo que os monarcas em

certas ocasiões pudessem ser bons árbitros, esclarece Franco Junior (1992), eram poucos os

que chegavam a ele, especialmente em se tratando de pessoas socialmente mais humildes.

Esses eram julgados pela relação que mantinham como clero, os senhores feudais, que

arbitravam segundo seus interesses pessoais ou “de classe”. A intervenção de um santo era via

de regra, o elemento do imaginário social, que mantinha a esperança dessa população de vida

precária. Portanto, aos “cidadãos da Idade Média” restava o recurso de sonhar com um tempo

de justiça, ou seja, criar e manter uma forma utópica de esperança no qual “os que têm fome

e sede de justiça serão saciados” (Mt. 5, 6). A utopia e a imaginação sobre uma sociedade

justa, é antiga encontrando-se expressa no século VIII a.C. com a idéia da Idade do Ouro

associada a abundância, paz e androginia. Outro elemento que pode ser representativo da

utopia da justiça, é a temporalidade concebida ciclicamente como o Eterno Retorno, advinda

das sociedades arcaicas agropastoris, que concebiam a vida com o ciclo: nascimento,

crescimento, reprodução, decadência, morte e nascimento. “Assim a mesma fenomenologia

atingia o tempo, a natureza e o homem, cujo papel através de rituais, sacrifícios, hierofamias

era facilitar a renovação do tempo e portanto a perpetuação do ciclo natural”, observa Franco

Junior (1992, p. 55).

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Já uma segunda concepção de tempo é linear, significando a existência de um

momento preciso para a criação, um aparecimento do Messias e outro de Fim dos tempos, de

origem hebraica e que passou ao Cristianismo. No entanto, na visão de Franco Junior (1992,

p. 55) essa concepção linear do tempo é mais clerical do que popular. Desse modo a visão de

um tempo cíclico permanece há anos na cultura e na religião, mantendo na liturgia a

concepção do eterno retorno, em parte se mesclou ao imaginário do tempo linear, gerando a

‘obsessão escatológica, ou seja as doutrinas relativa ao fim do homem e do universo. O

Milenarismo não deixa de se relacionar a essa visão de temporalidade. No século XI essa

temática ocupou espaço amplo na literatura, encontrando expressões em autores como Oto de

Freissing, Rupert de Deutz, Anselmo de Havelberg, Joaquim de Fiore entre outros. Vale

lembrar que houve uma suma hagiográfica medieval, a Lenda Área de meados do século XIII,

que fez com que Deus adiasse a instalação do Juízo Final, graças ao aparecimento de São

Domingos e de São Francisco. Existia no imaginário popular, a suposição de que essa data,

poderia ser adiada, de os homems se comportassem “bem”, de modo a evitar a ira divina. O

Milenarismo, mesmo sendo condenado pela Igreja medieval, mantinha-se constante no

imaginário popular, especialmente nos contextos historicamente marcados por crises sociais,

na qual os marginalizados, despossuídos, e desprivilegiados, podiam agarrar-se a essa idéia

como forma de manter a esperança. Assim os textos apócrifos do Apocalipse, eram

divulgados, especialmente nos espaços sociais, que escapavam do controle eclesiástico,

afirma Franco Junior (1992). Assim escreve Franco Junior (1992, p. 67) sobre o tema do

Milenarismo e do Messianismo:

Naturalmente, a tendência em todo momento de maior tensão escatológica era de determinados monarcas medievais serem vistos como o Último Imperador do Mundo ou a menos como seu precurssor. Em trono de certos reis, em função de um conjunto variável de fatores, desenvolvia-se a crença de que ele estava apenas desaparecido, oculto mas não morto e que ressurgiria quando seu povo mais precisasse dele. Esse tema do herói adormecido numa montanha, numa ilha, ou numa gruta – locais de forte carga simbólica, umbigos do mundo, pontos de ligação entre o terreno e o extraterreno – aparece no folclore de deversos povos. ( ...) todo Messias é um herói, um intermediário entre o mundo humano e o mundo divino. Lutando contra todos o tipo de demônio, mostros e inimigos, símbolos de alteridade, o herói sintetiza a identidade coletiva de sua comunidade. Predestinado,, a trajetória de todo herói pressupõe inicialmente um nascimento incomum (...). Franco Junior, 1992, p. 67.

As observações de Franco Junior (1992) permitem a concepção da peregrinação,

enquanto luta do herói (peregrino) para cumprir seu destino, enfrentando os desvios e perigos,

que deve vencer, apoiado geralmente por personagens ou guias, que de certo modo ou são

companheiros de viagem ou já são mestres no percurso, pois já alcançaram o sentido da

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jornada e a recompensa que aguarda os que chegam ao seu final. A experiência mística parece

ocorrer em certos momentos dessa jornada, que podem ser identificados: início como marco

de tomada de consciência e de despertar; momentos de crise, com o devido encorajamento

para dar prosseguimento a viagem; e fim que tem como desdobramento, o testemunho da

existência do outro mundo. Sonhos, visões, lutas, parecem ter a finalidade de auxiliar o herói

a guerrear para cumprir seu pré-destino.

De todos os lados podem advir tentativas de desviar o cristão de seu caminho

(peregrinação) e dos propósitos de Deus à santificação. Assim os personagens centrais das

obras de Bunyan são desconfiados, atentos, guerreiros, individualistas, identificados e

modelados pelas atitudes de Jesus Cristo, que é seu mestre. Geralmente as metáforas e

figurações nos seus textos referem-se às situações espirituais e sócio-culturais pelas quais

passariam os cristãos em sua jornada para a “cidade celeste”. Seu pensamento já remete a

experiências religiosas descritas como representativas do individualismo, uma vez que

ocorrem tangencialmente as instituições, ou independente delas. A Bíblia era tomada como

ponto de referência de seus romances, e os personagens apóiam suas ações em “orientações

ou conselhos cristãos” geralmente feitos por “um guia” que cita de trechos ou versículos

bíblicos nos enredos. Isso denota que Bunyan tinha o hábito de interpretar a Bíblia de forma

mais subjetiva e livre, como um possível efeito da reforma. Aparentemente para Bunyan o

homem era um ser de passagem nesse mundo, que devia desviar-se dos prazeres e das

tentações que o desviassem de seu destino, como filho de Deus. Porém a esse sentido

agregam-se outros, como a necessidade de construir uma postura de vida transformadora das

relações sociais de seu tempo, contribuindo para o surgimento de novas modalidades de

exercício de poder, de pensamento, de cultura e experiência religiosa, para os quais o

misticismo ocupa um lugar central. Portanto seus sentidos para a experiência religiosa da

peregrinação são diversos, requerendo cuidadoso esforço para tentar alcançá- los. Por

exemplo, pode-se pensar que os leitores de Bunyan que se viram missionários em terra

estrangeira, tinham com o personagem o peregrino, várias fontes de identificação, haja visto a

pressão sofrida pelos processos sociais de exclusão e isolamento, tendo provavelmente que

enfrentar inúmeras situações limítrofes do ponto de vista humano, e solucionado-as de modo

que não desistissem de seu projeto e rumassem na direção de sua realização.

Dada a complexidade da obra bunyana, metodologicamente, optou-se por recortar

alguns trechos e cenas da obra O Peregrino, que serão objeto de observações e comentários,

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na medida em que esclareçam, e tracem novas indagações do tema estudado. Visa-se explorar

alguns elementos de misticismo que podem estar presentes na obra, estudando suas

características e formas, o que permite vislumbrar como foram divulgados modalidades e

modelos de experiência religiosa e relações sociais. Este capítulo enfoca também a obra A

Peregrina, uma vez que se objetiva explorar alguns aspectos da construção do papel feminino

no Protestantismo Histórico, o que parece não ter sido feito de forma substancial nos estudos

empreendidos pelos pesquisadores50. Essa obra foi escrita seis anos depois da redação da

jornada de Cristão à Cidade Celestial, em 1684, com o mesmo método, estrutura e estilo de

obra, focando A Peregrina51. Na primeira obra os personagens são geralmente homens e na

segunda, mulheres, permitindo que os leitores e críticos vejam modelos de relações humanas e

sociais diferenciados pelas questões de gênero, costumes, valores e papéis sociais.

Quando se trata de viagens celestiais vale fazer paralelismos entre a interpretação

judaico-histórica do Apocalipse de João e peregrinação descrita por Bunyan. Gershon

Scholem (1972), mostra que parte do misticismo judaico sofre influência de uma espécie de

“gnosticismo judaico”, que tinha como campo simbólico central às viagens pelos céus, nas

quais os fiéis percorriam os palácios celestiais contemplando os poderes divinos, e

principalmente da merkavah ou a carruagem de deus. Nesse universo religioso como afirma

Paulo Nogueira (2003), a visão, o culto e a viagem celestial são elementos indissociáveis da

vida religiosa do judaísmo, mesmo em suas correntes mais tradicionais. Nessas imagens do

poder de Deus residem os elementos que dão força aos cristão para desafiar e enfrentar as

condições sociais adversas, a criar visões de um futuro de salvação. Em determinado ponto da

experiência religiosa mística o fiel chegaria a um limite do que pode tolerar em seu campo

religioso, conceitual e imagético, deixando ao corpo sua expressão, produzindo então êxtases,

comoção e louvores. Há nos misticismo judaico, uma certa tendência a considerar que existe

uma correspondência entre o culto terreno e o culto celeste. As visões e os sonhos promovem

a comunicação entre diferentes modalidades de ser-cristão, uma vez que integram opostos e

legitimam os diferentes como originários do mesmo. A alegoria da jornada produzida por

Bunyan apresenta-se longa e repleta de imprevistos, que deverão ser enfrentados, para que se

50 Mircea Eliade (1971) escreve que o desejo dos intelectuais das Américas por revelar sua história e seu começo, se relaciona as indagações sobre a formação do pensamento ocidental, especialmente em relação as suas origens religiosas. Relata que poucos são os livros sobre a colonização das Américas que contenham o vocábulo “Paraíso”, entre os quais pode-se citar Visão do Paraíso de Sergio Buarque de Holanda ( 1959). 51 De acordo com Garcia (1986) a obra A Peregrina apresenta um valor relevante do ponto de vista psicológico, sendo seu enredo representativo de caracteres próprios da natureza feminina e seus conflitos, bem como O Peregrino o faz ao nível da psicologia masculina.

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transforme um estado de sofrimento e estranhamento, em um estado de integração e

familiaridade, possivelmente representando a busca da correspondência entre terreno e

celeste, ao menos como utopia que mantém a esperança em tempos socia is como o seu, e

sustenta o peregrino em suas convicções e lutas. Aparentemente, trata-se de uma fuga do

peregrino de um mundo social opressor para um outro que lhe permita a vivência do bem

estar e da felicidade. Porém parece se tratar mais da referência ao paradoxo próprio do

misticismo, no qual a diferença afirma a semelhança e a essa afirma a diferença, permitindo a

convivência dos opostos: opressão-libertação, tensão própria aos contextos bunyanos. A

expressão dessa tensão foi registrada por Bunyan, aqui reproduzida em sua língua original,

visando manter contato direto com o sentido da emoção dessa comunicação:

I found myself a man encompassed with infirmities: the parting with my wife and poor children hath often been to me in this place as the pulling of the flesh from my bones (...) I shoul have often brought to mind the many hardships, miseries, and wants that my poor family was likely to meet with, should I be taken from them, especiallly my poor blind child (...)the thoughts of the hardships my poor blind one might undergo would break my heart to pieces (...) But yet, recalling myself, thought I , I must venture yon all with God, though in goeth to the quick to leave you. (John Bunyan. In Haynes, 1875, p. 134)52

3.2 A Jornada dos Peregrinos à Cidade Celestial: o Mapa do Protestantismo

Rumo ao Sagrado.

Peregrinação é um termo utilizado no campo simbólico religioso, cuja origem remonta

aos tempos anteriores à antiguidade Cristã, mantendo sua atualidade, tanto em referência a

personagens reais ou imaginários, quanto à leitura de acontecimentos históricos e

manifestações divinas. Em Inglês utiliza-se o termo pilgrin, que em português foi traduzido

como peregrino. O International Dictionary of English define o termo como: uma pessoa que

faz uma jornada, a qual é sempre longa e difícil para um local especial, por razão religiosa. O

termo utilizado na América do Norte tem outro sentido: membro de um grupo de pessoas

inglesas que foram para a América no navio Mayflower, onde formaram a Phymouthy

52 Tradução para a língua portuguesa: Eu me descobri um homem acometido por enfermidades: a partilha neste lugar com minha esposa e pobres filhos têm freqüentemente sido para mim como puxar a carne dos ossos (...) Eu deveria ter pensado mais freqüentemente os muitos problemas, misérias, e vontades que minha pobre família estava para encontrar aqui comigo. Eu deveria ter livrado eles disso, especialmente meu pobre filho cego (...) os pensamentos sobre os problemas que meu pobre filho cego deveria se submeter quebraria em partes meu coração (...) Mas ainda, recordando-me, pensei eu, deveria ter entregue tudo a Deus, embora na ida para a rapidez de te deixar.

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Colony, Massachusetts, em 1620. O termo peregrinação significa percorrer, ir longe e dá

origem a peregrino, indicando aquele que parte para outro território, derivando seu significado

para estrangeiro, conforme descrito por Borriello et al. (2003, p. 870). O Antigo Testamento

mostra inúmeros relatos de peregrinação dos crentes a lugares sagrados por uma epifania onde

oravam e elevavam a alma apresentando ofertas. O povo de Deus sobe a Jerusalém em

comunhão de fé dando significados novos a esperança. A vida do cristão pode se tornar uma

peregrinação na fé uma caminhada para o Senhor Jesus. Abraão (Gn 12, 1-9) também

caminha para uma terra distante e desconhecida, que lhe fora designada por Deus. Faz-se

voluntariamente estrangeiro em sua terra, deixando família e costumes para aproximar-se do

sagrado. O primeiro tema selecionado para reflexão, tem como foco o sonho da personagem

central da obra: Cristã, no qual a personagem manifesta o desespero de estar perdida, vendo-

se como pecadora. Está viúva do marido a quem sente que maltratara por não compreender e

concordar com sua peregrinação rumo a Cidade Celestial:

Presa de grande terror, Christã (a peregrina) despertou toda tremente e a suar em abundancia. Porém, adormecendo de novo, seus sonhos tomaram outra forma. Desta vez parecia-lhe ver seu marido na glória, rodeado de seres immortaes, tendo na mão uma harpa e dedilhando-a deante de um que estava sentado no throno, com um arco-iris ao seu redor. (Apocalypse,IV,3) Depois vi-o inclinar-se humildemente, volvendo seu rosto para o escabello que estava debaixo dos pés do Rei (Exodo, XX, 14) e dizer: De todo o meu coração dou graças ao meu senhor e rei por me ter trazido para este lugar. Nisto, uma multidão dos que estavam ao redor levantaram a voz e tocarem suas harpas, porem ninguem podia comprehender as palavras que diziam senão Christã e seus companheiros. Na manhã seguinte, depois de se haver encomendado a Deus e fallado com seus filhos, Christã ouviu alguem que batia fortemente á porta. Quem quer que sejaes, disse Christã- se vindes em nome de Deus entre. Assim é respondeu o recem vindo, e abrindo a porta, saudou-a com estas palavras: Paz seja nesta casa. Logo prosseguiu dizendo: sabes Christã a que venho? O coração de Christã ardia em desejos de saber donde e para que vinha. Porém, cobrindo-se de rubor, manteve-se calada. Chamo-me Secreto desse o viajante e habito com os que estão lá no alto. Consta por aquelles sitios que sentes desejos de encaminhar-te para lá... (1915, p.8-9).

Através desse trecho vemos que Christã parece inicialmente expressar um estado de

terror e aflição, o qual o sonho parece modificar, a medida que a coloca diante da imagem do

marido que se encontra ao lado da divindade e agradecido por ter sido escolhido por estar

nesse lugar. Esta perspectiva parece sustentada por imagens do Paraíso, que é alcançável

através da peregrinação. De certo modo anuncia o devir e suas características, fazendo

analogia a trechos do texto Bíblico do Apocalypse. Mircea Eliade diz que há elementos

escatológicos e paradisíacos na colonização da América do Norte, que foram difundidos

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através dos pioneiros que criaram a imagem do Paraíso Americano. Com as transformações

sociais tais imagens deram origem ao mito do progresso indefinido, otimismo, culto da

juventude e novidade. Segundo esse autor, Cristóvão Colombo acreditava que ao chegar às

Américas estava perto do paraíso terreno. A propagação do Evangelho por todo o mundo

deveria cumprir-se antes do fim do mundo que não estava longe. Este evento seria precedido

pela conquista de um novo continente, da conversão dos pagãos e da destruição do Anticristo.

Foi, pois esta atmosfera messiânica e apocalíptica que acompanhou as grandes navegações

transoceânicas, e as descobertas que transformaram a Europa ocidental. Acreditava-se que o

mundo iria se regenerar. Isto implicava em voltar ao Paraíso Terrestre e separar-se de todo o

mal; voltar a começar a história sagrada; repetir os sucessos prodigiosos que se mencionam na

Bíblia53. Nas palavras do autor de La Búsqueda:

Esta es la razão por la cual la literatura de al época, así como los sermones, memórias e correspondencia, está llena de alusiones paradisíacas y escatológicas. Para los ingleses, por ejemplo, la colonización da América no hacía más que prolongar y perfeccionar una histórica sagrada que había empezadocon los comienzos de la Reforma. De hecho, el avance de los pioneros hacia el oeste continuaba la marcha tiunfal de la sabiduría y la verdadera religión desde el Este hacia el Oeste. Desde hacía algún tiempo los teólogos protestantes se habína inclinado a identificar al Oeste com el progreso espiritual y moral. (Eliade, 1971, p. 46).

A personagem de cristã em sua crise pode representar não apenas um estado ou

condição psicológico e existencial de uma pessoa, mas uma crise sócio-cultural. Em sua

forma ontológica de ser-no-mundo o homem tem necessidade dar significados ao mundo, e a

si mesmo, afirma Heidegger (1989 p.208): “Sentido é a perspectiva em função da qual se

estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que

algo se torna compreensível como algo”. Em circunstâncias de mudanças sociais e pessoais, a

cultura desempenha o papel de oferecer ao grupo recursos simbólicos que lhe propiciem

recuperar a plausibilidade da relação subjetividade-objetividade perdida durante a crise. A

superação de uma crise cultural geralmente se dá com a formulação de novos valores e

condutas religiosas, ou seja, da criação e transformação do universo simbólico, com

redefinições de valores e práticas religiosas. A Reforma aparece como tentativa de expressão 53 Segundo Eliade (1971, p. 48: 50) a doutrina religiosa mais popular nas colônias da América era a de que havia sido eleita entre todas as outras nações do mundo como o lugar onde se daria a Segunda volta de Cristo o que implicaria numa transformação paradisíaca da terra como o signo externo da transformação interior, o que parece ter sido assumido especialmente pelo imaginário americano. Juntamente com essas idéias se produziu uma crise na escatologia puritana, identificando Roma e os países católicos com o Anticristo, cuja destruição dependia a chegada do reino Futuro. Guerrear contra os Jesuítas e seus projetos era uma das idéias que a literatura popular religiosa tornava recorrente.

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e realização de novos anseios, e o misticismo protestante diviniza e abre o campo para a

aceitação desses valores que surgem como produto de revolta e desconfiança na lente das

redes de relações culturais predominantes, neste caso o catolicismo. Suas características

parecem indicar para um elemento mediador entre o conservador e o novo na experiência

religiosa que delineia: é íntimo e coletivo, é particular e social simultaneamente. A divulgação

da experiência mística na literatura é um traço coletivo, cabendo a sua vivência guardar os

elementos de singularidade. As formas de expressão de Bunyan, como as figuras de retórica e

metáforas, favorecem a comunicação das experiências religiosas místicas que desafiam as

regras da linguagem para sua transmissão e têm finalidades observáveis, conforme aponta

Borriello et al (2003 p. 641):

Em síntese pode-se dizer que as palavras dos místicos são em primeiro lugar, palavras fortemente transgressoras. Em segundo lugar, não são tanto palavras faladas quanto palavras falantes. Com efeito, em suas páginas deparamos com uma língua jovem, nascente, original, festiva, povoada de estrelas e inundada de mar. Em terceiro lugar, as palavras dos místicos em geral são mais faladas que escritas. Apresentam vazios e negligências, descontinuidade e tortuosidades, enfim, incidência ás vezes precipitada própria da palavra falada. Em quarto lugar, são palavras, por assim dizer clandestinas, no sentido de que na quase totalidade dos casos não nasceram para circular, nem para serem impressas e lidas por um público ocasional. Os místicos não escreveram para publicar, não eram escritores por profissão, em geral escreveram conta a vontade e com relutância.

Da perspectiva de Borriello et al. (2003) quando um escritor visa transmitir

experiências místicas, o faz de forma viva, fascinante e sintética, via de regra utilizando

figuras concretas e compreensíveis, uma vez que está transmitindo vivências. A ambivalência

e a multiplicidade de sentidos dessa forma de linguagem possibilita a expressão de desejo de

transcender realidade que cerca o autor, e aproximar-se do “outro mundo” vislumbrado. Isso

implica em abandonar as modalidades conhecidas de estar no mundo e buscar outros meios e

caminhos da existência, quer se considere, sua esfera social ou individual. A experiência

mística nesse sentido é possível à consciência em seu movimento de “tomada de consciência

de si mesma”. Nesse sentido a expressão da experiência mística, torna possível não só um

exercício de consciência como possibilita a atividade do sujeito ou do grupo, de tornar

presente para si, o que foi uma iniciativa do sagrado, e nesse sentido vivido passivamente.

Assim pode-se dizer que Bunyan, através de sua literatura expressiva do mistic ismo, torna a

experiência da predestinação acessível à consciência, enquanto peregrinação. No sentido

heideggeriano pode-se dizer que a peregrinar comporta um paralelo com a noção de existir

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(do latin exsitere, do grego ekstasis) significa dar um passo a frente, ir para fora ou ainda no

grego, êxtase, transe. Assim a existência surge enquanto horizonte de sentido e significado do

dasein. A peregrinação, do ponto de vista religioso seria esse movimento no tempo em relação

no qual novos sentidos são construídos para a existências, ou as relações intersubjetivas.

As visões54 e os sonhos parecem fazer parte dos estados místicos. Nestes eventos, a

ambigüidade da linguagem indica transitoriedade de estados e sentidos. Do estado de vigília

ao sono. De imagens do cotidiano, as imagens míticas, das intenções aos desejos. Da vida

mundana às utopias. Do real ao irreal. As visões e os sonhos podem demarcar a passagem do

profano ao sagrado. O encontro com a divindade geralmente ocorre em um cenário composto

por elementos paradisíacos que podem ser expressos na luminosidade, na música, na

imortalidade. Tempo e espaço são redimensionados. Isto cria cenários para mudanças de

atitudes sociais e pessoais. Surgem novas ações e possibilidades de sentidos. Deste modo

Bunyan faz uso desses elementos para caracterizar as aproximações de Christã à divindade e a

perspectiva de vida que começa a se delinear. Mãe, Christã conversa com os filhos e lhe

transmite o desejo de iniciar sua peregrinação, revelada a ela por Secreto, um mensageiro da

divindade. Os sonhos têm essa característica ambígua de habitar dois territórios temporais

simultaneamente. Ao mesmo tempo que representam a atemporalidade, podem caracterizar o

futuro, o passado ou o presente. Assim deixam a questão das origens de um personagem ou de

um evento situada e ao mesmo tempo difusa. O pensamento místico parece se alimentar desse

tipo de composição. Estar em contato com a divindade e seus mensageiros foge a lógica da

linguagem cotidiana e apela para sua transmissão dos elementos ambivalentes e ambíguos. A

imagem do Paraíso assim criada, entre o território humano e o divino, tem as propriedades

para gerar esperança e utopia, modificando e estado de terror.

Há que se perguntar que terror poderia ser esse referido à personagem, no início da

obra e de sua peregrinação. Através de uma visão histórica e sociológica pode-se interpretar

que as perseguições enfrentadas pelos cristãos, diante da sua pertença aos grupos que

praticavam a fé reformada pode ser uma possibilidade. Outras possibilidades: uma leitura

54 As visões fazem parte do processo de criação de ilusão psíquica. Não se discute sua veracidade ou não, uma vez que para o psiquismo integram sua realidade. O que caracteriza a ilusão é derivar-se dos desejos humanos, o que a aproxima da idéia delirante em psiquiatria, mas distingue-se dela devido a sua estrutura, que guarda maior fidelidade com os anseios sociais (Kaufmann, 1996, p.259)

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teológica pode-se sugerir que o tremor pode ser a consciência do estado de pecador no qual se

encontra o homem, anteriormente a conversão; do ponto de vista psicológico que o contato

com a angústia e a solidão da existência, diante da presença da morte fazem o homem tremer;

acercar-se da divindade também são acompanhados de estados de tremor. De certo modo

pode-se dizer que estas situações se relacionam com as aflições religiosas e o surgimento de

modalidades sagradas de transformá-las. Neste ponto é curioso citar que ao introduzir a obra

O Peregrino o autor esclarece que se trata de visões e sonhos55 que teve na prisão56 e que

transformou em literatura.

Sobre a lógica dos sonhos e dos delírios57 é importante atentar para algumas idéias de

pesquisadores do assunto no que tange a suas relações com a religião. Bodei (2003) escreve

que se tem fé no absurdo, porque o absurdo tem no fundo uma verdade que não é material,

mas histórica. Deste modo, sejam ilusões ou desilusões, há possibilidade de que se sustente

em uma lógica previsível, uma vez que não há fé sem luta, sem vontade firme de crer que se

reafirma após toda queda. Apoiado na visão da Psicanálise o autor de As Lógicas do Delírio

(2003) supõe que o assassinato do representante da autoridade, que é ao mesmo tempo amado

e odiado, gera um terrível sentimento de culpa, de quem dele participou. O remorso

compartilhado levaria o grupo a transformar o personagem assassinado em figura de

admiração, podendo chegar até a visão de um Deus. Neste caso, a mãe e seus filhos pelo

desprezo e maltrato infringido ao pai da família, tem que reparar a culpa. Não se trata de um

assassinato real, mas do que é realizado no campo simbólico através da recusa de valores

culturais difundidos pela autoridade vigente. Neste sentido o delírio cumpre o duplo papel, de

55 A idéia do artista que estava em vigor na época e que depois foi acentuada pelo romantismo alemão era de que pela intuição, pelo sonho, e pela magia que se entra em contato com a realidade verdadeira. Através dessas práticas a experiência misteriosa se transforma em obra de arte. O poeta é um sacerdote e sua filosofia o remete ao sagrado e ao milagre. (Lefèbvre, 1951) 56 A edição da obra O Peregrino utilizada para esta pesquisa fez parte do acervo da Biblioteca Evangélica do Brasil (situada em São Paulo) e foi editada pela Editora Leitor Cristão ( 1969). Consta de seu prefácio, que não está assinado, o seguinte comentário “Toda esta estória foi um sonho. Um sonho que acompanha um crente, chamado Cristão (...) João Bunyan foi inspirado a escrever “O Peregrino’(...) lá teve seu sonho imortal, as visões gloriosas. E as enfeixou em um livro. Nessas visões, parecia que se dissipava o cárcere miserável e ele se via subindo de degrau em degrau de uma escada que o levava Á Pátria Celeste. (...) Essas visões foram bem reais para ele. Tendo sido proibido de pregar a pequenos grupos e em lares humildes, até hoje continua pregando, através de seus livros, a milhões de criaturas, em sucessivas gerações “. (autor desconhecido. In Bunyan, J. 1969, p. 9:10)”. 57 Sobre os delírios é importante observar sob a ótica freudiana que nos estados psicóticos as transformações da percepção incidem sobre as representações anteriormente formuladas no contato com a realidade, isto é sobre os traços mnémicos, as representações, os julgamentos. A construção do delírio não é uma forma fechada, mas está em constante mudança de acordo com as novas percepções. (Kaufmann, 1996, p. 111-112) A noção relevante para a pesquisadora é a de reconstrução das representações das relações do eu com o mundo.

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lembrar o que foi feito, e de esquecer o desejado, ensejando disfarces na história, e

construindo os processos necessários a sua recorrência58. Com a Reforma, um sistema de

poder transforma-se em outro, um sistema religioso, observa o surgimento de outro, ao menos

na esperança dos fiéis que se aproximam dessa mentalidade. A morte da idéia de

homogeneidade religiosa, abre espaço para o pluralismo religioso que é uma das característica

do universo cultural das Américas, onde o paraíso se delineia em imaginário social. Ainda

sobre a questão da visão do paraíso e suas relações com o Protestantismo, Delumeau (2003)

nota que Lutero descreve a mudança das sensações coporais quando o homeme habitar o

paraíso. Sensações como brilho, leveza, mudanças de formacorporal farão parte do processo

de transfiguração humana.

Relato esse que se estende por toda uma construção do paraíso ao sabor de seu autor

que se expressa em detalhes como as emoções de alegria, a extinção das necessidades de

comer, beber, dormir e bichos que serão transfigurados como os humanos. De modo cotidiano

e informal, não semelhante ao que se pode encontrar em outras obras de Lutero, surgem

criações e imaginações sobre o Paraíso, típicas e estados de prazer, onde a dor e a necessidade

humana de lutar pela sobrevivência foram abolidas, junto com o pecado e o sofrimento. Essas

imagens do Paraíso parecem estar ao lado das crenças e das experiências religiosas místicas.

Delumeau (2003) ao tecer comentários sobre o texto de Bunyan diz que ela se tornou uma

Bíblia do povo. Sua origem está na imagística cavalheiresca, estimulando o fiel a sair da

Babilônia. No caminho para esta cidade estão o vale da sombra e o atoleiro de

desencorajamento. Cabe ao peregrino conseguir ultrapassar esses obstáculos e ao lado de

esperança, seguir em sonho através do vale da morte e do castelo das sombras, até chegar a

Cidade Celeste, uma espécie de Jerusalém. As características dessa Jerusalém foram pautadas

no Apocalipse. São peregrinos já visionários da luz dessa cidade, construída em ouro, cujo

brilho não permitia o olhar direto dos humanos. Encorajados para passar pela última prova de

seu caminho por dois seres resplandecentes, superam o medo e as lembranças de seus

pecados.

58 Diante do acima exposto pode-se indagar se há um processo de violência simbólica e que muitas vezes se manifestou em atos concretos na construção do projeto reformado de fé cristã? Foi o modelo Romano de fé que foi assassinado? Ou se trata ainda de processos de transformações culturais e sociais em curso no seio do próprio movimento protestante ?

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De outro ponto de vista, quando se discute o crescimento das cidades e do patrimônio

cultural, social, e político a elas relacionados, vale lembrar que na constituição do estado

nacional moderno é possível identificar modalidades de discurso sobre territórios e fronteiras,

geralmente como conflito e competição para representar a identidade e a memória da

coletividade em mutação. O patrimônio cultural abriga a história da comunidade, seus valores,

marcos de desenvolvimento, e projeção de futuro. Com o advento da modernidade e o

delineamento dos Estados nacionais, essa discussão deixa de ser parametrada pelos nobres,

pelo rei e pela Igreja, passando a ser considerada pelos indivíduos, já que são vistos pela

óptica da igualdade e da liberdade, independendo da relação social hierarquizada e autoritária

própria à Idade Média. Assim as guerras por território são indicativas desses processos de

expropriação e reapropriação de bens culturais e religiosos, que implicam processos de

temporalidade entre passado e presente, tradição e experiência, a narrativa e a realidade

contemporânea, conforme observa Reginaldo Santos Gonçalves (2002). As visões sobre a

cidade projetada por Bunyan, mostram que a experiência mística foi um elemento de criação

nas imagens da cidade celeste e da cidade terrena e da guerra entre elas, apontando para um

conflito no campo simbólico, político e religioso, que marca as transformações culturais da

modernidade.

De acordo com Delumeau (2003) a institucionalização do Protestantismo, promove

uma mudança no discurso de seus líderes, dos quais podemos citar Lutero, que muda as

preocupações escatológicas habituais, afirmando que o reino de Deus está dentro dos fiéis e

não perto deles. Exorta assim os fiéis que procurem o reino do céu e comecem por si mesmos

e não o procurem nem imaginem o paraíso externamente, ou seja, não vivam esperando o fim

dos tempos. O devir, torna-se então presente pela fé. Afirma que ver Deus na fé, é mais

importante que visão corporal, o que a torna indesejável, ou dispensável. Deste modo o fiel

interioriza as imagens escatológicas e deve desconfiar das imagens corporais de felicidade

celeste. Surge assim, a simplicidade dos costumes e vestimentas, ou é um tema e uma

proposta de comportamento religioso recorrente encontrado nos movimentos Cristãos antigos,

dos quais podemos localizar posturas e frases com as de Teresa de Lisieux e de Elisabeth da

Trindade59. Estas místicas, juntamente com Catarina de Siena confirmam o caráter

59 De acordo com Delumeau (2003, p.474: 455) pode-se encontrar muitas vozes no Cristianismo desde Orígenes que polemizou com os milenaristas que acreditavam que Jerusalém terrestre seria reedificada sobre pedras preciosas. O monge Nicetas de Sthétatos, no século XV opôs ao Éden histórico, um outro paraíso que é invisível e inteligível e que só pode ser percebido a partir do interior do homem. Já Angela de Foligno em suas

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absolutamente pessoal e inteligível externamente desses transportes ao além. Pode-se observar

que peregrinações apresentam-se como experiências religiosas cuja característica é um

contato com a divindade feito de modo direto, personalizado que em parte resiste à tradução

em linguagem padronizada pelas instituições. A noite descrita por São João da Cruz em Canto

de uma Alma que Conhece Deus pela Fé pode ser por esta ótica interpretado como uma

peregrinação para o interior do ser: Sei de uma fonte que brota e se derrama. Mas é no

profundo da noite (...) Conheço pela fé seu veio fresco e puro, mas é no profundo da noite

(...). O céu e a terra ali vão saciar-se, mas é no profundo da noite. (João da Cruz apud

Delumeau, 2003, p. 476).

O paraíso é experimentado pela alma que soube fechar os olhos para o mundo em

sua aparência externa, tal como na experiência mística. Neste sentido o Protestantismo em

seu movimento de expansão parece ter se utilizados das imagens exteriores do Paraíso, ou

da Cidade Celestial, como função de criação de um ícone, que conduzisse a divulgação de

sua mensagem, que no caso seria: fechar os olhos para o velho mundo e criar um novo

mundo, representando uma experiência religiosa direta com a divindade, que o habita. A

cidade celeste de Bunyam reflete essa idéia de um modelo a ser alcançado. Se do ponto de

vista da autonomia do sujeito da modernidade, o peregrino faz de seu corpo e de suas

atitudes o instrumento para atingir o paraíso, as cidades e o modo de vida americano,

seriam o correspondente social desse recurso. Assim há uma dupla utilização da imagem

no puritanismo, uma vez que o fiel santifica-se com suas atitudes e comportamentos

padrões cujos propósitos são a sua salvação individual e ao mesmo tempo cria a imagem

da sociedade articulada à institucionalização da religião.

Outra hipótese complementar a descrita no parágrafo anterior, é que havendo a

necessidade de distingüir-se do modelo cristão praticado por Roma, a leitura e os hábitos

modificassem ao menos parcialmente a forma da experiência mística praticada pelo

catolicismo. Essas modalidades compreendem modos e práticas religiosas interiorizados e

discretos aos olhos de outros, o que não quer dizer que não fossem intensos e tivessem as

mesmas qualidades que as experiências místicas que pudessem ser manifestas

exteriormente. Um mundo interior rico e impenetrável pelo outro parece estar mais de

confidências místicas, afirmava que enquanto estava em estado corporal de arrebatamento, Deus agia em sua alma, que nem um anjo poderia relatar.

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acordo com o advento da individualidade e do narcisismo, que são traços da modernidade

(Ianni, 2000). O advento da modernidade deixa disponível ao indivíduo a escolha da

experiência da religião singular ou institucionalizada. No segundo caso, o Puritanismo

visou a renovação da igreja, inovações ou redescobertas teológicas, novas dinâmicas

espirituais, novos padrões de comportamento e treinamento de líderes, e conseqüentemente

uma nova dinâmica espiritual.

O conceito de narcisismo se estende à instituição que cria uma imagem de si

mesma, possibilitando a integração da fé cristã com a vida cotidiana, isto é mundanizando

a fé, o que tornou necessário que se estabelecesse padrões rígidos de comportamento e

regras sociais, que garantissem a separação entre profano e sagrado, conforme observou

Eliade (1992). O elemento de purificação que está inscrito no nome deste movimento,

indica uma tentativa de separação dos elementos mundanos, dos que seriam o espaço

sagrado, e neste sentido, uma busca de uma linha divisória que separe a vacilação e a

dúvida na aproximação fé e mundo, promovendo um movimento de ascensão dessa idéia

(concepção) à verdade divina. Tal observação encontra sustentação nas idéias de Owens

(1992 p.146). Ao referir-se a experiência de Moisés e o fogo do arbusto, ou ainda a visão

de Pascal, que viu o fogo e a cruz ardente, Owens sustenta, que mesmo sendo apenas

projeções psicológicas, tais experiências tem um poder transformador dos símbolos e das

relações sociais na comunidade. Eliade (1992) esclarece que a imagem da árvore não é

escolhida apenas para representar o cosmos, mas também para exprimir a vida, juventude,

imortalidade, sapiência. O fogo da árvore a distingue das outras, conferindo- lhe seu caráter

místico.

A existência santificada conforme proposta pelo Puritanismo, ou seja, essa

concepção de homo religious é mais propriamente atribuída ao Cristianismo, afirma

Mircea Eliade (1992) e mais especificamente na modernidade baseia-se na educação e na

difusão de modelos nas culturas letradas, embora possam ser encontradas em outras

religiões como o Islamismo e o Zoroastrismo. Na Europa as populações agrícolas

integraram no cristianismo uma parte de sua herança religiosa pré-cristã, advindo dos

pastores nômades, dos caçadores totemistas e das populações no estágio da caça miúda e

da colheita. A situação social e existencial dos homens para quem a experiência religiosa é

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vivida e não simplesmente passível de ser representada, possui mais uma dimensão, além

da cósmica e humana, que é a trans-humana, observa Mircea Eliade, 1992, p.135:

Para o homem religioso (arcaico) o Cosmos vive e fala. A própria vida do Cosmos é uma prova de sua santidade, pois que ele foi criado pelos Deuses e os Deuses mostram-se aos homems através da vida cósmica. É por essa razão que, a partir de um certo estágio de cultura, o homem se concebe como um microcosmos. Faz parte da Criação dos Deuses; dito por outras palavras, ele reencontra em si mesmo a santidade que reconhece no Cosmos. Segue-se daí que a sua vida é homologada a vida cósmica: como obra divina, esta torna-se a imagem exemplar da existência humana. (...) a abertura para o mundo torna o homem religioso capaz de se conhecer conhecendo o mundo e esse conhecimento é lhe precioso porque é um conhecimento religioso, um conhecimento que se refere ao Ser. (Eliade, 1992, p. 135)

Na perspectiva de Eliade (1992) são variados os caminhos para a santificação da vida

para o homem religioso arcaico, mas o resultado é o mesmo: a vida é vivida em um duplo

plano, desenvolvendo-se tanto ao nível da existência humana e cotidiana, quanto de uma vida

trans-mundana, a do Cosmos ou dos Deuses. Assim as figuras dos heróis (Cristão, em

Bunyan) e modernamente os pastores simbolizam essa via de produção e construção de

relações sociais duplas: santificadas e profanas, diante das quais a experiência mística como

proposta no puritanismo parece desempenhar um papel integrador: diviniza o homem e

humaniza Deus.

3.3 Sonhos, Fé e Imaginação

As visões e sonhos visadas nesse capítulo são vistas como tentativas de John

Bunyan, para que o leitor compartilhe, ou ao menos vislumbre um universo simbólico

capaz de transformar suas ações sociais e comportamentos, reorganizando seu modo de

viver. Nesse sentido, a experiência religiosa na qual surgem os sentimento de esperança e

alegria, não deixam de ser uma espécie de êxtase, real ou imaginariamente visado. Veja-se

a esse respeito, mais um trecho da obra de Bunyan O Peregrino ( 1969, 72: 74):

Viram dois seres resplandecentes, que lhe disseram: Vinde. Cada um dos seres deu o seu braço a um peregrino, e dessa maneira, subir a montanha foi fácil. Cheios de ânimo, diziam os peregrinos admirados: _ “agora vemos a glória e formosura inefáveis. Eis ali o monte Sião e a Jerusalém celestial”. E os seres resplandecentes ajuntaram: _ “ quando entrardes na cidade, recebereis vestiduras brancas, e vossa comunhão com o Rei será por toda a eternidade” (...)”Que

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faremos no lugar santo?” – “Alí serão consolados de todo o vosso trabalho, e vossas tristezas se tornarão em gozo. Colhereis o que tendes semeado, até mesmo o fruto de todas as vossas orações, lágrimas e sofrimentos porque passaste durante todo o caminho, por amor ao Reis. Recebereis coroas de ouro e gozareis de visões perpétuas Daquele que é o Santo – pois ali O vereis como Ele é. E também o servireis continuamente, com louvores e ações de graças, prestados Àquele que desejastes no mundo”.

Nessa visão da Cidade Celestial, os males e as dores da existênc ia são anulados60,

ocorrendo a fusão com o sagrado que consola as infelicidades anteriormente vividas. Parece

uma visão de imersão no espaço sagrado onde o tempo é eterno e há uma intensa comunhão

com Deus, promovendo a crença nas benesses do sagrado. A criação dessas imagens é uma

afirmativa do Paraíso e de como é possível alcançá-lo através de uma peregrinação, onde as

dificuldades são os obstáculos a serem vencidos, para se chegar ao êxtase eterno. Visualizá- la

além de gerar um imaginário socialmente compartilhado pelos leitores, é tanto a realização

fantasiosa de um desejo, quanto uma promessa de satisfação no devir. Presente e futuro de

unem em uma mesma dimensão temporal.

A essa altura do texto, vale lembrar que segundo a Psicanálise, os sonhos diurnos

partilham de várias características comuns ao sonho noturno, como por exemplo: a realização

de desejos, assentam-se nas impressões retidas do contato com o meio ambiente, beneficiam-

se da indulgência da censura, “descarregam” as angústias do sonhador, sugerem soluções aos

conflitos. A diferença reside que nos sonhos diurnos a atividade da consciência se mostra

diferenciada, no sentido de usar as faculdades de atenção, memória, figuração, linguagem de

forma a fazer correspondência com a realidade, o que não ocorre nos sonhos noturnos. Além

disso, as formas, bem como a linguagem não se apresentam submetidas aos processos de

deformação, podendo a representação ter similaridades significativas com a percepção do

contexto sócio-cultural no qual se encontra o sonhador. Segundo Laplanche e Pontalis (1977,

p.635) quando se examina a estrutura dos sonhos diurnos, percebe-se que o motivo do desejo

60 De acordo com Bucke (1992, p. 88) o termo Nirvana se aplica a extinção das faculdades mentais inferiores que se relacionam ao sentimento de pecado, o medo da morte, o desejo de riqueza. Há então uma morte simbólica, que dá lugar a uma nova condição e a criação do novo. Jesus teria chamado esse novo estado de Reino de Deus ou Reino dos Céus o que pode ser atribuído a paz e a felicidade e que constituem seus traços mais importantes. São Paulo a chamou de “Cristo” e chamou-se a si mesmo de “um homem em Cristo” e aqueles que o seguem dos que “estão em Cristo”. Também os chama de “o Espírito” ou ainda de “o Espírito de Deus”.Quem assim vive alcançou a consciência cósmica, e vivia a vida de Jesus que representava um outro modelo de individualidade, um outro ser, com quem estava fusionado. Deste modo o homem cotidiano tem uma dupla consciência: a de si mesmo no mundo e a consciência cósmica, ou a unida a Deus. Esta é vivida de modo secreto e íntimo, podendo em certos casos ser compartilhada socialmente. No caso do romance de Bunyan, pode-se pensar que o personagem Secreto poderia representar a presença dessa consciência, ou o seu chamado.

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que atua na sua produção misturou o material de que são construídos, alterou- lhe a ordem,

para constituir um novo conjunto “que poderia ser chamado de fantasia criativa”. De acordo

com Maurice Dayan (1996) os sonhos são expressos geralmente no pretérito, referindo-se ao

tempo que já passou. Já quando a expressão é empregada no presente o sentido de refere mais

aos “sonhos diurnos”, ou seja, os que acontecem ao sonhador no estado de vigília, tratando-se

geralmente de uma fantasia ou um desejo consciente enquanto utopia. Esse último termo

pode ser entendido pelo sonhador e seu grupo como ilusão, desejo, devaneio. A afetividade

presente nesses sonhos confere um sentido de realidade, diferente da expressão do

pensamento, cuja lógica é passível de questionamento. De certo modo, a emoção pode ser

censurada, mas não pode ser negada em sua natureza o que lhe dá propriedades de veracizar

uma representação ao sonhador.

Aldous Huxley (1982) explica que no misticismo visionário há um componente

comum nas suas formas, que é a luz61. Distingue dois tipos de luminosidade: diferenciada e

indiferenciada. A primeira contorna ou envolve objeto, paisagens, ou pessoas. Costumam

acompanhar a constituição das imagens do paraíso, ou o sinal de sua proximidade, incluindo

as cenas com o fogo, e estão presentes em todas as tradições religiosas do mundo. As figuras

visionárias geralmente são rostos estranhos, indicando sua origem relacionada ao sagrado, e

diferenciando-as dos demais humanos que possam estar presentes na sociedade. A experiência

de luminosidade que é indiferenciada inunda a totalidade da cena, sendo indicativa de uma

experiência mística total. Caracteriza-se por transcender a relação sujeito-objeto, havendo um

sentimento de total solidariedade com os outros seres humanos e com o universo de maneira

geral. Surge também um sentimento de gratidão pelo privilégio de estar vivo em um universo

extraordinário e maravilhoso em seu conjunto. Um exemplo comparável é a experiência

luminosa de São Paulo na rota de Damasco, mas pode ocorrer com qualquer pessoa no seu

cotidiano.

A experiência mística visionária pode ser um dos elementos compreensivos da

passagem da uma religiosidade interior à uma prática ética social e individual provocadora de

transformações sociais; ou o contrário: a impossibilidade da vivência de um pedacinho de

paraíso na terra, conduzindo a uma radicalização da individualidade e da alienação do mundo

61 Aldous Huxley (1992) cita que existe a luz boa e a luz má. Como exemplo dessa última pode-se lembrar que na obra O Paraíso Perdido de Milton há a iluminação do inferno, também chamada de escuridão visível. Outro exemplo é a luz sinistra e ainda o negro dos pesadelos e das visões dos esquizofrênicos (p.73:74).

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social. Neste sentido torna-se cabível pensar que esse tipo de obra propaga o misticismo

protestante clássico,não com exclusividade, que Mendonça (1998, p.10) diz tratar-se de uma

experiência individual ou em pequenos grupos que tem como característica fundamental, três

elementos: ocorre na borda das instituições, geralmente prática uma ética conflitante com a

realidade, e é encontrável em uma literatura que é ao mesmo tempo cognoscitiva, curativa e

exemplar. Afirma ainda esse autor que como todo misticismo é contrario aos dogmas e

instituições, que não são vistos como fundamentais para se viver a fé no mundo.

O espaço intelectual e religioso dos místicos protestantes conforme afirma Mendonça

(1998) embora constituído de um vasto e polimorfo espectro, pode ser descrito a partir do

cotidiano, do espaço de vida. Trata-se de assumir o risco de vivê-lo no dia-a-dia, correndo os

enfrentando os riscos necessários para tal, assim como se encontra no trecho da obra na qual

Christã e os demais personagens chegam ao Desfiladeiro da Dificuldade e são levados

próximos da Fonte que se encontrava nas redondezas. Surge nessa parte do enredo O Grande

Coração que guia o grupo, observando que a água boa e cristalina, ficou turva por causa dos

pés de algumas pessoas que não gostam que os peregrinos matem a sede. E aconselha o

grupo a colocar a água no copo para que o pó se assente e que ela fique transparente. Em

seguida o guia aponta os atalhos no fundo do desfiladeiro, onde “Formalista” e “Hypocrisia”

se perderam.

Estes caminhos, disse, são perigosos. Dois homens perderam aqui a vida (...) o que me admira é que possam entrar por aquelles caminhos sem quebrar a cerviz” (...) se alguém os chama para avisar que estão em caminhos maus e perigosos, respondem com galhofas e dizem: a palavra que nos fallaste em nome do Senhor não ouvimos de ti; antes queremos pôr por obra a palavra que saiu da nossa boca.(...) Além daquellas correntes e barranco, tapou-se a passagem com uma sebe. Ainda assim, teimam em passar. Antes querem andar em armadilhas do que subir esta encosta e andar o resto do caminho que conduz ao céu ( 1915, p. 53).

Esse trecho aponta para desvios do caminho que deveria ser seguido pela peregrina

para ser considerada cristã. Faz-se menção clara aos processos de mascaramento nas relações

sociais, bem como a sua formalização. Podem estar apontando para os processos compatíveis

com a institucionalização da religião. Segundo Rubem Alves (1979, p. 87), é possível

estabelecer uma relação entre a obra O Peregrino e o quadro “os dois caminhos”, ícone do

movimento protestante. Em ambos o homem é posto como estranho na terra e sua pátria é o

céu. Os dois caminhos são possibilidades de escolhas, que estão em oposição. Assim como

empreender ou não a viagem para a Cidade Celestial ou seguir na cidade da Destruição. O

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primeiro conduziria a Deus (Rei), sendo o Puritanismo o mapa para a chegada. O segundo é

um desvio do primeiro através da escolha sustentada pelas vaidades. Nos escritos de Freud, de

1914, o narcisismo, é uma forma de prazer, especialmente desenvolvida na modernidade,

onde o homem toma a si mesmo como um objeto de amor. O espelho que aponta para a rota

das vaidades é construído por valores sociais, especialmente herdados pelas gerações

passadas, cuja realização de desejos de viu obstaculizada e demanda assim à posteridade essa

satisfação. Dessa maneira, uma geração projeta na outra a esperança de sua continuidade, de

sua realização, ou de sua morte. O acordo para o conflito entre a realização do desejo ou sua

postergação, pode ocorrer através da moral e dos costumes, considerados relevantes para um

grupo. O modelo narcísico do grupo aponta para o devir do comportamento de seus

integrantes e aqueles que dele se afastam pagam o preço, através da exclusão. Destruir-se ou

encontrar o paraíso, através da escolha de atitudes, é uma ótica possível para abordar as

representações alegoricamente escritas nesse trecho. Neste sentido as regras do

comportamento religioso, parecem estabelecer um padrão grupal e social, enquanto a teologia

liberal estimula simultaneamente experiências religiosas singulares, nas quais um certo tipo

de misticismo pode habitar. Enquanto se trata de comportamentos sociais ascéticos, há a

prática de um certo humanismo, mas quando se trata de ir ao encontro de Deus, é necessário

um busca solitária e íntima do indivíduo 62, consigo mesmo63.

Na contemplação e no entendimento dos valores enunciados imageticamente, o

Protestantismo bunyano exalta a subjetividade, embora relacionado-a com o modo de ser

social onde são feitas as opções que conduzem a atitudes e práticas religiosas ou não. É no

mundo que está a possibilidade de uma vida que segue valores puritanos que condenam certos

tipos de prazer, especialmente os sexuais. Pode-se pensar que é uma escolha entre formas de

prazer: o imediato ou o mediato. O mediato segue os ditames da imaginação e dos valores

propostos pelo novo movimento religioso que se tece. As escolhas dos peregrinos diante de

62 Segundo Bucke (1992) em sua obra Cosmic Consciousness a individualidade, é uma pré condição para o desenvolvimento da consciência cósmica, o que implica em uma formação ética e educativa. As características de uma consciência cósmica são: a luz subjetiva, elevação moral, iluminação intelectual, sentido de imortalidade, perda do medo da morte, perda do sentimento de pecado, prontidão para o despertar, atração por relações com outros homens e mulheres com afinidades por esse tipo de consciência. São pré-requisitos para a consciência cósmica: o caráter intelectual, moral e físico do homem, que se desenvolve no seu cotidiano, não de forma excepcional, mas o suficiente para que isso ocorra. Trata-se de um certo modo de viver que propicia o alcance da experiência cósmica. 63 Huxley (19--?), p. 85) afirma que a definição teológica de uma visão, incluindo as experiências místicas, é vista como uma “graça gratuita”. No caso de uma atitude de colaboração do(s) visionário(s) para com ela, geralmente ocorrem modificações nas relações sociais e na visão de mundo. São atribuídos significados profundos a suas imagens o que promove modificações de significados das condutas sociais.

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cada tentação mundana indicam a utilização da razão que habita a temporalidade do presente,

mas conduz-se por uma porta que se abre desde o futuro iluminado pelas relações com a fé. É

uma fé que se formataria pelo Iluminismo, como “luz interior”, desenhando-se mais um

modelo de em mística protestante: a mística da razão.

Um outro ponto de vista que permite a abordagem da obra, na direção pretendida pela

pesquisadora, é o que trata da fé como imaginação. Fowler (1992, p. 32) esclarece que a fé,

enquanto imaginação, apreende as condições últimas da existência, unificando-as em uma

imagem abrangente, que modelas as respostas comportamentais, bem como atitudes,

iniciativas, refletindo assim formas de interação com as forças sociais vigentes. A fé pode ser

vista como um processo dinâmico, nascente de movimentos interativos, com pessoas,

instituições, eventos que formam o estofo da vida social. A observação das formas

imaginativas, criadas pelo processo humano de experiência da fé, permite analisar processos

sociais que se dão em certas situações contextuais, bem como detectar sua natureza e

representatividade da dinâmica social em curso. Acrescenta ainda Fowler (1992) que a

palavra imaginação remete ao poder de integrar em uma unidade, elementos diversos,

conflitivos e contraditórios. Deste modo traços históricos e imagens do futuro, entram em

ressonância possibilitando organização e relações com os sentimentos. Essa ótica permite a

visão do ambiente social, como “ambiente ideal”, ou seja, utópico e ao mesmo tempo como

retrato das condições sociais presentes em um dado contexto. Partindo da idéia que as

imagens da fé se relacionam com formas comunitárias de expressão social, torna-se possível

traçar algumas considerações sobre as ações dos personagens de Bunyan:

Caminhava João Bunyan por um lugar desértico, certo dia, quando, avistando uma árvore frondosa cuja sombra refrescante convidava ao repouso, resolveu descansar um pouco. No sonho viu um homem mal vestido, tendo nas costas pesada carga. Chamava-se Cristão. Bunyan reparou então que o homem trazia um livro na mão, que lia à medida que caminhava. E exclamava com desespero: _ “Que hei de fazer?”. Neste estado de animo Cristão voltou a sua casa tentando conter sua aflição diante da esposa, mas não pode dissimulá-la. Abriu o coração e disse: _ “ Querida esposa, filhos do coração, não posso resistir por mais tempo ao peso deste fardo que me esmaga Sei que a cidade em que habitamos vai ser consumida pelo fogo de céu, e que todos pereceremos em tão horrível catástrofe se não encontrarmos meio de escapar (...) Encontra então Evangelista que lhe dá um rolo de pergaminho no qual estava escrito: “Fugi da ira vindoura” e apontando um vasto campo disse: _ “Não estás vendo aquela porta. Não percas de vista aquela luz e dirige-te diretamente para ela. Quando bateres, alguém te dirá o que te convém fazer “. Bunyan (p.15-16).

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No trecho que se segue Cristão encontra dois personagens, Vacilante e Obstinado que

questionam sua crença na veracidade do livro que carrega. A resposta vem de imediato,

afirmando que para desfrutar dos prazeres do reino de Deus a condição é a seguinte: “Se

verdadeiramente desejamos essas bênçãos, Ele no- las concederá de graça” (Bunyan p. 20)

Caminhando sozinho, Cristão encontra o personagem Sábio-Segundo-o-Mundo, que lhe

aconselha a ir procurar um homem chamado Legalidade para se aliviar do fardo de culpa,

dúvida, temores e apreensões que lhe oprime as costas. O filho de Legalidade que era

Urbanidade, também seria encontrado na cidade, cujo acesso por um caminho montanhoso e

íngreme, constituíam um desvio para Cris tão. Então ouve uma voz conhecida, vinda de

Evangelista que lhe disse, (p. 26): “o homem justo viverá pela fé, e se retroceder, nele não se

compraz a minha alma”(Hb 12, 25 e 10,38).Evangelista ainda esclarece para Cristão que o

caminho que ele deve seguir é o mesmo por onde passaram os profetas, os patriarcas e os

apóstolos, de vendo prosseguir então em direção a casa de Interprete que lhe diria coisas úteis

e excelentes.

As imagens da fé parecem relacionar-se com o desejo de encontrar a divindade, que

tem o poder de promover uma transformação de estados de pecado, para estados de bem estar,

de estados de sofrimento e injustiça, para os de saúde e justiça. Assim, a cidade da Destruição

o locus onde as relações humanas e as condições de vida são promotoras do mal. Há

referência clara a legalidade como um processo herdeiro da urbanização, indicando as

modificações sociais do meio rural ao urbano. As imagens ilustrativas do livro mostram uma

paisagem típica do campo com árvores, montanhas, caminho de terra. Os poucos elementos

mobiliários que surgem são rústicos, assim como a vestimenta é simples e sem adornos.

Em várias cenas os personagens aparecem no interior de ambientes, descalços, com

roupas rasgadas e cercados de objetos como vassoura, peneira, cuias, jarros de barro pouco

trabalhados. Esses aspectos indicam que Cristão era um personagem do meio rural, em

contato com o meio urbano, implicado nos processo de mudanças sociais correspondentes.

Surge a perspectiva de destruição da cidade pelo fogo, exterminando as práticas sociais

geradoras de sofrimento, exclusão e falta de identidade. Tais processos expressam as aflições

vividas pelo personagem e o preço pago para habitar a cidade da Destruição: teria que adotar

as práticas cotidianas dos personagens de quem fugiu ao longo do seu caminho: (Paixão)

paixão e prazer em gastar dinheiro; (Enjaulado) enjaular ao desânimo e a melancolia de quem

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ofendera a Palavra de Deus e o Espírito Santo; Preguiçoso que só queria descansar;

Desconfiado, que colocava tudo em dúvida e Tímido, que se encolhia e tinha falta de

iniciativa. Estes últimos personagens parecem se relacionar com as práticas capitalistas

nascentes e as atitudes humanas e sociais que a ela se associam, bem como a melancolia por

um sistema social que se transformava, do mundo rural ao mundo urbano. A referência aos

personagens Bíblicos importantes, parece oferecer ao fiel confiabilidade nos ensinamentos do

livro sagrado e segurança de sua escolha, estimulando a persistência no encontro com

personagens como Dificuldade e a Morte.

Vacilante e Obstinado64 parecem representar dois tipos de atitudes diante das escolhas

religiosas, que se mostravam como matrizes culturais aparentemente diferenciadas:

catolicismo e protestantismo. O problema da identidade e da diferença, afirma Stein (2001)

coloca uma das interrogações mais decisivas não só do ponto de vista filosófico, mas de

forma mais abrangente para a cultura. A facticidade da vida chega a um ponto crucial, quando

o homem se depara com a possibilidade da morte. Aqui nasce a necessidade de construção e

apropriação do signo do ser. Stein (2001) esclarece que a identidade é vista pelo filósofo da

modernidade Martin Heidegger, como a afirmação da finitude, uma vez que é indicativa de

escolhas diante da morte. Assim identidade e diferença se co-produzem no pensamento

heideggeriano, na medida em que se aproximam o homem da sua intuição original de a-

letheia. Esse gesto de produção cultural é observável na articulação entre o novo e o arcaico,

presentes na educação informal que orienta e revigora os comportamentos, crenças e valores,

vindos de uma literatura popular, representativo de sua espontaneidade. Desse modo a

identidade do Protestantismo, uma vez que se difunde pelas camadas populares é a criação de

uma forma de representação desse processo, que articule vida religiosa e letra.

Nos estudos de especialistas em cultura popular como Antônio Candido (1965) e Eclea

Bosi (1973) encontram-se alguns esclarecimentos desse processo. Para Cândido os autores

literários que se inserem em sociedades menos diferenciadas, via de regra se encontram em

contato mais direto com a população, escrevendo em uma linguagem, que representa seu 64 A título de comentário apresenta-se idéias da Psicologia Social que mostram que diante de mudanças sociais, uma das formas de reação do grupo é manter a atitude de oscilação entre os valores conservadores e os valores inovadores ou ainda de agarrar-se ao padrão antigo de comportamento como modalidades de resistência ao novo, que provoca insegurança e medo. As idéias de Melanie Klein aplicadas a leitura dos processos sociais desenvolvidas por Jose Bleger (1987), mostram que em todo grupo humano há ansiedades relacionadas a mudança, manifestando-se entre outros meios como vacilação e obstinação, características das atitudes obsessivas, que no plano social, buscam ancoradouros na construção de rituais culturais e padrões religiosos.

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modo de vida, pois se trata ainda de um grupo. Já nas sociedades permeadas pelos processos

de modernidade, o público é um conjunto informe, sem estrutura estável, reunindo-se

esporadicamente para uma tarefa qualquer, distanciando-se do criador. Nos processos de

urbanização, há um desfazer dos ritos e dos sistemas simbólicos ligados à vivência

comunitária, o que é representado pelo criador como uma morte cultural, ou de um segmento

de valores que sustentaram um período histórico. A ambivalência própria desse processo,

dada a emergência da sobrevivência, geralmente os personagens heróicos indicam uma nova

possibilidade sociocultural, ou uma reatualização. Essa reelaboração constante dos temas

populares, relacionadas a opressão, as aspirações da satisfação das necessidades e a

compensação pelos sofrimentos são característicos desse tipo de literatura. Comparada a

cultura de massa das religiões da modernidade mais avançada, nas qual se cria moda, a cultura

popular tem raízes nas vivências cotidianas do homem de rua as situações sociais que as

sustentam, afirma Bosi (1973). Nos textos bunyanos, uma vez parametrados nessas idéias

pode-se encontrar muitos dos elementos de cultura popular, todavia, sua forma de colocar o

herói como um modelo, baseado no espelhamento com personagens Bíblicos, indicam já os

processos de cultura de massa, na qual o criador gera a criatura padrão. A linguagem figurada

mostra já que a letra propriamente dita, abre espaço a imagem, como um ícones protestantes.

Assim, nasce um misticismo produzido na construção do carisma dos heróis bíblicos, que

desenham o puritanismo, como modo expansionista de protestantismo.

A natureza 65, conforme representada pelas relações sociais no mundo rural, parece ser

a morada da divindade, cujo encantamento, beleza e luminosidade, são os indícios do sagrado.

No romance de Bunyan, tal experiência parece estar ainda preservada, e um dos sentidos

atribuídos ao caos parece ser a perda deste significado, sobretudo nos modelos de

comportamentos sociais não éticos construídos nos personagens com os quais Cristão tem que

lutar. De acordo com Eliade (1992) instalar-se em um território, construir uma morada é uma

decisão vital tanto para o grupo, como para o indivíduo. Pois trata-se de assumir a criação do

mundo em que se escolheu habitar. Quando um território vivido como sagrado, é

secularizado, outro tem que lhe suceder como depositário desse valor. Por isso, é necessário

ao menos no imaginário individual e coletivo que se imite a obra dos Deuses, a cosmogonia.

65 Na obra de Mircea Eliade (1992, p. 127) encontra-se comentários sobre a visão da natureza pelo homem religioso, para o qual o encantamento é um elemento significativo. A experiência da natureza dessacralizada é um processo recente, presente aos grupos sociais na modernidade, especialmente presente nos processos das descobertas científicas. Para os demais, a natureza encontra-se relacionada ao mistério, a majestade, a presença divina e suas forças em ação.

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Essas podem ser violentas, sangrentas e o homem tem de imitá- las, fazendo sacrifícios66

pessoais ou coletivos. Portanto, o fogo, um dos elementos místicos envolvidos na destruição,

e na iluminação67, que se dá na passagem do sagrado ao profano vice-versa. A crise vivida por

Cristão parece relacionar-se com a percepção de que a existência aberta68 do homem rural, no

qual natureza e modo de vida cotidiano coabitavam harmoniosamente, não pode mais existir

ao menos do mesmo modo como o fizera até então. O homem rural, nunca está sozinho, pois

vivia nele parte do mundo sagrado, isto é se relacionava naturalmente com ele. Portanto, é

necessária a geração de novas imagens de um lugar habitável, do percurso a ser feito nessa

direção, e dos sacrifícios necessários para a construção de um novo espaço sagrado.

Seguindo as idéias de Eliade (1992, p. 141:142) o homem religioso traça uma

correspondência entre corpo-casa-cosmos. Como cosmos, o corpo é uma situação, um sistema

de condicionamentos que se assume. Como casa, é o lugar da instalação do que está

predestinado. Seu comportamento neste sentido integra-se a ritmos, que constituem um

mundo e definem um universo. Tem-se nessa tríade69, uma relação privilegiada, que indica a

passagem para um outro mundo. Essa passagem pode estar simbolizada, na obra de Bunyan

pela porta iluminada, que liga um mundo a outro. Há uma abertura, que permite ao homem,

uma vez tendo nascido fisicamente, nascer para a vida espiritual, conforme o sentido preciso

dado nos rituais e simbolismos religiosos. A abertura significa a possibilidade de ascensão, ou

do encontro com a divindade e também o desejo de transcendência. A porta estrita indica uma

passagem trabalhosa, ou perigosa, e por essa razão está cercada de rituais e costumes que

precedeu o seu acesso. De acordo com Eliade (1992, p. 148):

A iniciação, como a morte, o êxtase místico, o conhecimento absoluto, a fé (no judaismo-cristianismo), eqüivale a uma passagem de um modo de ser a outro e opera uma verdadeira mutação ontológica. Para sugerir essa passagem paradoxal

66 A questão do sacrifício pode ser estudada através da obra de Marcel Mauss e Hubert, H. (1999) para os quais as diversas modalidades de sacrifício consistem em estabelecer um comunicação entre o mundo sagrado e o profano por intermédio de uma vítima, isto é uma coisa a ser destruída no decurso de uma cerimônia (p. 223). 67 De acordo com Eliade (1992, p.131) um grande número de mitologias é de estrutura solar, sendo o herói assimilado ao sol e lutando contra as trevas, que desce ao reino da morte e sai vitorioso. As trevas são a oposição à vida, às formas e à inteligência. Sol e inteligência são intimamente relacionados desde as Teologias Solares e Sincretistas do fim da Antiguidade. 68 Eliade (1992, p. 136) fala que o homem religiosus, ou das sociedades arcaicas, tem uma situação existencial, na qual o mundo vive nele, não estando separado em idéia e existência. Os significados da vida são sempre cósmicos, não sendo limitados apenas aos modos de ser humano. Nunca está só, pois o mundo vive nele. 69 Segundo Eliade (1992, p. 142) a relação entre o corpo e o cosmos pode ser exemplificada no exemplo do olho da cúpula, que está nas tradições arquitetônicas, o que pode ser visto especialmente no misticismo indiano, descrito na obra Symbolism of de Dome , de Ananda K. Coomaraswamy, Indian Historica Quartely, XIV, 1938, p. 1: 56.

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(pois implica sempre uma rotura e j m transcendência) as diversas tradições religiosas utilizaram abundantemente o simbolismo da ponte perigosa ou da porta estreita.(...) É sempre por esta ponte que passam os místicos em sua viagem extática para o Céu. (...) A Visão de São Paulo mostra-nos uma ponte estrita como um fio de cabelo, que liga nosso mundo ao Paraíso. (...) Tal como nas tradições cristãs, os pecadores, incapazes de atravessá-la são precipitados no inferno.

Quanto ao caminho e a marcha são também factíveis de serem transfigurados em

valores religiosos, uma vez que possa significar o caminho da vida e toda marcha uma

peregrinação para o centro do mundo. Se o modus vivendis faz do corpo e da casa uma

experiência da separação do sagrado, então há que renunciar a eles. Nessas condições os

peregrinos e ascetas proclamam através de sua marcha e seu movimento o desejo de sair de

um mundo insatisfatório, mesmo que isso implique em deixar o mundo familiar, econômico,

social, tal como ele se encontra. A marcha significa ir ao centro, como o encontro com a

verdade suprema, que é o Deus oculto ou o Deus absconditus. Neste sentido a peregrinação

pode constituir-se como um rito de passagem, segundo Eliade (1992, p.152), proporcionado

ao homem imitar os deuses, ou um comportamento cujo modelo é sobre-humano, indicando a

busca da realização de um ideal religioso de humanidade, onde estão as sementes dos

processos éticos elaborados nas sociedades do mundo moderno. A iniciação comporta uma

tripla revelação: a do sagrado, da morte, e da sexualidade. O iniciado é aquele que conhece,

ou visa conhecer os mistérios, aprendendo durante a peregrinação os segredos sagrados, os

mitos relativos aos deuses e os da origem do mundo, seu nome, papel, a origem dos

instrumentos e rituais utilizados nas cerimônias. A morte significa nesse contexto a superação

de uma condição profana, não santificada, que ignora o sagrado e está cego para a

espiritualidade. Assim, o ritual de iniciação70 torna o homem consciente de sua faceta sagrada,

e o faz pecador e culpado, quando dela se afasta.

3.4 Misticismo e Protesto Social

70 Segundo Eliade (1992, p. 161: 163) através do segundo nascimento, ou nascimento espiritual, o sacrificante visa atingir após a morte, o Céu, ou a morada dos deuses. Para tal, o sacrificante deve ser previamente consagrado pelos sacerdotes. Geralmente esse processo ocorre dentro de um sistema simbólico que remete a um regresso uterino, onde a água implicava em purificação e acesso ao novo conhecimento. É neste sentido que Sócrates comparava-se a uma parteira que auxiliava o homem a nascer para uma nova consciência de si, dando origem a um “homem-novo”. Este sistema simbólico esta presente nas práticas místicas do hinduismo, do budismo e na Grécia antiga. Em Buda, há a idéia de que é pela audição da doutrina, que a iniciação se dá, produzindo o conhecimento supremo revelado pelo Dharma.

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Torna-se possível tecer considerações de como o misticismo pode ser visto como uma

estratégia de protesto social. Essa relação é feita por vários sociólogos71, entre os quais está

Lewis (1971, in Terrin, 1998). A hipótese principal é de que essas experiências religiosas são

formas de denuncia, ataque e protestos dos indivíduos oprimidos e desiludidos com a vida

social e a cultura. Viver transes e êxtases em suas modalidades visíveis ou imaginárias é estar

durante certo tempo fora dos controles de padronizações culturais vigentes. É importante

esclarecer qual o sentido dado aos termos transe e êxtase72. Embora muitos autores usem esses

conceitos de forma equivalente, a fenomenologia através do ponto de vista descritivo

estabelece algumas diferenças. O êxtase é uma experiência associada a uma certa meditação,

silêncio e ao recolhimento das forças psíquicas e espirituais havendo uma certa exclusão do

mundo circundante. Geralmente comporta uma visão de conteúdo religioso73. O transe é um

fenômeno onde há movimentos, rumor, presença de outras pessoas, crise de personalidade e

estímulos sensoriais tais como drogas, músicas, danças. Há geralmente amnésia e ausência de

alucinações. Pode-se pensar que o imaginário presente na construção da experiência mística,

mantém seu poder calcado no mistério, que cerca sua compreensão. Assim os sentidos das

manifestações místicas não são precisos, não se sabendo se são projeções de mundos

desconhecidos, espelhos de realidades nunca vistas, frutos de um dejávu imaginário ou

ilusório, ou se são de fato um encontro com o sobrenatural74. Terrin (1998, p.115) considera

ainda uma convergência de vários significados.

Configurando novas formas de experiência do sagrado, minorias religiosas

marginalizadas criam um refugio, uma fuga da realidade social e cultural. Além disso,

beneficiam-se da idéia presente nas diferentes culturas, de que os fracos têm como patrimônio

um poder mágico. Atraem novos fieis com maneiras diferenciadas de se relacionar com o

sagrado que estão associadas a constituição de outra identidade social e de novas formas de

exercício do poder. Os movimentos místicos anteriores a Bunyan, mas acessíveis enquanto

informação de usa existência e de seus efeitos, forma descritos de forma ampla por Norman 71 Segundo Terrin (1998, p. 136) pode-se associar as diversas teses sociológicas entre si: as de Bastide (1972, 1979), de Rasmussem (1925) ao estudar o vudu haitiano, as de Metraux (1971) que ao ser ver são teorias filogramiscianas. 72 Sigmund Freud nomeia estes fenômenos de modificações obscuras da vida da alma em seu texto O Mal Estar da Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997. 73 De acordo com o antropólogo americano Bourguignon (apud Terrim, 1998, p. 121) pode-se chamar de efeito trofotrópico a unio mystica de mística cristã e também o produto de oração , o satori do budismo zen, o samadhi dos iogues, o fana que é o aniquilamento em Deus buscado pelos místicos sufistas. 74 Terrin (1998) cita que em 1882 criou-se em Londres a primeira Society of Psychical Reserarch e em 1976 um comitê americano chamado Comitee for Sicentífic Investigation of Claims of Paranormal que realizam estudos e publicações na área.

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Cohn (1980), sendo muito semelhantes aos movimentos moravianos. Ao retratar a condição

do camponês da Idade Média, Cohn (1980) aponta que a vida tradicional na terra não havia

criado um estado de abundância mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, de modos que a

vida nunca deixou de ser uma rude batalha, não obstante o desenvolvimento das técnicas

agrícolas. A vida camponesa era modelada e sustentada pelo costume e pela rotina sendo um

ponto difícil de ultrapassar. Em todas as aldeias eram escassas as comunicações e uma má

colheita significava fome para as massas. Muitos camponeses eram servos, cujo sangue já

determinava sua herança. Era uma época em que as únicas garantias efetivas da

independência pessoal residiam na posse das terras e na possibilidade de porte de armas, os

camponeses encontravam-se em grande desvantagem, pois que só aos nobres é permitida a

posse das armas e de quase toda a propriedade da terra das regiões agrícolas, que disputavam

com a Igreja. Somente a partir do século XI essa situação, começou a se alterar uma vez que a

população pode crescer e o comércio a se desenvolver. Um dos movimentos surgidos no

século XV que demonstrou vigor pelas idéias de liberdade extrema e capacidade de

sobrevivência diante das perseguições era a chamada heresia do Livre-Espirito. Seus adeptos

não eram revolucionários sociais e não encontravam seus seguidores entre os pobres urbanos,

Eram sim influenciados pelas idéias gnostica, buscavam a salvação individual, mas mediante

um misticismo anárquico, que firmava a liberdade tão fortemente, que impedia qualquer

constrangimento ou limitação. Poderiam ser considerados precursores de Nietzsche ou de

Bakunin. Assim descreve Norman Cohn (1980 p.125):

Historicamente a heresia do Livre-Espirito pode ser considerada como uma forma aberrante de misticismo que tão vigorosamente floresceu na Cristandade Ocidental a partir do século XI. Tanto o misticismo ortodoxo, como o herético brotaram de uma ânsia imediata de apreensão e comunhão com Deus; ambos realçavam o valor de experiências intuitivas e particularmente as de êxtase. E tanto um como outro foram fortemente estimulados pelas redescoberta da filosofia neoplatônica, na qual foram buscar a maior parte de seu aparato conceptual. Mas por ai param as semelhanças. Os místicos católicos viviam as suas experiências místicas no âmbito de uma tradição sancionada e perpetuada por uma igreja solidamente instituída e quando como muitas vezes acontecia eles criticavam essa igreja, o seu alvo era regenerá-la. Por outro lado, os adeptos do Livre-Espírito eram intensamente subjetivos, não reconhecendo outra autoridade além das suas próprias experiências. Aos seus olhos, a igreja era no melhor dos casos , um obstáculo à salvação e no pior, um inimigo tirânico – seja como for, uma instituição desgastada que desde logo precisa de ser substituída pela sua própria comunidade enquanto veículo para o Espírito santo.

O âmago da heresia do Livre-Espírito residia na atitude do adepto para consigo

próprio, faz observar Cohn (1980). Ele acreditava que tinha atingido uma perfeição tão

absoluta que era incapaz de pecar. Uma das conseqüências era o repudio das normas morais O

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homem perfeito achava que podia fazer tudo, mesmo o que era socialmente proibido. A

sensualidade que por muitas vezes emerge dessas vivências não pode ser interpretada como

mera experiência de prazer, assumindo, sobretudo um valor simbólico, um signo de

emancipação espiritual, o que incide sobre o amor livre.

Deste modo, na medida em que o Protestantismo pode representar no imaginário

social, um elemento de represamentos dos anseios sociais torna-se atraente a um público, que

se deixa seduzir por novas modalidades de religiosidade propostas, quando comparadas as

experimentadas através do catolicismo. Como cada fiel exercita livremente o contato íntimo

com a divindade e isto se dá de forma personalizada, interpretando por si mesmo o texto

bíblico, o misticismo que assim se produz não deixa de engendrar no mundo social certas

transformações. Protestar, fugir ou refugiar-se da realidade em um encontro singular, mediado

ou estimulado pelas palavras sagradas ou pela música, é agir no mundo de acordo com um

escala de valores que imprime novas formas de poder. Veja-se como foram retratadas por

Bunyan os critérios de escolhas de casamentos no primeiro trecho intitulado Experiências

Domésticas (p.69-70) e no segundo trecho Visão da Mulher Proferida por Gaio (p. 112-113)

a definição do papel de mulher e sua condição social, ambos da obra A Peregrina, citados

respectivamente:

Trecho 1

Possuía Misericórdia muitos attrativos: era dum rosto formoso e agradavel, e muito trabalhadeira. Quando não tinha nada que fazer para si, occupava-se em fazer meia roupa para os pobres. Gentil, que a via sempre a trabalhar e não sabia o destino que ella dava ao que fazia, enamorou-se della e pediu-a em casamento, dizendo de si para si: aposto que há de ser uma boa dona de casa; vou fazer um bom negocio.

Misericórdia manifestou às senhoras da casa o que se passava, e pediu-lhes informações sobre o seu pretendente, porque sabia que o haviam de conhecer melhor do que ella. - É um moço aproveitável – disseram, - trabalhador e que faz profissão de religioso, mas tememos que seja estranho ao poder regenerador do Evangelho. _ Nesse caso, affirmou Misericórdia, acabou-se. Estou no firme propósito de não me casar com marido que possa estorvar-me de seguir no caminho que emprehendi. Prudência então disse-lhe que ,segundo lhe parecia, não era preciso muito para o despedir : bastava ella continuar como até ali a trabalhar para os pobres, que elle arrefeceria no seu zelo. E assim foi. Quando novamente a encontrou entre a à sua faina habitual, fazendo roupa para os pobres e ela respondeu (...) Faço isto, retorquiu ella, para que seja rica em boas obras e para amontoar um thesouro, como um fundamento sólido para o futuro, a fim de alcançar a verdadeira vida. (Capítulo X, p. 69:70)

Trecho 2

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Agora prosseguiu Gaio, vou fallar a favor da mulher, para a livrar do oprobrio que sobre ella pesa Se é verdade que a morte e a maldição entraram no mundo por meio duma mulher (Gênesis III) , não é menos verdade que por uma mulher entrou também a vida e a salvação Deus enviou o se Filho, feito de mulher ( Gálatas IV, 4) . Para mostrar o quanto as que vieram depois reprovavam o peccado da nossa mãe commum, é ver como as mulheres do Velho Testamento desejavam ardentemente ser mães de filhos, na esperança de que esta ou aquella fosse a mãe do Salvador do Mundo Quando, por fim, veio o Salvador, foram as mulheres que primeiro se regozijaram nElle, antes mesmo dos anjos ( Lucas II). Não se diz que homem alguma desse a Christo nem sequer um maravedi, porém as mulheres O seguiram e Lhe offertaram dos seus haveres ( Lucas VIII, 2 e 3) Foi uma mulher que lavou os pés de Jesus com as suas lagrimas ( Lucas VII, 37 e 50), e também uma mulher que Lhe ungiu antecipadamente o Seu corpo para ser enterrado ( Lucas, XXVIII, 27) .Foram mulheres que choraram quando o Salvador foi conduzido ao supplicio (Matheus, XXVII, 55,61) e as que O seguiram desde a cruz e se sentaram junto do sepulchro, quando o enterraram (Lucas, XXIV, 22,23).As Primeiras pessoas que estiveram com Elle na manhã da ressurreição foram mulheres (João, XI,2 e XII 3 a 6) e mulheres eram também as pessoas que primeiro levaram aos discípulos as novas de que Christo havia ressuscitado.As mulheres, como vemos, souberam-se honrar e participam conosco da Graça e da Vida. Assim também todas as doutrinas e ministros devem despertar em ti, nesta vida, mais vivos desejos de participares da grande ceia do Rei no Seu Reino. A pregação da Palavra, os livros espirituaes e outras coisas semelhantes apenas se podem comparar ao pôr da meza se nos lembrarmos do grande banquete que o Senhor nos prepara para quando chegarmos a Sua casa. (Capitulo XV, p. 112: 113)

No segundo trecho, o papel da mulher parece ser resgatado para uma postura de

dignidade, onde é posta com sua imagem de modelo de companheirismo, de fidelidade, de

maternidade, de dedicação, bondade, persistência, de testemunha, de quem vive alegria

com a divindade, inspirada no modelo da Mãe do Salvador. Resgatar esta posto no sentido

de reparação, uma vez que há uma imagem oposta, na qual a mulher se configura como

aquela que se alia as forças do maligno, introduzindo a maldição no mundo. A seu cargo

estariam as tarefas de gerar e educar75 aqueles que teriam as condições para efetuar a

escolha do caminho à Cidade Celestial. Observa-se que durante a viagem as crianças são

tentadas e orientadas para que não se desviem do percurso.

75 A educação até o século XV era exercida quase com exclusividade pelos pais. Sobretudo no século XVI, o colégio modificou e ampliou seu recrutamento. Segundo Ariès (1981) a população dos colégios era composta de uma pequena minoria de clérigos letrados, passando a abrir suas portas para um número crescente de leigos, nobres e burgueses, mas também as famílias mais populares. Este projeto de educação ganha fôlego com a idéia Protestante de que o conhecimento era importante, o que herdara da Renascença e mais tarde do Iluminismo. Conhecer permite ler e interpretar a Bíblia por si mesmo. Os protestantes têm um papel fundamental na Educação da América Latina (Gomes, 2000), onde ocorre a construção de escolas e colégios sobre seus auspícios, influenciando desse modo a formação da mentalidade cultural e social e imprimindo formas as experiências religiosas, que se desenham a partir desse modelos, inclusive o misticismo. Rubem Alves (1979) concorda com a idéia de que em certas ramificações do Puritanismo, se realizou a repressão de idéias, comportamentos e atitudes religiosas, de acordo com a moral, que representava interesses da institucionalização da época, relacionados ao binômio Bem/Mal. A permissividade, ou a proibição trazia em si a ambivalência crente/ímpio: pensamento largo/ pensamento estreito; provisório/definitivo.

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Um ponto de reflexão sobre os textos citados é sobre o papel da mulher na Idade Média.

Havia superioridade numérica das mulheres nas cidades, e o trabalho feminino foi

importante para a vida econômica. Na aristocracia o excedente feminino era encontrado

nos conventos e nas camadas populares nas atividades de trabalho. A tradição monástica

associava a mulher aos pecados e aos vícios. Eram consideradas com poucas qualidades

morais e como as que corrompem o que é puro. São pecadoras por natureza, que se

alegram com esse estado e sua prática é uma ato pensado e desejado por elas.

Bastide (1990) esclarece que o pecado é um ato de desobediência às ordens da divindade

pessoal. Afirma que sob a lei do tabu a intenção não conta. Mas no pecado intervém a

vontade humana. Toda a criminalidade, voluntária ou não, provoca automaticamente más

influências e, portanto requer punição. Quando a ruptura de contrato é de responsabilidade

do pecador, as conseqüências de seus atos podem atingir gerações sucessivas. O autor de

Elementos de Sociologia Religiosa diz que a idéia de sanção opera uma transformação

correlativa à passagem do tabu ao pecado. No caso do pecado, o castigo é mais sintético e

pode não vir dependendo da graça recebida da divindade. A sanção oferece um tempo de

espera ao castigo que pode ou não ocorrer, funcionando como mediadora e promotora de

reflexão, onde a redenção do pecado pode ser realizada.

Quanto a moral, existem vários pontos de vista na sociologia. Como esse tema não é objeto

de estudo desse trabalho, por hora torna-se interessante observar que a educação das

crianças contempla um aspecto moral, geralmente a cargo da mulher. A moral sendo vista

como um conjunto de regras que regem a cooperação social, tem como ponto de apoio, ou

mesmo uma de suas fontes a religião, tendo em vista que visa promover a união dos fiéis em

torno da divindade. Há que se pensar que no Protestantismo, como uma denominação que

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exercita a liberdade, a moral e a ética desempenharam um papel fundamental, de criação de um padrão de

conduta que fornecesse uma identidade social ao grupo, onde seus membros pudessem ser reconhecidos e

reconhecerem-se uns aos outros, tornando possível a institucionalização da religião. Neste sentido afirma

Bastide (1990) que a religião em si independe da moral, como mostram as religiões primitivas, porém: (...) ela

lhe é útil como técnica de educação da vontade (...) A moral e a religião estão unidas nas grandes religiões

éticas como o budismo e o cristianismo. (Bastide, 1990, p. 57, 58)

No primeiro trecho além dos aspectos acima relacionados, observa-se que a opção de Misericórdia se baseia

em critério de que um homem para ser seu parceiro, tem que ser cristão como ela, conjugar dos mesmos ideais

e estar no mesmo caminho. A família ganha importância nas gravuras do século XVI e, sobretudo no XVII,

enquanto lócus privilegiado da vida privada. “Esta farta ilustração da vida privada poderia ser classificada em

dois grupos distintos: o do namoro e da farra à margem da vida social, no mundo suspeito dos mendigos, nas

tabernas, nos bivaques, entre os boêmios e os vagabundos e a outra face: o grupo da vida em família” (Ariès,

1981). Assim as gravuras dos séculos anteriores, nas quais predomina o grupo, as confrarias e as corporações,

sedem espaço as imagens da família. As cenas do casal e suas crianças no cotidiano passam a representar as

relações sociais íntimas e sagradas. Elas devem ser resguardadas de todos os perigos e desvios, que possam

representar as tentações do mal. Portanto a escolha de um parceiro, dentro desses costumes passa a ser um ato

criterioso a partir da pertença de seus membros as denominações religiosas protestantes. A migração

relacionada ao Protestantismo traz um horizonte onde a célula familiar é um aparato de defesa, de manutenção

dos valores culturais e religiosos e de propagação do projeto de um novo mundo, permeado de esperança.

A Música também parece fazer parte de um cenário paradisíaco presente na difusão no Protestantismo

Histórico, alimentando a literatura da época da reforma e sua crença na instauração do Paraíso Terrestre. Ainda

de acordo com Delumeau (2003) a Coleção de Hinos para o povo Metodista, composta por John Wesley (1737) e

o Hinário revisto e ampliado pela convenção geral da Igreja Protestante Episcopal Americana, comportam

visões do paraíso e descrições dos céus, feitas de modo esteriotipado.76 Composta de lógica e emoção a música

apela tanto aos sentidos quanto a inteligência, permitindo a coexistência ou a composição de razão e afeto.

3.5 Graças Místicas

76 De acordo com Delumeau (2003, p. 478) “os cânticos protestantes de língua inglesa de meados de século XVIII ao fim do XIX, nos fazem chegar a mes ma conclusão: o paraíso ou o céu, perdeu suas cores. Ele não desapareceu, evidentemente, da linguagem cristã. Mas tornou-se mais fideísta que realista”.

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As graças místicas, conforme estudadas por Bastide (1959, p.68) incluem as palavras,

visões, profecias, e o Dom de línguas mortas ou estrangeiras, os fenômenos de levitação, a

escrita automática, os estigmas sangrentos entre outros elementos, podem auxiliar a

compreensão da obra de Bunyan. São classificadas em três grupos, incluindo no primeiro as

graças sensoriais que são as palavras místicas e as visões. Podem ser chamadas de palavras

místicas as vozes que se fazem ouvir e são atribuídas a Deus ou a um dos seus representantes

como Cristo, anjos, santos, etc. São distinguíveis em três espécies: as palavras corporais que

são ouvidas (Deus falando com Moisés no Monte Sinai), as palavras imaginativas que se

fazem ouvir na intimidade do pensamento e as palavras intelectuais que são idéias

comunicadas á alma, sem intermédio de palavras. A Teologia que assim nasce é

inegavelmente mística, considerando essa conceituação77.

As palavras imaginárias ficam gravadas na memória e não são esquecidas,

constituindo-se ao mesmo tempo de palavras, ações, tendo o poder e autoridade de operar e de

se fazer ouvir. Assim sua função pode ser de consolo, alívio e também como a inscrição de

uma nova perspectiva de ser. Não são puramente intelectuais, mas acompanha-se de

sentimentos. Conduzem ao recolhimento e a volúpia. Inspiram piedade e muitas vezes, fazem

cair de joelhos, louvar e abençoar (Bastide, 1959, p. 71-72). Cita-se a seguir mais um trecho

da obra A Peregrina:

Aqui tens uma carta que te trago da patê do Rei. Da carta, que estava escripta com letras douro se desprendia um perfume delic ioso (Cânticos, 1,.3). Naquella carta manifestava o Rei o desejo que tinha de que Christã seguisse o exemplo de seu marido, porquanto esse era o único meio para chegar à sua cidade e para habitar em sua presença, com gozo para sempre. Dominada por viva emoção, a mulher exclamou _ E quereis vós levar convosco a mim e a meus filhos, para que todos vamos adorar o Rei?”(p. 9).

O trecho pode ser representativo das palavras místicas. Para Bastide (1959, p. 73)

citando Tereza D´Ávila e Ribot (em sua obra Théologie Mystique) as visões são

representações sensíveis, circunscritas nos limites da imaginação que se apresentam ao

espírito de forma nítida e revelam os mistérios, permitindo que o conhecimento do divino se

amplie. São geralmente mais claras que as percepções do mundo físico e social ao redor do

77 Bastide (1959, p.71) cita Santa Tereza que estabelece uma diferenciação entre palavras interiores e palavras místicas. As primeiras são uma espécie de criação do sujeito, constituindo-se como murmúrios, lhes faltando nitidez e distinção. Já as segundas são claras, precisas, inteligíveis, forçando a atenção dominante e brotando da divindade são sofridas pelo sujeito de forma passiva.

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sujeito. São breves na sua aparição, porém com ressonância duradoura. A visão intelectual e a

imaginativa se unem, promovendo um salto no conhecimento espiritual. A alegria e a paz

seguem a visão como um de seus efeitos.

Bastide (1959, p. 81) pontua que as graças extraordinárias que separam o místico do

homem comum, ao mesmo tempo que o aproximam da divindade, também podem ser motivo

de orgulho do eu e de inveja alheia. Quando há manifestações externas relevantes da

experiência mística, muitos efeitos podem ocorrer no grupo social: abandono, isolamento,

desconfiança, rejeição do indivíduo, ou ao contrário: torná- lo divinizado, ou seja, entram em

curso processos como: formação de liderança, carisma, a divinização, ou a santificação do

sujeito, atribuindo- lhe poder diferenciado dos membros da comunidade. A esse respeito, o

primeiro biógrafo de Tereza D’Ávila, Diego de Yepes, confessor do rei Filipe II, deixou-nos

este depoimento:

Quando ela orava, julgávamos ver saindo de seus olhos e de seu rosto como se fossem raios de esplendor que impunham respeito aos que a contemplavam. Quando ela recebia o Cristo, antes mesmo de engolir a hóstia, seu rosto adquiria uma beleza extraordinária e uma coloração transparente; via-se nele então tanta majestade e gravidade que eu era tomado de um sentimento de reverência profunda. Era fácil perceber que hóspede ela estava recebendo e a acolhida que lhe oferecia. (Yepes in Reynaud, 2001, p.184)

O grupo social legitima e aprova as experiências místicas, tal qual estudado por Eliade

na obra El Chamanismo (1960). Neste sentido, as experiências místicas podem ser objetos de

aceitação e reconhecimento social pelo grupo onde ocorrem, ou de crítica e exclusão social.

Santa Tereza pediu a Deus que não mais enviasse essas graças. Transformar as experiências

místicas em tabu, ou assunto proibitivo ao grupo como ocorreu em certos seguimentos do

Protestantismo pode estar associado a tentativa de manter sobre controle esses processos,

criando formas mais padronizadas e coletivas de se vivenciar a fé. Ao comentar sobre as

graças místicas, Bastide (1959) concorda com o ponto de vista de místicos com João da Cruz,

Tereza D´Ávila, Marichal que lhe atribuem valor secundário, quando comparado as

experiências vividas interiormente pelo indivíduo. A finalidade do misticismo é:

Aniquilar o sentido egoísta da propriedade que todo homem possui, e deixar a obra divina de transformação e despersonalização. Ora, na medida em que as palavras e visões fortificam o egoísmo, causam volúpia e altivez, vão ao encontro de toda ascese, devem portanto ser rejeitadas (Bastide, 1959, p.81)

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Nas obras de Bunyan que são objeto desse capítulo, as graças místicas parecem ter a

função de condução do fiel ao estado teopático, mais do que valem por sua própria natureza.

O estado final almejado é a união permanente com o Sagrado e não as experiências intensas e

passageiras. Estas últimas parecem constituir-se mais em métodos do que em finalidade de

aproximação da divindade de forma breve instituindo traços, que a peregrinação enquanto

ação contínua une e conduz ao propósito, gerando um método místico: a jornada do

Protestante no mundo, que é divinizada pela leitura bíblica e por suas escolhas cotidianas.

O estado teopático é um termo adotado por Bastide (1959) a partir de sua criação por

Delecroix (1908) e que descreve a união permanente do fiel com a Divindade e que pode ser

expressa na seguinte frase: “ já não sou eu que vivo, é Deus que vive em mim”. Este estado só

é atingido por grandes gênios religiosos. O místico cristão sonha com esse estado onde é

abolida a contradição ação/contemplação, de modos que toda ação é já fruto da união. Este

estado é, pois de uma situação definitiva, sendo tão completo, que a divinização se produz. O

indivíduo se vê plenamente identificado com seu criador e por Ele transformado, sendo sua

participação e inserção no mundo modificada por esse estado78. Faça o que fizer essa união

persiste. São exemplos desse tido de experiência: Maria da Encarnação, Tereza D’Ávila,

Suso. A esse respeito, assim registrou Tereza D’Ávila:

Não é possível descrever e exprimir de que maneira a alma pode assim ser ferida por seu Deus. Nem tão pouco o excesso de dor que a arrebata e de certa forma a priva da consciência de si mesma. Mas esta dor tem algo de tão delicioso que supera todos os prazeres da vida. A alma desejaria morrer disso, atravessada por um tiro tão maravilhoso. Do ardente amor que Deus lhe dedica é que caiu de repente essa centelha que a incendeia toda. (Tereza D´Ávila in Reynaud, 2001, p. 162).

O casamento espiritual é assim destinado a produzir obras no mundo e a modificá- lo.

Há uma condição sentida como se o eu fosse a morada de Deus e isso é comparado ao estado

de tranqüilidade, serenidade e as obras são seu complemento natural. Há uma felicidade

imperceptível segundo Mme Guyon, e uma alegria pacífica e contínua. Neste tipo de estado

cessam as experiências de êxtase conforme visto externamente e os vôos de espírito e há um

profundo silêncio. Contudo Bastide (1959, p. 104) esclarece que não há formas definitivas ou 78 Com o estado místico acima descrito e a reconciliação da ação e da contemplação a alma não sente mais o desgosto por estar nesse mundo, nem a nostalgia e a angústia da morte, uma vez que o estado de identificação, redime o homem da queda, e o eleva a uma posição na qual toda intervenção no mundo é um ato divino, que instaura o Reino de Deus. Bastide (1959, p. 102) cita Suso “Deus é a essência, a vida e o ato de operar é nele apenas um instrumento”.

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uniformidade entre os místicos que atingiram esse estado, mas apenas descrições que tem

pontos de aproximação entre elas. O conteúdo pode variar mais ainda79. Assim, o estado

teopático é com todas as diversidades, a reconciliação, unificação e identificação. Visa um

movimento de integração completa da vida. São suas crenças que preparam o caminho para

esse estado, embora ele em si mesmo seja passivo.

3.6 Personagens e Símbolos

Um aspecto para ser explorado com maior alcance na obra de Bunyan são alguns

elementos simbólicos, que impregnam de sentido uma imagem ou um signo lingüístico, tal

como considerados por Michel Meslin (1992). Este autor mantém-se em concordância com

Paul Tillich (1992), ao afirmar que o símbolo religioso exprime o indizível, facilitando a

passagem do imaginário a realidade ontológica. Define, pois símbolo, tudo o que enquanto

realidade humana comporta um segundo sentido, além do que lhe é atribuído pela realidade

factual e material. Promove uma mediação entre o cotidiano no qual se assenta (signo) e uma

realidade que o ultrapassa. Articula dois níveis de significação: a natureza, o meio no qual o

homem vive e a cultura religiosa na qual se insere e é herdeiro.

Meslin (1992) afirma que há dois níveis compondo o universo simbólico: 1) o das

imagens fundamentais do homem, que está situado em maior profundidade em sua

constituição, ao dado do figurativo e do cósmico, sendo anterior a linguagem falada ou

escrita; 2) o das representações mais particularizadas que advém de um contexto cultural e

religioso (mais específico). O pesquisador pode a partir dessas idéias realizar uma leitura

complexa que aponte e elucide a articulação entre eles, indicando o particular e o coletivo em

sua criação. Os símbolos religiosos podem ser visto como convenções, que estão sustentadas

na tradição religiosa ao mesmo tempo sofrendo variações de significado de acordo com as

forças culturais e sociais presente em certo contexto, ou ainda como parte da subjetividade de

um elemento de grupo. Fica claro que não se pode separar indivíduo de cultura, pois estão

intimamente imbricados. Seguindo essa direção, optou-se por compreender o personagem

79 Pode-se citar exemplos de variações acima descritas: para Tereza D´Ávila essa síntese era uma composição de oração e ação extrema e contínua no mundo. Para João da Cruz, integração se dá entre o mundo criado com sua beleza múltipla, sua sensualidade tentadora e o Deus uno só atingível pela noite dos sentidos, formando um único espírito. Um gera um espírito de transformação social, outro um profundo desejo de criação estética (Bastide, 1959, p. 105).

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Grande-Coração que aparece na obra A Peregrina, servindo- lhe de guia durante praticamente

toda a obra. Foram selecionados pequenos trechos nos quais Grande Coração define seu papel

e função e a seguir são feitos comentários e associações.

“Estou as ordens do meu Amo. Se elle destinar que eu seja vosso guia até ao fim da viagem, de bom grado vos servirei. A culpa porém, é vossa . Quando no principio elle me mandou acompanhar-vos até aqui, se lhe houvesseis pedido que me permittisse acompanhar-vos até ao fim, estou certo de que teria accedido ao vosso pedido. Esqueceste-vos disso, e agora tenho de me retirar. Por isso, adeus Christã, Misericórdia e queridos filhos. Adeus.” ( A Peregrina, p. 62)

“Enquanto estavam assim agradavelmente entretidas, eis que batem á porta. Basta dizer que era Grande-coração para se adivinhar o gozo de que todas, mulheres e creanças, ficarm possuídas, quando ele entrou. A sua presença fel-as recordar a coragem com que tinha vencido o gigante Grima, o sanguinário, e a dedicação com que as tinha livrado dos leões”. (A Peregrina, p. 76)

“_ Pois bem, disse Grande-coração; os que tem medo cheguem-se para mim.

De facto, um ente infernal se approximava, mas o guia avançou destemido para elle. Quando faltava pouco para se encontrarem de repente desvaneceu-se e inimigo. Então se lembraram do que anteriormente lhes havia sido dito: Resisti ao diabo, e elle fugirá de vós” São Thiago, IV, 7” ( A Peregrina, p. 86)

“(Grande-coração) _ Sou servo do Deus do Céu; a minha occupação é persuadir os homens a arrependerem-se dos seus peccados. Foi-me confiado o encargo de fazer o possível para que homens, mulheres e creanças se convertam das trevas á luz e do poder de Satanaz a Deus.Se este é o motivo da questão, estou prompto a luctar quando quizeres. Actos, XXVI, 18”. (A Peregrina, p. 89)

“ Emquanto comiam, Christã perguntou ao guia se não tinha ficado ferido na refrega.

(Grande-coração) _ Nada; só umas pequenas feridas na carne, mas essas, longe de me fazerem mal, servem ao presente como de prova do amor que tenho ao meu Senhor e a vós, e no futuro servirão, pela graça de Deus, para augmento do meu galardão”. II aos Corínthios, IV, 17 ( A Peregrina, p. 91)

“(Grande-coração) É meu dever desconfiar da minha propria habilidade e forças, para que ponha toda a minha confiança nAquelle que é mais poderoso do que nós” ( A Peregrina, p. 91)

“(Christã) _ Que pensaste tu, quando te derribou ao primeiro golpe? (Grande-coração) _ Lembrei-me de que o mesmo aconteceu a meu Senhor, e não obstante foi Elle quem levou a victoria” ( A Peregrina, p. 91)

O personagem utiliza espada, elmo e escudo e os demais membros do grupo utilizam

nas lutas lanças e paus. São alguns de seus oponentes: Desesperação (na hora da morte),

Mente-fraca, Apoquentador.Bunyan construiu os personagens com elementos das

Cruzadas.Observa-se que Grande-coração: 1) é um guia de Deus a quem a fiel deve solicitar

orientação; 2) é a defesa para enfrentar perigos, ameaças e desvios e uma forma de ataque a

realidade hostil; 3) não pode ocupar o lugar de seu amo e ser louvado pelas suas obras; 4) luta

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contra o diabo; 5) tem como função: aconselhar, sustentar, apoiar, orientar, lembrar dentro dos

limites do universo simbólico da mensagem da obra; 6) é profissional nessas funções.

De acordo com Meslin (1992) o coração80 na literatura mística cristã é geralmente

descrito como: 1) o que restabelece a natureza humana em seu primeiro estado anterior a

queda do homem, ou seja encontra novamente o templo de Deus; 2) relacionado ao processo

de luta que via ascese purificam81 o homem, para que retorne ao que foi o início de sua

criação: um ser de verdade; 3) em contínuo processo de desenvolvimento, propiciando nas

fases subseqüentes a iluminação do sol da justiça, e do desejo de unir-se a Deus para sempre;

4) lugar análogo a terra prometida, no qual deve encontrar doçura, pureza e amor do próprio

Deus; 5) fonte do aparecimento de uma piedade que ao contemplar silenciosamente o

sofrimento de Cristo, facilita por identificação as atitudes de fraternidade e a construção de

uma atitude ética82.

Na união mística final há um só coração, sendo que no ápice do processo, Deus e o fiel

trocam de coração83, como descrevem Catarina de Siena, Ludegarda, Dorotéia de Montau.

Meslin (1992) esclarece que essa visão da mística cristã do coração só apareceu no Ocidente

após um milênio de história. Ela se remete a uma visão humanista do sofrimento de Jesus,

relacionada ao sangue derramado como prova de um Deus sofredor e crucificado. Outra

tendência no que diz respeito a simbologia do coração foi firmada por Pascal, que não se

limitava a associação da afetividade, mas dava importância à capacidade de decisão e a força

de vontade nas batalhas espirituais. E, além disso, acrescenta o elemento da intelegibilidade:

não como mera razão ou raciocínio, mas amplificando a lógica no sentido de que “o coração

tem razões que a própria razão desconhece”.

80 Na Bíblia, a palavra coração lêb ocorre 1024 vezes, o que mostra a polivalência simbólica do termo ( Meslin 1992, p. 185) 81 Mary Douglas em sua obra Pureza e perigo (p.57:75) sustentada por uma herança Durkheiniana, mostra que algumas religiões se mantém através de dualidade: sagrado/profano, ordem/desordem, puro/impuro. Neste último processo purificar é sair do que não é natural ao sagrado, ou do que o polui, conservando os elementos mais característicos. Os ritos de separação, tal como descritos no Levítico e do Deuteronômio estabelecem e mantém uma estrutura, um sistema religioso, clarificando sua natureza, suas relações internas, seus limites, sua totalidade, plenitude e santidade. O corpo humano, em suas obras, na integridade de seus atos refletem a beleza interior que se exterioriza, mostrando sua pureza e perfeição. São sinais do sagrado 82 O desejo amoroso é visto como um guia religioso do supremo na obra de René de Anjou, escrito em 1457. 83 De acordo com Meslin (1992, p. 188), na troca de corações, o se humano voluntariamente perde parte do seu eu para receber um espírito novo em um coração novo.

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Uma vez que se considere a peregrinação como uma jornada de purificação e

santificação a ser empreendida pelo fiel, sua base humanitária, retorna as práticas religiosas à

questão da culpa. A culpa é atribuída às transgressões de desvios do cominho, sujo

personagem central é o demônio. Deste modo, a fé sustenta a jornada, mas reside no vencer da

luta, pelas obras a certeza da salvação. Não se está aqui debatendo idéias e pontos de vista

teológicos, mas sim apontando possíveis articulações presentes na obra de Bunyan. A questão

que se coloca aqui é que ao fiel cabe uma atitude ativa, correspondendo ao apelo divino, como

se pode exemplificar nas várias formas de luta presentes em toda a hora, na necessidade de

ajuda para vencê- las, na disponibilidade de cantar e orar, que se explicita detalhadamente na

obra A Peregrina. Há aqui em conceito de fé viva, vivenciada através de todo o processo, o

que permite dizer que há uma direção de amadurecimento da fé. Daí advém a necessidade da

contínua purificação, vencendo as ameaças 84que podem profanar o processo.

Este parece ser um ponto comum entre o Puritanismo e o Pietismo. O pai do Pietismo

alemão, Spener (1635-1705) destaca-se por sua obra Pia Desideria (1675). Esse texto, que se

inclui como um dos mais importantes no movimento Protestante, faz uma “critica prática” a

ortodoxia. Para Spener a fé não é mero conhecimento, convicção, certeza (conforme se

encontra na Carta aos Hebreus, capítulo 4 que pode ser vista como morta, mas é fé viva,

vivida cotidianamente, e que regenera, fazendo do ser humano uma nova criatura. Essa

renovação se dá através do coração. É um processo que exige esforço e empenho por parte do

fiel, esforço de santificação, que realiza o projeto de Deus. Há que fazer a fé crescer, de modo

que a graça seja plena.Seguindo o curso dessas idéias pode-se pensarr que o misticismo

presente na obra de Bunyan é a descrição da relação entre o fiel e a divindade, onde há uma

correspondência máxima entre o propósito de Deus e a atitude do ser humano na mesma

direção. A título de ampliação e esclarecimento das idéias acima expostas será comentada o

texto literário de As Guerras da Famosa Cidade Bunyan de Almahumana, que ainda aos 59

anos estava ativo como pregador leigo e itinerante fazedor de tendas, trabalhando em regiões

rurais da Inglaterra.

84 Há uma obra escrita por J. Bunyan que se chama As Guerras da Famosa Cidade de Almahumana (1999) no qual retrata o conflito de uma cidade com os poderes do demônio. Voltar-se-a e esse texto no decorrer da tese, mas aqui é interessante acrescentar que no inglês o termo alma – soul, também quer dizer caráter. É definido como parte de uma pessoa a qual algumas acreditam que é espiritual e continua a existir de alguma forma após o corpo ter morrido e experimenta profundos sentimentos e emoções. (Soul _ part of a person wich some people believe is spiritual and continues to exist in some form after their body has died or part of a person which is not physical and experiences deep feelings and emotions. International Dictionary of Enghish, 1995).

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As primeiras modalidades de oração descritas neste texto apresentam-se na forma de

petições, que pedem a divindade que lhes perdoe por terem permanecido ao lado do tirano

gigante chamado Diábolo . Tratava-se de uma guerra travada na cidade de Almahumana. São

várias petições que são enviadas, sempre redigidas de forma “sincera e legalista”. Ancião e

Lacrimoso são os dois personagens encarregados de conduzi- las Interessante notar que ao

mesmo tempo em que são feitas inúmeras referências bíblicas durante o texto, há também

emprego de terminologia comum as transações econômicas da época e súplicas:

(...) em favor de um chefe intrépido e com o Dom da palavra, para comandar suas tropas, a fim de que sua majestade consiga levar por diante esta empresa que tão auspiciosamente principia e se trone um fato positivo a conquista da cidade de Almahumana (Bunyan, 1999, p. 81).

A divindade satisfeita com a carta (petição) envia seu filho Emmanuel para salvar a

cidade, acompanhado de cinco ilustres comandantes: capitão Crença, capitão Boa Esperança,

capitão Caridade, capitão Inocência e capitão Paciência. Essa resposta vem junto com uma

proposta de um tempo intermediário para sair da ignorância na qual se encontravam e que

tomassem conhecimento das intenções da divindade. Aqui há menção à proposta da

possibilidade de perdão se o fiel fizer um esforço confessional plena consciência do que é o

pecado. Surgem assim alegorias que podem encaminhar as questões rumo a moralização

religiosa e a devoção. Essa atitude do fiel é suficiente, ou o Misticismo que se propaga é um

elemento fundamental na construção do Protestantismo?

O Protestantismo que iniciou sua luta pela re-descoberta da mensagem profética da

majestade de Deus, denunciou o sistema hierárquico que se constituiu como mediador entre o

homem e Deus, o que pode ser visto na alegoria citada: o regime absolutista é deposto. Só os

caminhos de união com Deus podem superar o pecado e a culpa. Esse processo é mediado

pela leitura bíblica, cabendo a cada indivíduo exercitar de acordo com a sua consciência.

Adams (1992) comentou a esse respeito:

Esta liberdade de consciência era mais mística do que puramente autônoma ou humanista; era interpretada como “pneumática” ou como Tillich diria depois como o responso teônomo do membro individual da Igreja à mensagem da Bíblia (...) Acreditava-se que a Bíblia se interpretaria suficientemente a si mesma para a salvação dos seres humanos. Cada indivíduo, como se fora um mônada no corpo de Cristo seria capaz de achar a verdade da Bíblia. Estava ai o Evangelho salvador, os reformadores acreditavam que ele criaria uma Igreja

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unificada ao ser proclamado e estudado com fé (...) Assim embora o protestantismo apelasse à consciência individual dependia desde o começo de uma harmonia automática oculta. (Adams, 1992, p. 288).

Seja na união com Deus, visada diretamente pelo fiel, seja pela idéia de um efeito

unificador proveniente das escrituras, o misticismo é um elemento constante. Porém nessa

segunda obra de Bunyan a referência a Almahumana como alegoria de cidade e dos

indivíduos como membros de um grupo social, faz ressaltar e elemento cultural, quer se

considere sua manifestação simbólica enquanto religião, economia, regime político, filosofia,

estética, etc. A perspectiva humanista considerada como aliança do protestantismo ou como

um dos elementos fundadores, não ocupa um lugar central, enquanto orientação

antropocêntrica, mas permanece como um dado que compõem as cenas. O centro continua

sendo a relação sujeito-divindade, ou grupo divindade. Também não há em Bunyan uma

afirmação constante no poder da harmonia oculta, mas sim a referência a uma luta constante

do indivíduo ou do grupo social para manter sua relação com a divindade. A Reforma, na

visão deste autor não parece ser um processo simples, mas composto de facetas que

relacionam indivíduo-cultura-sociedade de modo íntimo, indicando sua continuidade através

das gerações. É possível pensar que a sociedade protestante imaginada por Bunyan a partir de

sua inserção histórica e contextual não ultrapassasse em sua composição os mercadores, os

pequenos produtores, trabalhadores rurais e artesãos, enfim as ocupações da época. As

mudanças sociais estruturais que se sucederam com o desenvolvimento do capitalismo, a

sociedade de massas e de consumo, o avanço brutal da tecnologia fez com que o

Protestantismo se aliasse às burocracias estatais, aos poderes e costumes burgueses, aos ideais

humanistas, a dicotomia sujeito-objeto.

Nas obras de Bunyam ainda encontram-se presentes a importância da personalidade e

da comunidade, a crença nos poderes das origens, a apreensão intuitiva dos valores

fundamentais. De acordo com Adams (1992) o Protestantismo que prosseguiu para além do

tempo de suas origens, dissolveu o poder dos símbolos iniciais de sua constituição, dando

ênfase a um individualismo econômico e espiritual, combinado com certo tipo de moralismo

de classe. Deste modo, em suas frases: “seu Deus foi domesticado” (op. cit, 1992) e sua ética

atual não se diferencia do princípio burguês. Esse autor defende a idéia de Tillich, que a Era

Protestante acabou, quando desapareceram as condições históricas e sociais da qual dependia.

Tillich (1992) afirma que muitos dos temas genuinamente protestantes permanecem na

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cultura, alimentando-se de nichos criativos e mantendo seu papel profético. Nesta última

função o Protestantismo aparece mais associado a o papel da crítica social, contra o

autoritarismo eclesiástico, porém na criação de certas formas místicas, parece residir uma de

suas forças renovadoras, capaz de resistir a fragmentação, aos jogos perversos de poder, a

usurpação da liberdade. Não se trata de certezas ou proselitismo, mas de exercício de um

princípio de correspondência entre: sagrado/profano; humano/divino; intuição/razão;

incondicional/condicional, que se apresenta como processo de integração ou aproximação

possível no misticismo enquanto experiência religiosa de um grupo, ou de um indivíduo.

O profetismo emanado das escrituras parece ser o elemento necessário, para a

ampliação da relação com o sagrado, que lança mais além das condições sociais, o sujeito

religioso. O profetismo parece ser o elemento utópico necessário a uma experiência religiosa

transcendental, como o misticismo parece comportar. A cultura Protestante pode oferecer

formas necessárias e suficientes às experiências místicas, que por sua vez lhe fornecem um

dos elementos centrais de sua criatividade e permanência, ao menos na obra de Bunyan. Há

um outro aspecto que se pode considerar quando se compara as duas obras de Bunyan que são

objeto desse capítulo e a doutrina desenvolvida por Jacob Boehme (1575-1624). Este

sapateiro luterano nascido sofreu influência das doutrinas de mestres como Paracelso, Franck,

Schwndfeld, e outros autores alquimistas, bem como místicos. Suas obras, entre as quais A

Aurora Nascente (1612) expõem as doutrinas que o autor teria formulado através das visões

místicas. Tentando escapar da ortodoxia luterana, propõe que se faça uma distinção entre a

Divindade e Deus. A primeiro termo se refere ao vazio, ao abismo, o nada absoluto, o

ungrund. Enquanto Uno, é absoluto, a liberdade absoluta. A divindade para se reconhecer

projeta-se na Sofia, na qual estariam os arquétipos de todas as coisas. Quando se criam as

coisas é que Deus passa a ser, passa a ter corpo. No homem há um quid divino, que seria sua

fonte de revelação. Então a verdadeira igreja deve ser invisível e pneumática, porque Cristo

pode nascer na alma das pessoas de qualquer religião. Estas constituiriam uma Igreja

espiritual, dela fazendo parte todos os que seguissem sua revelação interior e praticassem o

Amor. No final do processo histórico e universal, tudo se reuniria num cristo cósmico, síntese

do espírito e da matéria, do bem e do mal, da luz e das trevas, do tudo e do nada. Segundo

Scholem (1972) uma das maiores autoridades em mística judaica e Cabala, pode-se considerar

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que a doutrina de Boehme 85 ostenta os traços do pensamento cabalístico, que por sinal

conheceu.

Relacionando as idéias apresentadas da obra de Bunyan, surgem algumas

aproximações como, por exemplo, a pouca importância atribuída à Igreja enquanto

instituição. Em uma das únicas passagens da obra em que há alusão a um Palácio suntuoso,

em cuja porta concentrava-se grande multidão, haviam guardas armados e a entrada era feita à

força. Interprete, o personagem que auxilia a dar sentido aos acontecimentos, conduz Cristão

após observar essa paisagem, a um quarto escuro, no qual um homem está preso e diz que

acreditava ser um bom crente, mas não podia se libertar do desespero, pois pecara contra O

Espírito Santo, e endurecera o coração de tal maneira, que crucificara o Cristo novamente.

Outras confluências de idéias podem ser vislumbradas: na concepção de que na Divindade há

um processo evolutivo, e que a peregrinação é a correspondência desse processo a nível

humano; a crença de que o homem pode atentar para as revelações de Deus que são

chamamentos e manifestações a partir de seu interior, do qual as visões são instrumentos; de

que ninguém pode impor dogmas a ninguém; e em se tratando de fé, cada grupo ou ser

humano, deve decidir em liberdade; a interpretação bíblica é livre, podendo apenas ser objeto

de conselho, por parte de outrem; de que no fim dos tempos reina perfeita harmonia,

desaparecendo as necessidades humanas que conduzem ao sofrimento e a dor; e ainda que os

sentidos das sagradas escrituras se descortinam ao homem, portanto não necessitam ser

considerados ao pé da letra.

A proposta de exegese bíblica que salta do texto de Bunyan não pode ser considerada

histórica, embora possam se detectar traços de elementos históricos na construção de seu

texto, como a referência as cruzadas. Pensa-se mais que se trata de uma aproximação do texto

Bíblico, pela via da alegoria. Alegoria é entendida aqui como um procedimento retórico e

poético, através do qual um dito deixa entrever outro dito, ampliando seu sentido, ou

remetendo a outro. Pode remeter a outros sentidos fora do literal, compreendendo que pode

ultrapassar o significado dado pelo autor humano. Dentro da Hermenêutica Bíblica, sabe-se

que o método alegórico foi utilizado amplamente desde Clemente de Alexandria e seu 85 Na obra de Jacob Boehme A Revelação do Grande Mistério Divino (1998, p.31-32) há um capítulo que se intitula A mais preciosa porta da contemplação divina no qual afirma que a razão é uma via natural, cujo fundamento jaz num início e num fim temporal que não pode penetrar no fundamento sobrenatural no qual Deus pode ser compreendido. Porém é através da consciência do limite da razão que nasce o desejo de entrega ao sofrimento para que este conduza o ego a morte e ao fim da vida atormentada. Nesse processo, onde a divindade ocupa a razão, há a revelação no coração e na consciência do homem de que pode alcançar a Vontade sobrenatural.

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discípulo Orígenes, e por exegetas representantes das correntes neoplatônicas, gnostica e da

filosofia grega. Em Bunyan há uma utilização do texto no sentido moral, o qual desenha

diante do leitor uma modalidade de conduta religiosa. Contudo o que se torna interessante

pensar, é como a combinação dos dois elementos se faz presente, dando a obra uma

peculiaridade: a modalidade alegórica de aproximação do texto bíblico favorece ao

misticismo, enquanto a modalidade moralista, serve a conduta religiosa puritana. Ambas

convivem no texto, apontando para uma possibilidade de experiência religiosa, onde um

aspecto não contradiz, nem elimina o outro. Parece que caminham paralelamente.

Há que se considerar que o misticismo se manteve aceso em países como a Alemanha

através de pequenos grupos e conventos: nos pequenos círculos que eram secretos, e nos quais

as pessoas chegavam e se abrigavam, escapando das perseguições, ou da “letra que mata”

buscando o verdadeiro espírito das Sagradas Escrituras. A igreja oficial era chamada por esses

fiéis como igreja de pedra, vazia do Espírito e perseguidora da Igreja do coração, formada

pelos fiéis cujas almas se revelava o Espírito de Deus, que seria como a luz. Nota-se que em

várias passagens das duas obras citadas, o Peregrino e a Peregrina se refugiam, se hospedam

em pequenas casas ou grupos. Nesses lugares há diálogos aproximativos dos textos bíblicos,

como que fazendo paralelos a este tipo de hábito social, onde as células abrigam seus

membros para ler e discutir a Bíblia, ou conversar sobre seus ensinamentos, uma prática mais

reconhecida na literatura protestante, com pietista.

3.7 A Guisa de Conclusão

Ao retornar as perguntas iniciais desse capítulo, construído na base de explorações de

trechos literários e aproximações de idéias e conceitos teóricos, foi possível delinear a

presença de traços de misticismo nas obras de John Bunyan que foram objeto dessa reflexão.

A literatura que expressa traços, idéias e tipos de experiência religiosa mística parece cumprir

um importante papel na modernidade nascente, seja como válvula de escape dos movimentos

da ortodoxia protestante, seja como influência na educação moral do povo e dos territórios

onde esta modalidade religiosa de expandia. Carregando a ideologia do individualismo

enquanto experiência religiosa direta com a divindade, promovia a idéia de que o homem

expansivo do capitalismo pudesse se ver liberto da autoridade religiosa vinculada às grandes

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instituições da Idade Média. Porém ao lhe oferecer um modelo de conduta religiosa baseado

em certa moralidade, construía uma marca institucional ou ao menos identificatório em seus

membros. Membros ao menos de uma instituição imaginária, o que não quer dizer que fosse

menos poderosa, do que as instituições sociais presentes no contexto da época.

O misticismo de Bunyan parece herdeiro tanto da via afetiva, que toma a Cristo como

modelo cristão a ser imitado, como aquela que busca através das visões e do imaginário um

contato direto com a divindade, isto é: o fiel vê nesses elementos a esperança dessa realização,

o que se torna um elemento mais utópico diante da realidade social da época, marcada por

processos de mudança da Idade Media à Modernidade. Tais idéias fazem pensar nos conceitos

de Bastide (1975) que afirma que nas experiências religiosas de um grupo ou de um indivíduo

subjaz um elemento primitivo, ou mais basal encoberto pelos modelos sociais que dit am as

condutas religiosas e suas práticas. Tal hipótese parece relevante como perspectiva a ser

explorada, considerando-se como as idéias protestantes chegaram ao Brasil, construindo a

mentalidade e as práticas religiosas, que encontraram o Catolicismo já híbrido de cultura

religiosa africana e indígena.

Este sagrado, porém que se vê novamente aparecer, na cultura e na sociedade de hoje, se quer um sagrado selvagem. Ele procura, por vezes modelos nos transes coletivos das populações ditas primitivas, nos cultos de possessão que o cinema, a televisão e o teatro negro popularizaram. Não , certamente, para copiá-las, já que por definição um sagrado selvagem é criação pura e não repetição - ele se situa no domínio da imaginação, não no da memória - mas para extrair, absorver mesmo isto que nós podemos chamar de uma pedagogia da selvageria. (Bastide, 1975, p. 1)

As expressões de misticismo observáveis nas obras de Bunyan que são objeto do

presente capítulo parecem indicar que a utilização dessas formas desenha um campo de idéias,

imagens e símbolos que orientam as modalidades de práticas e experiências religiosas do

Protestantismo. Aponta direções para a interpretação religiosa dos acontecimentos sociais e

pessoais e parece carregar o desejo como sede das criações utópicas presentes nas construções

sociais da realidade. Buscando possíveis significados atribuídos a peregrinação pode-se

encontrar no texto examinado tanto o sentido de: a) peregrinação interior desenvolvida entre

os séculos XI e XIII que visava pregar a penitência e a conversão, bem como b)

peregrinações da vida humana que advém da idéia de peregrinatio como caminho para

Jerusalém celeste que se relaciona com o imaginário sobre o Paraíso ( Borriello et al., 2003,

p.870). Há ainda um tipo de peregr inação que é caracterizada como peregrinações em espírito,

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próprias da vida monástica, que poderia estar presente no estilo de vida adotado pelo fiel,

como no caso do puritanismo.

Quando se consideram as edições nas quais existem ilustrações poderia se acrescentar

na tipologia das “peregrinações em espírito” a intenção de conduzir o leitor a um clima de

meditação, onde se pode perceber os detalhes e a utilização dos sentidos. Assim renova-se a

imagem da divindade, desfigurada pelo homem, ativando a memória, a inteligência e a

imaginação. As peregrinações em espírito, que a palavra e a imagem associadas permitem

realizar, contribuem para a construção de experiência e prática religiosa, na qual a busca da

terra prometida se faz no exílio voluntário, em uma espécie de ruptura aparente com o mundo,

que apresenta assim uma dupla faceta: a) está divinizado enquanto mantém correspondência

com a palavra sacralizada e b) permite refugiar-se do cansaço e do perigo, lançando-se como

rumo de purificação e união.Necessário é explorar mais os textos de Bunyan para explorar de

modo mais amplo essa idéia.

Quando se observa a relevância das metáforas utilizadas por Bunyan na construção de

seus textos, é possível pensar que já estavam sendo retratados aspectos da modernidade,

implicados na transformação da impotência que se refugiou na fantasia e no ascetismo da

Idade Média a um sistema político, que passaria a representar a constituição e a expansão dos

Estados Nacionais, com participação dos cidadãos, uma organização juríd ica-tecno-

admistrativa e militar desses territórios e horizontes de expansão e colonização de novas

terras, conforme afirma Ernest Troeltsch (1996) ao estudar as relações entre Protestantismo e

mundo moderno. De outro lado, Anthony Giddens (2003) mostra que o conceito de risco

obteve uma relevância específica na modernidade, comparativamentea Antiguidade e a Idade

Média. Salvo nos contextos marginais não havia conceito de risco nesses períodos. Essa idéia

parece ter se estabelecido nos Século XVI e XVII por exploradores que realizavam viagens

pelo mundo, conforme mostram os estudiosos da introdução do termo risk na lingua inglesa,

provinda do português ou do espcnhol, devidoas cartografia das navegações. As culturas

tradicionais não tinham um conceito de risco, porque não necessitavam dele, uma vez que

designa os infortúnios ativamente avaliados em relação a possibilidade futuras. Só as

sociedades orientadas para o futuro com um concepção de um território a ser conquistado ou

alcançado o utilizam, afirma Giddens (2003, p. 33). Nesse sentido, esse conceito passa a ser

uma das características essenciais às civilizações industriais modernas, levando os sistemas de

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valores sociais a considerá- lo relevante. As noções mágicas, conceitos de destino,

superstições convivem com sistemas de cálculos e perdas futuras a serem evitadas, ou

minimizadas. As sociedades agrícolas e rurais, tinham vários recursos para lidar com as

mudanças, que incluia sua concepção de tempo circular. Com o advento de capitalismo,

aponta Giddens (2003) o risco se refere a dinâmica mobilizadora da sociedade que é propensa

a mudança, e deseja determinar seu futuro, sem necessáriamente confia- lo a um sistema

religioso, à tradição, ou aos ditames da natureza. Assim, cria a idéia de seguro, uma vez que

se acredita que o futuro da humanidade pode ser arquitetado. A noção de seguro amplia-se

pelas várias esferas da vida socio-cultural, incluindo os riscos de saúde, perdas financeiras,

catastrofes da natureza, desestruturação da familia, mudanças de governos e das intituições. A

cautela, passa a ser o instrumento que nas relaçõe sociais minimizam os diferentes riscos

imaginados ou reais. Produz controle e modelos de conduta culturalmente “seguros de seus

significados”. Essas idéias de Giddens (2003) mostram que o Protestantismo é um movimento

que em sua alegoria bunyana ao menos, já aponta para esse processo, criando um imaginário

social, no qual a construção do Paraíso é um risco a ser vencido, com a cautela de um

comportamento religioso devoto e puritano. Desse modo, como diria Gaston Bachelard

(1996) ao distinguir entre imagem percebida e imagem criada: a imaginação produtora pode

ser a fonte na qual se ancoram muitas das faculdades culturais, por ocasião das mudanças que

necessitam do novo para guiar seus passos e sustentar os conflitos inerentes ao movimento.

Capítulo 4

Misticismo: dos Avivamentos ao Campo Missionário Brasileiro

A esperança de habitar simbolicamente um novo espaço de vida e relações sociais foi

um aspecto que sustentou os missionários em seu empreendimento de vir ao Brasil, o que

pretende ser objeto de estudo nesse capítulo. A primeira parte explora modalidades de

inserção do Protestantismo no contexto social e histórico que compreende a passagem do

Império à República. Insere-se em uma ótica que considera as relações entre história,

sociologia, filosofia e psicologia, como integrantes das Ciências da Religião. Ao avançar, o

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texto pretende contemplar fenômenos como a mentalidade e as práticas missionárias,

evidenciando os movimentos de reavivamento americanos e seus desdobramentos no Brasil.

Imigração européia, americana e missão são processos que constituem marcas dos pioneiros

desse movimento religioso no Brasil, que são focos centrais desse capítulo. Uma terceira parte

contempla reflexões sobre as práticas religiosas dos pioneiros e seus significados culturais,

focando especialmente o aspecto místico. Não tem a pretensão de ser um estudo extensivo do

tema, focando o convívio no Brasil do século XIX e os anseios e ideais que supostamente

enraizavam as atitudes daqueles que abriram os caminhos do Protestantismo no país,

especialmente voltado às manifestações místicas como constitutivas desse movimento.

4.1 Contexto Sócio-Histórico e Práticas Missionárias no Brasil do Século XIX

Nas primeiras duas décadas do século XIX, assistiu-se a importantes acontecimentos

históricos que facilitaram a chegadas dos imigrantes ao Brasil. Em 1808 o príncipe-regente D.

João V, abre os portos às nações amigas86 aprova leis concedendo amplos privilégios a

imigrantes de todas as religiões e nacionalidades. Os tratados de Aliança-Amizade e de

Comércio-Navegação concedem aos estrangeiros, liberdade de consciência para práticas de fé

a sua escolha. Naturalmente há regras que mostram a limitação dessa tolerância: proibição de

pregação, ou proselitismo, emissão de opinião desfavorável à religião oficial do Brasil,

fachadas de templos aparente. A primeira capela foi inaugurada no Rio de Janeiro em 1822,

seguidas por outras nas cidades costeiras. Boanerges Ribeiro (1973) afirma que por ocasião

da proclamação da Independência, não havia igrejas protestantes no país, ou culto protestante

em língua portuguesa. Imigrantes luteranos, chegados em 1824, vieram acompanhados por

seu pastor Friededrich Oswald Sauerbronn. A mesma sorte não tiveram outros imigrantes

luteranos, pois foi necessário que elegessem leigos para serem pastores, chamados de

pregadores-colonos. Em 1850, os alemães do sul do Brasil receberam pastores vindos da

Prússia e da Suíça, que lhes trouxeram modelos europeus e institucionalizados de práticas

86 A abertura dos portos promoveu o acesso a uma literatura de cunho mais moderno e não tanto medieval e foi amplamente divulgada no clero brasileiro. Essa porta a um campo simbólico europeu contribuiu para o distanciamento entre o clero brasileiro e o povo, afirma Hoornaert (1991) “O povo não entendeu mais o que pensava e dizia o sacerdote” (1991, p.131). O segundo pacto colonial entre o Brasil e a Inglaterra trouxe um segmento novo do clero, geralmente refugiados do liberalismo, das leis leigas e da nova mentalidade européia, insensível ao sincretismo e aos valores culturais do povo africano e indígena. Este aspecto pode ser indicado através dos temas do concílio plenário de bispos latino-americanos em Roma no ano de 1899.

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protestantes. O aumento da imigração européia87 abriu caminho para a introdução do

protestantismo missionário no Brasil88, uma vez que exigia do governo garantias legais de

liberdade religiosa. Foi no reinado de D. Pedro II que as missões evangélicas89 foram mais

protegidas da reação católica contra elas.

Em meados da segunda metade do século XIX, chegam ao Brasil os primeiros

missionários presbiterianos: Ashbel G. Simonton (1859), Alexander L. Blackford (1860),

Francis J. Schneider (1861), que organizaram a primeira igreja do Rio de Janeiro (1862), a de

São Paulo e Brotas (1865). Sobre esse período escreveu Vicente Themuto Lessa (1938 p.37-

38), de acordo com a tipografia da época:

No mesmo anno da organização de Brotas ( 1865) outra cidade paulista foi attingida. Isso no segundo semestre. Partiu Charberlain para Bragança em Companhia do jovem Trajano, que , com Miguel Torres, abandonara o commercio para se fazer colportor e estudante para o ministério. Distribuíram Bíblias e literatura evangelica ( ...) Bragança, porém não ouviu o Evangelho com o mesma promptidão da Brotas. Não demorou muito. Em janeiro de 1866 partiu para Bragança o Rev. Blackford que realizou três conferências com feliz acceitação. O delegado local impediu a prosseguimento das reuniões e officiou para S. Paulo. Contra a mesma auctoridade representou também o missionário. O certo é que o delegado não levou a melhor ( ...). Por cinco dias consecutivos prégou o deliligente servo de Deus auditórios que iam de cem a duzentos ouvintes. Apezar disso, só muitos annos depois é que se organizou igreja presbyteriana em Bragança.

87 Os estrangeiros no II império se introduziram na sociedade brasileira, trazendo consigo objetos, máquinas, produtos e hábitos do exterior. Nos apontamentos de Mauro (1991, p.157) evidenciam-se os seguintes dados: “de 1855 a 1872, o número de estrangeiros passou de quatrocentos e noventa e cindo para mil cento e dois, ao passo que a população total só aumentou dezesseis por cento”. Foi em 1870, o Chamberla in fundou a escola americana na cidade, a escola de Engenharia do Mackenzie. Os estrangeiros prosperavam, ocupando-se como barbeiros, médicos, dentistas, horticultores, joalheiros, alfaiates, costureiros, cabeleireiros, varejistas. 88 Para uma visão sintética das missões protestantes missionárias e sua chegada ao Brasil, ver o artigo de Matos (2003) consultando o site www. Thirdmill..../58714~11_1_01_10-18-11_AM~ O_Protestantismo_no_Brasil.htm, pesquisado em 03/03/03 . A título de tecer panorama da imigração, notem-se alguns dados: Em 1859 chegam os primeiros missionários da igreja Batista, Thomas Jefferson e esposa; igreja Metodista Episcopal, enviou do sul dos EUA Junius E. Newman em 1876; Robert Reid Kalley chegou ao Brasil em 1855, tendo fundado a primeira escola dominical, vindo dos EUA, onde refugiou-se com seus fiéis após perseguição na Ilha da Madeira. 89 A questão sobre o que se entende por missão cristã foi explorada por Willian R. Hutchison na obra Errand to the Word: American Protestant Thought na Foreign Missions, na qual existe a idéia da relação entre evangelização e civilização. A Conferência Missionária Mundial de Edinburgo (1910) é considerada um marco na proposta de reflexão sobre a natureza das missões e seus objetivos. Importante salientar que a América Latina não foi alvo central das discussões, uma vez que não era considerada como prioritária, tendo em vista que os focos eram os povos “pagãos”. Somente em 1916 é que se realizou uma conferência sobre as missões da América Latina, tendo como promotora a Conferência de Missões Estrangeiras da América do Norte. (Dessa conferência surge a Comissão de Cooperação na América Latina CCLA).

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Os imigrantes foram para o interior de São Paulo, seguidos por outros metodistas,

presbiterianos e batistas. Entre eles se encontravam os pioneiros presbiterianos da igreja do

sul dos Estados Unidos (PCUS) que fundaram o Colégio Internacional em 1873. A guerra

civil americana estava se findando nessa ocasião. O balanço das transformações econômicas e

políticas do século XIX fazem reconhecer duas datas que marcam sua história: 1822 quando

houve o “grito da Independência”, promovendo a instalação dos tempos de império e 1889,

com a Proclamação da República. O cenário brasileiro se alterou profundamente entre esses

dois marcos, afirma Virgílio Noya Pinto (1981). Nos trezentos anos anteriores, o Brasil foi

uma colônia agrícola, fornecedora de produtos ao mercado internacional, excetuando-se os

oitenta anos de legado da economia mineira.

O ouro vindo das montanhas mineiras salvou a economia da época, que se debatia com

a concorrência do mercado açucareiro das Antilhas holandesas. O país tinha uma economia

cíclica, dependente dos mercados consumidores. Analisando as transformações que

correlacionam a faceta do Brasil independente com a herança da economia colonial, Pinto

(1981) observa que, a decadência da exploração mineral, faz surgir no cenário, os pequenos

agricultores, que cultivam milho, arroz, feijão, mandioca, algodão, café, cana de açúcar e

algumas cabeças de gado. Nesse cenário, a abertura dos portos pode ser vista como a tentativa

de fuga da sentença de Napoleão que a Casa de Bragança deixaria de reinar. O

reconhecimento pelo monarca da dependência da economia do mercado externo, seria outro

importante fator, que contribuía para escapar do caos do império, mantendo as veias abertas,

especialmente com a Inglaterra, cujo comércio até então tinha sido favorável ao rei. Esse

país absorvia quase que a totalidade da produção de algodão do Brasil. Com o fim das guerras

napoleônicas, abre-se uma fase de dificuldade econômicas, que refletem muito

significativamente a situação internacional. Os produtos agrícolas brasileiros passam a sofrer

uma concorrência forte dos produtores internacionais, que baixam os preços e conduzem a

retração de mercado.

As relações entre Brasil e Inglaterra são significativas da política econômica desse

século. O tratado de 1810 mostra o protetorado da Inglaterra sobre o Brasil, houve aumento

do comércio, que passou a contar com produtos ingleses disponíveis em diversas regiões do

Brasil, bem como os respectivos súditos tinham a permissão de negociar, residir, estabelecer-

se nos portos, cidades, vilas e lugarejos. Somente em 1826 os direitos pagos pela importação

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britânica foram equivalentes para a França e outros países. O Estado brasileiro como

importador de mercadorias estrangeiras, e com mercado interno quase insignificante, fez

dívidas e empréstimos com a Inglaterra a juros extorsivos. (Pinto, 1981). O eixo de poder

econômico que se situava no Nordeste, passa a se instalar no sul, com o café e sua expansão.

O café trouxe para o Brasil, além de divisas, a inflação. De acordo com Eduardo

Galeano (1977) no período entre 1854 o preço de um homem duplicou. Como não se podia

mais pagar o preço da mão de obra escrava, o eixo produtivo do país, desloca-se para o sul,

onde estavam os braços dos imigrantes europeus. Esses faziam um acordo com os

proprietários de que seriam donos de metade de sua colheita e a outra seria entregue , no que é

conhecido como regime de meeiro. Durante a cultura do café, muitos trabalhadores

acompanhariam seu cultivo, que foi se expandindo por terras novas, e deixando para trás as

que eram menos férteis, Entre esses homens, os missionários poderão encontrar aqueles que

se interessarão pelo evangelho.

Em sete de novembro de 1838, o governo brasileiro proíbe o tráfico negreiro, o que

não é respeitado pelos representantes da aristocracia rural. Somente quando houve mudanças

nas condições internas do Brasil, é que se pode promulgar a lei Eusébio de Queiroz que

extinguia realmente o tráfico negreiro. Nessa ocasião aparece a xenofobia pelo português

traficante. O capital do tráfico negreiro, de posse da burguesia urbana brasileira, ficou

disponível para aplicações, que serão na segunda metade do século XIX, o café, seguido pelo

cacau e a borracha.

Nesse panorama há o crescimento das vias férreas e marítimas, aumentam-se as redes

de telégrafo. Daí para frente, a maquinaria e seus acessórios passam a ganhar uma

importância cada vez maior nas prioridades de importação indicando o crescimento da

economia rumo a industrialização e a urbanização. Houve significativa transformação da

primeira metade do século XIX para a Segunda, o que pode ser visto pelas idéias acima

expostas, acrescentando-se o aumento populacional que passou de 3.000.000 (três milhões) de

habitantes em 1800 à 30 635 605 em 1920. (Pinto, 1981, p. 143-144). A posição inglesa na

economia brasileira permanecera significativa, sendo superada pelos Estados Unidos no final

do século XIX, que em 1902 ocupara o primeiro lugar com 43% do total das exportações

brasileiras.

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Ao vislumbrar a história e seus desdobramentos, seria interessante apontar que, o

espaço principal das relações sociais do império colonial português no século XVIII no Brasil,

acolhe tanto idéias inquisitórias, bem como idéias de D. João V. O século anterior de

colonialismo tem em comum com os dois próximos, a presença de traços de mentalidade que

abrigam a demonologia, a feitiçaria e a magia. Na chegada dos portugueses ao Brasil, na visão

de Mello e Souza 90 (1986), a presença de Satã era marcante, em suas representações de

monstros, animais, seres diabólicos, e os colonos eram feiticeiros, com entrelaçamento entre

o imaginário dos índios da América, negros da África e o branco europeu. As práticas

mágicas coloniais e feitiçarias eram complexas e originais na Terra de Santa Cruz, entre os

quais podem-se citar os encantos e sortilégios, as bruxarias, que segundo Mello e Souza

(1986) surgem em suas formas originalmente coloniais após a intensificação do tráfico

negreiro. As adivinhações, largamente praticadas eram vistas como ação do demônio, após

Tomás de Aquino (1225-1274) afirmar que tentar saber do futuro antecipadamente perpassava

as potencialidades da razão, o que só seria possível com a presença do demônio. Números,

tesoura com chapim eram utilizados para saber o paradeiro de objetos furtados. As orações

também para São Pedro, São Paulo e Santiago eram utilizadas para adivinhar o paradeiro de

escravos que fugiam. A água e o ovo que eram bentos pelas mulheres podiam indicar os

malfeitores de uma situação econômica prejudicial. Os demônios eram invocados para

auxiliar na procura de tesouros ou minas de ouro, prata e diamantes nas terras mineiras, que

D. João tentou proibir em vão. Os escravos na Bahia utilizavam supostos movimentos de

panelas ou tigelas para encontrar outros escravos desaparecidos e assim agradar ao senhor. O

conhecimento das ervas foi perpassando a medicina européia popular, uma vez que a origem

das doenças era atribuída a natureza sobrenatural. Curava-se dores de dente, cabeça, barriga,

costas, e também outros feitiços. O papel do feiticeiro era ambivalente, podendo tanto

desencadear o bem, quanto o mal. Assoprava-se o mal, cheirava-se a doença, vomitava-se

bichos estranhos e feitiços enterrados, do que foi acusada a índia Sabina na década de 50 do

século XVIII.

O conjunto de práticas mágicas e feitiçarias amplamente experimentadas no Brasil

colonial tinham por função tornar menos ásperas as agruras ligadas ao universo material e

espiritual, conforme afirma Mello e Souza (1986). Eram vistos com naturalidade pelas

90 A autora desenvolve extensivo estudo e pesquisa no imaginário colonial brasileiro, enriquecidos pela visão de fenômenos religiosos e suas práticas cotidianas, abarcando os quatro séculos de colonização brasileira. Cita inúmeras outras pesquisas, constituindo-se como fonte bibliográfica significativa aos estudiosos das Ciências da religião.

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camadas populares, constituindo-se parte significativa de seu universo imaginário. O diabo

era visto com uma ponte com o sobrenatural, tal como se encontra nos contos populares.

Inquisição, feitiçaria, o Estado absoluto, podem ser vistos como marcos na construção da

mentalidade moderna, que se relacionam estreitamente. Importante pontuar que o medo, e a

conjuntura das crises do século XIV são fatores que contribuem para o surgimento das

Reformas Católica e Protestante, como solução e ao mesmo tempo como manutenção do

mundo do bem e do mal. O Estado moderno surge no bojo desse cenário como faceta política-

econômica da constituição e expansão do Sistema Colonial da época mercantilista, ou como

afirmação da perspectiva da economia-mundo moderna, que os viajantes teciam em rotas cada

vez mais ousadas e longínquas, cruzando-se, guerreando, criando mundos e mentes.

O investigar as relações entre o conceito de missão e sua institucionalização tal como

se deu no Brasil no período que compreendido entre 1859 e 1924, Márcia Viana (2002)

sustenta que existem transformações significativas na passagem do projeto americano à sua

adaptação à realidade brasileira, que implicam em reconstruções das relações sociais nos

vários contextos históricos. Desse modo, sustenta que no momento em que uma idéia religiosa

é lançada como movimento religioso, os membros que desse processo participam selecionam

da mensagem os elementos que são relevantes para o lugar social dos membros que

possivelmente aderirão ao tal movimento. Esse ponto de vista coincide com o de Ribeiro

(1981) que sustenta que o momento histórico cultural da chegada dos imigrantes estava a

exigir dos missionários que atentassem para o horizonte do fim da escravidão, monarquia, e se

sensibilizassem para a transformação da produção de uma forma mais agrícola para mais

urbana e industrial, com a conseqüente mudança de mentalidade, mesmo que esse processo se

desse de forma lenta e gradual, comparada aos Estados Unidos. Vejamos o ponto de vista do

missionário Simonton a esse respeito, tal qual se encontra registrado em seu diário, datado de

03/01/1863:

Quanto a mim, confesso que o problema de nosso destino político é muito complicado para que eu o resolva. Posso ver claramente, e detratar com vigor, tanto o perigo de interferir com a escravidão como o de deixá-la como estava; não prevejo paz e calma enquanto o sistema atual de escravidão perdurar. É um sistema que clama aos céus por justiça, e mais cedo ou mais tarde o julgamento vira. Não tenho dúvidas desde o princípio de que deve haver um caminho para a abolição. (...) Se a proclamação for posta em prática uma revolução está em nosso meio (...) Deus reina e nas Suas mãos entrego as questões de 1863. Ele está, evidentemente, lidando com esta nação, e a situação extrema do homem é o tempo que ele escolhe para executar seu grandioso propósito. Parece-me claro que existe uma

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perspectiva de calamidades temporárias. A minha esperança é que elas sejam o meio escolhido para a nossa regeneração nacional. (Simonton, 2002, p.157 por ocasião de 03/01/1863).

No país natal de Simonton, a Guerra Civil é um marco histórico, representando a

transição de uma dinâmica agrícola para uma rápida industrialização e urbanização. A

tentativa de vencer as dificuldades de perdas dos membros das igrejas advindas desses

processos levou em certos casos à adoção do chamado Pacto Incompleto (Half-Way

Covenant) afirma Viana (2002), o que viabilizou a vida política da segunda geração de

peregrinos da igreja. Através desse acordo membros que não tinham tido uma experiência

espiritual plena, como a educação no espaço da igreja, eram admitidos na comunidade,

mesmo que não de forma plena. A necessidade de integrar membros às instituições

protestantes se alimentou também dos avivamentos que culturalmente promoviam a

incorporação de partes da população negra, pequenos comerciantes, trabalhadores livres que

vagavam a procura de condições de subsistência. Viana (2002, p. 77 e ss.) afirma que:

O movimento de Despertamento espiritual resultou em disposição missionária que se estabeleceu mais uma vez como parte dos projetos religiosos entre as igrejas protestantes que participavam daquele reavivamento, ao mesmo tempo em que no âmbito das igrejas e sua organização, com sua verdadeira convulsão espiritual, efetivamente fortificou numericamente as congregações (...) A experiência americana parece ter indicado a exigência de uma quase intervenção da própria sociedade, através da busca das experiências espirituais. Entendemos que nos dois movimentos de reavivamento chamados de Despertamento, houve uma escolha social pelo que Weber chama de ascetismo intramundano. (grifo nosso)

As missões foram constituídas e constituintes do serviço da Igreja e de sua razão de

ser, sendo, portanto consideradas como necessidades dessa instituição. Dentro desse conceito

os pastores eram ordenados nos Estados Unidos: para a função de ministério do evangelho, e

cuidados com a congregação, exercendo uma liderança oficial, como membro de uma

instituição, mais do que de uma comunidade local. O termo missão pode ser associado

segundo Viana (2002) a atividade da igreja de pregar o evangelho aos povos da terra,

chamando-os ao arrependimento e a fé em Cristo. Inicialmente isso se relaciona à

transferência da civilização e cultura cristã às sociedades ditas pagãs. Nos Estados Unidos o

conceito de Missão ganhou inicialmente dois sentidos: Home Mission as que serviam ao povo

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americano em seu território, e a Foreign Mission destinadas a sair fora da fronteira do país, ou

a alargá- la através da propagação dos ideais cristãos e da instalação de uma modalidade de

vida concordante aos mesmos. Supostamente a ação de um grupo social sobre o outro,

justifica-se como falta de formação evangélica e carente dos princípios cristãos. Existiam

diferenças entre as concepções de missões e os critérios de escolha do local para seu

exercício, como por exemplo, as igrejas Presbiterianas do Sul dos Estados Unidos tendiam a

escolher o local de trabalho pelas condições de vida religiosa que lhe fossem favoráveis,

enquanto que as do Norte davam preferência à possibilidade de implantação de projetos

sociais, além dos religiosos.

A91 American Board of Commissioners for Foreign Missions surgiu em 1810,

primeiramente como instituição interconfessional, definindo-se posteriormente como

congregacional. Depois delas outras foram constituídas, sendo forjadas no bojo da expansão

colonial do mundo anglo-saxão e norte-americano respectivamente. A Conferência

Missionária de Edimburgo entendia que os povos asiáticos e africanos eram pagãos e

deveriam ser prioritariamente alvo de missões, porém sem desconsiderar a hipótese de enviar

membros às Américas, nos modelos de que evangelizar era o mesmo que colonizar. Durante

o transcorrer do século, a mentalidade das instituições que enviavam missionários a América

Latina, afirmava que a Igreja Católica não oferecia suporte moral e educacional às populações

sobre sua égide, não tinha uma tradição de leitura bíblica, seu clero era corrupto do ponto de

vista das idéias ou mesmo dos bens materiais, não tinha recursos para evangelizar ou

cristianizar o continente, principalmente utilizando o recurso de transmissão oral do

evangelho, que assim ficava deformado, e com interpretação errônea por parte dos fiéis92.

Os escoceses Robert Reid Kalley (1809-1888) e sua esposa Sarah Poulon Kalley,

fundaram a primeira igreja missionária no Brasil em 1855. Esses primeiros missionários

91 Barro (2004) afirma que João Calvino tinha preocupações e atitudes que demonstravam sua consciência missionária, o que pode ser visto com a fundação da academia de Genebra, para treinar e desenvolver os missionários evangélicos. A maioria desses estudantes procediam de outros países e de lugares onde havia língua francesa. Chagavam a Genebra cartas endereçadas a Calvino solicitando que enviasse pastores e missionários para os países da Europa. Ao comentar 1Tm2, 4 Calvino havia declarado que nenhuma nação da terra ou segmento social deveria ficar sem o Evangelho, pois Deus deseja oferecer a salvação a todos. 92 Ao tecer considerações sobre a missão da igreja na América Latina, Matos (1999) apontam que o Congresso de Ação Cristã realizado no Panamá em 1916 contava com apenas 21 delegados latino-americanos entre os 230 presentes. Houve estímulo para a criação de órgãos e ações cooperativas regionais, porém duas posições se tornariam foco de tensão para os missionários: orientação que deveriam ser formalmente simpáticos para com a Igreja Católica e enfatizar o “evangelho social”. Em 1929, na cidade de Havana (Cuba) ocorreu o Congresso Evangélico Hispano-Americano, presidido por um metodista, e cuja ênfase foi a nacionalização e os sustento das igrejas evangélicas na América Latina.

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tinham por herança a mentalidade dos avivamentos ocorridos na Inglaterra. A esse

missionário é atribuída a construção da teologia protestante popular, onde a conversão

realizava-se de forma simples e direta, através da pregação ou de leitura do texto sagrado,

sendo a meta principal do missionário. De acordo com Velasques e Mendonça (1990) até hoje

essa teologia domina no protestantismo missionário brasileiro, o que pode ser observado por

exemplo em seu hinário que foi escrito predominantemente pela Senhora Kalley93. O

congregacionismo foi modelo de igreja proposto por Kalley, que se referenciava na Inglaterra

com suas igrejas livres, autônomas, praticando o auto-gerenciamento e democracia direta. A

denominação de Kalley não se expandiu em grandes proporções, comparada a dos

presbiterianos, que no século XIX seguiram a trilha do café, especialmente em São Paulo.

Havia controvérsias entre a proposta dos missionários Simonton e Kalley, conforme mostram

os registros do diário do missionário americano:

Tive uma conversa com o Doutor Kalley. Ele acha a missão oportuna e os missionários americanos os mais convenientes para levá-la a efeito porque seu ministro e cônsul poderão dar-lhes proteção, ao passo que os ingleses não o fariam. Insiste em que eu me mova em segredo; julga que seria melhor que as sociedades que mandam missionários para países papistas tivessem fundos operacionais secretos. Acha que é tempo de começar a pregação em português e que já há pessoas prontas para sofrer por Cristo (...) Minha presença e meus objetivos aqui não podem ficar escondidos; portanto minha esperança está na proteção divina e no uso de todos os meios prudentes de defesa. O futuro não pode ser previsto; portanto busco a orientação da sabedoria infinita e em tudo me submeto a sua direção.(...) Existem indicações de que um caminho94 está sendo aberto aqui para o Evangelho. (Simonton, 2002, p.127).

É possível afirmar que o contexto histórico brasileiro fosse percebido por Simonton

como favorável à implantação do Protestantismo. As idéias liberais estavam em expansão, a

Inglaterra estimulava a implantação do capitalismo, os interesses americanos no Brasil

cresciam rapidamente, e a imigração avançava, trazendo alemães, italianos, suíços entre

outros povos. Boaventura (2004) afirma que havia inegavelmente um esforço iluminista na

inspiração liberal, positivista e racionalista, que tentava libertar o país do legado ideológico da

escolástica, representado principalmente pelos jesuítas; das limitações da oligarquia rural

93 O hinário presbiteriano foi escrito pelos Kalley, mas nesse tempo foi predominantemente adaptação e tradução do alemão. De acordo com Hahn (1989) os hinos se pautam no subjetivismo do pietismo a traduz aspectos da história de perseguição e intolerância sofrida pelos protestantes na Europa. 94 Hahn (1989) comenta que Kalley criou um modelo de evangelização e de culto no qual cada casa de crente deveria tornar-se um centro de acolhimento dos fiéis, e cada crente era um missionário devendo propagar as idéias evangélicas. Esse procedimento favorecia a difusão do Protestantismo, porém dentro de moldes centralizadores que convergiam para o Dr Kalley que administrava os fundos e orientava o rumo e a interpretação da relação da “igreja” com os núcleos de poder da sociedade. A participação pessoal dos fiéis na construção da igreja como principal tarefa, facilitou as facetas institucionais do Protestantismo, mas obscureceram outras como a devoção e o amor.

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escravista e da igreja ultramontana. Esses fatores contribuíram ao ver de Boaventura (2004)

para a aproximação entre os maçons positivistas, católicos jansenistas e a ainda insipiente

burguesia urbana, promotora do processo de industrialização. Nessa estrutura é que o

Protestantismo se infiltra e se expande, provocando tensões e debates, como representante das

forças que estimulam a individualidade, e se opõem ao sistema escravista. “Os metodistas se

opuseram à escravidão, mesmo que se encontrassem entre eles adeptos desse regime, uma vez

que seus princípios doutrinários assim ditavam”, afirma Boaventura (2004, p. 2). Essa questão

os fez enfrentar situações desconfortáveis de convívio social. Também havia tensão entre as

posturas favoráveis à república, e a presença do império. A atitude moderada que

predominava, entre os protestantes e o imperador se fazia necessária devido à necessidade de

permanência e expansão desse movimento cultural e religioso. Quanto ao monarca, parecia

admirar a mentalidade protestante que aqui aportava, visando fixar nas terras torna- las

produtiva e contribuir para a implantação de um sistema educacional, que tinha como espelho

inspirador os Estados Unidos.

Bem antes da chegada de Simonton, a distribuição de Bíblias no Brasil, ocorria desde

o I Império, promovida pela Sociedade Bíblica Britânica e depois pela Americana, que

utilizava os comerciantes para “dar a quem assim desejasse”. Havia tolerância do clero

brasileiro a essas e outras práticas. Aproveitando desse estado de relações políticas, o

missionário metodista Parish Kidder, buscou aprovação de importantes personalidades como

Diogo Feijóo, o ministro Vergueiro e o jurista Brotero. Alguns padres, segundo Èmile

Léonard (1963) solicitavam Bíblias para as escolas, seguidos por outros educadores que

repetiam o gesto. Leonard (1963) observa, que possivelmente a aceitação da Bíblia, se deve às

transmissões orais, ou mesmo cantados realizadas pelos padres ou leigos, que assim,

contribuíram à expansão do Protestantismo. Esse dado pode ser comparado ao estudo de Jean-

François Gilmont, sobre as relações entre as Reformas Protestantes e a Leitura, no qual se

observa que apesar de muitos historiadores repetirem a idéia da relevância da imprensa e das

traduções bíblicas para a difusão e expansão desse movimento, torna-se necessário notar que

as populações européias em sua maioria não eram letradas. Desse modo ao menos durante a

fase na qual a educação não se tornou fenômeno acessível a parcelas maiores da população, as

idéias bíblicas provavelmente se difundiram pela oralidade das pregações, mas que pela

leitura silenciosa. Os romances e a literatura popular eram mais do agrado das massas

inicialmente alfabetizadas, do que as leituras mais eruditas, como certos trechos da Sagrada

escritura. Esses aspectos devem ter colaborado para que os avivamentos com suas

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características emocionais fossem um dos veículos mais significativos de difusão das idéias

protestantes nas esferas sociais menos letradas.

Observações mais diretas, feitas por Paiva (2003) sobre o comportamento do

Catolicismo brasileiro durante os dois reinados, clarificam que o personagem religioso se

submetia ao político, favorecendo uma centralização necessária ao controle e exercício do

poder. Essa forma de relação social contribuía para o imaginário mágico das classes menos

favorecidas, e o formalismo de suas práticas religiosas católicas, as afastava do cotidiano,

desfavorecendo sua ação na vida social. Havia um distanciamento da esfera pública e a

privada, de modo que a tensão entre elas era quase inexistente. O clero secular estava

fortemente vinculado aos grandes proprietários de terra, que excluía as esferas sociais menos

favorecidas. A visão ultramontana que provinha de Roma, se pautava na sustentação do status

quo e em conter as vertentes liberalizantes. A revolta que possa ser vista por ocasião da

Questão Religiosa em 1872 significava esforços de uma parte dos setores religiosos, por

conquistar uma maior influência ultramontana para a igreja brasileira, diminuir a influência do

Imperador sobre seus domínios, bem como a da maçonaria. Nesse sentido o fiel católico se

pautava mais por modelos mágicos e santificados de práticas religiosas, que conduziam mais

para fora do mundo, do que por esperar que algo desse mundo pudesse se transformar sobre o

efeito de interação social. As coisas do mundo, diferentemente do que era vivido no

continente americano, não mostravam aos fiéis as tensões sociais ou a possibilidade de

transformação na ideologia religiosa predominante do catolicismo, com exceção de algumas

atuações entre as quais pode-se citar o Padre Júlio Maria que pregava um modelo utópico de

catolicismo social. Deste modo pode-se pensar que aparentemente não havia conflitos de

natureza religiosa no plano dos valores ou anseios da comunidade, uma vez que a visão

católica de mundo estava consoante com as formas de poder autoritárias, marcadas pela

centralização do poder, por hierarquias fortemente estabelecidas e relações sociais marcadas

pelo autoritarismo e pelo paternalismo.

O Protestantismo brasileiro se nacionalizou com rapidez, de acordo com Leonard

(1963), argumentando que o número de pastores mais que duplicou de 1888 para 1900, os

batismos e as conversões cresciam com velocidade, pela via da profissão de fé, pela abjuração

do catolicismo, ou por transferência de outras comunidades. Não são os números por si só

que indicavam esse processo, mas os adeptos que se constituíam como grupo que necessitava

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de suporte para oferecer condições mais duradouras à doutrina e práticas do Protestantismo,

conforme observa Leonard (1963):

Como havia acontecido na Europa com a Reforma, a adesão de proprietários, grandes e pequenos, trazia consigo a de uma parte de seus agregados e dos trabalhadores agrícolas que os cercavam. Estes últimos eram atraídos, sobretudo pela atmosfera quente e afetuosa destes pequenos grupos protestantes, pela grande importância que aí se dava aos cânticos (e nós sabemos o quanto o povo brasileiro é sensível à música) e também, muito legitimamente, pela espécie de elevação social em que resultava a sua admissão em igualdade com os ilustres, além da própria ação do Evangelho. E assim se constituía entre esses camponeses uma classe popular que dava às Igrejas reformadas do Brasil uma constituição socialmente normal. Não faltaram nem mesmo escravos (enquanto eles existiam) na constituição das Igrejas. (...) Mas quase sempre eram empregados domésticos que adotavam a religião de seus patrões. Outras vezes as convicções eram independentes e em alguns casos opostas mesmo a de seus senhores (...) Artesão e operários das cidades contribuíram também para constituição das primeiras Igrejas brasileiras e de seu ministério. (Léonard, 1963, p. 101-102).

Os estudos de Leonard (1963) e Mendonça (1995) mostram que a expansão do Protestantismo no Brasil

conseguia adeptos especialmente advindos das relações sociais marcadas pelas transformações que modificavam

o cenário brasileiro pré-industrial, no qual contingente populacional rural migraria para as cidades,

transformando assim parte de seus hábitos, não sem antes, porém vivenciar um estado de anomia social.

Mendonça (1995) assinala que uma das características do homem “livre e pobre” era sua liberdade, entendida

como disponibilidade para ir e vir, organizando seu trabalho e tempo, conforme suas necessidades. Esse homem

tinha uma condição social de mobilidade, advinda do “desenraizamento” da terra, uma vez que não possuía as

condições econômicas para se transformar em proprietário. Abandonava as terras, quando essas não mais

produziam, ou após sua produção, desenvolvendo um percurso itinerante, em busca de trabalho, já que não

possuía sequer os meios de produção para fixar-se. Era assim um personagem social, cujas relações de trabalho

não se constituíam com contratos regulamentados. Essa fatia da população que era mão de obra livre,

desenvolvia relações de trabalho tomando como modelo as relações de parentesco, e personalismo, uma vez que

se assentavam no interesse passageiro por uma atividade econômica pautada na necessidade de sobrevivência e

subsistência. As festas, a competição com traços lúdicos e a violência são características sociais dessa parcela da

população que abre as portas para o Protestantismo brasileiro difundir-se via uma prática religiosa

conversionista, na qual a espontaneidade, o improviso e certo emocionalismo se apresentam como características

marcantes das pregações, mantendo aspectos comuns com os as práticas religiosas avivalistas, especialmente as

ocorridas nos Estados Unidos, o que será objeto de estudo a seguir.

4.2 Avivamentos Americanos e suas Influências na Formação Missionária

Comparando a esfera religiosa e a esfera política do mundo americano, Paiva (2003)

afirma que a Revolução Americana e a Guerra Civil são processos que constituíram a Estado-

nação, enquanto que, o Grande Despertar (Great Awakening) e o Segundo Despertar, vão

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contribuir significativamente para a guinada da ética protestante em direção a um

engajamento social na vida mundana e maior interação entre as denominações.

O termo despertar é referido na Bíblia aos convites de Deus para que se permaneça em

vigilância, especialmente diante possibilidade da chegada da morte e do juízo divino.(Mt.

24,17; 25,13); o apóstolo Paulo diz que não se deve dormir, mas vigiar e ainda em Efésios

(5,14) encontra-se “Ó tu que dormes, desperta”. Nesse último sentido exorta a caminhada em

busca de uma vida de fé. A leitura, ou a graça pode conduzir a essa mudança de estado de

uma vida sem fé, para seu contrário. Nos estados místicos, o despertar é um estado direto de

união com o sagrado, onde a manifestação se traduz por uma mudança, proferida por uma

visão do sobrenatural e a partir de então passa a enxergar o olho de Deus presente em todas as

coisas, fazendo cair os véus que cobriam os olhos. Passa-se a conhecer as criaturas por meio

de Deus e não Deus por meio das criaturas. Deus desperta a alma para essa nova vista, como

uma visão antecipatória do que ocorreria com a salvação (Borriello, 2003, p. 317).

No rol da literatura protestante editada no Brasil no final do século XIX, encontra-se o

título de Heróis da Fé, escrita por Orlando Boyer, que escreve em proposta biográfica sobre

alguns dos líderes do Grande Despertar entre os quais pode-se encontrar: Jonathan95 Edwards

(1703-1758).

Há dois séculos que o mundo fala do famoso sermão

Pecadores nas mãos de Deus irado “e dos ouvintes que se agarravam aos bancos pensando que iam cair no fogo eterno. Esse fato foi, apenas, um dos muitos que aconteceram nas reuniões em que o Espírito Santo desvendava os olhos para os presentes contemplarem as glórias dos céus e a realidade do castigo que está bem perto daqueles que estão afastados de Deus” (...) Sua alma era, de fato um santuário do Espírito Santo. Sob aparente calma exterior, ardia o fogo divino, como um vulcão”. (Boyer, 1951, p.50).

Comentando sobre o início do Grande Despertar (Great Awakening), Boyer (1951)

menciona os sermões de Edwards sobre a doutrina da justificação pela fé, que teria feito os

ouvintes “sentirem a verdade das Escrituras”. Os sermões proferidos na Nova Inglaterra

95 Jonathan Edward (1998) nasceu em East Windsor Connecticut, sendo filho de um ministro congregacional de influência pietista. Edwards teve 11 filhos e todos chegaram a idade adulta. De acordo com Matos (1998) foi atraído em sua juventude pela filosofia dos grandes empiristas e cientistas como John Locke (1632-1704) e Isaac Newton (1642-1717). No Brasil as obras e idéias de Edwards não são muito conhecidas: sua extensão comportam temas relacionados a história e crítica dos reavivamentos que participou (Narrativa Pessoal e Alguns Pensamentos Acerca do Presente Reavivamento da Religião na Nova Inglaterra, 1742), tratados filosóficos sobre o Ser, regras de disciplina pessoal (Resoluções), e ainda sobre afetividade na experiência religiosa.

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mostravam a ira de Deus, e as nuvens negras que estavam sobre o povo, predizendo

tempestades espantosas e grandes trovões. Durante os sermões, haviam interrupções de

gemidos de homens e gritos de mulheres, que ficavam em pé ou caíam no chão. De acordo

com a descrição de Boyer (1951, p.54) era como se um furacão soprasse e destruísse uma

floresta e a cidade de Enfield permanecesse como uma fortaleza sitiada. Em todas as casas era

possível ouvir o clamor das almas e esperava-se que a qualquer momento Cristo descesse dos

céus com os anjos e os apóstolos ao lado, e os túmulos finalmente deixassem livres os mortos

em seu interior. O pregador vencia a batalha contra o reino das trevas, mantendo o povo de

joelhos, não se deixando gozar, firme em seus hábitos de oração, que praticava desde menino,

quando houve um despertamento na igreja de seu pai Jônatas. Mesmo que o maligno tentasse

anular as glórias do Espirito Santo, atribuindo tudo ao fanatismo, Edwards dizia, que não

havia oposição possível “as manifestações físicas, como as lágrimas, gemidos, gritos,

convulsões, falta de forças, pois assim falam as Escrituras, do carcereiro que caiu perante

Paulo e Silas, angustiado e tremendo”. (Boyer, 1951, p.55). Este despertar se espalhou por

toda Nova Inglaterra, transformando uma época decadente, no arrebatamento de trinta a

cinqüenta mil almas.

Jonathan Edwards foi ordenado pastor em 1727, assumindo uma igreja

congregacional, e foi inspirado pelo Pietismo, sendo chamado de “Pai do protestantismo

avivalista americano”. Tornou-se missionário, dedicando-se aos territórios indígenas. Entre

seus temas prediletos estão a ameaça de um inferno eminente, e os sinais e cálculos do fim

dos tempos, de acordo com Desroche, (2000, p.192).

O contexto religioso de Edwards foi produto da colonização dos ingleses e seus

descendentes há um século. Esses eram calvinistas e puritanos, que vieram ao Novo Mundo

para viverem de acordo com sua convicção religiosa. Em Massachusets e Plymouth, Salem e

Bostom o objetivo de suas práticas era edificar uma comunidade de pessoas convertidas e

comprometidas com leituras e orientações bíblicas no modo de ser cotidiano, conforme

observa Winston (1940). Porém no final do século XVII, o progresso social-econômico, bem

como o avanço intelectual, trazia certo conforto tranqüilidade aos descendentes dos

primeiros evangelizadores, nos apontamentos de Matos (1998). Já Schalkwijk (1997),

descreve as condições sociais da época, citando muitos casos de embriaguez entre os pastores,

dificuldades econômicas com colonos que se viam desfavorecidos pelos preços baixos dos

produtos das lavouras. Havia nos meios mais puritanos a idéia de que a igreja devia ser

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purificada e que esse processo devia iniciar-se no meio ministerial. A preparação dos pastores,

muitas vezes era familiar e doméstica o que contribuía para o desamparo do exercício de suas

funções. Nesse quadro exigiam-se manifestações de conversões, que deviam ser públicas para

ganharem credibilidade. O cristianismo encontrava-se em expressões mais nominais, e notada

apatia nas práticas religiosas. Avivamento é uma palavra que pode ser relacionada à Bíblia,

significando reviver, tornar ao Senhor, humilhar-se, purificar-se, produzir frutos no Espírito

Santo. Na tradição reformada poderia ser mais bem compreendida como “Renovação da

Aliança”, conforme o texto de Schalkwijk (1997).

Nas primeiras décadas do século XVIII, surgem os primeiros sinais de avivamento, na

colônia de Nova Jersey. Nomes iniciais relacionados a esses acontecimentos são: Theodore J.

Frelinghuysen (1691-1747), pastor reformador holandês, ligado ao movimento pietista e

Gilbert Tennent96 (1703-1764). Edwards, na Nova Inglaterra, tem que enfrentar os efeitos do

racionalismo iluminista, e o deísmo, e o fez através de uma série de sermões que atraíam o

entusiasmo de muitos. A reação das autoridades locais se dividiu em prós e contras. Esses

últimos, chamados de Old Lights, consideravam as formas reavivadas de práticas religiosas

como ameaça a autoridade estabelecida igreja, um apelo as forças mais instintivas do homem,

inferiores a racionalidade. De opinião contrária encontravam-se os New Lights, que mesmo

admitindo que o emocionalismo podia em certas ocasiões prejudicar o movimento, destacam

sua importância, argumentando que em muitas passagens do texto sagrado a religião se

encontra sustentada pelos estados emocionais como esperança, amor, ódio, desejo, alegria,

tristeza, gratidão, compaixão e zelo. Edwards escreve em 1746 o seu Tratado Sobre as

Afeições Religiosas, época em que o Despertamento já não tinha mais as formas emocionais

intensas do seu início. Defende a “religião do coração” unida a “religião de cabeça”,

compondo com uma moralidade ponderada, a atitude ideal do cristão. Enfatiza a experiência

96 Costa (1999) esclarece que Gilbert Tennent foi aluno do Log College, fundado por seu pai, o Rev. William Tennent (1673-1745) um seminário edificado de forma rústica com tronco de árvores, e que foi responsável pelo nome que lhe foi atribuído. Os alunos desse seminário levaram o evangelho às regiões distantes da Pensilvânia e as Carolinas do Norte e do Sul, reproduzindo o tipo de construção dessa escola. Gilbert Tennent começou a pregar a necessidade de um avivamento, influenciado pelo Ver. Theodore J. Frelinghuysen, pietista. Deste modo tornou-se um dos responsáveis pelos avivamentos americanos e em 1747 seria um dos fundadores do College of New Jersey (Princeton College, após Ter levantado fundos com Samuel Davies. Em 1808 o Ver. Archibald Alexander ( 1772-1851) que foi convertido no “Grande Reavivamento” fez um sermão que abre as portas para a criação do Seminário de Princeton. Foi seu primeiro professor. Pautava-se na teologia fededegna às Escrituras e acreditava na capaciadade da razão para comprrender a fé cristã. Baseava-se em Calvino, na Confissão de Fé de Westminster. A teologia de Princeton, é uma reprodução do Calvinismo do século XVII. Desta fonte também brotaria Charles Hodge( 1797-11878) que escreveria uma das obras de maior influência teológica : Teologia Sistemática. Em 1855 Simonton inicia seus estudos em Princenton.

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religiosa como uma das modalidades de aprendizagem, juntamente com a obra graciosa de

Deus, e as passagens Bíblicas associadas à revelação e aos frutos do Espírito.

Do ponto de vista dos críticos que lhes são favoráveis aos modelos de experiência

religiosa associados ao Grande Despertar como Lloyd-Jones (s/data), as idéias teológicas e

práticas, manifestas no reavivamento foram o auge do puritanismo, pois promoveram a

emergência dos elementos que estavam em seu interior, e que foram expressos de forma clara

nesse período. A religião é, sobretudo um encontro vivo e existencial com Deus. Este deve

ser visto como soberano, glorificado e amado, sobretudo. A essência da experiência religiosa,

tal como proposta por Edwards é “ser prostrado pela visão da beleza de Deus”, sentir-se

atraído pela sua glória e amor irresistíveis, conforme faz notar Alderi Matos (1998).

Naturalmente a experiência religiosa emocional não é vista como o único critério de

verdade, conforme observa John Piper (1990), mas sim, que deve fazer parte integrante do

modo de ser cristão, juntamente com a racionalidade e o entendimento das Escrituras. No

entanto, Edwards distingue o emocionalismo e a excitação como aspectos negativos da

experiência religiosa, que devem ser evitados, uma vez que se relacionam as proclamações do

próprio eu, desviando-o do sagrado. A verdadeira emoção religiosa provoca efeitos

duradouros, como a convicção do pecado, a glorificação de Deus, a leitura da Bíblia, a

promoção de comportamentos éticos e preocupações com a comunidade. Dando importância

fundamental a graça soberana de Deus, Edwards, descreve as manifestações de seus efeitos:

uma vez que se abre o olho e se desperta, a pessoa humana é cativada pela beleza, amor e

glória de Deus, sendo estimulada e diminuir o amor-próprio, dedicando-se ao sagrado e seus

propósitos. Em seu artigo Uma Luz Divina e Sobrenatural, Edwards descreve o estado de

espírito97, no qual o cristão percebe em si o senso de verdade revelado pelas doutrinas e se

compromete com ela em suas práticas religiosas. Assim, o cosmos se aproxima e ganha o

cotidiano, sem perder sua dis tinção do humano, de acordo com Hatch e Stout (1988).

Entre as conseqüências apontadas do grande despertar no campo religioso, estão:

questionamento da autoridade institucionalizada, uma vez que os fiéis passaram a dar créditos

aos pregadores errantes, ma is do que aos de suas congregações e igrejas; inspiração do 97 Alderi Matos (1998) afirma que Edwards utiliza as experiências religiosas ocorridas com sua esposa e consigo mesmo para refletir sobre seu papel e contexto religioso. Em 1742, Sarah teve uma crise espiritual, marcada por desmaios e êxtases. A comunidade ficou ciente desse acontecimento e Edwards o interpretou como ação de Deus, que fez sua esposa experimentar alegria e trabalhar pela comunidade com dedicação e afinco, revelando paz, satisfação e alegria. A experiência religiosa verdadeira proporciona uma mu dança de atitude no mundo e beneficia os que rodeiam o fiel.

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trabalho missionário, principalmente entre populações distante das Américas, quer

culturalmente, quer geograficamente, como os índios, os africanos, os indianos, australianos,

entre outros, e estímulo ao sistema educacional e a formação dos líderes religiosos, exemplos

de Princeton Dartmouth, Doura, entre outras faculdades e instituições de ensino.

Porém lembremos que os avivamentos, como forma de rebeldia religiosa, não são

movimentos originários dos Estados Unidos, uma vez que se considere seu conceito de forma

ampla, como sugere Antonio Carlos Barro (2004). Pode-se citar: Primeira Cruzada em 1095,

lançada pelo Papa Urbano II; tentativas de revolta contra a igreja medieval, como as lideradas

por John Huss; Pietismo em sua emergência na voz de Johann Arndt, Phillipp Jacob Spener e

Hermann Francke que sugeriram a acentuação da responsabilidade pessoal acima da crença na

doutrina correta e a necessidade de criar as condições educacionais e de trabalho missionários

como os exemplos de Hans Nielsen Hauge na Noruega, Soren Kierkegaard na Dinamarca,

entre outros.

O Grande Despertar começou nos anos de 1720 e durou aproximadamente 20 anos em

sua fase mais intensa. Outro nome a ele associado é o de George Whitefield. Calvinista

convicto fez uma trajetória evangelista, lotando auditórios diariamente, alastrando-se pelas

colônias americanas. Esse período da história conta com processos importantes como a

Revolução americana e a Independência em 1776. Assim, quatro anos depois surgia o

Segundo Grande Despertamento, em Cane Ridge, Kentucky, já nordeste do continente, que

comparativamente ao primeiro despertar, pode-se observar que as denominações religiosas

ampliaram sua participação que incluíram os batistas e metodistas aos presbiterianos98 e

congragacionais. Entre outros aspectos que diferenciam estes eventos, pode-se elencar que o

primeiro ocorreu nas áreas urbanas próximas ao litoral, enquanto o segundo incluía as

populações do meio-oeste americano. Matos (2004) esclarece que Edwards e Whitefield

lideraram uma proposta calvinista, focando a “incapacidade humana e a iniciativa soberana de

Deus”, enquanto que a visão arminiana de mundo, que destaca o “potencial de escolha e

decisão do ser humano” predomina no segundo despertar harmonizando-se com “os ideais de

liberdade e iniciativa individuais”.

98 Considerado o “pai do Presbiterianismo americano”, Francis Makemie fez um trabalho itinerante de Nova York até as Carolinas, de acordo com Schalkwijk (1997). Organizou igrejas e consagrou minis tros desde 1700, baseado nas orientações calvinistas de conversão clara, chamada consciente, visão ampla, santificação constante e disposição incansável. Foi acusado e perseguido por Ter pregado e Nova Iorque, sendo que fez sua própria defesa e ficou famoso na jurisprudência pela atitude de defender a liberdade religiosa.

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Depois desse Segundo Despertar, surgiram práticas como os “camp meeting’, ou

acampamentos avivalistas, que atraíam centenas de pessoas, dispostas a permanecerem

ouvindo pregações diariamente, se dedicando a cantos e orações sem que houvessem horários

fixos. Por outro lado proliferaram sociedades voluntárias com o propósito de auxiliar as

populações desfavorecidas lutar pelas causas educacionais, abolicionistas, distribuição das

Escrituras e sobretudo aos objetivos missionários99 nacionais e estrangeiros100.

A forma peculiar de cristianismo desenvolvida nos Estados Unidos nessa ocasião é

focada por Richard Hofstadter (1967) no que diz respeito tanto à organização das igrejas

como ao tipo de ministro que orientava suas práticas. Surgiram movimentos que se

constituíram enquanto seitas, compostos por elementos imigrantes da Europa, cuja

confessionalidade era diversificada, encontrando abrigo nas colônias americanas, o que

distingue do ideal cristão de Igreja única.

A essência do denominalismo americano é composta de organizações voluntárias,

cujos membros participam por livre escolha, afirma Hofstadter (1967). Como as condições de

vida e as instituições eram fluidas, havia desprezo pela história. O cristianismo da Europa era

visto como degenerado, tendo falhado na produção de práticas institucionais. O cristianismo

primitivo, de certo modo servia como modelo para um movimento de purificação, a partir da

compreensão das Escrituras. O aspecto prático era valorizado, centralizando-se na busca de

meios para atrair o povo, sendo o mais comum o uso de apelos emocionais. O modelo de

pregador eficiente era aquele que se pautava na simplicidade da linguagem e nos exemplos da

vida cotidiana, fazendo o fiel escolher entre duas alternativas: “o céu ou o inferno”. O sucesso

do pastor era considerado de acordo com o número de almas que ele arrebatava para a fé. O

homem comum detinha o poder sobre o ministro, que perdeu a relação de mando advinda da

instituição central. Nesse sentido, “os ministros americanos pareciam ser julgados pelos leigos

e, em certo sentido, usado por eles” (Hofstadter, 1967, p. 106-107). Assim surge a idéia de

99 O Movimento das Missões estrangeiras que surgiu na Inglaterra encontrou aceitabilidade e permeabilidade nos recém avivados dos Estados Unidos. Samuel Mills liderou um grupo chamado “Irmãos”, construindo uma sociedade de voluntários cujas práticas eram pró-evangelização dos povos estrangeiros. Em 1810 esse grupo conseguiu financiamento na Junta Americana de Enviado ás Missões Estrangeiras, composta de Congregacioanlistas da Nova Inglaterra e de presbiterianos. Em 1812, foram enviados cinco missionários à Índia, de acordo com dados fornecidos por Robert Nichols (1997). 100 Matos (2004) cita entre outros exemplos marcantes os desdobramentos dos movimentos de avivamento: Junta Americana de Missões estrangeiras (1810), Sociedade Bíblica Americana(1816), União Americana de Escolas Dominicais ( 1824), Sociedade Americana de Tratados ( 1825), Sociedade Americana de Educação (1826), Sociedade Americana de Missões Nacionais (1826).

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eficiência da pregação, que é medida em números, instrumental, personalista, carismática,

originária de uma educação teológica mais instrumental que dogmática.

Os “evangelistas” utilizando o método do reavivamento religioso, foram os principais

agentes de expansão do cristianismo protestante ao ver de Hofstadter (1967). Os fiéis que

circulavam, eram chamados de freqüentadores de igrejas, menos do que filiados a elas. As

conquistas religiosas na América estavam ao seu ver, predominantemente ligadas aos

presbiterianos, metodistas e batistas. Os primeiros presbiterianos podem ser vistos como os

mais rigorosos doutrinários, que atraem geralmente as classes empresariais e negociantes.

Deste modo, os presbiterianos, focaram-se na instrumentalização intelectual e educacional de

seu corpo de líderes, aparecendo os movimentos ligados à velha ou a nova escola. Do ponto

de vista de Viana (2002) é importante para a compreensão da constituição o campo

missionário brasileiro, atentar para as diferenças interpretativas culturais da idéia de que se

deve pregar a todos os homens. De um lado estava a escola velha ou o lado antigo, ligados a

tradição escocesa e irlando-escodesa, na qual se baseava o Princeton College e o Princeton

Theological Seminary. Do outro lado a escola nova, tendência mais liberal calvinista, ligada a

New Haven. Nesse grupo encontram-se intelectuais evangelistas mais simpáticos às práticas

oriundas dos revivals, como Charles Gandison Finney (1792-1875). O jornal da Igreja

Presbiteriana Brasileira O Estandarte em caderno especial faz o seguinte comentário sobre a

teologia do Seminário de Princeton em 07/2003: artigo intitulado Raízes da Igreja

Presbiteriana Independente do Brasil:

Sumariamente podemos afirmar que a Teologia de Princeton, ao menos em linhas gerais, permanece até hoje na mentalidade presbiteriana brasileira, sendo seus traços principais a fidelidade ao texto Bíblico infalível, beirando a inerrância, á Confissão de Fé de Westminster e seus catecismos como interpretação absoluta da Escritura, portanto não passível de reformas assim como uma permanente desconfiança do conhecimento humano em todas as suas esferas. Arriscamo -nos a dizer que a Teologia de Princeton, foi importante e necessária às igrejas norte americanas no momento em que surgiu no Brasil criou uma mentalidade teológica que talvez dificultou ou mesmo impediu uma reflexão autóctone sobre a igreja e a realidade a acima de tudo, a possibilidade de abertura para com o diálogo com a cultura brasileira.

Os esclarecimentos de Viana (2003, p.137) sobre as divergências de concepções

missionárias entre as igrejas americanas mostram que somente por volta da segunda década

do século vinte, foi possível aceitar o pluralismo teológico em função do crescimento da

teologia liberal que reagia ao avanço do fundamentalismo. De qualquer modo os candidatos a

missionários deveriam ter convicções claras e acreditar na competência da Bíblia como

caminho que trazia a vida e a salvação. Podia-se definir como cerne do trabalho evangélico:

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pregar e ensinar o evangelho, bem como estabelecer instituições evangélicas. Era ideal que

tivesse um forte sentimento de lealdade cristã e obedecesse a um comando divino.

Do ponto de vista liberal, a trajetória e a vida de homens como Finney auxiliam a

compreensão dessa tendência. Finney foi professor em New Jersey, e se formou em Direito,

tendo recebido em seu escritório o batismo do Espírito Santo, o primeiro de uma série de

encontros místicos que teria durante sua vida. No dia seguinte, Finney declarou a um amigo,

segundo Hofstadter, (1967, p. 115) “recebi um adiantamento de Jesus Cristo para defender

Sua causa, não posso defender a vossa”. No decorrer de sua carreira ministerial, Finney

participou de vários revivals, e sua postura era de quem se guiava pala leitura direta da Bíblia,

visto que reconhecia esse texto como autoridade máxima do conhecimento, fonte de toda

inspiração e prática. Recusou o convite para estudar teologia em Princeton, dizendo que os

mestres tinham sido erroneamente educados.

Finney era um autodidata, uma espécie de teólogo individualista, adaptando a sua

sensibilidade às necessidades da platéia. Dizia que o exagero da educação intelectual desviava

o jovem de seu coração, tornando-o estéril, o que devia ser balanceado, de preferência, pelo

segundo elemento. Baseando-se na postura de Finney, e outros avivalistas, Hofstadter (1967)

desenvolveu a hipótese, de ter havido nos Estados Unidos, uma união da religiosidade com

um certo antiintelectualismo. Porém, esse autor, deixa entrever que tal “movimento” não era

homogêneo, mas indicativo de tensão e ambivalênc ia, que se faziam presentes no campo

religioso evangélico, na forma de um conflito entre razão e emoção, individualismo e

coletividade, religião pessoal e religião grupal, autoridade e livre arbítrio, sacerdócio

universal e autoridade religiosa constituída. Reflexo dessas tensões pode ser encontrado no

clero, entre uma postura mais itinerante ou sedentária, utilização de uma linguagem mais

popular que erudita. Por outro lado surgiu uma postura mais errante nos pregadores e os

metodistas se tornaram hábeis nesse sentido. Mobilidade, flexibilidade e resistência, eram

características próprias da mentalidade evangélica americana. O que se seguiu após Finney

foram lutas travadas entre posturas diversas, mas cujos elementos perpassavam as práticas

religiosas americanas. De um lado estavam surgindo os “manuais” e instruções de como o

coração, a mente e a vontade poderiam ser guinados para o grande objetivo da conversão

religiosa. Na outra ponta, surgiam as universidades, com seus seminários anunciando uma

teologia sistemática, com rigorosa formação de escola de líderes, originando instituições mais

hierarquizadas, organizadas, burocratizadas, que controlavam seus membros e as modalidades

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de práticas religiosas. Desse modo, o futuro século já se construía e era constituído nas

Américas.

Existem pontos de vistas divergentes a respeito das características das Igrejas

americanas no século XIX, que teriam enviado missionários protestantes ao Brasil. Duncan

Reily (1993) afirma que a estrutura eclesiástica norte-americana era denominacional,

discordando da tipologia de Troeltsch que distingue entre igreja e seita. Existem

características essenciais e comuns às denominações, entre as quais pode-se apontar o

voluntariado, que denotam a auto-confiança, a disposição e o esforço em prol da religião, ou

seja a livre iniciativa que favorecia o desenvolvimento socio-econômico do país e a liberdade

religiosa em prol do reino de Deus. A República era vista como a união mínima necessária às

unidades autônomas para propósitos ou intenções comuns. Propósitos e intenções sustentavam

também as denominações. Essas visavam à propagação de seu ponto de vista e sustentação da

razão de sua existência que obedecia a ditames divinos. O denominacionalismo servia a um

duplo propósito: distinguir as divisões das organizações e estruturas humanas e uni- las em

finalidades compartilhadas, sacralizando-as então. Talvez essa perspectiva tenha influenciado

os missionários americanos a esperar pela implantação da República em 1889. O conceito de

denominação combina bem com o de República. Essa idéia explica muitos exemplos de

cooperação entre os missionários que vieram ao Brasil, desde hospedagem, proteção contra

perseguições, aprendizado de língua, empréstimos de bens materiais e econômicos entre

outras trocas.

A imbricação entre as peculiaridades da cultura e das instituições americanas tornou-

se uma modalidade de calvinismo adocicado, mantendo estreitas relações com o modelo

político americano e com o Estado que se constituía. O termo “americanismo” utilizado por

Troelstch, é sublinhado por Angela Paiva (2003), para referir-se a essas relações, em que o

puritanismo distingue o fiel por uma visão ascética, predestinada e responsável por sua

salvação. O individualismo na América perpassa todos os aspectos da vida religiosa e a

liberdade ganha uma característica comunitária, na qual a República e a tendência capitalista

na economia são a tônica da construção da nação.

Os movimentos de despertar promoveram no dizer de Paiva (2003, p. 55) uma “maior

interação entre as denominações e a predominância de uma visão milenarista de mundo,

quando o fiel passou a ter uma percepção ainda maior da necessidade de provar sua fé na vida

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cotidiana, já que podia estar em condições de ser salvo no dia do juízo final”. Nesse aspecto,

Paiva (ibid.) sublinha que houve um envolvimento crescente da esfera religiosa nas questões

sociais, que passa a ganhar um cunho ético e moral, lançando o fiel cristão em um novo tipo

de envolvimento com as questões mundanas, uma vez que é sua experiência histórica e

pessoal que o conduziria a salvação. A questão da escravidão vai ser o catalisador desse

pensar religioso, que considerava um pecado a ser extirpado da nação.

Contudo, Norte e Sul dos Estados Unidos iriam viver processos diferentes em relação

ao avivalismo. Conforme observou Reily (1993) o sistema de pequenas lavouras e

posteriormente comércio, navegação e industria condicionam a vida dos habitantes do Norte,

onde se pode notar uma estreita relação entre o avivalismo e a reforma social. Já o Sul, tendo

sua paisagem desenhada por fazendas, se prima por receios na alfabetização dos negros,

fazendo o controle e a repressão aumentarem para impedir tal processo. Deste modo,

desenvolveu-se a idéia baseada em Aristóteles e em algumas passagens bíblicas, que a

escravidão é boa. Daí a idéia de que cabia ao missionário evangelizar, mas sem assumir o

compromisso de emancipar. Os missionários procuravam aplicar a expressão atribuída a

Jesus: “Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, fazendo dela um guia para

nortear a ação da igreja. Reily (1993) comenta que a maioria dos missionários que vieram ao

Brasil era originária do Sul dos Estados Unidos. Mesmo no caso da igreja Episcopal, embora

francamente a favor da abolição da escravatura, tinham seus obreiros e missionários formados

nas instituições do Sul. Simonton por sua vez era do Norte, porém com formação de

mentalidade conservadora e sulista. Toma-se como ponto de partida as anotações iniciais do

seu diário, por ocasião de sua chegada ao Brasil em 08/1859:

Estamos agora sem vento à entrada do porto de Rio. A famosa montanha do Pão de Açúcar e o Corcovado estão vem visíveis, iluminados pela luz da lua cheia e dez ou doze milhas de distância; o pesado som das ondas batendo nas pedras da praia enche o silêncio da noite. (...) Sentiria dificuldade em descrever a emoção que tomou conta de mim ao ver aqueles picos altaneiros dos quais tenho ouvido falar e lido tantas vezes, os quais me dizem que a viagem terminou e cheguei ao meu novo campo de trabalho. Minhas emoções eram tão conflitantes que não seria possível descrevê- las com fidelidade. Os sentimentos predominantes eram contentamento pelo final feliz de uma longa viagem e o temor pela grande responsabilidade e pelas dificuldades do trabalho que esperava por mim. (...) a incerteza do futuro pesa solene e temivelmente, a ponto de moderar as expressões de contentamento. Simonton (2002, p.124-125).

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As anotações de Simonton sobre sua chegada ao Rio de Janeiro, podem ser analisadas

à luz do fenômeno da plausibilidade advinda da interação entre os aspectos da realidade

subjetiva e objetiva conforme descritos por Peter Berger (1985). O reconhecimento da

paisagem do Rio de Janeiro, conhecida até aquele momento de forma imaginária, parece

confirmar ao missionário que o horizonte do real se encontrava em seu campo perceptivo,

produzindo a preocupação pelo devir. Essa parece ser um dos elementos marcantes que choca

e ofusca a alegria de ter chegado ao destino sonhado e traçado por Simonton e pela cultura

religiosa, da qual migrava. O temor indica que tinha certa noção de que realizar uma missão

depende de manter-se minimamente afinado por um lado com os objetivos e ideais que a

originaram e de outro, com a realidade social, na qual se situaria, para que tal empreitada,

tivesse chance de se realizar. Essa coerência, já posta como necessidade visível ao olhar de

Simonton manifesta-se em temor do malogro e peso da responsabilidade social da qual se via

depositário pelo seu grupo religioso. Manter plausibilidade exigiria dos missionários que

atentassem para os elementos sócio-culturais próprios à realidade brasileira, abrindo a porta à

vivência de tensões com os elementos da cultura e da sociedade da qual se originava seu

projeto de missão. Haveria que selecionar entre os elementos provenientes de sua bagagem

cultural, os que maior correspondência encontrassem com as condições culturais do Brasil.

Esse processo será focado a seguir, tomando-se como instrumento reflexivo a prática dos

missionários.

4.3 Mentalidade e Práticas Missionárias no Brasil do Século XIX

Visando traçar um balanço da transformação cultural do Brasil no século XX, Renato

Ortiz (2001) aponta dados sobre a formação da sociedade brasileira nos cem anos anteriores,

que permitem retratar as condições com as quais os missionários se depararam no exercício de

suas práticas. Esse autor faz notar que os traços de sociedade escravocrata preponderaram

durante todo o século XIX, não havendo o país conhecido a revolução industrial. O índice de

analfabetismo brasileiro era de 84% em 1890, enquanto nos Estados Unidos, Inglaterra e

França, nessa mesma época 90% da população estava alfabetizada. Portanto o que marcaria a

transmissão cultural é sua oralidade, com ausência marcada de escolas. Diante desse

panorama, Ortiz também observa que a esfera de bens culturais restritos e de bens culturais

ampliados não se desenvolve e autonomiza como na Europa, fazendo com que artistas e

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escritores, não possam surgir como personagens que se sustentem de sua profissão e possam

lhe devotar o labor necessário.

No que se relaciona à linguagem durante todo o império, a língua portuguesa não se

viu significativamente “ameaçada” por outro idioma. Até porque línguas indígenas e africanas

eram praticadas por grupos sociais, que declinavam sua freqüência diante da língua oficial, as

disputas holandesas e francesas de colonização, não tomaram vulto relevante, enquanto o

Tratado de Tordesilhas garantiu ao português a vitória diante de uma possível invasão do

colonizador espanhol. A literatura, bem como os hábitos de leitura a ela associada ficam

restritos, não gerando uma separação entre a cultura erudita e a cultura popular. Assim,

caracterizar o Brasil como “moderno” nesse século, fica a dever à argumentação de que essa

etapa seria marcada pelo processo no qual o mundo das artes ditaria as normas da produção

cultural101. O que foi alcançado no fim de século era “o modernismo, sem modernização”,

afirma Ortiz (2002, p.190).

O misticismo enquanto experiência individual no Protestantismo, em sua esfera de

leitura não só religiosa, mas também política, pode ter significados diferentes no Brasil e nos

Estados Unidos. Fazendo um paralelo com o republicanismo nos dois países, pode-se dizer,

que o conceito de individualidade, enquanto ausênc ia de hierarquias sociais, e colonos que se

relacionam de forma mais igualitária, ocorreu no país da América do Norte de forma

acentuada, favorecendo a representação de um mundo interior como espaço privado, e de

atitudes comportamentais normatizadas, como espaço público para a iniciativa privada. Na

América do Sul, o modelo novo de governo atendia aos interesses dos proprietários rurais de

forma diversa: o individualismo presente favorecia um pacto social, que deixava fora do

poder a participação popular. Público não era visto como a somatória e a síntese dos

interesses individuais, mas apenas como um espaço no qual os atores sociais defendiam seus

interesses particulares, uma vez que o acordo social lhes garantia a oficialidade de voz e voto.

Mesmo os setores mais liberais não conseguiam organizar-se para romper esse estado das

relações sócio-culturais, permanecendo em apelos abstratos em favor da liberdade, da

igualdade e da participação. Nesse cenário social, a experiência mística no sentido da

101 Comentando sobre o início do século XX, Ortiz (2001) mostra que a sociedade brasileira estava marcada pela contradição entre tradicional/moderno, uma vez que o presente agrário contrastava com as aspirações dos modernistas da Semana de Arte, que aspiravam ao mundo industrializado e seus ditames como o asfalto, o motor, o rádio, o tumulto, o rumor, as massas, o cinema, o seccionamento da imagem e o primado da técnica sobre o natural. São Paulo era um dos poucos lugares do país que prenunciava esse porvir, porém com toda estrutura colonial ainda presente. O rádio foi introduzido em 1922.

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afirmação autonomia do indivíduo pode representar a busca do espaço privilegiado, que só os

atores das camadas sociais privilegiadas ocupavam na América do Sul na passagem do século

XIX ao século XX.

Voltar-se às condições nas quais ocorreram a difusão do protestantismo no Brasil,

pode lançar luz para as práticas religiosas místicas que seguem as tentativas de modernização

do país. Boanerges Ribeiro (1973, p.84) mostra que a escassez de pastores conduzia a

soluções e emergência, tal como relatadas por Emílio Willems:

Indivíduos sem formação teológica freqüentemente sem cultura nenhuma,

eram eleitos párocos pelas comunidades. Este era um mestre-escola escorraçado, mal afamado como beberrão e jogador; aquele é um sargento desertor do exercito prussiano, sem rival em matéria de bebedeiras, o terceiro é um taberneiro de Porto Alegre que faliu diversas vezes e se tornou pastor por não achar outros meios de subsistência. O quarto é um sujeito de péssima reputação que não sabia nem escrever. Um outro que não era dos piores, fora lacaio de um conde, um outro ajudante de agrimensor e havia um que tinha sido alfaiate. No /rio Grande do Sul, havia talvez 40 pastores, ex-excreventes, ex-garçons ou ex-oficiais.

A chegada de pastores vindos do estrangeiro como, por exemplo, da Alemanha e da

Suíça em 1849, iniciou uma tentativa de comunhão das comunidades, ao menos

regionalmente, enquanto outras se mantinham isoladas, sem templos, com uniões conjugais

espontâneas. Os pastores evangélicos que chegaram do exterior foram se inserindo nas

agendas de sistemas de parentesco, que eram monopólio da religião católica, desafiando o

sistema jurídico que sobre eles pesava, com o conhecimento e a conivência de certas

autoridades, realizando assim casamentos, sepultamentos, batismos e acenando com a

construção de escolas que educavam a elite, com professores protestantes. Pastores

estrangeiros e brasileiros nas condições acima descritas desenhavam o caminho protestante no

Brasil, sustentados em uma composição impar de elementos culturais populares e eruditos.

Outras vezes, foi necessário participar de práticas religiosas no modelo tridentino católico,

sem que houvesse, contudo compromisso com a Igreja Romana. Foi o caso dos batismos, que

possibilitavam o registro legal dos recém-nascidos, único possível. Casamentos para serem

reconhecidos legalmente, também obedeciam ao catolicismo romano. Os protestantes

participavam, pois dessas práticas como forma de legalizar sua situação social no país, e

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aguardavam o pastor, para repetir a cerimônia apoiada em suas crenças. Dupla pertença102:

social e religiosa.

A esta altura é possível visualizar que as condições sócio-culturais do Brasil por

ocasião da chegada dos missionários no século XIX exigiam que fossem desenvolvidos meios

de comunicação eficientes com os membros aos quais eram dirigidas as pregações. O

instrumental provindo de uma formação cultural mais intelectualizada e racional mostrava-se

ineficaz para grupos sociais amparados na cultura popular, caracterizada pelos hábitos de

transmissão oral, com vocabulário relacionado às experiências e necessidades do cotidiano. O

choque entre universos culturais distintos se deu entre a formação, imaginário e projeto

missionário por um lado e por outro, o tipo de prática missionária que torna plausível a

realização de seu papel social. Esse conflito parece ser um elemento fundamental das

indagações de Simonton sobre os meios que empregava no exercício de sua função religiosa:

Ontem preguei na saúde. Usei notas, prática em que não devo continuar quando falar a esse povo. No Domingo anterior, em que falei de improviso e sem anotações, ganhei melhor a atenção de todos e lhes causei impressão mais profunda. Tive novas experiências de minha própria fraqueza e impotência, e necessidade da graça divina. Estou buscando experiências mais profundas das coisas divinas. Preciso cultivar minha própria piedade, ou nada poderei fazer pelos outros. Sou tão vazio de amor a Cristo e ódio ao pecado que temo haver algo errado comigo – e que pouco poderei fazer aqui. Deus é santo e eu não sou. Irá ele usar tal instrumento? (Simonton, 2002, p. 130).

Simonton, nesse texto extraído de seu diário, nos aponta a dificuldade que os

missionários tinham de comunicação e de viver a realidade de uma população de tradição

oral, na qual a adesão intelectual da escuta parece não ter instrumentalização para ocorrência,

menos ainda para ressonâncias. Nesse sentido é representativo que a prática inicial dos

missionários visando conversão, ou mesmo adesão permanente ao protestantismo,

apresentasse os elementos da espontaneidade, do improviso, da lógica instantâneos de um

momento, contextual e aberta a cultura popular. È possível que aqui os traços dos avivalismos

sejam fortes, pois Simonton, parece acreditar que com tal conduta, poderia desencadear

buscas de contatos mais profundos e íntimos com o sagrado. Pode-se encontrar elementos

para compreensão das aflições expressas por Simonton, quando se considera que a sociedade

latino-americana, ao ver de Rubem Alves (1982) formou-se como resultante traços sócio-

102 Curioso citar o caso da Sra Catarina Shcid, colona alemã, protestante, e casada com um português católico, por um pastor protestante. Foi abandonada pelo marido, que se uniu a outra pessoa de crenças católicas, e resolveu legalizar sua situação. Pediu parecer ao Conselho de Estado. Estava “desencadeada a tempestade”, afirma Ribeiro, (1973, p. 114).

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culturais aristocráticos, autoritários, elitistas de tradição ibérico-portuguesa católica, além das

raízes africanas e indígenas. O Protestantismo chegava da Europa e dos Estados Unidos como

representante dos valores de uma sociedade burguesa em desenvolvimento, que proferia

golpes profundos na sociedade aristocrática, especialmente nos movimentos de Revolução

Francesa e Americana. A declaração de Independência norte-americana, que apostava ao

menos ideologicamente nos direitos de todos os homens a vida, a liberdade e a busca de

felicidade, não iriam encontrar no Brasil as condições sociais favoráveis para seu

desenvolvimento, constituindo-se como uma ameaça de desintegração da ordem dominante,

conforme lembrar Alves (1982).

Diante desse contexto brasileiro parece plausível a postura de Simonton quando busca

um contato mais intimo e aprofundado com o sagrado. Alves (1982) afirma que o

Protestantismo deslocou a ênfase das estruturas sociais para o indivíduo. A proposta da

Reforma é que as estruturas sociais se subordinem às necessidades pessoais, quando essas

forem expressões máximas da liberdade humana. Essa idéia também foi afirmada por Paul

Tillich (1952) ao referir-se ao princípio protestante. Simonton reconhece a necessidade de

cultivar a piedade em si mesmo, para então se ver com capacidade de auxiliar os demais fiéis.

Piedade, não se refere à leitura individualizada do texto bíblico. Há aqui um retrato do

pecador, que se sente esvaziado de amor, do elemento sagrado que gostaria de reconhecer em

si. Nesse sentido há a busca de um locus espiritual, no qual o sagrado possa habitar o ser. Por

meios desse jogo entre o vazio e o pleno da divindade, opondo profano e sagrado Simonton

expõe a diferença de estados e poderes, a alteridade maximizada, elementos que conduzem a

dúvida sobre a própria potência como missionário. Assim, na visão do missionário americano,

somente o sagrado poderia ter as condições de transformação dessa situação, isto é pela graça.

Em outros termos há uma relação de dúvida e angústia do ser diante do porvir e da

possibilidade de morte de seu projeto existencial e espiritual. A crise de Simonton parece

expressar a necessidade de vivenciar a piedade como encontro místico com o sagrado que lhe

possibilitaria o exercício do sacerdócio universal. Essa prática religiosa confronta-se com o

autoritarismo e com os valores aristocráticos e hierarquizados presentes nas relações sociais

no Brasil. A disciplina como um estilo de vida protestante, é outro traço que possibilita o

rompimento da estrutura mental da relação dominante-dominado, conforme desenvolvido

pelas relações sociais autoritárias e aristocráticas, quando é interpretada como capacidade de

cada ser humano construir seu mundo e dominar seu tempo. A santificação proposta pelo

puritanismo poderia ser uma forma de luta de poder, com a autoridade religiosa e política.

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Porém no Brasil, a relação utopia- ideologia desenvolvida pelo Protestantismo missionário

tomou caminho diverso, afirma Alves (1982, p. 125-126):

(...) a oposição entre pessoal e as estruturas, tão características do Protestantismo poderia e deveria ter criado uma ética pela qual o pessoal aceitaria como sua vocação a transformação das mesmas estruturas às quais ele se pões, a fim de ser reconciliar com elas. Mas tal não se deu. E a razão para isto é bem simples e de fundamental importância para se entender toda a estrutura e funcionamento da mentalidade protestante. O Protestantismo, ao invés de entender a oposição entre o pessoal e as estruturas em termos dialéticos, interpretou-a em termos de dualismo. Dialética significa que o sujeito se opõe ao mudo entendo tal oposição como uma exigência de transformá-lo. (...), mas o dualismo não pode produzir outra coisa senão uma ética de conservação.

A perspectiva de Alves (1982) fornece elementos para a compreensão da a crise de

Simonton, diante do rumo que a mentalidade protestante tomaria no Brasil, desenvolvendo

traços de conformismo, passividade, espera e subserviência diante dos poderes políticos e

sociais dominantes, e nem sempre utilizando seus princípios para transformar o mundo, mas

aliando-se a possibilidades de domínio e repressão. Nesse sentido a conversão ao

Protestantismo pode ter um significado distinto de ser-no-mundo ativamente transformando-o,

passando a abrigar a idéia da peregrinação como passagem em um mundo marcado pelas

desigualdades, sofrimento e tentação a ser combatida. Nessa interpretação, o mundo humano é

mal, não há esperanças para ele. Resta ao fiel, voltar-se a idéia de paraíso como refugio para

tolerar sua passagem pelo mundo, escondendo-se na idéia de um futuro compensador e

promissor, uma rota de fuga e alienação, no aguardo da realização do pretérito do futuro: a

predestinação. Essa formulação de Alves (1982) embora não se aplique a totalidade do campo

abarcado pelo Protestantismo brasileiro, não deixa de ser uma proposta que auxilia na

compreensão das crises e das práticas religiosas missionárias diante de forças sociais

representativas dos conflitos de poder e de campos simbólicos, nos quais a experiência

mística pode significar o aprofundamento radical do individualismo, em sua faceta de

isolamento, ilusão, descompromisso e inibição social. Além desse tipo de risco, um

missionário como Simonton, ainda teria que se haver com sua bagagem cultural expressa em

sua biografia e nas características do seminário americano que o formou, que atribuiria a sua

“performance” pessoal seu sucesso ou não no desempenho de seu papel de líder.

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Simonton nasceu em uma família de educação cristã em 20 de janeiro de 1833. Quinto

menino da família iniciada pelo casal Willian Simonton e Martha Davis Snodgrass, passou

parte de sua infância em West Hanover, distrito de Dauphin na Pennsylvania. O pai de

Simonton era médico e morreu no início de sua juventude, bem como suas irmãs um pouco

mais tarde. Foi agente do jornal Presbyterian, juntamente com seu irmão James, bem como da

revista do mesmo grupo religioso, o que certamente lhe trouxe alguma experiência para o

jornal que iria fundar no Brasil: Imprensa Evangélica103e que foi publicado regularmente

durante quase três décadas contribuindo para a difusão da fé reformada no Brasil. Obteve

experiência como professor, permanecendo na Starkville Academy no Mississipi, e mais tarde

iniciou estudos jurídicos, optando pela carreira de advocacia. Em 1856 após reconhecer-se

entusiasmado com os estudos bíblicos, chega à conclusão quer tornar-se pastor, iniciando sua

freqüência ao Princeton Theological Seminary, completado dois anos depois. Durante essa

formação Simonton decidiu ser missionário. Sua experiência de estar entre estranhos, como

foi o caso do Mississipi, (1853) o mostra capaz da adaptação a situações novas e a concepção

de que devia a Deus seu bem estar nessas circunstâncias “A Providência me colocou entre

bons amigos e companheiros interessantes, e meu tempo e atenção centralizaram-se nos

deveres de professor”. (Simonton, 28 de julho de 1853).

Viana (2002) observa que por ocasião da estada de Simonton em Starkville, houve a

oportunidade de freqüentar um dos acampamentos do Sul, liderado pelos metodistas. Já havia

estado em outros antes, mas esse se tornou significativo pela possibilidade de entrar em

contato com os efeitos dos reavivamentos. Do ponto de vista de Viana (2002) Simonton

apreciou na época mais as questões da socialização como fartura de comida, moças bonitas e

ricas, do que a espiritualidade, comentado que havia necessidade de bons pregadores nos

acampamentos. Simonton ainda relata que viu vinte decisões de conversão no ritual de

batismos dos decididos. Porém a influência dessa experiências e da mentalidade reavivalista,

vai se manifestar em suas crises espirituais e na linha editorial que via imprimir ao jornal O

Estandarte, além das modalidades de pregação com traços emocionalistas e personalistas.

Ao ver de Costa (2003) a Teologia do Seminário de Princeton, estudada por Simonton

é uma síntese entre as vertentes Pietistas e Puritana, que não são excludentes, mesmo que se

103 Fazendo um esboço cronológico das atividades de Simonton, Hermisten Costa (2003) observa que o jornal A imprensa Evangélica, publicou sistematicamente com propósitos de aplicação ética e mística a obra O Peregrino, de John Bunyan . Esse jornal tinha uma gama variada de leitores, sendo distribuída tanto no interior dos estados como nas cidades maio res. Seus leitores eram padres católicos, pessoas pertencentes a camadas sociais mais abastadas, intelectuais, e mesmo Machado de Assim, quando discutia a questão da liberdade religiosa.

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considere a ortodoxia, tendo em vista que o princípio desse dois movimentos era o mesmo: a

autoridade de Bíblia. É justamente a harmonia desse principio que possibilitou a formação de

um corpo teológico consistente e duradouro. Costa (2003) observa que por ocasião de 21 de

Outubro de 1865, quando a Imprensa Evangélica completava um ano, Simonton, faz publicar,

no editorial, um dos textos que confirmariam essa articulação:

Com o presente ano acaba o primeiro ano da existência da Imprensa Evangélica. (...) Quanto aos frutos colhidos do nosso trabalho, o futuro melhor poderá dizer, e tranqüilos aguardamos a sua decisão, na certeza de que algumas das sementes da palavra inspirada, propagadas sobre as asas da Imprensa Evangélica, tiveram destino Providencial e acharam bom acolhimento em corações sequiosos de uma instrução tirada do puro Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. (Imprensa Evangélica, 21/10/1865, p.1).

A influência do Puritanismo pode ser observada ao ver de Costa (2003) na importância

atribuída por Simonton à figura de Jesus Cristo, tendo sustentado uma linha editorial no jornal

Imprensa Evangélica que enfatizava os feitos do filho de Deus, e os personagens bíblicos

dotados de sabedoria e os testemunhos da vida dos cristãos que seguiam o mestre. Esses

elementos eram utilizados como modeladores do comportamento dos fiéis, e forma de

manutenção de sua filiação ao protestantismo, possivelmente visando sua institucionalização.

Converter e institucionalizar eram atos de criatividade tal como ocorria no encontro entre

culturas diversas. Mircea Eliade (1979) observa que nas categorias das experiências

primordiais, estão as fontes de todos os complexos mítico-rituais, em que e artesão divino e

semi divino são ao mesmo tempo arquitetos, dançarinos, músicos e médicos-feiticeiros. No

plano mitológico frisa esse mesmo autor, que a ação de imitar os modelos divinos, vai aos

poucos se vendo afastada em função de um proveito novo, que é a própria arte da fabricação e

da criação. A capacidade, as habilidades, o arremate, criam a apoteose do homem faber, que

gera os objetos e suas representações sagradas. Os pioneiros do protestantismo no Brasil

parecem ter ocupado a função desse construtor, que detém o segredo oculto da fabricação e da

construção. Criam-se palavras, instituições, relações sociais, que são revestidas de valor

sagrado. No caso do protestantismo esse segredo parecia estar relacionado aos rituais de

leitura e interpretação dos textos sagrados, tomados como referência máxima, e as formas e

práticas religiosas, com ele associadas, que vão sendo modelas pelos pioneiros. Desse modo

delimitam-se os traços culturais e sociais desse movimento religioso, que tinha como uma de

seus ideais transformar o Brasil em povo evangélico, conforme mostra o editorial do jornal

Imprensa Evangélica, datado de 17/03/1866, p.45:

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Nos países onde a Bíblia é o livro do povo, a fonte em que todos bebem as primeiras lições da sua infância, é difícil encontrar com pessoa alguma, que não se recorde com saudades do como se embebia na vida de José e outras histórias da Bíblia, ou melhor, ainda escutava uma idolatrada mãe que as lia e comentava.

É interessante observar que nem mesmo a modalidade de prática trazida como

bagagem cultural e intelectual, por Simonton servia de imediato para os propósitos de

pregação, no contexto cultural brasileiro, fazendo com que na impotência da comunicação,

laçasse mão de elementos presentes na cultura popular. Portanto essa alternativa gerada nas

práticas missionárias talvez tenha se manifestado em tensões relacionadas à

institucionalização do protestantismo no país. Simonton deixava claro, conforme fez editar na

Imprensa Evangélica que o pregador deveria respeitar a língua do povo, dirigindo-se aos fiéis

no púlpito, de acordo com essas condições, o que facilitaria a comunicação e a difusão do

texto bíblico, o que pode ser observado conforme editada no jornal Imprensa Evangélica, de

03/08/1867:

Supondo-se a presença da Bíblia no púlpito e entre o auditório, como é que se deve ensinar o seu conteúdo? Na língua do povo e em um estilo ao alcance do povo. Depois de ler o se tema da Bíblia para que o povo o entenda, o pregador deve proceder á exposição de seu sentido e valor. A confrontação dos mais lugares sobre em que se trata do mesmo assunto, ou da mesma doutrina, derramará luz sobre sua verdadeira interpretação. (...) Estabelecer-se-á entre os oradores os ouvintes as mais cordiais relações e a função da pregação do evangelho se convertera em um forte estímulo ao entendimento como também aos afetos dos ouvintes. Não sabemos outro específico de dois males muito inveterados que atualmente tiram ao púlpito brasileiro todo o seu prestígio. Referimo-nos á matéria dos sermões do costume e ao estilo vago e empolado por que fala o nosso púlpito.

A linha editorial do jornal Imprensa Evangélica deixa entrever a relação pregador-

pregação-fiel proposto por Simonton. Além de exemplos e indicações claras para o exercício

das práticas religiosas, nota-se que esses editais articulam-se entre si, fornecendo também

indícios de princípios modeladores de Igreja, como pode ser visto na citação abaixo, que era,

portanto tornado público, fazendo dos possíveis leitores do jornal não só informados, mas

informantes desse modelo, na medida em que estavam sendo orientados a realizá- lo. As

menções ao Espírito Santo e seu papel são freqüentes nas publicações do jornal Imprensa

Evangélica, conforme pode ser observado na edição de 06/01/1866:

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O germe da Igreja Cristã foi uma reunião de cento e vinte pessoas que, nos dias posteriores á ascensão de Cristo, permaneciam juntos em uma casa particular, fazendo orações pela vinda o Espírito Santo que lhes havia sito prometido.

A postura de Simonton, enquanto um dos condutores da linha editorial do jornal

Imprensa Evangélica e como pregador deixam antever sua ambivalência quanto a postura

teológica. De um lado estimulava os fíéis a seguirem um comportamento exemplarmente

remetido as imagens de Jesus Cristo e de outro, buscava a postura pietista, caracterizada na

experiência religiosa individualista. Ao ver de Mendonça (1995, p.182) a postura de Simonton

é permeada pelas duas influências: o puritanismo calvinista e os avivamentos americanos.

Mendonça (ibid.) assinala que Simonton utilizou para ensino religioso no Brasil a obra O

Peregrino (Bunyan), repetindo a prática de Kalley, conforme registrou em seu diário

(28/04/1860). Além disso, essa obra foi traduzida e editada em pequenos trechos no jornal

Imprensa Evangélica, desde o final do século XIX. A religião interior é um dos focos da

prática religiosa do missionário americano, que talvez buscasse encontrar seu “lar”,

acreditando na existência dos dois mundos: terreno e celeste, cujo ponto de convergência ou

“porta estreita” encontra-se prática diária de uma postura santa juntamente com o cultivo da fé

intimamente vivida. As divergências ou mesmo diferenças dessas duas propostas religiosas

parece representar um conflito reconhecível por Simonton, quando se encontra em situações

de crise e sofrimento, como luto e pesar pela perda de sua esposa, solidão, medo do fracasso

missionário, conforme se encontram registrados em seu diário frente a essas circunstâncias.

Situações de mudança e de opressão são oportunas para emergência das polaridades

simbólicas que sustentam posturas religiosas, conforme apontou Bastide (1975) ao referir-se

ao sagrado selvagem. Esse aspecto da experiência religiosa individual ou grupal aponta para

polarizações no campo simbólico, cuja finalidade não é uma integração, mas no máximo uma

justaposição, tornando possível à coexistência de valores religiosos em oposição. O

misticismo parece ser o ponto de ligação entre pietismo (devocional e íntimo) e puritanismo

no modelo de prática religiosa proposto por Simonton. Elemento mediador dessa oposição

simbólica, a experiência mística parece ter a função de criar uma sensação de plausibilidade

entre indivíduo/comunidade; razão/emoção; e possivelmente entre crenças mágicas e crenças

racionais.

Para Roger Bastide (1975) a esperança, é um dos componentes do sagrado selvagem,

que se configura como uma categoria a priori no ser humano. Pergunta-se o que levava os

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missionários a permanecerem em terras brasileiras enfrentando perseguições e condições

adversas ao exercício de seu projeto religioso. Doenças tropicais, autoridades instituídas e

defensoras do catolicismo nos modelos de José de Anchieta, integrante de missão jesuítica

iniciada com a contra-reforma, dificuldades de comunicação com suas igrejas de origem,

solidão: elementos constantes entre os pioneiros estrangeiros. Talvez se vissem capazes de

tentar realizar “o sonho” que os conduzia através dos oceanos nos quais razão e emoção não

pareciam se distanciar em águas salgadas e doces, ao menos da forma ideológica como foi

visto pelos presbiterianismos que sucederam esses tempos. Nesse sentido as modalidades de

inserção do Protestantismo no século XIX, parecem apontar para uma perspectiva

contestadora, como sugerida por Desroche: processo de crítica a sociedade. Não porque esse

embate parecia ser buscado diretamente pelos missionários, mas porque as diferenças

promovem uma ameaça à hegemonia vigente, ou ideologicamente vigente da religião oficial.

Talvez os brasileiros que se convertiam ao Presbiterianismo nessa ocasião, a seguir pelas

idéias de Desroche e Bastide (1975) encontravam na experiência religiosa uma forma de

reajuste entre os ideais e o real da sociedade. Nutrindo-se do cristianismo missionário, e do

que fora fermentado a partir dos “Revivals” e retiros protestantes norte-americanos, a utopia e

a ideologia se desenharam em um horizonte próximo, até que a dinâmica da religião

impusesse novas formas ideológicas pelas vias institucionais. Desde esse ponto de vista torna-

se interessante refletir sobre as idéias de Ernst Bloch exposta em sua obra El Principio

Esperanza (1977) ao afirmar que a esperança é um dos elementos dos sonhos despertos, não

aqueles nos quais o homem se aliena, mas sim dos que mostram o inconformismo com o mal

que se apresenta. Encontrar o sentido dessas criações é fazer nascer às utopias, enquanto

leituras históricas A mentalidade racionalista-urbana, não comporta o princípio utópico, uma

vez que vê o mundo como concluído, que contém o mundo imaginário, no qual se reflete o

efetivamente dado, afirma Bloch (1977). Nesse sentido não busca o devir, senão que o busca

no imediatismo da lógica do repetir-se.

“lo querido utópicamente direge todos los movimientos de libertad, y todos los cristianos lo conecem tambiém a su modo como un conciencia moral amodorrada o emocionadamente, surgiendo del Exodo o de las partes mesiánicas de la Biblia” (Bloch, 1977, p.16 ).

A temática da esperança articula-se a da liberdade. Peter Berger (2004) observa que a

liberdade não é acessível empiricamente, embora possa ser experimentada como uma certeza,

juntamente com outras certezas empíricas, não sendo possível sua demonstração por

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quaisquer métodos científicos. No caso dos missionários brasileiros, ao se depararem com

uma realidade social e cultural diversa de sua, tinham que imbricar utopia e ideologia, nas

suas práticas religiosas, através de tramas de significados que o exercício da liberdade

delineava em manifestações provenientes de crises com facetas individuais e sociais, processo

que percorre o Protestantismo latino-americano, conforme assinalou Rubem Alves (1882).

Para a elite brasileira, o contato com o universo simbólico popular era obstaculizado por

preconceitos, tornando-se utópica sua assimilação de modo mais abrangente. Por outro lado,

para as camadas sociais populares as práticas religiosas relacionadas às proposições

intelectualizadas e racionais eram utópicas em seu significado. Inseridos na diversidade social

e simbólica do Brasil colonial, o missionário tinha no apelo emocional um denominador

comum entre as diferentes camadas sociais. A emoção tem a peculiaridade de atravessar

diferenças culturais regionais ou nacionais, embora se sustente nelas em sua possibilidade de

significação social. É possível que esse tenha sido um dos significados atribuídos ao

Pentecostes por Simonton, que enfrentava como os missionários as diferenças culturais,

incluindo a linguagem, costumes, hábitos, e valores sociais. È possível que fatores pessoais

como o processo de imigração, perda de familiares e os avivamentos tenham habilitado

Simonton a utilização das emoções nas práticas e crises religiosas, promovendo o transito

mais ágil e criativo nas relações sociais que implicam o contato com a alteridade. Em seu

pluralismo sócio-cultural, a realidade brasileira desafiava Simonton a dirigir-se

simultaneamente a “elite brasileira” e as camadas menos abastadas da população responsáveis

mais diretamente pelo crescimento do Protestantismo. Em seu diário expressa

emocionalmente sua fragilidade religiosa e seu retrato como peregrino apoiado por laços de

fraternidade e amizade, conforme registrado em seu diário:

Primeiras notícias de casa104. Sentei-me no quarto de cima e me diverti uma hora com essa festa para a alma. Senti como se a atmosfera de casa me envolvesse enquanto lia as cartas. Alegraram meu coração, aliviaram seu peso e deram-me forças para conviver com o que não pode ser mudado. Mais duro do que estar separado dos amigos é não ter amigos cristãos cujas orações acompanham o peregrino e alegram seu caminho. É confortador saber que, embora a minha fé seja tão pequena que não sei orar bem por mim mesmo, outros oram por mim e sei que são o povo de Deus. (Simonton, 2002, p. 128-129)

104 Hermisten da Costa (2003) observa que Simonton tinha conhecimento claro das doenças epidêmicas que atingiam o Brasil e especialmente o Rio de Janeiro, por ocasião de sua vinda e estada. Escreveu por diversas ocasiões em seu diário sobre o assunto, especialmente no ano de 1860. O risco com a saúde foi um dos que o missionário teve que enfrentar, ao lado das dificuldades de aprender o português, visando escrever e publicar, conforme estava em seus planos, além das pregações e da compreensão da realidade brasileira, que a língua possibilita.

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Havia por parte da elite brasileira uma atitude de rejeição e preconceito em relação às

produções culturais advindas das camadas populares. Ortiz (2001) afirma que a arte de curar,

a magia, o curandeirismo era considerado crimes pelo Código Penal de 1890. O alcoolismo e

a sífilis eram vistos ao lado das crenças populares como produtos da alienação, que

favoreciam a loucura e confrontavam a ordem social. Os cultos afro-brasileiros eram

considerados como questão de polícia, e os festejos tradicionais como “punir e queimar o

Judas” eram cerceados de ameaças de prisão. O Brasil era visto por este Brasil elitista como

um retrato de raças: inferiores (a negra e a indígena) e a superior (branca). Branca significa

aqui, “rico, educado na Europa, influente, aristocrata” e não o branco “pobre” ao qual se

referiu Mendonça (1995). Os espectros da população brasileira, potencialmente suscetíveis a

conversão protestante, eram distintos em interesses, condição sócio-econômica e cultural,

podendo representar forças sociais em conflito, e nessa condição influenciar as práticas

missionárias e seus estilos, bem como as experiências religiosas possíveis de ocorrência

dentro de um universo de violência e transformação cultural, que a modernidade gera. Se o

Protestantismo brasileiro representava utopicamente os anseios geradores dos projetos

missionários e de certos setores da elite brasileira por introduzir a modernidade no Brasil, já é

possível afirmar que esse processo não ocorreu de modo democrático, homogêneo, ou mesmo

representando progresso sócio-econômico. Os processos de modernidade trouxeram a

violência religiosa, expropriando parcelas da população de seus sistemas de crenças e valores

culturais, o que acarretou ao menos inicialmente aumento de insegurança pela ruptura das

correlações entre as construções simbólicas e sociais homem-mundo, afirmam Mendonça

(1995) e Hervieu-Léger (in Rivera, 1997). A modernidade simultaneamente destrói ou

inviabiliza aspectos da experiência religiosa da Idade Média e da Antiguidade, mas promove a

emergência de outros, que fazem com que representações religiosas se transformem e criem

maneiras singulares de coexistência de aspectos culturais aparentemente opostos. Um

exemplo desse processo pode ser visto na conversão e no transito de autoridades religiosas de

um sistema a outro, construindo identidades sociais e práticas religiosas até então

desconhecidas, como José Manoel da Conceição, o “padre protestante”.

Nesse cenário José Manoel da Conceição, ordenado padre aos 22 anos, vai tornar-se o

primeiro pastor presbiteriano em 1865. Sua conversão vai ampliar como jamais fora visto o

avanço do espaço missionário protestante no Brasil. Com ministério itinerante, comunicava-se

tão bem com os missionários estrangeiros em sua língua de origem, quanto utilizava seus

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conhecimentos de medicina para prestar serviços aos que os hospedavam em seu trajeto de

evangelização. Ao lado dos missionários estrangeiros, nasce um modelo de prática religiosa

presbiteriana de contornos próprios, arraigada nas tradições e hábitos populares. Aliado ao

acesso mais direto ao texto bíblico, provavelmente realizado de modo ainda

predominantemente edificado na tradição oral, os sentimentos e a experiência religiosa

protestante desse missionário, apontam para um esclarecimento e conhecimento do

evangelho, com traços marcadamente místicos. Sobre essa forma de pastoreio, afirma

Boanerges Ribeiro (1995) que é como uma modalidade de êxtase místico cristão, uma vez que

sempre Conceição em seus escritos e pregações se alimenta da Palavra de Deus inspirada pelo

Espírito Santo, sem se desligar das contingências dessa vida, aconselhando inclusive as

pessoas a seguirem uma dieta alimentar saudável, para que possam sempre estar em condições

de levar uma vida espiritual adequada.

Ao traçar estas linhas sinto que minha esperança e consolação é plena em meu Divino Redentor Jesus Cristo (1Jo,2:2) E Ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos mas também pelos de todo mundo. Achareis isto misterioso? Misterioso se conservará realmente enquanto não tiverdes vazado até às fezes no cálice da purificação uma bebida que fará contrair a vossa mandíbula. A todo esse amargor, porém, sucederá uma doçura inexprimível. Adormecereis. Desfalecereis de amor para com Deus; mas despertareis em triunfo mais glorioso por isso que é o mais difícil de alcançar, triunfo de vós mesmos. Sertir-vos-eis convertidos para com Deus, identificados com Cristo. Só então sabereis o que é aspirar e respirar a atmosfera da vida cristã” (Conceição in Ribeiro, 1995, p.46).105

Foi o Dr. Teodoro Langaard, médico liberal dinamarquês, que ensinou a Conceição o

idioma alemão, além de história, geografia e medicina. A biografia de Conceição o mostra um

leitor de livros eruditos e especializados em vários idiomas, como o francês e o inglês,

contempla também passagens como dormir em celeiros e choças, cobrindo o corpo com

ramos, e prestando serviços humildes como varrer, lavar, limpar as casas nas quais se

hospedava. Consolava as tristezas dos aflitos, e prestava serviços de enfermaria, conforme a

afirmação de seu primeiro biógrafo o Coronel Fausto de Souza, que com ele permaneceu na

noite de sua morte (25 de Dezembro de 1873) após ter saído da prisão. O Coronel foi um dos

últimos convertidos ao Protestantismo através da influência direta de Conceição. Assim, ele

mesmo definia seu papel evangelizador:

105 Esse trecho da Profissão de Fé Evangélica, escrito por Conceição foi publicado no jornal A Imprensa Evangélica de acordo com Boanerges Ribeiro (1995). Sobre Conceição, de quem foi biógrafo.

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(...) o espírito do Senhor está sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me a curar os quebrantados de coração e apregoar a liberdade aos cativos, e dar vista aos cegos; a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor. (Conceição, in Ribeiro, 1995, p. 54).

As alusões de Conceição a presença do Espírito Santo em suas práticas são constante

em seus escritos e nos depoimentos dos que o acompanhavam. Atribuía as conversões, “os

milagres’, a ajuda recebida nas missões, a sobrevivência nas perseguições sofridas à graça de

Deus para com ele. Sozinho ou acompanhado por “aprendizes de pastor”, Conceição orava

durante horas seguidas, ajustando suas pregações as condições sociais dos grupos que

encontrava, sem preocupação de voltar ao local, para realizar práticas religiosas

institucionalizadoras do Protestantismo. Essa função geralmente ficava a cargo dos

missionários estrangeiros de sua geração.Comenta Ribeiro (1995, p.54) que em 1865

implantou-se no Brasil, de modo precário um concílio da Igreja Reformada, no qual estavam

presentes Alexander L. Blackford, Simonton e Schneider:

Modelado nas lutas épicas dos séculos XVI e XVII em Genebra, na Escócia e em Westminster; e nos séculos XVIII e XIX na colonização norte-americana, com sua Guerra de Independência e sua conquista do Oeste. São apenas três pastores. Mas seu patrimônio espiritual é formidável. Durante 18 anos o padre José Manoel da Conceição tinha tentado iniciar reformas na religião praticada por seu povo, mas havia sido manietado em sua expressão, amordaçado (...) Foi então ordenado ministro do evangelho e o fez sobre o texto de Lucas.

Enfrentando perseguições por parte da população, do clero católico, da polícia,

Conceição lança um modelo de prática missionária que implica em uma jornada itinerante106

pelo interior do Estado de São Paulo, Sul de Minas e Vale do Paraíba, geralmente a pé.

Modalidade de ser identificado com Jesus Cristo: pregações, prestação de serviço aos

humildes, abnegação dos bens materiais, leituras da bíblica, e uma relação tangencial com a

institucionalização do Protestantismo. Importante observar que Conceição foi um dos

106 Pregadores itinerantes são comuns na história do Cristianismo, parecendo compor sua tradição. Já na Galiléia no século VI, até o ano de 1100, quando se tornaram mais importantes e numerosos, observa Norman Cohn (1980). Andavam de terra em terra, imitando os apóstolos. O movimento da Reforma fazia intensificar o zelo religioso dos leigos, dos homens e mulheres que tinham anseio de modelos como os apóstolos. Em certas ocasiões isso incomodava os domínios da igreja, que os acusava de serem servos de Satanás, como na inquisição, ou ainda de heresia.Porém em outras épocas, recebiam autorização papal, como no tempo de Henrique. As Ordens Franciscana e Dominicana são tentativas institucionais de modelar essas atitudes, sobre a égide da vida apostólica. Ao ver de Cohn, representavam anseios do Cristianismo primitivo no interior da Igreja Institucional. Essas congregações atrás dos muros, muitas vezes enriqueciam, deixando para trás alguns fiéis que se rebelavam e tomavam um rumo independente, aparecendo em trajes simples, publicamente vistos como profetas, loucos, messias, ou mesmo deuses ou seres especiais relacionados a divindade, que proclamavam um novo horizonte.

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fundadores do jornal Imprensa Evangélica e que parece ter se tornado exemplo de pastor para

muitos dos evangelistas que o conheceram e por ele se deixaram influenciar. De acordo com

Hahn (1989) Conceição andava só ou acompanhado por jovens da igreja, pelas ruas das

pequenas cidades e estradas, indo de casa em casa, e perguntando as pessoas se elas sabiam o

que era o pecado e que Deus as amava. Ajoelhava sobre um lenço, orava e pedia pela sua fé e

conversão. Foi traçando o mapa das primeiras igrejas no Brasil, que eram edificar a seguir,

uma vez que muitas vezes enviava a Blackford a lista das pessoas que tinham se “decidido por

Cristo’’. O tipo de prática religiosa proposto por Conceição chamava atenção da capital (Rio

de Janeiro) para o culto que praticava, e muitos estudantes começavam a pedir informação

sobre seu modelo de evangelização. O jornal O Puritano em 1900, continha um artigo de

Trajano 107 (28/07) que homenageia Conceição, por ocasião do aniversário de sua morte, e

tomando-o como modelo a ser seguido por aqueles que testemunharam seu ministério e

ouviram suas pregações, uma vez que produzia nas almas efeitos muito inspiradores,

edificantes e duradouros.

Contando a História da Igreja Presbiteriana no Brasil, Ferreira (1959) traz citações de

escritos de missionários protestantes em sua jornada pelo interior de São Paulo e outros

estados, que retratam o modelo que praticavam: itinerante, distribuindo bíblias e panfletos,

fazendo das praças e das ruas o cenário para suas pregações, conforme pode ser observado:

A 25 atingimos Taubaté: o Sr conceição pregou à noite a cêrca de 20 pessoas em casa e muitas na rua. Na noite de Sábado, 26, preguei a 20 ou 30 na casa e uma multidão fora. Domingo, segunda, terça, quarta, quinta e Sábado à noite foi continuada a pregação em Taubaté. Às vezes havia 200, 300 pessoas na rua ouvindo atentamente. Duas vezes tivemos de mudar de local das pregações, por causa da oposição e intrigas, e foi difícil arranjar local adequado. (Blackford). Ontem o Sr. Blackford e o Sr. Miguel Torres foram à Pindamonhangaba para pregar lá, e eu com o Sr. Conceição ficamos para pregar aqui e eu tenho feito que posso, não só vendendo Bíblias, mas espalhando folhetos e falando; Aqui moram 12 padres, e já experimentei a força de 4, encontrando-me com 2 em numa casa, onde me recolheram para dentro e me tararam com muito agrado. Apresentaram a Bíblia e começamos logo a discussão por ela... Os dois padre disseram que gostam muito de mim, e que sentiam se eu protestante, e eu lhes disse que também simpatizava com eles e sentia que

107 Carl Joseph Hahn (1989) descreve Trajano como um dos primeiros alunos do curso de teologia, tendo se tornado evangelista pela primeira vez em Borda da Mata, Minas Gerais, tornando-se mais tarde pastor da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro. O primeiro Manual de Culto foi redigido por Modesto P.B. de Carvalhosa, mesmo que permanecesse como uma publicação pessoal, ou para orientarem leigos. Foi publicada somente em 1968 pela Casa Editora Presbiteriana. Como erudito Carvalhosa auxiliou Blackford na tradução do Novo Testamento para o português assim como de outras obras de exegese bíblica. Seguia os métodos de Conceição na evangelização a quem acompanhou em suas jornadas de pregação especialmente em Sorocaba (interior do Estado de São Paulo).

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eles não fossem protestante ( Antônio Pedro). E assim a caravana penetrou no mês de fevereiro, Caçapava, S. José do Paraíba, Taubaté, Jacareí de novo (...).

Em muitas situações aproximações entre padres católicos e missionários foram

freqüentes, havendo conversões ao Protestantismo, especialmente por herança de Conceição,

conforme mostra Ferreira, (1959, p.386-387).

Antônio Teixeira de Albuquerque

1840-1887

Alagoano, padre que ouvia secretamente o

Evangelho

Maximiniano Baiano de Nazaré, capelão do sul do país.

Francisco Rodrigues Santos Saraiva

1834-1900

Vigário do Rio Grande do Sul, Português.

Guilherme Dias Vigário em Pelotas

Constâncio Omero Omegna

1877-1927

Italiano, estudou com salesianos para ser

missionário

Referindo-se aos processos de institucionaliziação da religião, o sociólogo Thomas

Ódea (1969) mostra que a experiência com o sagrado na conversão representa um

rompimento com a visão comum de mundo, constituindo-se em momento carismático. Essas

idéias estão de acordo com as de Weber (1946), ao apontar que o líder que promoveu a

experiência religiosa é imediatamente associado na mente do convertido a um representante

do sagrado. O que é dito, solicitado, indicado por ele, é atendido, porque adquire as

características do sagrado, para o grupo que o instituiu, abrindo as portas, através da

comunicação dentro da comunidade e inter-comunidade para expansão de suas idéias e

práticas religiosas. O carisma se associa ao auto-sacrifício, entusiasmo, devoção relacionada

ao sofrimento e anunciadora de modalidades de suportá-lo e vencê- lo. A morte, do líder gera

uma crise de continuidade para que a institucionalização do movimento religioso se consolide.

A cultura e a sociedade existente nos Brasil colônia são marcadas por inúmeros

processos de tensão e acomodação, entre os processos de conversão e a institucionalização

das práticas religiosas protestantes, que incluíram casamentos entre católicos e protestantes,

perseguições, dupla pertença, alianças ilegais com autoridades locais, guerra de imprensa,

sepultamentos em anexos, questões de polícia, onde o carisma, culto e ritual permeava a vida

dos fiéis, de acordo com o que foi descrito por Ribeiro (1973, p. 149):

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Foi em junho de 1866 que se deu o primeiro contato: Conceição passou por lá, acompanhado de Carvalhosa. A fama o precedia, inundando as duas margens do Paraíba, e em Lorena foi ele pela primeira vez, detido por uma autoridade constituída: ao chegar recebeu ofício do delegado proibindo-lhe de pregar na cidade. Assinara o papel um José Araújo Leite. Isso deu a Lorena um lugar de honra nas cogitações dos pregadores, que desde então não a abandonaram. Blackford dirigiu um protesto ao Vice-presidente da Província, e concluiu o oficio policial, pedindo as necessárias providências. Ao voltar do Rio, Conceição se deteve na cidade e pregou (...) A notícia triste é a que dá a República, que o Sr. Conceição chegara à Cidade de Campanha, e que lá não achara hospedagem em estalagem alguma, sendo depois espancado e lançado fora da cidade por um grupo de homens.

O carisma parece ter sido a modalidade de prática religiosa que percorreu as atividades

religiosas de Conceição, observáveis no modo itinerante de suas práticas religiosas,

despojamento com suas condições pessoais de saúde e alimentação, a incansabilidade e

emocionalidade de suas pregações. Tal modelo gerou seguidores, fiéis e reprodutores, bem

como reconhecimento de sua eficácia pelo grupo de missionários que o cercava. Para Weber

(1946) há um magnetismo carismático, observável tipicamente nos xamãs, epiléticos,

guerreiros furiosos, piratas, demagogos, profetas. Entre os elementos comuns, que os

aproxima, encontrar uma capacidade de demonstrar emoções, de todos os tipos. Pode existir

uma espécie de estado de consciência alterada, fora dos padrões das relações sociais comuns,

mas latente na cultura, podendo inclusive caracterizá- la. Veja-se a esse respeito, a citação de

Fausto de Souza, biógrafo de Conceição (in Ferreira, 1959, p. 88-89):

Do vestuário só tinha o que lhe cobria o corpo, e quando êsse se achava muito estragado, os seus amigos lhe ministravam outro, se sabiam que ele não dispunha de meios para comprá-lo. (...) Durante suas longas peregrinações ocupava as horas de ócio em escrever a lápis sermões, traduzir artigos religiosos, tomar apontamentos e notas curiosas sobre tudo o que via, observações topográficas e meteorológicas, vocábulos e têrmos especiais usados nos diversos povoados, procurando sua origem e raízes, quaisquer fatos que lhe pareciam interessantes da história natural, acompanhando-os às vezes de desenhos explicativos, ligeiros, mas que denunciavam rara aptidão. (...) Sua frugalidade era tal que com qualquer coisa se satisfazia durante o dia inteiro: uns ovos, leite, um pouco de farinha de milho ou mandioca, ervas, café e açúcar, constituíam quase sempre os seus alimento. Desses gêneros, os que lhe davam agradecia sempre com humildade, mas se assim não acontecia, também não os pedia (...). Porque, conformando-se com a ordem dada por Jesus Cristo aos apóstolos, ele não possuía alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão e o mesmo dinheiro que levava para o seu sustento limitava-se a alguns tostões.

As observações de Mendonça e Velasques (1990) sobre a era missionária a

representam como expansionistas do mundo protestante, propagando uma intenção de culto

de “conversão-reconsagração”. O êxito do trabalho de um missionário seria avaliado pela

quantidade de pessoas que havia aderido à denominação. Houve um descompasso entre o

trabalho dos missionários e dos pastores que os preparavam para o culto. Como esses últimos

não possuíam formação das igrejas-mãe que os habilitasse para trabalhar com os aspectos da

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realidade nacional, na maioria das vezes imitavam a forma de ação dos missionários, o que se

reflete no culto. Consideram Mendonça e Velasques (1990) que os Salmos e Hinos, os Coros

Sacros e a teologia é de índole pietista e individualista, bem como uma mescla das várias

tendências denominacionais como batistas, metodistas, presbiterianos. Os temas como “vida

futura e peregrinação” são numerosas e a novidade fica por conta “de exposição das

excelências da vida cristã’. Os espaços de cultos são as casas ou os templos sem adorno, ou

cuidados de decoração mais refinados. Há pequenos templos ou capelas, o que faz surgir uma

tradição quase que caseira e artesanal de relações sociais no campo religioso. O personalismo

e o individualismo são alimentados e constitutivos dessa fase missionária, que deixam traços

nos dias de hoje. Veja-se o sermão de Simonton lido no Presbitério do Rio de Janeiro no dia

16 de julho de 1867:

Cuidemos, pois primeiro que tudo na pregação do Evangelho por meio de uma vida santa, por meio de vigilância e oração, conservemos aceso o amor de Deus em nossos próprios corações a fim de que possamos ser bem sucedido em nossos esforços para o bem dos que tem por seus pastores. Outro meio de pregar o Evangelho é a disseminação da Bíblia e de livros e folhetos religiosos. Deste modo, pode-se dar notícias de Jesus aos muitos que não querem assistir ao culto público. Nessa época a impressa é a arma poderosa para o bem ou para o mal. Devemos trabalhar para que se faça e se propague em toda a parte uma literatura religiosa em que se possa beber a pura verdade ensinada na Bíblia. Outro meio de pregar o Evangelho ao alcance de todo crente é conversando com seus amigos conhecidos e vizinhos e trazendo-os ao culto público. (...) Cada um (os apóstolos) se esforçou para a propagação das boas novas da salvação.(...) Nada devemos empreender sem suplicar a Deus que envie do alto o seu Espírito para assegurar -nos êxito (...) Se Deus é por nós, quem será contra nós” (Simonton, 2002 p.179:184).

Esse sermão proferido por Simonton tem como objetivo elencar as modalidades de

atividade missionária para implantar “O Reino de Jesus Cristo no Brasil’. De acordo com

Mendonça e Velasques (1990) havia uma tendência no protestantismo brasileiro de trabalhar

incansavelmente, para essa finalidade supostamente. As idéias maniqueistas de luta entre o

bem o e mal, faziam dos fiéis obreiros para quem o ócio era impensável. Todos trabalhavam,

ao dispor da evangelização, na crença de que estavam a serviço de Deus, para o qual nada era

impossível. Essa forma de estar no mundo, do homo faber, permite muitas interpretações,

como já foram feitas nessa tese, e aqui acrescenta-se a elas, o conhecimento da Psicologia de

que as atividades obsessivas individuais ou coletivas, tem a finalidade de organizar e controlar

as relações com o mundo, minimizando o efeito das angustias e ansiedades ligadas

geralmente a insegurança, mudança que advém dos conflitos gerados nos processos sociais.

Entre os muitos aspectos associados a insegurança, pode-se elencar a multiplicidade de

identidades protestantes que se configuravam ao longo da sua história, na qual cada eleito

“escolhia” a imagem de Jesus Cristo que lhe servia de modelo, conforme aponta Campos

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(2001): “salvador pessoal”, “moralista”, “mestre”, “amigo”, “esposo”. A eles agrega-se “todo-

poderoso”, “filho exemplar”, “companheiro de todas as horas”, “salvador do mundo”,

“curador do corpo e da alma”, “filho abençoado”, “guerreiro” constituindo um caleidoscópio

protestante, que cada vez que gira traz novos mistérios e formas místicas de aproximação do

sagrado e de construção de mundo, como por exemplo, as formas mais instantâneas da alta-

modernidade, que no cenário brasileiro, anteciparam-se sem que a modernidade propriamente

dita, tenha demonstrado sua potencialidade de realização de modo pleno. Essas imagens de

Jesus Cristo servem de guia para o fiel, um santuário vivo que pode ser presentificado em

performances individualizadas, carismáticas já experimentado pelos missionários. Muitas

dessas imagens têm origem cultural diversas: rebaixa-se Jesus a santo, promove-se o fiel pela

santificação. Assim, Catolicismo e Protestantismo aparecem no campo religioso brasileiro,

como unidades que o fiel aproxima e distancia, criativamente, talvez com paralelismos da

secularização que pulveriza e fragmenta aspectos das religiões tradicionais, conforme permite

pensar os estudos de Hervieu-Léger (in Rivera, 1997). A titulo de exemplificação dessas

imagens, cita-se a seguir, trechos do sermão O Nascimento de Jesus, da autoria de José

Manoel da Conceição, conforme publicação no jornal Imprensa Evangélica de 08/1881:

O homem verdadeiramente grande é simples, porque um lustro emprestado não lhe é necessário. A simplicidade dá ás grandes virtudes um novo preço, aos grandes talentos um novo brilho. Ella faz amar todas as outras qualidades e chega até a fazer perdoar a superioridade. Os pastores escolhidos sobre todo o gênero humano para conhecer e adorar a Jesus Christo nascendo, simples de coração como de condição, cumprirão com assiduidade os deveres de uma vida laboriosa, e longe das vistas do mundo, velavam sobre o rebanho que lhes era confiado.(...) O evangelho nos faz observar que os pastores se viram cercados de uma claridade divina, que primeiro os aterrou. Também nós somos investidos de todas as felicidades de uma claridade divina. A graça nos fez nascer no meio da claridade pura da revela ção. (...) O anjo anima os pastores, instruindo-os do objeto de sua aparição. (...).

Esse presépio vivo, que retira do altar os santos e os mundaniza, é um dos efeitos do

Protestantismo no espaço religioso brasileiro, que juntamente com as concepções e idéias

Pietistas deitaram raízes, podendo ser encontradas nas modalidades de práticas missionárias e

escritos de Simonton, bem como nos de Conceição. Pode-se observar que ambos sustentam

atitudes alicerçadas em uma espécie de teologia prática, na qual os crentes devem participar

dos serviços religiosos, ensinando uns aos outros e buscando facilitar a conversão. Atitudes e

comportamentos “santos” são exemplos para essa conversão; oração e amor como

manifestações da “luz interior” devem pautar as relações com o outro, que são dedicadas,

numa espécie de devoção ao próximo. A Bíblia tem superioridade sobre as instituições, uma

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vez que assim se interpreta a máxima que os crentes participam do sacerdócio universal. No

Brasil essa atitude dos missionários pode ser pensada não só como produto das influências

pietistas trazidas dos avivamentos e das idéias européias da Reforma, mas também como

criação necessária a cultura religiosa, que viabilizaram a expansão do Protestantismo no

Brasil. Dadas as condições culturais e sociais presentes durante o império, provavelmente

modelos mais formais e institucionalizados não permitiriam que essa expansão se realizasse,

haja visto o pano de fundo da cultura religiosa brasileira, que além do catolicismo, estava

permeado de práticas mágicas e feitiçarias, assunto que será objeto de atenção em capítulo

posterior.

No que se refere à modalidade de teologia conversionista praticada pelos missionários,

torna-se interessante atentar para a metáfora do nascimento. Do ponto de vista de Harvey Cox

(s/data) o nascimento mostra um elemento único, um devir possível, que se relaciona ao

passado, mas abre-se a visão e à atitude individual e social inusitada. Ao seu ver, o

nascimento como uma das imagens relacionadas à conversão, aponta para a morte de um certo

tipo de domínio cultural e simultaneamente para os anseios de uma nova forma de relação

social e religiosa. A experiência de conversão não deixa de ser uma espécie de tomada de

consciência que possibilita: a) reconhecimento do entrelaçamento do eu com o mundo; b)

nova representação de liberdade; c)vislumbre dos sistemas de controle que impelem a

dependência e a inatividade. Nesse sentido o misticismo, enquanto movimento de

aproximação do sagrado, presente à experiência de conversão, não deixa de ser esse locus

privilegiado, no qual esse vislumbre pode ocorrer, não necessariamente de modo êxtatico, mas

sim como manifestação de alegria pela emergência de um novo horizonte existencial, onde a

criação simbólica tem um papel fundamental, na possibilidade de um “novo mundo”.

A conversão implicava em uma nova visão de mundo, na qual a atitude do fiel, suas

maneiras e viver e de pensar, eram vistos como exemplos para os demais. Deste modo as

práticas advindas de modelos avivalistas (conversão) e de discurso comportamental puritano

se “casavam”. O emocionalismo presente na conversão cedia lugar a uma peregrinação e uma

pregação de cada fiel, em busca de anunciar a boa nova com seu comportamento, visto por

Simonton como prioritário à leitura do texto bíblico, especialmente enquanto instrumento

eficaz na promoção de conversões, conforme registrou em seu diário em 31/12/1866:

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Fazendo um retrospecto de minha própria vida durante o ano que agora se encerra, tenho de condenar-me. Posso indicar algum trabalho que foi feito da melhor maneira que pude, mas será que progredi na direção do céu? É aqui que m sinto em falta. Não posso ir além da prece do publicano:” Ó Deus, se propício a mim, pecador. Será sempre assim comigo? A própria pressão e atividade da vida exterior tem empanado minha comunhão com Aquele para quem esses mesmos serviços são feitos. Quantas vezes minhas devoções são formais e apressadas, ou perturbadas por pensamentos de planos para o dia. E pecados muitas vezes confessados e lamentados tem mantido seu poder sobre mim. Quem me dera um batismo de fogo que consumisse minha escória, quem me dera um coração totalmente de Cristo. (Simonton, 2002)

É possível interpretar esses escritos de Simonton a partir da teologia de Paul Tillich

(1986), quando afirma que o misticismo e o racionalismo não se contradizem

necessariamente. Esse autor sustenta que em todas as religiões o elemento místico esta

presente, uma vez que é fundamental a experiência da presença de Deus no homem e sua

participação interior na divindade. Do ponto de vista de Tillich (1986) o misticismo era o

elemento comum entre o pietismo e o racionalismo, especialmente como se manifestou nos

avivamentos e seus desdobramentos. Na concepção desse teólogo do protestantismo, se isso

não ocorresse, o Protestantismo se transformaria em um sistema de mandamentos morais, as

doutrinas seriam colocadas no altar. O sentido da religião e o sistema de ética se perderiam,

não significando mais que um código normatizadora ser seguido rigorosamente. O conceito de

“luz interior’ mostra a relação existente entre a tradição agostiniana-franciscana, de origem

medieval e que foi ‘renovado” pelos movimentos da Reforma, estando presente

significativamente na teologia americana, especialmente àquela que se relaciona aos

avivamentos. “A luz interior é a luz que todos carregam dentro de si porque todos pertencem a

Deus. É por causa dessa luz que as pessoas podem receber a Palavra divina quando proferida

para elas”. (Tillich, 1999 p.55).

O misticismo também pode ser compreendido como o desejo de entrar em contato

com o sagrado, quando analogicamente representando a relação com o “divino” que salva das

condições sociais marcadas pela precariedade. Havia no Brasil a presença de uma mentalidade

política evidenciada pela busca de um poder, fosse o Estado, fosse o sagrado, que poderia

promover a presença de um “novo mundo”. Carvalho (1990) aponta que os vários grupos que

se identificavam com o modelo republicano de governo, entre os quais pode-se citar, os

bacharéis desempregados, militares insatisfeitos com o salário, operários do Estado em busca

de carreira, migrantes urbanos, viam no Estado o porto de salvação. Não buscavam

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exatamente seu direito de cidadão108, mas uma “força”, ou um “ente” que os retirasse da

condição socia l insatisfatória na qual se viam, ao menos como uma necessidade social

premente.

Do ponto de vista de Eliade (1979) o entusiasmo demiúrgico nasce do obscuro

pressentimento de que o grande segredo consistia em trabalhar mais depressa do que a

Natureza, isso é intervindo nos processos da vida cósmica circundante. O mesmo autor

clarifica que universalmente os primitivos fazem do poder mágico-religioso a idéia de algo

ardente e o exprimem sobre os termos como calor, queimadura, muito quente. Isso justifica

porque muitos feiticeiros, mágicos, fazem rituais para aumentar o seu calor, especialmente o

calor interior. Vejamos nas palavras de Eliade (1979 p. 63):

O verdadeiro significado do calor mágico e do domínio do fogo não é difícil de adivinhar: esses poderes indicam o acesso a certo estado extático, ou em outros níveis culturais a um estado não condicionado de perfeita liberdade espiritual. O domínio do fogo e a insensibilidade tanto ao frio extremo como à temperatura da brasa traduzem em termos sensíveis o fato de que o xamã ou o iogue superaram a condição humanas e já participam da condição própria dos espíritos.

O aumento do calor interior relacionado ao Espírito Santo, tal como foi referido pelos

missionários, além de suas práticas de trabalho constante, desafiando as limitações das

condições humanas, aponta para uma concepção mística de sua função religiosa. A tentativa

de reproduzir na terra, o que se compreendia como ordenação divina, o poder atribuído à

palavra como gerador do calor da conversão, a indicação da salvação como destino do homem

que o aproxima do sagrado, conduziram a um modelo de prática missionária na qual

espiritualidade e causas sociais se aproximavam, trazendo um aumento da atividade religiosa

voltada ao mundo social, ao menos em certas vertentes do protestantismo, como por exemplo,

o metodismo. O herói, o iniciado (convertido), os construtores (pioneiros), assim como os

xamãs, ferreiros, e reis míticos da idade média são comparáveis segundo o ponto de vista de

Eliade (1979) pelo poder de transcender a condição humana, até os limites do código religioso

108 Carvalho (1990) mostra que a República brasileira foi proclamada em momento de intensa especulação financeira, promovida especialmente pelas grandes emissões de dinheiro, necessárias frente a abolição da escravatura. A sociedade era marcada por profundas diferenças sociais e de hierarquia. Muitos intelectuais dessa época identificavam o Brasil, como um país sem povo, apontando conflitos entre o privado e o público (o clientelismo) e o indivíduo e a comunidade. Convivia-se em pequenos grupos, mas não se conseguia organizar a sociedade. Intelectuais como Silvio Romero e Alberto Sales, citados por Carvalho (1990) acreditavam que no Brasil, as dificuldades ocorriam por falta de iniciativa, de consciência coletiva, excessiva dependência do Estado, e “política alimentária”, que daria origem à visão populista de sociedade, política e história.

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instituído, abrindo a brecha para uma nova forma instituínte, ou ao menos para o que se

expressa como resíduo do anteriormente instituído. O fogo, considerado em uma leitura

simbólica, pode ser visto como elemento transformador, que modifica o estado da matéria,

conduzindo-a da natureza terrena a espiritual. Modifica o mundo, sem propriamente pertencer

a ele, indicando a duplicidade de sua natureza e do poder que nessa faceta reside. A menção

do fogo, como componente essencial a fé, tem registro oficial, no jornal Imprensa Evangélica,

datado de 08/1881, com o titulo de O Mundo Pode Ser Evangelizado em Vinte Annos :

A empresa da evangelização do mundo é perfeitamente praticável. Só necessitamos de esforço sistemático, de fé ardente e de oração fervorosa. Os filhos desse mundo radiariam a terra com os homens e os meios, em dez anos se tivessem diante de si um projeto com prospecto de semelhante sucesso. Porque hesitamos? (...) Que haja um pedido universal de trabalhadores e de dinheiro e uma sistemática colheita de ofertas. A grandeza da proposta faz estremecer a própria pena que a traça sobre o papel. E, contudo, depois de olhar calma e friamente, não vejo nada que impeça um tal glorioso resultado, senão a falta da unção divina.

A conversão implicava em uma nova visão de mundo, na qual a atitude do fiel, suas

maneiras e viver e de pensar, eram vistos como exemplos para os demais. Deste modo as

práticas advindas de modelos avivalistas (conversão) e de discurso comportamental puritano

se “casavam”. O emocionalismo presente na conversão cedia lugar a uma peregrinação e uma

pregação de cada fiel, em busca de anunciar a boa nova com seu comportamento, visto por

Simonton como prioritário à leitura do texto bíblico, especialmente enquanto instrumento

eficaz na promoção de conversões, conforme registrou em seu diário em 31/12/1866:

Fazendo um retrospecto de minha própria vida durante o ano que agora se encerra, tenho de condenar-me. Posso indicar algum trabalho que foi feito da melhor maneira que pude, mas será que progredi na direção do céu? É aqui que m sinto em falta. Não posso ir além da prece do publicano:” Ó Deus, se propício a mim, pecador. Será sempre assim comigo? A própria pressão e atividade da vida exterior tem empanado minha comunhão com Aquele para quem esses mesmos serviços são feitos. Quantas vezes minhas devoções são formais e apressadas, ou perturbadas por pensamentos de planos para o dia. E pecados muitas vezes confessados e lamentados tem mantido seu poder sobre mim. Quem me dera um batismo de fogo que consumisse minha escória, quem me dera um coração totalmente de Cristo. (Simonton, 2002)

Desse ponto de vista, faz compreender como a conversão, enquanto experiência

mística pode abrir as portas para uma visão apocalíptica, onde o sonho julga o que deve

permanecer, o que deve nascer e o que deve fenecer, visada por um outro que habita

temporariamente a maneira de ser do fiel. Entremeia-se o novo entre uma institucionalização

e outra. Busca-se um espelho, que só o contato último com a alteridade, em sua radicalidade,

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traz em júbilo ao fiel. Tal parece um dos sentidos da peregrinação, que encena e teatraliza a

passagem na paisagem terrena, sem se fixar, embebedando-se de imagens, que não se agarram

ao eu, mas lhe servem para apontar uma experiência com o sagrado, que se encontra ali no

vão entre as paredes das formas religiosas. Jogo coletivo e individual, tensão entre razão e

emoção, que se dá como movimento necessário de desprend imento das estruturas simbólicas e

sociais, que se escondem e se revelam em um aspecto ou outro da existência, nos quais o ser-

social não se prende para que possa gerar o novo, ou ao menos, desgarrar-se temporariamente,

do que lhe agarra “a alma”. O texto Bíblico parece ocupar o lugar de porta, ou testemunho

desse processo, tal qual é anunciado pelo peregrino. A revelação parece uma faceta, que

prende ao chão e paradoxalmente conduz mais além, anunciada pelo que prega e abre as

portas à conversão.

A peregrinação no caso dos missionários brasileiros, parecia ter ao menos um duplo

significado: de um lado apontava para uma jornada constituída pelas práticas religiosas

engajadas na transformação social, segundo os modelos evangélicos, traçados pelas

instituições matrizes, de outro o processo de desenvolvimento da relação com o sagrado, de

forma direta, sustentado pelo conhecimento das escrituras, ou ao menos da pregação. No

entanto, a tomar pelas indagações das constantes crises existenciais de Simonton surgem

outros sentidos, que continuarão a ser explorados ao longo do texto. A mentalidade de

Simonton se mostrava crítica e questionadora, diante do projeto missionário que fora

construído longe do contexto brasileiro. Os registros de seu diário apontam para essa

consciência indagadora de seu papel, e da tentativa de formulação de alternativas, diante das

inadequações, que eram vividas como violência simbólica à realidade cultural brasileira. É

possível pensar que tais processos pessoais, que são pensamentos sobre sua relação com o

contexto brasileiro, formularam o “modelo simontoneano” de missionário, que parece

justapor um modo intimo de pastorear a si mesmo, um modo mais entusiasta expresso na “fé

ardente” das publicações na Imprensa Evangélica e um modo mais formal e

institucionalizado de prática religiosa. Essas tendências múltiplas e visíveis na observação de

aspectos da vida e nas práticas religiosas de Simonton parecem indicativas não só da forma

singular de seu desempenho religioso, mas da multiplicidade de demandas religiosas e

culturais presentes nas relações sociais, nas quais participava. Segue o registro de seu diário a

esse respeito:

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Se um homem abriu pequena clareira em um grande país totalmente sem cultivo, seria certo um novo colonizador vir fixar nessa exata clareira sua operação agrícola. Quem é que gostaria de ser tratado como esse hipotético primeiro colonizador? Esta certo interferir com qualquer esforço voluntário de espalhar a verdade de Deus em campo tão vasto como o Brasil, ao invés de fazer uma clareira para si mesmo? (Simonton, 2002, p. 133).

Essas indagações de Simonton (2002), levam a pensar, por exemplo, que o missionário

talvez se preocupasse com a relação existente entre religião e violência 109. Nessa direção

Arturo Piedra (s/data) analisa as razões da expansão do Protestantismo na América Latina

entre 1830 e 1960, apontando que as sociedades missionárias européias e norte-americanas

justificaram os interesses comerciais e militares de seus países, que extraíram muito das

riquezas naturais das colônias, contexto no qual cabe a frase “ a Bíblia e a espada chegaram

juntas”. O missionário, o comerciante e o soldado são personagens do neocolonialismo, que

assinalam a predominância norte-americana como fonte de influência e de domínio na

América do Sul, após a primeira etapa de colonização européia. Durante o domínio inglês, a

presença do missionário evitaria o ataque aos barcos comerciais e militares, o que era um

empreendimento economicamente mais desejável do que os gastos com navios. Ao mesmo

tempo em que se garantia um domínio cultural dos povos, se expiava a culpa pela violência,

justificando que a evangelização traria a salvação aos gentios. Quando os EUA assumem sua

superioridade frente aos espanhóis e os britânicos, fundamentam suas ações na idéia de que

era uma nação eleita para ganhar o mundo para Cristo. A citação que segue é uma forma de

registrar a memória, encontrada no site da Igreja Presbiteriana do Brasil, e que instiga para

uma compreensão do universo protestante, e seus processos, firmando o nome de seus

pioneiros.

O cemitério dos protestantes de São Paulo, é um lugar que precisa ser conhecido e reverenciado pelos presbiterianos do Brasil. Ali podemos ter contato direto com a história e contemplar as lápides singelas dos nossos heróis. Homens e mulheres que deram as suas vidas pela evangelização do Brasil. Eles plantaram igrejas, criaram instituições de ensino, promoveram a literatura, amaram e serviram e sim como humanos que eram, também se envolveram em lutas e controvérsias, muitas vezes dolorosas. Grande parte dos sepultamentos no cemitério dos protestantes é composta de alemães, brasileiros, havendo também muitos ingleses, nortes americanos e portugueses, bem como alguns suíços, suecos, dinamarqueses, italianos, austríacos e pessoas de muitas outras nacionalidades. Sem dúvida os mortos mais ilustres são os srs. Ashbel Green Simonton e José Manoel da Conceição.(Matos, 2003, p.3)

109 A evangelização protestante na América Latina foi objeto de pesquisa e discussão por Arturo Piedra em obra publicada pelo Conselho Latino americano de Igrejas. Esse texto aponta para os missionários como parte da estratégia de domínio europeu nas Américas e em seguida do projeto de domínio da América do Norte à América do Sul.

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Nessa citação observa-se a tentativa da construção do missionário como herói, cujo

papel social é incorporar as aspirações de um grupo, possibilitando a observação da maneira

como são concebidas e suas tentativas de realização. Samuels et al.(1988) esclarece que o

heróis é um ser transitório, cuja forma humana mais aproximada é o sacerdote,

psicologicamente representando e vontade e a capacidade de suportar repetidas

transformações em busca de significado . Esse mesmo autor enfatiza que o herói implica não

somente a capacidade de resistir as forças que se opõe aos seus propósitos, mas de sustentar a

tensão entre opostos como bem e mal, em uma jornada na qual vence o perigo de ser

“devorado” pelas forças conservadoras e tradicionais. Nesse sentido a capacidade de correr

risco de morte constante é uma das características da eleição de um herói, construindo seu

lócus social por excelência. Essa posição por si já representaria o sacrifício religioso mais que

qualquer tortura física ou mental. Portanto cada feito do herói, concebido como tal pelo grupo

social, funciona como um rito que confirma seus atributos para uma luta mais complexa,

sendo, portanto uma iniciação. Portanto, o grupo retrata no herói a sua própria jornada, quer

como utopia, quer como necessidade, capacidade ou impossibilidade. Na medida em que a

imprensa evangélica tenta construir a imagem dos missionários como heróis, transmite com

conjunto de valores religiosos, vinculados ao puritanismo e ao pietismo, nos quais o

comportamento exemplar do herói é dignificado e memorizado e sua devoção é a visão da fé

que o sustentou e o conduziu em sua jornada dentro do sistema cultural protestante. Sabe-se

historicamente que os sepultamentos dos protestantes eram realizados em locais separados dos

católicos, mostrando assim o lugar social que lhes era oferecido na época. Desvalorizados

socialmente pelos catolicismo, ganhavam a condição de heróis pós-mortem, aproximando-se

da divindade em uma transformação de sua força e poder no imaginário social protestante.

Capítulo 5 Mística e Emoção no Protestantismo

Esse capítulo como objeto de reflexão as modalidades de práticas e idéias religiosas,

conforme apontem para o componente emocional e o significado místico que com ele se

articula. Françoise Champion e Daniele Hervieu-Léger (1990) investigaram as concepções

dos sociólogos que estudaram diretamente ou indiretamente o papel das emoções nos

processos sociais implicados na modernidade entre eles Joaquim Wach, Èmille Durkheim,

Roger Bastide, Peter Berger, Max Weber, além de William James e Rudolf Otto, mostrando a

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relevância de sua ocorrência nos processos sociais. Sociólogos como Bastide, levantam a

hipótese de que a institucionalização da religião conduz a um processo de domesticação das

emoções ou de padronização de suas expressões. Domesticar pode se visto como a passagem

da primeira experiência emocional à religião institucional, que reduz o perigo do contato com

o sagrado. A emoção por suas características como a instabilidade, intensidade, mobilização,

abundância de energia prolongadamente no tempo torna-se perigosa e intolerável ao grupo

social e ao indivíduo, observam Champion e Hervieu-Léger. Desse modo a institucionalização

da religião seria justamente o processo de aclimatação da experiência religiosa ordinária para

uma rotina da vida diária cotidiana. Esse movimento de ajuste seria obtido ao custo de uma

tensão dialética entre a emoção e o rito, a emoção e crença. Por fim, resta assinalar que essa

passagem à religião institucional permite perenizar a experiência emocional e sua ativação

regular nos limites controlados pelo grupo social. Essas autoras ainda lembram que para Peter

Berger (1979) a experiência religiosa e inigualavelmente partilhada, extraordinária e

emocionalmente perturbadora.

Já Rodolf Otto (1985) descreve a experiência religiosa como a restituição do lugar do

homem na ordem do cosmos. Para Otto e Berger a experiência religiosa, pode ser vista a

partir de dois postulados associados: o primeiro é que a instituição é um meio de “formatar” a

experiência originária, de natureza extra-social, e o segundo que na origem dos tempos a

religião é um movimento social. Mas essa visão pode ser questionada, pelas posições que

defendem o postulado de que a institucionalização da religião é um movimento que atesta a

ordem social, significando a emergência da emoção como um sinal de protesto social, ou

ainda pelo postulado de que a institucionalização é uma parte ativa dos processos sociais da

própria religião, não significando sua domesticação, senão que a história da humanidade e da

humanização do homem, apontam Champion e Hervieu-Léger (1990). Assim a construção dos símbolos que

presidem a tradição organizadora dos significados coletivos e da identificação individual, bem como os

processos de transformação da religião são aspectos que devem ser considerados a luz dos processos de

“partilhamento” emocional e de “partilhamento” racional, que se relacionam a construção das subjetividades.

Inicialmente dar-se-á prosseguimento ao exame das situações de avivamento e as circunstâncias culturais e

sociais a elas relacionadas, focando especialmente o sentido das emoções emergentes nessas expressões e as

possíveis lógicas a elas vinculadas, tentando aproximar-se do significados das experiências místicas.

5.1 Teorias da Emoção

De acordo com Abbagmano (1998) o exame do conjunto de teorias da emoção, das

quais a esperança faz parte, aponta que ao longo da história do pensamento divisa-se duas

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grandes modalidades de considerá- las: ou elas são dotadas de significado, ou são desprovidas

do mesmo. No último caso, situam-se os estóicos, cuja fundamentação sustenta-se na idéia de

que a natureza é perfeita para a conservação da vida, sendo reservado aos animais os instintos

e ao homem a razão. Assim, as emoções não são provocadas por forças naturais, mas são

diretamente relacionadas à leviandade, estupidez e ignorância. Nessa concepção, homem e

mundo são associados à razão, enquanto as emoções relacionam-se as criações fantasiosas

sobre o que não existe e não pode existir, e como tal passa a ameaçar a razão. De outro ponto

de vista encontram-se as idéias de Agostinho (354-430), São Tomás (1225-1274), Thomas

Hobbes (1588-1679) entre outros, que situam as emoções entre as faculdades humanas mais

importantes. Com Blaise Pascal (1623-1662) o sentimento é reconhecido como autônomo e

surge a idéia de paixão como uma emoção que pode dominar a personalidade humana.

Somente a partir da segunda metade do séc. XIX, as emoções tornam-se objeto de

estudo e indagação científica sendo consideradas em estrita conexão com os movimentos e os

estados corpóreos que as acompanham. A Modernidade encontra parte de sua crítica no

campo da Filosofia desenvolvida nas idéias de Martin Heidegger (1889-1976). Esse filósofo

de língua alemã distingue entre a variedade de palavras utilizadas para e emoção: paixão

(Leidenschaft) diferencia-se de afe to (Affekt). Michael Inwood (2002, p. 7) esclarece que para

Heidegger, o sentimento não é um movimento localizado no interior do homem, mas se trata

de um modo básico do Dasein (ser-no-mundo) no qual há elevação, acima e além de si na

direção dos entes como um todo, na medida em que são relevantes ou não. O sentimento é

uma corporificação sintonizada, um humor que se corporifica. A angústia é um estado de

humor estudado por Heidegger (1996) diante do qual há a possibilidade do ser humano fugir

de si mesmo, ou decair (queda) para as coisas familiares e intramundanas. De outro modo,

esse estado de humor retira o homem da relação de familiaridade com o mundo, conduzindo

para uma abertura, na qual descobre o puro Dasein e seu mundo vazio. Revela o Dasein em

sua unidade e abre o ser para o espaço além do mundano, tornando possível o pensar e a

percepção profunda. Quando a angústia promove esse distanciamento do mundano, pode

gerar como possibilidade estados místicos. Passa a significar calma, compostura, desapego,

serenidade (Gelassenheit). Esses estados são remédios para a tecnologia, que aliena o homem

de seu habitat nativo, uma vez que reduz o mundo ao que é familiar e está ao seu alcance. O

efeito da relação do homem com a tecnologia, produz mundos imaginários, que ameaçam seu

enraizamento no solo (Bodnständigkeit), uma vez que faz surgir um cenário de objetos

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calculáveis e planejáveis, que abastecem as necessidades intramundanas, matriz do animal

mecanizado, que é uma coisa entre outras coisas. O abandonar-se próprio dos estados místicos

em Heidegger (1997) assume o sentido de uma extensão livre, uma aproximação da verdade,

e não o abandono do egoísmo pecador e a aproximação do divino, como estão supostos em

Eckhart.

O Dicionário Técnico de Psicologia (1998) esclarece e define que uma emoção é um

complexo estado orgânico, de intensidade variável, acompanhado de alterações viscerais

musculares, respiratórias, circulatórias, e sudatórias e de excitação mental muito acentuada. A

emoção está freqüentemente associada a ações internas de caráter impulsivo, no sentido de

uma determinada forma de comportamento pessoal ou social. Uma vez que se pense a

esperança como sentimento, ela pode ser definida como uma disposição complexa da pessoa,

predominantemente inata e afetiva, com referência a um dado objeto (outra pessoa, coisa, ou

idéia abstrata) a qual converte esse objeto, naquilo que é para a pessoa. O sentimento é

simultaneamente identificado pelo objeto e por certas relações entre a pessoa e esse objeto.

Tais relações implicam além do afeto central, a influência de elementos mentais, (ou

psíquicos) como as emoções englobadas nesse afeto.

Carl Gustav Jung (1958), eminente autor no campo da Psicologia conceitua afeto

como uma emoção, um sentimento de intensidade suficiente para causar uma agitação

psíquica ou outros distúrbios psicomotores. Tem-se o comando sobre o sentimento, enquanto

o afeto se introduz com a vontade e só pode ser reprimido com dificuldade. “Nossas emoções

nos acontecem, o afeto ocorre no ponto em que a adaptação é mais débil e ao mesmo tempo

aponta a debilidade do indivíduo”. (Samuel, 1988). Ao referir-se às emoções relacionadas às

experiências religiosas, Jung postula a idéia de uma estrutura central no psiquismo humano,

nomeada como Self. O Self é um arquétipo com dupla função: organizar o processo de

individuação (tornar-se si mesmo) como buscar uma referência constante na totalidade

(inconsciente coletivo) promovendo assim novas formas de relações sociais. A busca da

singularidade, e as experiências de integração com o cosmos, implicariam em profundas

emoções que podem ser pensadas como modalidades de relações com o sagrado. Portanto, a

experiência mística seria ao olhar de Jung, o deslocamento do centro do eu situado pelo

sujeito inicialmente no ego, que está na superfície da personalidade ao ponto mais profundo

do psiquismo, que seria o Self. Esse movimento liga o homem a si mesmo, bem como o re-

liga a totalidade do universo, através dos símbolos. É um processo que comporta uma dupla

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faceta, pois ao mesmo tempo é singular e coletivo, comportando assim um dos paradoxos da

existência humana.110 O psicólogo suíço referindo-se ao processo de individuação mostra que

as emoções como o medo e o temor costumam acompanhar os estados de descoberta da

precariedade e do limite humano diante das forças da existência, bem como a abertura do ego

frente a totalidade psíquica, do qual apenas representa uma pequena parte. Na Bíblia tal

experiência encontra paralelo na experiência de Adão (Gn, 3,10) que conhece o medo de

Deus, quando se descobre nu e vazio. Geralmente esse processo é seguido pela descoberta da

fé, que faz o homem ver o poder e o temor de Deus como sinais que o guiam para a salvação.

Estudiosos da Psicanálise como Sigmund Freud (1856-1939) e Melanie Klein (1882-

1960) atribuem às emoções um papel fundamental na constituição da personalidade, nas

relações que o homem estabelece com o mundo. É dessa forma que o ser humano constrói

articulações entre a sua subjetividade e as relações sociais, ou mais especificamente com o

universo de valores culturais e conflitos sociais. Freud (1963) não escreve diretamente sobre

os sentimentos relacionados à religião, no entanto, quando desenvolve o conceito de desejo,

mostrando que seu objeto é criado a partir de fantasias, de modo que o imaginário ocupa um

papel central nessa construção, permite vislumbrar que esses sentimentos podem ser a ele

relacionado. Criar é ato psíquico, direcionado pelo desejo. Por outro lado, Freud postulou que

o homem em sua natureza é constituído por duas pulsões que estão constantemente em

conflito: de morte (Tanátos) e de vida (Eros). Os caminhos para descarga dessas pulsões se

encontram relacionados ao desejo, enquanto mola propulsora das representações mentais.

Desejos são aceitáveis socialmente, ou não com, por exemplo, pode-se citar respectivamente:

a fraternidade e o parricídio (ou ainda o infanticídio). Estes desejos podem estar associados a

atitudes em relação ao sagrado, como nas experiências religiosas associadas ao sacrifício, ao

imaginário sobre a morte de Deus, ou atitudes de generosidade, benevolência, amor ao

próximo, citados como exemplo. Um dos principais postulados freudianos é o princípio do

prazer. Essa tendência do psiquismo estaria no primado das ações humanas, que buscam a

descarga, o gozo e o prazer das pulsões. Agostinho estabeleceu distinção entre as experiências

de prazer, que reconhecia inerente ao contato com o sagrado. Usar e usufruir são dois termos

utilizados por ele para referir-se respectivamente ao gozo que deve ser considerado como um 110 De acordo com Owens (1992, p.132 et al...) uma pesquisadora do misticismo à luz da teoria Junguiana, os estados místicos constituem uma regressão ao primeiro nível pré-infantil do inconsciente coletivo que constitui a matriz do homem, no qual estão as sementes de sua criatividade, de seu sentido de ser, sua fonte de integridade, e de harmonia interior, sua identidade com a humanidade e sua profunda identidade interior com o princípio integrador do universo. Deste ponto de vista não é possível concordar que se trate de estados infantis do psiquismo como sustentam Prince e Savage (1965 apud Owens, 1992) e outros estudiosos.

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fim em si mesmo, e por outro lado a experiência que está a serviço de um bem maior, uma

espécie de projeto mais amplo, que é a salvação. O primeiro seria relacionado a necessidades

imediatistas do homem, e que o afastam de Deus, enquanto a alegria interior, é ligada aos

bens mais elevados, que geralmente ancora o discurso e as atitudes ascéticas. Esses, quando

vividos de forma exemplar, são vistos por Freud (1963) como parte dos processos

psicológicos e sociais repressivos. Já sublimação é considerada um processo social e

subjetivo, no qual o indivíduo renuncia a realização de suas pulsões destrutivas por via direta,

realizado-as de acordo com finalidades sociais mais relevantes.

Estudiosos da teoria freudiana como Melanie Klein e seus seguidores postularam a

existência de estados emocionais relacionados às angústias humanas especialmente diante da

morte. Nessa condição o ser humano experimentaria uma espécie de divisão na mente, que

separaria as representações psicológicas em boas e más, segundo fossem favoráveis à

sobrevivência ou a ameaçassem. As primeiras se originariam na pulsão de vida e tenderiam a

conservação do homem, do grupo e da espécie, já o oposto, seriam os derivados

representacionais da pulsão de morte, tendência condutora da destrutividade, desintegração do

psiquismo, bem como de grupos sociais. A inveja é um dos sentimentos visto por Klein nas

atitudes caracterizadas pelo individualismo excessivo e pela tentativa de sobrepor-se ou

destruir o outro. A violência social tem uma de suas bases no sentimento de inveja, que tem

como pressuposto a intolerância diante da falta, da dependência e do estado de abundância

atribuído ao outro, seja esse indivíduo ou grupo. A superação do estado de inveja pela

elaboração das diferenças pode promover estados emocionais relacionados à gratidão,

piedade, misericórdia e esperança. Portanto, desse ponto de vista, tanto a relação mística com

a divindade, bem como a convivência em sociedade pautada por ideais sociais dependeria

dessa elaboração e dos fatores que facilitassem esse processo para que se alcançassem estados

emocionais relacionados à comunhão.

Utilizando a Psicanálise como instrumental de conhecimento e investigação,

estudiosos do Misticismo como Prince e Savage (1992) pensaram relações entre as

experiências religiosas, e regressões psicológicas a serviço do ego. Tal processo implicaria em

vivências pré-verbais, nas quais há um estado de fusão com o outro, a presença do

pensamento mágico e alucinatório. Não se trata de um afastamento da realidade dolorosa, mas

sim de uma busca de soluções dos problemas psíquicos e relacionais. Tais fenômenos

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costumam acorrer, no sonho e eventos fronteiriços entre os estados de vigília e o sono, nos

quais características como atemporalidade, simbolização, linguagem metafórica,

deslocamento de imagens e pensamento compõem um todo criativo, que pode conduzir a uma

nova perspectiva, ou uma mudança de visão do mundo e do eu. 111

Marcel Mauss pode ser considerado um antropólogo ligado à História Social, que

demonstrou interesse pelos elementos afetivos dos processos de sociabilidade, mantendo um

diálogo interdisciplinar com a Psicologia, o que será continuado pelo projeto de Roger

Bastide em torno das relações entre Sociologia e Psicanálise. Os estudos sobre a constituição

do pensamento humano relacionam-se desse modo ao imaginário social, e às relações entre

grupo e indivíduo. Mauss (1974) mostra que o pensamento, a noção de eu, e as técnicas

corporais são processos relacionados com o mundo social e a coletividade, construídos de

forma interativa na relação do homem com os outros homens. Assim, caberia aos estudiosos

das Ciências Sociais buscar os significados e as evidências das emoções e dos

comportamentos humanos, uma vez que se encontram postos como naturalizados ao olhar de

quem os vive. Para a Escola Francesa, a qual pertence de certo modo Marcel Mauss, existe

uma relação de simetria entre a dimensão simbólica e imaginária e os acontecimentos ou

“fatos sociais”. Nesse sentido, todo pensamento e sentimento é um fato social, que a história

gera e mantém ou aniquila. Essa proposição se encontra claramente descrita no artigo A

Expressão Obrigatória dos Sentimentos, no qual os cultos funerários australianos são

analisados em sua faceta ritualística que mostra a expressão das emoções relacionadas ao luto,

enquanto formas coletivas, e não apenas fisiológicas ou psicológicas.

Roger Bastide (1974, p.118-120) em suas tentativas de aproximação entre Psicanálise

e Sociologia, apontando que os conceitos de caráter social e adaptação dinâmica permitem

aproximação entre os estudos que relacionam individuo e sociedade. O caráter social é o

núcleo central da estrutura da maioria dos membros do grupo, que resulta das experiências

básicas e dos modos de vida comuns ao próprio grupo. Já a adaptação dinâmica pode ser vista

como a forma específica conferida à energia humana que dinamiza as necessidades diante das

formas específicas de existência de um grupo social. Desse modo, a libido freudiana é 111 Prince e Savage (1992, p.121) estudando diversos autores que trabalham referenciados à Psicanálise, citam que se pode encontrar em comum nos estados místicos as seguintes características: renúncia aos apegos mundanos, como prelúdio; a inefabilidade de experiência mesma; a qualidade poética; o sentimento extático e a experiência de fusão. Esta última por sua vez comporta dois tipos de possibilidades: um em que a consciência e a individualidade do sujeito são mantidas, e outra em que há uma perda do sentido de individualidade, acarretando a sensação de unidade, onde o todo inclui o eu.

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considerada a partir de suas representações sociais, tanto em possibilidades criativas

(sublimação) quanto de inibição (neurose). Um exemplo desses processos, citados por

Bastide, é a correspondência entre a estrutura de caráter de um líder e a do grupo social, que

dirige. Quando falha essa articulação, como entre racionalismo e emocionalismo, ocorrem

processos psíquicos e sociais, que tentam realizar um acordo, como nos sintomas. Bastide

apóia suas observações nos conceitos psicanalíticos de Erich Fromm que aplicou a Psicanálise

aos estudos da sociedade ocidental. Para Fromm (1981) tanto o Protestantismo como o

Calvinismo foram soluções sociais encontradas para a angústia dos indivíduos na passagem

da sociedade medieval para a sociedade moderna diante da experiência da liberdade. Frente às

mudanças de um modo de ser social a outro, liberdade relacionou-se a insegurança. Livre

iniciativa significou correr mais riscos no mundo sócio-econômico. Por isso, teologicamente,

o homem passou a ser visto como um ser que não pode salvar-se a si mesmo, uma vez que já

está predestinado para tal ou não, o que significou um intenso processo emocional e social,

para minimizar os efeitos da inquietação e questionamento originários dessa concepção. O

trabalho foi uma das modalidades utilizadas como estabilizador dessa angústia e os efeitos

dessa nova cosmovisão forma explorados por Weber (1967) em A Ética Protestante e o

Espírito de Capitalismo.

Para Rudof Otto (1992) há um estado emocional basal que caracteriza a relação com o

objeto religioso. Nessa relação pode ocorrer um estado místico, não-racional, no qual o

homem se percebe como sendo somente criatura, isto é como um ser insignificante diante da

majestade que está acima de toda criatura. Esse elemento de majestade associa-se a energia

do numinoso que pode ser encontrada nas expressões simbólicas de paixão, vontade,

sensibilidade, força, movimento, excitação, impulso, atividade, vida. O Deus vivo dessa

concepção não conhece obstáculos, e sua expressão se encontra no amor impetuoso e

incondicional. Otto nomeia esse tipo de experiência de misticismo voluntarista. A

impetuosidade do amor aproxima-o da orgê, que devora e queima, representando o seu oposto

à cólera, que foi associada ao demoníaco, como no escritor Goethe. Também o estado de

piedade íntima é uma modalidade de relação com o numinoso. A experiência religiosa que

apresenta esse traço de modo explícito provocou reações dos movimentos religiosos

caracterizados pela racionalidade, bem como na filosofia e nas tendências antropomórficas

presentes nas ciências humanas. Otto também descreve vários estados emocionais em suas

expressões gestuais, tom de voz, fisionomia, com as experiências religiosas, entre os quais

pode-se citar: devoção, horror, vazio, temor, sublimidade, e às sensações como silêncio,

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obscuridade, presença, ausência, força, nada, que será tratado de forma detalhada

oportunamente.

Considerando que a emoção é um componente fundamental das experiências religiosas,

passa a ser relevante clarificar as especificidades de sua ocorrência relacionada às

experiências místicas. Vale lembrar que a maioria dos autores que estudam misticismo

reconhecem passos fundamentais entre os métodos utilizados para alcançar a experiências

mística: 1) purificação do eu, que corresponde a experiência de conversão. As emoções de

alegria e tristeza se apresentam simultaneamente, vinculadas respectivamente a concepção de

harmonia com a nova realidade percebida e a perda de um mundo que deve ser deixado para

trás. O desejo orienta o psiquismo para aproximar-se cada vez mais da bondade, generosidade

e afastar-se do egoísmo. Purificar-se pode ser afastar-se do mundo ou para outros agir no

mundo para transformá-lo. De qualquer modo significa uma modificação do ser-no-mundo

que passa a viver emocionalmente um estado de devoção, busca de perfeição, integração com

as imagens do cosmos. 2) exercícios de mortificação ou sacrifício, nos quais o eu deve

enfrentar cansaço, fadigo, sofrimento, desapontamento e suportar esses acontecimentos como

parte integrante de seu processo de aproximação do sagrado. É o sacrifício que consagra o fiel

diante da divindade, atribuindo a sua experiência um aspecto de santificação. 3) sugestão

psicossomática, na qual as emoções são vividas no corpo, modificando-se hábitos de

alimentação, sono, temperatura, vestimenta, que são realinhados de acordo com os valores da

tradição religiosa na qual o místico se insere, ou são transgressores, na medida em que a

experiência mística passa a ter um significado de denúncia da falta de santidade do grupo ou

da instituição religiosa. Os afetos e atitudes psicológicas ligadas à sexualidade e ao poder

como, por exemplo: fusão, imposição, submissão, posse, também podem expressar-se com a

correspondente postura corporal envolvendo a musculatura, os órgãos dos sentidos, paralisia,

alterações respiratórias ou cardíacas. Do ponto de vista cognitivo, também podem ocorrer

transformações, advindas de experiências como a inspiração, o “senso da presença” do

invisível, revelação, mediunidade, iluminação, clarividência, “sabedoria divina”.

De outro ponto de vista, vale lembrar que Champion e Hervieu-Léger (1990)

hipotetizam que a emoção pode acompanhar os processos de simbolização do universo da

modernidade, e constituir-se como uma forma de adaptação dos grupos religiosos ao novo

universo cultural. Como se darão os processos de construção das subjetividades em sua

convivência com as necessidades das instituições religiosas modernas que regulam,

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padronizam e constroem um sistema de crenças é uma indagação que merece pesquisas.

Assim, fenômenos religiosos que antecipam movimentos como o Pentecostalismo podem

indicar a privação da linguagem, utilizando para isso a própria linguagem como poderia ser

interpretada a glossolalia observam Champion e Hervieu-Lèger. Processos sociais que

implicam delimitação entre o público/privado; padronização/singularização, poder

religioso/poder político, fragmentação/denominação; simbolização/ reserva religiosa indicam

uma nova constelação de processos culturais que desafiam os cientistas da religião,

questionando seus métodos científicos e seu olhar sobre os fenômenos religiosos. Examinar

esses processos em sua ocorrência nas experiências místicas do espectro protestante é um

recurso auxiliar para clarificar seu significado, tarefa a ser realizada a seguir.

5.2 Reavivamento e Emoção

Entre os séculos XVIII e XIX houve ao menos duas ondas de avivamento espiritual

que provocou transformações no campo religioso anglo-saxão. A perspectiva dos avivamentos

aparece bem nos referenciais de Lloyd-Jones faz de um de seus mais significativos atores

Jonathan Edwards. Isso foi expresso em palestras proferidas nas Conferências Puritanas em

1978, na qual aponta que a religião para Edwards é algo que pertence essencialmente ao

coração, e se não afetá- lo, não tem valor, mesmo que influencie as idéias. A religião é,

portanto experimental e prática. Ao mesmo tempo o pensamento de Edwards era guiado

fundamentalmente pela Bíblia, subordinando toda sua prática e pregação a Palavra de Deus. A

ênfase nas emoções levou Edwards a se opor ao Calvinismo exacerbado por um lado e ao

arminianismo por outro. Isso pode ser visto em um de seus sermões A Divine and

Supernatural Light Immediatly Imparted to de Soul by the Spirit of God, Shown to be both a

Scriptural na Ratinoal Doctrine contém muitas de suas idéias de forma sintética, ao ver de

Lloyd-Jones (1978), quando expressa o que entende por luz espiritual e divina:

Um sentido verdadeiro da glória divina e superlativa presente nestas coisas, uma excelência que é de uma espécie imensamente mais elevada, e de natureza mais sublime do que noutras coisas; uma glória que as distingue grandemente de tudo quanto é terreno e temporal, Aquele que é espirualmente iluminado, verdadeiramente apreende e vê isso, ou tem uma percepção disso. Ele não Crê de maneira meramente racional que Deus é glorioso, mas tem um sentido da natureza gloriosa de Deus em seu coração. Não há somente uma percepção racional de que Deus é santo, e que a santidade é uma boa coisa, mas já uma percepção do caráter atraente da santidade de Deus. Não há apenas a conclusão

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especulativa de que Deus e gracioso, porém o senso de quão amável Deus é, por causa da beleza deste atributo divino. (Edwards apud Lloyd-Jones, 1978, p.17)

Nas pregações de Edwards o aspecto emocional domina o intelectual. Porém ele não

desprezava o conhecimento, podendo ser visto como um leitor voraz. O que ressalta em suas

pregações era que elas começavam com um texto, tomado de modo invariavelmente analítico,

dividido em várias partes até que chegasse ao ponto essencial da mensagem, evitando ser um

mero comentador. A mensagem central era sempre uma aplicação das idéias bíblicas ao

mundo cotidiano dos ouvintes ou sugestões do como eles poderiam se desenvolver

espiritualmente. As características enfatizadas eram o calor, o sentimento e o entendimento

que podiam os fiéis alcançar da Palavra.

A freqüente pregação usada ultimamente tem sido, de maneira particular, objetada como sem proveito e prejudicial. A objeção é que quando ouvem muitos sermões seguidamente, um sermão tende a empurrar o outro para fora, de modo que os ouvintes perdem o benefício de todos, Dois ou três s sermões por semana, dizem eles, é quanto podem lembrar e assimilar. Tais objeções à prédica freqüente, se não procedem de inimizade para com a religião, devem-se a falta da devida consideração da maneira pela qual esses sermões geralmente dão proveito a um auditório O principal benefício feito pela pregação é a impressão causada na mente, na hora, e não algum efeito que surja mais tarde pela lembrança do que foi transmitido. E embora uma lembrança posterior daquilo que foi ouvido num sermão muitas vezes seja proveitosa, na maior parte essa lembrança é de uma impressão que as palavras produziram no coração naquela hora; e a memória tira proveito, na medida que renova e intensifica aquela impressão. (Edwards apud Lloyd-Jones, 1978, p. 19).

Nesse contexto, impressão pode ser entendida como a tarefa do pregador de dar

sentido a informação, mais do que meramente fornecê-la ao ouvinte. O entusiasmo e o calor

do pregador não se separam de sua tarefa de estudar, como estimulava Edwards aos que o

seguiam. Sua obra teológica contém temas como “pecado original”, “livre-arbítrio”,

“justificação pela Fé”, “história da obra de redenção”. Considerado o teólogo do avivamento,

da experiência ou do coração, Edwards se dedicou ainda e estudar escatologia, que é a

doutrina das últimas coisas e a glória final dos filhos de Deus. Do ponto de vista de Lloyd-

Jones, a posição defendida por Hofstadter de que o anti- intelectualismo pode ser visto nas

posturas de avivadores como Edwards, é insustentável, quando se analisa suas práticas

religiosas e sua vida intelectual. Entre outros argumentos, o estudioso do Puritanismo aponta

que a obra de Edwards Tratado Concernente aos Afetos Religiosos apresentada em três partes,

é uma defesa fundamentada intelectualmente e teologicamente sobre a importância dos afetos

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na religião, além da ótica de que são benignos ou malignos. As idéias de Lloyd-Jones (ibid.)

parecem estar em concordância com as de Roger Bastide (1990, p. 92) de que a religião mais

do que um sistema de instituições é um sistema de crenças e sentimentos.

As instituições, que tem por finalidade harmonizar as relações materiais entre os homens seriam submetidas às condições demográficas e morfológicas. Á medida que as igrejas transformam-se em instituições, obedecem aos mesmos mecanismos. Porém, colocam em jogo as aspirações dos corações e as necessidades intelectuais. O mecanismo aí é menor que em outros domínios e elas atentam mais para os movimentos secretos das almas, (...). A vida mística pode, por um momento, refletir a estrutura social, mas acaba se separando dela e até mesmo se opondo a ela. O cristianismo, pregando a fraternidade, substituiu o laço sangüíneo pelo laço místico, ensinando a penitência e o abandono da vingança. Atribuiu o uso do testamento, contribuiu para a passagem da propriedade coletiva a propriedade individual. (Bastide, 1990p. 92).

Sublinha Edwards que a intensidade dos afetos não é um sinal significativo, de que são

verdadeiramente religiosos, e sim que essa forma atende mais às necessidades humanas. Nem

mesmo o fato de virem acompanhados de palavras contidas nas escrituras, formatados como

expressões convencionais de amor, alegrias que seguem ordens de acontecimentos humanos,

muito tempo e zelo no dever, muitas expressões de louvor, grande confiança, relações

comoventes podem ser consideradas em sua aparência como sinal de serem genuinamente

religiosos. Os afetos benignos mostram o selo divino, a sua influência é clara e inegável, não

podendo ser confundidos a teatralidade das manifestações humanas provocadas por

necessidades imediatas do acontecer social.

Edwards chegou a advertir os pastores por tentarem manipular os estados de humor

como modalidade de conseguir conversões, entre eles Whitefield. Os avivamentos eram vistos

por Edwards como sinais da aproximação do homem com o sagrado, e, portanto não deviam

ser rejeitados pelas autoridades religiosas, sem que se analisassem os sinais de sagrado em seu

interior, bem como seus efeitos. Por isso eles deveriam ser objeto de análise teológica

profunda e não ser considerado pelos seus desdobramentos meramente políticos e sociais.

Sugeria que se tomasse as Escrituras como o pêndulo de avaliação dos avivamentos,

comparando-os as experiências ali registradas. Conseqüentemente, qualquer julgamento sobre

as emoções emergentes nos avivamentos, bem como as experiências extraordinárias relatadas

pelas pessoas, como visões ou transporte divino deveria passar por correlações abrangentes,

decorrentes dos estudos bíblicos, e não apoiados meramente em experiências individuais.

Sobre isso escreve Edwards:

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Não é nenhum argumento dizer que não é obra do Espírito de Deus que alguns que são os sujeitos dela estiveram numa espécie de êxtase, no qual foram levados para além de si mesmos, e tiveram as suas mentes transportadas por uma corrente de vigorosas e agradáveis imaginações e por uma espécie de visões como se tivessem sido arrebatados para o céu e ali tivessem visto coisas maravilhosas. Conheci bem alguns desses casos, e não vejo necessidade de introduzir o auxílio do diabo no relato que fazemos dessas coisas, nem tampouco de super que elas são da mesma natureza das visões dos profetas ou do rapto de Paulo para o paraíso. A natureza humana, sob esse intenso exercícios e afetos, é tudo que se necessita introduzir no relato. (Edwards apud Lloyd-Jones, 1978 p.27).

Lloyd-Jones (1978) ainda observa que a definição dada por Edwards para avivamento

é “derramamento do Espírito”, evento que deve ser visto como algo que sobrevém aos

ouvintes ou fiéis, não sendo eles os agentes. Ora isso é diferente do processo de renovação

religiosa, relacionado ao batismo como re-vivência da ligação com o sagrado, podendo ser

comparada a um ritual, que torna recorrente o que já existia anteriormente, ampliando sua

consciência. Nesse aspecto o avivamento se relaciona ao presente, a algo que se dá em uma

temporalidade do gerúndio, isto é como acontecimento. Portanto, não é predominantemente

experiência, aplicação do cristianismo à educação, arte, ciência, política, indústria, teologia,

ou teatro emocional. Pode sim produzir efeitos nas ações sociais. Eis a orientação de Edwards

aos pregadores de sua época:

Acredito que estaria cumprindo o meu dever de elevar os afetos dos meus ouvintes tão alto quanto me fosse possível, posto que eles não sejam afetados por nada, senão pela verdade, e por afetos que não discordem da natureza do assunto. Sei que já é a velha praxe desprezar um modo de pregar muito caloroso e patético; e só tem sido apreciados como pregadores aqueles que mostram a mis ampla cultura, poder de raciocínio e correção na linguagem. Mas humildemente concebo que foi por falta de entender ou de estudar devidamente a natureza humana, que já se pensou que ela tem a maior propensão para atender aos fins da pregação; e a experiência da época passada e da atual confirma sobejamente o mesmo. Embora seja certo como eu disse antes, que a clareza do discernimento, a ilustração, o poder de raciocínio e um bom método de manejo doutrinário das verdades da religião, de muitas maneiras são necessários e proveitosos, não devem ser negligenciados, todavia, não é o aumento no conhecimento especulativo da teologia que as pessoas necessitam tanto como algo mais. Os homens podem ter soma de luz, e não ter nenhum calor. Quanto dessa espécie de conhecimento tem havido no mundo cristão na época natural. Porventura já houve alguma época em que o vigor e a penetração da razão, a extensão da cultura, a exatidão do discernimento, a correção do estilo e a clareza de expressão fossem tão abundantes? E, contudo, houve alguma época em que tenha havido pouco sendo da malignidade do pecado, tão pouco amor a Deus, disposição celestial e santidade no viver, entre os que professam a religião verdadeira? Nossa gente não precisa ter suas cabeças abastecidas, tanto como precisa ter os seus corações emocionados. E a nossa gente está na maior

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necessidade da espécie de pregação mais propensa a fazer isso. (Edwards apud Lloyd-Jones, 1978, p. 33)

As observações de Lloyd-Jones (1978) em relação a Edwards mostram que o

avivamento não pode ser visto apenas como uma faceta da emergência nas relações sociais

dos aspectos emocionais, mas sim como uma proposta de prática religiosa, que articula razão

e emoção, intelectualidade e experiência religiosa, individualismo e coletividade, igreja e fiel.

Á essa altura do texto, as recomendações de Bastide (1990, p.93) sobre a aplicação da

distinção bergsoniana 112 entre religiões “abertas” e “fechadas” podem clarificar o dinamismo

do campo simbólico presente por ocasião das práticas de Edwards, permitindo comparações

com as situações culturais e sociais enfrentadas pelos missionários protestantes na América

Latina. As religiões fechadas, do ponto de vista de Henri Bergson (1859-1941) tem por

finalidade defender a sociedade contra as variáveis que a desorganizam, como uma espécie de

instinto social de defesa e sobrevivência. Já as religiões abertas são produtos da intuição

mística, que por seu dinamismo rompem as fronteiras e os elementos conformistas da

sociedade e da cultura. “Sua ação é transformadora e mesmo revolucionária” Bergson voltou-

se em seus estudos para temas como intuição e espiritualidade. Ao seu ver a inteligência ao

elaborar conceitos, e trabalha-los analiticamente, fragmenta, espacializa e fixa a realidade que

nela mesma é continua mudança qualitativa, isto é puro torna-se. Essa atividade é a que

possibilita a atividade científica, bem como o domínio da natureza. Porém há uma outra forma

de apreensão do real, que comunica diretamente a intimidade do sujeito, o eu-profundo com a

intimidade do objeto, concreto e singular, com pura duração. A intuição é essa modalidade de

apreensão direta dos acontecimentos, sem mediação das estruturas na qual o eu pouco se

distingue do objeto visado. A linguagem da metafísica na concepção de Bergson (1984) é

propriamente construída pelas metáforas, favorecendo a intuição. Portanto, ao ver de Bergson

é por meio desse processo que a liberdade é experimentada pelo homem, cujos modelos

citados são os reformadores, santos, místicos que rompem a barreira da moral e da religião

fechada para criarem novos horizontes abertos de uma religiosidade que nasce das

profundezas do eu com o sagrado.

Os fatores místicos e emocionais presentes na religião são para Bastide (1990) forças

que movimentam populações e sociedades de um lugar ao outro, geograficamente,

simbolicamente, ou culturalmente. A emergência do elemento místico na religião influência o

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meio social, afirma esse sociólogo. Um dos sentidos místicos atribuídos ao avivamento está

na conexão do homem com o sagrado, especialmente ligado ao Espírito Santo. Esse aspecto

parece conciliar na proposta de Edwards, a angustia do sagrado com a ansiedade relacionada

aos desafios do presente. Enquanto estados emocionais, ambos se relacionam às incertezas: o

primeiro à chegada ao mundo divino e o segundo à sobrevivência no mundo humano. A ânsia

do divino, vista como possibilidade de salvação do sofrimento humano diante da morte e da

visão da natureza humana como pecadora, faz nascer no crente à esperança e a certeza,

marcadas pela experiência da fé. Desse modo, as emoções podem tornar-se lugar de

revelação, de significado e significante da presença do divino no humano. O ponto de vista de

Lloyd-Jones (1993) sobre Edwards, mostra que o puritanismo não se opõe ao misticismo ou

mesmo a razão, mas pode encontrar pontos de conciliação entre ambos. Will Herberg (1962),

que escrevendo sobre a religião aponta que a “fé comum” da sociedade americana é por um

lado a religião cívica, que se destina a celebrar e manter convicções do povo como uma

“entidade incorporada”, e simultaneamente mantém aspectos íntimos e pessoais, que

desvitalizam as crenças históricas, prometendo a salvação das almas que estão inseridas em

uma sociedade em mudança. Ao crer na religião, há uma experiência da fé na fé dos

americanos.

O americano acredita que a religião é algo muito importante para a comunidade. Acredita também que a fé ou o que poderíamos chamar de religiosidade é uma espécie de droga miraculosa, que pode curar todas as moléstias do espirito. Não é a fé em qualquer coisa que é tão importante, mas simplesmente a fé, a “magia de acreditar”. O culto da fé toma duas formas que poderíamos designar como introvertida e extrovertida. Na sua forma introvertida, confia-se em que a fé traz saúde mental e paz de espírito, dissipa a inquietação e o sentimento de culpa e transporta a alma para abençoada terra da normalidade e da aceitação de si mesmo. (...) O culto da fé tem também a sua forma extrovertida e é conhecido como “pensamento positivo”. (Herberger, 1962, p. 101).

Essa relação entre a fé e as manifestações místicas, tem sentidos e significados que

ganham especificidade quando se compara as práticas religiosas caracterizadas pela emoção

ocorridas na Europa e nos Estados Unidos, tendo em vista que haviam diferentes ambientes

sociais e culturais, como, por exemplo, um grande contingente de população imigrante

integrante da sociedade americana, que enfrentavam questões de diversidade étnica,

identidade social, identificação e pertença social, língua. No entanto pode-se inferir aspectos

comuns quando se observa processos psico-sociais como o contágio emocional e seus efeitos.

Assim, processos de aproximação e identificação entre os membros de um grupo podem ser

promovidos por experiências emocionais expressas simultaneamente, nas quais existem traços

comuns. O gesto, bem como o cântico e o dizer expressam elementos organizados pela

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linguagem própria de cada grupo, favorecendo a comunicação mais diretiva, bem como as

suposições próprias ao imaginário social. Finalidades sociais e psicológicas como catarse,

protesto, pertença, criação e manutenção das representações religiosas, entre outras, podem

ser observadas nos movimentos de avivamento e despertar. Desse modo experiência afetiva

de amor, estimulada pelos pregadores avivalistas possivelmente promoviam o contágio

emocional favorecendo a construção dos padrões comportamentais nos quais a idéia era

esquecer-se de si no Outro. Viagens celestes, experiências de amor extático, visões atestam a

presença do outro mundo, reafirmando o que o apóstolo Paulo escreveu: “não sou eu que

vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20). Por meio desse processo se testemunha a

santificação de cada fiel, que é também um líder, enquanto crente do sacerdócio universal, ao

mesmo tempo em que se abre um ponto de fuga diante dos conflitos sociais, através do

imaginário relacionado ao sobrenatural. Infere-se que as imagens religiosas como as do

“Novo Israel” possam surgir diante de processos sociais e culturais promotores de mudança,

gerando no imaginário social a idéia de uma comunidade sagrada, unida pela fé comum, seja

por via do estabelecimento de uma igreja, ou de um grupo, cuja filiação se dá através da

manifestação da experiência religiosa pautada na conversão e religião experimental. É uma

experiência religiosa, cujo padrão é o “ajuntamento” dos membros que participam da

pregação avivalista e que necessitam, através da experiência emotiva, dar testemunho e prova

de seu “novo nascimento” em Jesus Cristo.

Nessa mesma corrente de idéias, pode ser citado um outro pregador, que substituía

George Whitefield. Seu nome era Howell Harris 113 (1714-) tendo realizado 39 visitas a

Londres, permanecendo na liderança dos metodistas calvinistas por cerca de três anos tanto na

Inglaterra como em Gales. Harris anotou em seu diário nas linhas e entrelinhas, muitas

observações sobre a sociedade na qual se inseria. Ora, o estado da Igreja no país de Gales era

de uns poucos batistas e alguns líderes religiosos evangélicos como Morgan Llwyd, Walter

Cradddock e Vavasor Powell.

Trevecca, terra natal de Harris não chegava a ser uma vila, o que o levou à cidade mais

próxima Talgarth para um serviço religioso, no qual teria ouvido as seguintes palavras que o

conduziram a conversão, conforme descreve Lloyd-Jones (1993, p.292) “Se vocês não estão

113 D.M. Lloyd Jones afirma que a vida de Howell Harris não foi estudada suficientemente, sendo ele um dos principais representantes das práticas religiosas dos avivamentos. Recomenda que seja lida uma obra de autoria de Richard Bennett The Early Life the Howell Harris (Os primeiros Anos da Vida de Howell Harris) editado por Banner of Truth.

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preparados para tomar a Ceia, não estão preparados para orar, e se não estão preparados para

orar, não estão preparados para viver, e se ao estão preparados para viver, não estão

preparados para morrer”. A partir dessa data, Harris, iniciou sua prática religiosa que incluía

visita aos enfermos para ler livros como A Prática da Piedade até pregação para pequenos

grupos. Relata o seguinte sobre sua conversão:

A mesa, Cristo a sangrar na cruz esteve diante dos meus olhos sem cessar; e recebi forças para crer que estava recebendo perdão, graças aquele sangue. Meu fardo se foi; fui para casa saltando de alegria e disse ao meu vizinho, que estava triste: porque você está triste? Sei que os meus pecados foram perdoados, embora eu não tenha ficado sabendo que tal coisa pudesse ser achada, exceto neste livro: A Prática da Piedade (The Practice of Piety). Ah dia abençoado! Oxalá, com gratidão eu o recorde sempre! (Harris apud Lloyd-Jones, 1993, p. 292).

O número de pessoas para ouvir Harris aumentou tanto que o fez pregar ao ar livre.

Conheceu George Whitefield em Cardiff, em 1739, com o qual fundou uma Associação das

Sociedades que comentavam sobre experiências com o divino. Harris não costumava dormir,

dedicando-se intensamente a atividade de pregação itinerante, a administração de uma escola,

enfrentando perseguições e adversidades advindas especialmente da Igreja da Inglaterra. Após

desentendimento com outros líderes religiosos evangelistas, Harris, que ouviu falar da

comunidade de August Hermann Francke, que um pietista alemão havia fundado e resolveu

seguir o exemplo. Construíram um orfanato e uma comunidade religioso, compostas por

ferreiros, carpinteiros, moleiros, trabalhadores livres das fazendas, que eram instruídos através

das Escrituras, pessoalmente por ele. Em 1768, com a ajuda da Condessa de Huntingdon,

fundou um colégio para preparação de pregadores, cujo púlpito chegou a ser ocupado por

pregadores como Whitefield, João Wesley e Rowland entre outros. Sua visão de religião

como união dos evangelistas, colaborou para reunir em torno de si: batistas,

congregacionistas, além de metodistas e calvinistas. Do ponto de vista Lloyd-Jones (1993), o

que Harris teve que enfrentar no seu tempo foi uma espécie de sensação de morte das igrejas,

com características de esvaziamento, desvitalização, falta de fiéis e de sentido por freqüentá-

la. O próprio Harris se reconhecia como participante desse tipo de inserção religiosa,

formulando o despertamento como meio de ligar o homem ao divino. Assim Lloyd-Jones

assinala que para entender a posição tomada por esse pregador, é necessário considerar a

experiência ocorrida em 1735, na torre da igreja de Langasty, quando Harris se encontrava

orando e que foi descrita por ele da seguinte forma:

De repente senti derreter-se dentro de mim o coração, como cera junto ao fogo, e senti amor a Deus por meu Salvador. Senti também, não somente amor e paz, e sim um desejo de morrer e estar com

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Cristo. Depois brotou no fundo de minha alma um clamor que antes não conhecera jamais – Aba, Pai! Nada pude fazer, senão chamar a Deus meu Pai. Fique sabendo que eu era Seu filho, e que Ele me amava e me ouvia. Minha mente focou satisfeita, e eu bradei: agora estou satisfeito! Dá-me forças, e Te seguirei através das águas e do fogo. (Harris apud Lloyd-Jones, 1993, p. 297).

Essa experiência de Harris seria recorrente em sua vida, incluindo o que ele nomeou

como “festa espiritual”. Em certa ocasião, relatou que voltando de Cwm Iau, viu a Deus, de

forma tão sorridente que seu coração esteve a ponto de explodir sobre o efeito do amor divino.

Passou a denominar o local, que era montanhoso, de “monte santo”. Lloyd-Jones (1993, p.

298 e ss.) observa que o diário de Harris contém muitas frases, sobre sua relação direta com a

divindade: “Em 1747 Deus desceu (Londres), como costumava fazer no País de Gales e os

nossos corações se inflamaram dentro de nós”; “Veio o Senhor, dominando-me com amor

como uma poderosa torrente à qual eu não podia me opor, nem argumentar, nem duvidar”; “O

amor de Deus foi derramado em meu coração há quatro anos, para eu me entregar a Deus”;

“Tive um selo mediante a leitura de Apocalipse. 21:7. Ah doce dia!”; “O grande vendaval

veio quando expus a morte infinita do Salvador”; “O Senhor desceu com poder”; “Tive

grande liberdade e um forte vendaval sobreveio quando demonstrei a grandeza da salvação”.

Ao se observar as experiências de pregadores como Harris, pode-se inferir que o

modelo de organização religiosa em vigor sustenta-se entre uma visão minimalista, na qual os

fiéis têm um princípio de filiação voluntária, uma aliança realizada por meio da

espontaneidade, sem interferência direta da secularização e da disciplina compulsória. Ao

mesmo tempo, o discurso religioso expressa o fundamento metafísico da revelação, que na

observação de Joachim Wach (1990) é promotor da instituição eclesiástica, com seus meios

sacramentais de graça e os instrumentos disciplinares e padronizados definidos como

necessários à salvação. Desse modo, há um modelo de igreja sustentado simultaneamente no

individual e no coletivo. O fiel é, ao mesmo tempo, comungante e espectador no grupo. A

participação no grupo é caracterizada por expressar-se como ator do teatro religioso e

assistente de forma concomitante. É um modelo harmonioso com os processos de pluralismo

religioso próprio a temporalidade das sociedades modernas que imprimem velocidade às

relações sociais. Há uma espécie de justaposição entre a milenaridade do dizer discursivo e a

instantaneidade do ajuntamento religioso, que produz inúmeros grupos e seitas protestantes.

Os reavivamentos religiosos indicam que não há um movimento de reforma, mas sim que a

atitude reformadora é uma espécie de constante no fiel, que promove à adaptação às

mudanças sociais geradas e geradoras nas situações relatadas pela Modernidade. Pode

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também se constituir como uma forma de resistência à mesma, expressando as crises em seu

interior, ou ainda sua ausência.

Herberg (1962) observa que os reavivamentos constituíram-se em modelos de

experiência religiosa e pregações que rompem com as linhas étnicas, e justapõem as linhas

denominacionais, sendo facilitadores da união dos membros do cristianismo. Uma sociedade

cujos processos de organização social, apontavam para um horizonte de industrialização e de

modernização dos meios de produção exigiam a expansão das fronteiras culturais para além

de modelos unitários e hegemônicos de experiência religiosa. A piedade individualista

presente nos protestantismos parece criar no fiel uma expectativa de criação uma sociedade

naturalmente regida pela justiça social. Porém não foi exatamente essa expectativa que se

realizou tanto nos Estados Unidos, como nos países influenciados pelo trabalho das missões

americanas e européias. Veja-se a esse respeito a observação de Herberger (1962) abaixo

citada:

Enquanto o protestantismo permaneceu como um movimento das massas nos Estados Unidos de antigamente, “viver bem” era interpretado em termos suficientemente profundos para produzir uma inundação de piedade evangélica nas áreas maiores da vida social, estimulando assim os muitos movimentos reformadores do princípio do século dezenove. Mas á medida que a vida social, americana se tornava mais completa e à medida que o próprio protestantismo se tornava, cada vez mais um reflexo institucional de certas camadas de classe média, o individualismo religioso que restava da religião da fronteira começou a servir como um meio da ignorar e fugir aos problemas sociais que surgiam na nova América das grandes cidades e das indústrias modernas. (Herberger, 1962, p. 128).

É possível inferir que os modelos missionários protestantes trazidos para o Brasil, têm

pontos de aproximação com a religião de fronteira descrita por Herberger (1962), tendo em

vista que a realidade brasileira era culturalmente e socialmente heterogênea, apesar de

oficialmente católica. Os homens de fronteira ao quais ele se refere caracterizam-se pela

condição social de pequenos proprietários ou desapropriados, pequenos comerciantes, ou

trabalhadores temporários, assalariados de baixa renda que abrigam um conteúdo social e

espiritual diverso. No meio rural americano, ou em sua fronteira com os processos incipientes

de industrialização, bem como no Brasil, a conversão dessa população não se verifica de uma

só vez. Mas à medida que a fronteira foi avançando, os americanos buscavam deixar para trás,

a sua condição social, vinculando-se a igrejas que prosperavam e denominações que se

organizavam no território conquistado. Desse modo, para os americanos, ocorria a fusão do

protestantismo conversionista e avivalista, produzindo o protestantismo do modo de vida

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americano, indicando que o homem da fronteira aspirava ou realizava sua ascensão para a

classe média, criando os conflitos de ascensão das igrejas e vertentes protestantes próprios à

subida de degraus na escala social. As fronteiras que crescem em estabilidade e prosperidade

perdem o enlevo religioso inicial que caracterizou o cristianismo evangélico e o movimento

de seus missionários. Ao comentar as transformações do Protestantismo, Mendonça (1998)

observou que enquanto a emoção e a liberdade subjetiva e participativa eram características

da expressão religiosa dos avivamentos, a institucionalização das vertentes protestantes,

conduziu a mudanças de comportamento e de concepção na relação com a Bíblia, que passou

a ser a única fonte de autoridade para a eleição de credos que assumiram o status de poder

paralelo às escrituras, afirmando conter a “verdadeira fé” e com tal posição controlar a

individualidade das interpretações e ações. “O princípio de liberdade se vê, assim,

constantemente confrontado pelo princípio da verdade”. Este é o paradoxo protestante afirma

Mendonça. (1998, p. 79).

5.3 Misticismo, Medo e Pecado no Protestantismo

Do ponto de vista de Jean Delumeau (2003) os Reformadores do século XVI bem

como os pensadores protestantes que os sucederam pontuaram a doutrina da justificação pela

fé como recurso teológico por excelência para tranqüilizar os pecadores até a morte.Assim, os

textos de orientação protestante que tratam da relação entre o pecado e o medo são inúmeros,

dentre os quais está o de Lutero, que em 1522 escreveu a obra Introdução à Primeira Epístola

aos Romanos, classificando como consoladoras as palavras de Paulo sobre a predestinação.

Isso porque o fiel se apóia na idéia de que é um escolhido, o medo do sofrimento humano na

terra, e a passagem pela morte, são atenuados pela esperança de alcançar o paraíso. Portanto,

não são as obras que salvam os homem, mas a Graça de Deus, que os une na eternidade. Por

isso, ao ouvir a boa nova, o fiel, se vê consolado em suas tormentas, afasta o medo da morte, e

abre seu coração para a confiança e alegria relacionadas ao imaginário do futuro, que já existe

como pretérito que o antecede. Calvino também é categórico em suas afirmações que Deus se

reconciliou conosco, após a queda de Adão, pela morte de Jesus, afastando todo o perigo dos

acontecimentos que não venham para o bem. O júbilo e o repouso se originam na consciência

da justiça divina, associada à benignidade gratuita de Deus.

O Protestantismo afirma que a predestinação garante que o homem escolhido não será

alvo de qualquer demônio, adversidade, tormenta que possam afastá- lo de seu destino. A

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visão de que o homem escolhido “destina-se” ao reino de Deus estando inexoravelmente

vinculado ao sagrado, requer apoio do imaginário social, que lhe fornece as imagens

ambivalentes do conflito entre o bem e o mal, bifurcando o caminho humano. De um lado

encontra-se angústia, medo, desgosto, sofrimento, fome, doença, frio, calamidades, vícios. Do

outro lado estão fé, segurança, remissão dos pecados, imortalidade, alegria, bem estar,

eternidade. A pregação e a literatura, como integrantes do discurso social protestante, são

instrumentos privilegiados para sustentação da crença na ambivalência do homem, e da

necessidade de que se reconheça pecador. Para que esse movimento ocorresse, a estrutura e a

forma da pregação bem como a literatura devia enfocar o pecado, utilizando-se de um estilo

de linguagem aterrorizante, que acentuasse o medo de Deus, para que ocorresse

distanciamento do pecado. Delumeau (2003) observa que os conselhos dados aos pregadores

por Christophe Schrader em obra intitulada De Rhetoricorum Aristotelis Sententia et Usu

Commentarius (1674) enfatizam a arte de impressionar os ouvintes para que se dirijam ao

caminho do bem e se retirem do caminho do mal. O medo expulsaria os pecados, e a reflexão

sobre os males do julgamento final conduziria a prática da piedade religiosa. Desse modo, a

pedagogia do pregador deverá se basear em dois enfoques: o primeiro, voltado a Satã, aos

magistrados, às leis, ao pecado, a sociedade dos maus, aos vícios, ao julgamento final, e

demais elementos que inspirem nos espíritos o temor e o terror. O segundo aspecto deve

referir-se a Deus Pai, a Cristo Redentor, aos bons anjos, aos fiéis imitadores de Cristo. Na

primeira parte de uma pregação, ainda deverão ser enfatizadas as doenças, calamidades,

perseguições, sofrimentos experimentados pelas autoridades religiosas, tais como os apóstolos

e Cristo, mostrando de que modo de safaram dela, o que é o testemunho de que são

predestinados.

A pedagogia protestante aconselhou então a manter no púlpito uma dupla linguagem, ao mesmo tempo de ameaça e de consolação. (...) O Conselho de Pilkington dava ênfase ao reconforto e à doçura, mas continha uma oposição entre a Lei do Evangelho que está no centro da teologia protestante, e que por via de conseqüência, comandou toda a pregação nos países que se separaram de Roma a partir do século XVI. A Lei nos desespera por suas exigências e faz aparecer ao mesmo tempo nossa natural corrupção e a danação que deveria resultar dela. Cumpre repetir, é pelo caminho do desespero que os Reformadores acederam a justificação pela fé. Uma consciência lúcida e exigente só pode ser ultrapassada – é Lutero quem fala – diante do número e da extensão de seus pecados. Colocadas diante de tais pecados, as obras desaparecem como um sopro. (Delumeau, 2003, p. 320-321).

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Durante o século XVII, os conselhos dados aos pregadores puritanos eram mais

rigorosos, na direção de que batessem as portas da consciência humana, levando os homens a

tremer de medo, diante da prestação de contas que teriam que realizar no dia do julgamento.

Delumeau (2003) escreve que conselheiros de pastores tal como Samuel Hieron em seus

sermões de 1620 afirmaram que a função da palavra não é agradar aos ouvidos humanos, mas

atingir e remexer os corações devendo ser como um instrumento profundo e cortante, que

lembram do fogo e da desgraça eterna. A utilização do terror como meio de condução à

conversão, e ao mesmo tempo a modelagem de comportamento, pode ser encontrada ainda em

outros pregadores puritanos, confo rme cita Delumeau (2003); Cristopher Love (1653),

Andréas Osiander (1533), Richard Sibbes (1639), Hugh Latimer (1548), que enfatizavam a

relação entre os acontecimentos sociais que traziam sofrimento como guerras, doenças,

pestes, mortes e os clarões das chamas infernais. Um exemplo disso pode ser encontrado no

sermão de Christopher Love de 1553, citado por Delumeau (2003 p. 326):

Mesmo que oreis até não poder mais falar, que suspireis até romper os rins, que cada palavra seja um suspiro, uma chaga do corpo, cada chaga um filete de sangue, não seríeis capaz de recobrar a graça que perdeste em Adão. Eliminaste a bela imagem de Deus. Um único pecado vos fez perder uma inteligência das coisas divinas, que dez mil sermões ou dez mil observâncias não vós farão recuperar.

A pedagogia protestante caracterizada pela ênfase no terror, embora não se possa

afirmar que foi praticada por todas as tendências que compõem esse movimento, foi um

recurso útil diante das situações nas quais se fez necessário aumentar o número de conversões,

conforme afirma Delumeau (2003). Desse modo, os avivalistas americanos, como Finney, e

especialmente os irmãos John e Gilbert Tennent provocaram polêmica ao utilizarem as

metáforas da justiça divina vingadora, dos terrores terrestres e sua continuidade após o

julgamento divino. Gilbert acusava aqueles que se opunham as suas forma de pregação de

heréticos, e de quererem transformar a imagem do inferno em purgatório, procedendo de

forma inferior aos papistas. Ao seu ver, suprimir a imagética do inferno, conduziria o mundo

ao vício, a anarquia e a imoralidade. John Thomson, pastor protestante em 1741, acusou

Gilbert Tennent de levar os ouvintes ao ódio de Deus e ao desespero, ao invés de os consolar

e revelar os “encantadores atributos da piedade divina”. Tal discussão, que deveria encontrar

correspondência na realidade social americana, parece ter facilitado que os avivalistas,

posteriormente lançassem mão das práticas religiosas como louvor, êxtase e expansão da

consciência para promover estados emocionais articulados a esperança, alegria e jubilo.

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Promover a intensificação do medo para em seguida estimular estados de alegria e

êxtase, foram modelos de práticas religiosas comuns entre os missionários católicos e os

revivalistas americanos, afirma Delumeau (2003). O método é o mesmo, apesar das diferenças

marcantes entre Catolicismo e Protestantismo. Apesar dos reavivalistas negarem serem

entusiastas, do que foram acusados por protestantes moderados e anglicanos, a literatura que

conta a história dos avivamentos registra termos como: gritos, aflição do coração, danação,

entusiasmo, êxtase, terrores, desmaios, no que estão de acordo Delumeau (2003), Prince

(1744), Campbell (1967) Tognini (1969), o próprio Delumeau (2003). O sermão de Gilbert

Tennent de 1748, citados por Delumeau:

Devemos agir no medo e os tremores. Não um medo servil que seria uma desconfiança de Deus, muito prejudicial ao progresso de nossa piedade (...) não um medo filial como o de uma criança (...) Um medo de reverência que respeite a majestade de Deus (...) O medo de Deus é o fundamento de toda religião. O orador aqui cita Santo Agostinho, depois acrescenta mais adiante: Existe uma bela harmonia entre a graça e a fé. (...) A fé produz o medo, o medo confirma a fé. O amor sem medo se tornaria seguro de si e irreverente; o medo sem amor se tornaria servil e angustiante (...) o medo autoriza a alegria (...) A alegria suaviza o medo e o torna agradável e delicioso. (Gilbert Tennent apud Delumeau, 2003, p. 331).

No Brasil, em consulta realizada pela pesquisadora, observou-se que os sermões de

Charles Finney foram publicados no jornal Expositor Christão, da Egreja Metodista Episcopal

do Sul. Com por exemplo pode-se citar o artigo de 01/03/1917 intitulado Preleções sobre

Avivamentos Religioso que serviram de base para as propostas de aconselhamento de pastores.

A oração, a pregação e as visitas pastorais eram aspectos centrais da postura do pastor para

manter a igreja viva e ser exemplo para os fiéis, conforme mostra Assis Monteiro, em

29/03/1917, em artigo do mesmo jornal intitulado: Como Manter Viva a Igreja:

Para manter uma Egreja Christã é necessária: 1º) antes de tudo o Pastor deve ser um homem de oração e não cochilar espiritualmente nem um só instante porque o perigo pode vir nesta hora. Ele deve, pois, orar dia e noite com clamor, humilhação, elevação de espírito e perseverança (...).O exemplo do Pastor induzirá os crentes a orarem com mais e mais fervor. 2º) A pregação Os olhos de Deus estão sobre todos e sobre tudo o que há na terra. O púlpito é um lugar solene e a pregação é o meio de graça na Egreja, que auxilia o crescimento de sua vida espiritual. Não se pode animar a vida de uma Egreja quando se aproveita o púlpito para o que pode ser denominado de poesia, de química, botânica ou geometria. O Pastor que assim procede deseja ardentemente não manter viva sua Egreja, mas chamar a atenção do auditório para o seu vocabulário adornado de flores artificiais. Quer mostrar que sabe mais que suas ovelhas

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pensam... Deseja mesmo esconder a magnificência do Chefe da Egreja, eclipsar o brilho da sua real presença para que ele possa aparecer em todo o esplendor de sua fraqueza e orgulho. 3º Visitas Pastorais Um Pastor que visita assiduamente suas ovelhas, nunca fracassará no seu trabalho se tudo ele faz para a glória de Cristo e para manter a Egreja em íntima comunhão com o Salvador que por ela derramou o seu sangue (...).

A força da pedagogia dos avivamentos, com a divisão do mundo entre bem e mal,

sustentou e foi sustentada por um imaginário protestante composto por construções como:

predestinados e pecadores. A tensão mantida entre termos simbolicamente polarizados:

condenados/salvos, próximos/distantes é perpassada de construções místicas, sustentando suas

criações. Misticismo composto pelos efeitos do imaginário, alimentado por imagens literárias,

estados emocionais e pregações que oscilavam do terror ao êxtase, do medo à confiança, da

angústia ao júbilo, das dificuldades do presente à satisfação das necessidades no futuro. A

oposição entre a temporalidade presente e a futura, parece ocultar as incertezas e as

inseguranças relacionadas às dificuldades sociais e culturais e mesmo a dúvida quanto à

própria salvação, que tanto esforço demandou dos pregadores e de seus opositores. Ao

examinar a título de exemplo e de pesquisa preliminar, parte da literatura religiosa brasileira

sobre os avivamentos, encontra-se obras como a de Enéas Tognini (1969) e Raimundo

Oliveira (1985), provenientes da Biblioteca Evangélica do Brasil, ligada a Igreja

Assembléia114 de Deus. Esse movimento religioso iniciou-se com a pregação pentecostal de

Gunnar Vingran e Daniel Berg, suecos naturalizados americanos, que chegaram ao Brasil,

precisamente em Belém do Pará em 1910, cumprindo uma visão tida por um evangelista de

nome Olof Uldim. Segundo o sonho de Uldim, aparecera- lhe o nome Pará e a voz de Deus,

que ordenava aos outros dois missionários que pregassem nas terras assim chamadas. Vingran

e Berg oraram muitas horas até que obtiveram a confirmação da chamada sagrada. A

definição de Tognini sobre avivamento parece revelar os significados atribuídos a essas

114 Durante vários anos Gunnar Bingren e Daniel Berg pregaram no modelo batista. Porém seu modo de pregar tinha as mesmas características do Pentecostalismo americano, no qual a fé era atrelada à Palavra, interpretada de acordo com o Protestantismo de tendência fundamentalista, a existência de um só Deus, manifestado em três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Acredita-se no nascimento virginal de Jesus Cristo, sua morte redentora, ressurreição e ascensão os céus. O batismo bíblico é realizado por imersão do corpo inteiro na água e os dons do Espírito Santo são distribuídos pela Igreja, que acolhe fiéis falantes em línguas distintas das de seu idioma natal, ou cultural. Não se sabe muito bem o que é necessário para receber essa última graça, que se tranforma para efeitos do grupo se transformou em dogma. Esses dogmas incluem a idéia de que Jesus Cristo virá ao mundo em duas fases: a primeira é invisível, e inclui um trabalho com a natureza da igreja, purificando-a e unindo-a segundo o movimento do Espírito. A segunda vinda será visível, e indicará a permanência de seu reinado no mundo durante pelo menos dois mil anos.

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práticas e a tentativa de modelar os eventos religiosos a eles relacionados, ao menos na

literatura pentecostal:

O que é avivamento? Uma obra direta do Espírito Santo no coração do crente. O vento sopra onde quer. O Espírito não destrói, pelo contrário constrói. Sopra sobre as brasas recobertas de cinzas e que estão prestes a apagar, portanto a se esfriar. O sopro leva as cinzas reacende os carvões, que se avivam. O Espírito sopra sobre o vale de ossos secos, em brande número, é verdade, mas os ossos secos sem vida e inúteis. (...) Cadáveres espirituais, mil vezes cadáveres. (...) E quantas igrejas hoje adornam defuntos espirituais com suntuosos templos, com ricos mobiliários, com flores raras e caríssimas, com cortinas de grande preço, com corais compostos de incrédulos na sua maioria (...) O homem pode fazer o seu avivamento, o avivamento que desejar, tais como campanhas, movimentos, organizações, mas o verdadeiro avivamento é obra do Espírito Santo, é obra estranha e profunda e de grande poder.(Tognini 1969, p. 10-11).

Nota-se que o avivamento é interpretado por Tognini em sua obra Avivamento Real

(1969), como obra direta de Deus, através do Espírito Santo, que sopra e transforma o homem

conforme os desígnios divinos. Portanto não é produto da ação humana no mundo, mas

iniciativas sagradas, que se desdobram em efeitos espirituais e materiais nas relações e

práticas religiosas. A história dos avivamentos, conforme descritos por Tognini (1969) traça a

ação do Espírito Santo no mundo, que parece semelhante à tentativa de construção

mitológica:

O Espírito Santo soprou no dia de Pentecostes e um avivamento irrompeu em Jerusalém, cujas chamas incendiaram o mundo todo; soprou em Florença com Savonarola e tudo na corrompida cidade se transformou: soprou com Lutero que traduziu a Bíblia e o mundo experimentou poderosa revolução; soprou na Morávia e o fogo do poder aqueceu o mundo todo na paixão missionária; soprou os Estados Unidos no tempo de Jonathan Edwards e David Brainerd e o país todo foi sacudido para a salvação em Cristo; soprou na Inglaterra ao tempo de João Wesley e milhões de ingleses foram salvos e a nação livre dos horrores da revolução francesa; soprou na América e na Inglaterra com Finney e Moody e mais de uma milhão de almas foram ganhas para Jesus; soprou com João Hyden na Índia, Coréia e Mandchúria e irrompeu poderoso avivamento; soprou no País de Gales em 1904, na China em 1933 e num sem número de lugares, tirando a cinza das brasas que já se apagava, mudando costumes, transformando vidas, deixando com sua passagem um rastro de bênçãos, de graças, amor e uma obra de Deus maravilhosa e permanente. O nome bendito de Cristo em tudo foi exaltado e glorificado (Tognini, 1969, p. 10-11).

A história tal como contada por Tognini (1969) serve como testemunho e revelação do

aparecimento e dos poderes divinos no mundo, tornando a presença do sagrado permanente e

constante. Confirma a proximidade de Deus, sua graça e bênçãos nos processos sociais e

culturais humanos, dando a Palavra Sagrada uma atualidade temporal. Nesse sentido Deus

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passa a ser um aliado, o que pode ser observado nas partes seguintes da obra de Tognini

(1969), ao descrever o avivamento, associando-o a vários aspectos da vida cotidiana e social.

Tal aspecto é notável na própria titulação dos capítulos do livro: avivamento e namoro,

avivamento e negócios, avivamento e igreja, avivamento e a Bíblia e assim por diante. A

presença do sagrado está tão próxima do humano, que dará forças para se lutar com os vícios,

jogo, fumo, álcool, televisão, literatura não-cristã, mentiras, brigas. Jesus entrará no coração

de cada ser, tornando-a sua morada, e vendo todos os pecados e impurezas que se encontram

em seu interior. Seria recomendável, que o fiel, facilitasse esse processo, reconhecendo-se

pecador e entregando-se ao poder do Espírito Santo, que tudo cura e preenche.

Na mesma década da publicação da obra de Tognini (1969) foi editado no jornal de

tendência presbiteriana independente, um comentário sobre o poder do Espírito, que aponta a

importância que lhe era atribuída, comparando o poder homem com o divino, diferenciando

suas esferas de atuação e potência. Evidentemente, o poder divino é visto como superior ao do

homem, reconhecendo-se a dependência. A influência puritana se faz notar nesse texto, que

parece reconhecer o poder do exercito como uma das instituições capazes de purificar a nação

dos seus males, embora não deva fazê-lo por vias da violência e da força. Recomenda-se,

sobretudo que a Palavra seja o guia supremo para orientação dos jovens, especialmente

seguindo Zacarias, cujo ministério era encorajar o povo de Deus com respeito ao bem estar de

Jerusalém e seu futuro. Possivelmente Zacarias tenha vivido no século VI a.C., sendo

reconhecido como um dos profetas que utiliza visões, entre as quais pode-se citar Zacarias 8

no qual há um quadro de Jerusalém, com Deus em seu meio e a experiência de restauração e

tranqüilidade. Por ocasião da publicação desses escritos citados, o Brasil se encontrava sob o

regime militar, após a deposição do presidente João Goulart (1964) iniciando-se os anos da

reconhecida Ditadura Militar, na qual forças políticas e sociais divergentes se conflitariam em

nome de interesses opostos, atuando de forma radical e violenta, como demonstram Thomas

Skidmore (1985), Otavio Ianni (1989), Caio Navarro de Toledo (org., 1997) entre outros. Já

Campos (2002, p.140) mostra o comportamento de alguns protestantes nessa fase da história

brasileira, apontando que houve esforços de alguns setores da Igreja Presbiteriana

Independente para formular uma retórica pró-democracia, lutando interiormente no

movimento presbiterianos contra pontos de vista que apoiavam o regime autoritário de direita

que ironicamente se apresentava como salvação da democracia e da ocidental tradição

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cultural cristã. A esse respeito pode ser observada o artigo publicado no jornal Estandarte em

15/02/1965, de Nelson Alves Barroso, com o título: Cristo, a Solução115 :

(...) As nações não encontram solução para os angustiantes problemas políticos e sociais que as assoberbam. É louvável e meritório o propósito das forças armadas de combater a corrupção. A propósito Olavo Bilac ao iniciar em 1910 a campanha pela instituição do serviço militar obrigatório declarou enfaticamente: “O Exército é o filtro purificador da mocidade brasileira”, entretanto a Palavra assevera: Como purificará o moço o seu caminho? Observando-o segundo a sua Palavra. Não por força nem por violência, mas sim pelo meu Espírito diz o Senhor por boca do profeta Zacarias.

A menção do Espírito Santo como inspirador de soluções para os conflitos sociais e

políticos, parece ter a função de condenar a violência, indicando que poderiam existir

alternativas, mas ao mesmo tempo reconhecendo no exército a função purificadora e

modeladora do comportamento social. O misticismo assim posto, parece indicativo da

ambivalência presente na construção política do imaginário social e institucional que

vislumbra o mundo dividido entre o bem o mal. Enquanto imaginário social entende-se as

formas como cada sociedade elabora a imagem de si e do universo no qual vive. Estudiosos

do imaginário como Gilbert Durand (2001) mostram que o imaginário social pode situar-se

para além das manipulações ideológicas, configurando-se como uma espécie de amálgama, ou

precipitado das instituições sociais.

Vinte anos depois, o avivamento é visado por Raimundo Oliveira (1985) a partir de

um retrospecto que revisa as definições e conceituações que lhe são atribuídas, entre outros

por pregadores como Charles Finney, Joseph W. Kemp, Edwin Orr, William Sprague, G.J.

Morgan, Arthur Wallis, em uma tentativa de demonstrar sua necessidade para as igrejas de

seu tempo, provavelmente com a finalidade de manter seus membros unidos na fé. Em

seguida, aponta os obstáculos que impedem que os avivamentos aconteçam nas igrejas, como

as dificuldades de oração, o declínio de testemunho cristão, radicalismo denominacional

(questionamentos insignificantes), comodismo e má administração das oportunidades,

negligência na doutrina. Tais fatores, na interpretação de Oliveira (1985) indicam que as

igrejas se encontram em uma condição social, que suscita dos fiéis uma luta pelo avivamento

capaz de transformar essa realidade, possib ilitando um abrandamento do formalismo,

modismos e festividades do mundo, aliviando desse modo a carga dos ministérios, pagaria as

dívidas da igreja, dando mais alento aos caídos, e novo fôlego aos fiéis e missionários.

115 Mensagem proferida ao microfone da Rádio Santo Amaro pelo presbítero Nelson Alves Barroso, programa da Federação das Sociedades Varonis do Presbítero de Leste da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, no dia 12 de julho de 1964.

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Oliveira, cujas idéias são associadas à Igreja evangélica pentecostal Assembléia de Deus116,

termina sua obra O Preço do Avivamento (1985, p. 110) com a seguinte frase: “não há

alternativa: avivamento ou apostasia”. O avivamento conforme ocorrido no dia do Pentecostes

é considerado por esse autor como o início desse movimento. Como todo rito, deve repetir-se

constantemente, para manter e renovar o significado do mito e seu poder.

O contato direto com o Espírito, como parte integrante do divino, é que mantém a

religião, a instituição religiosa, e a base da fé cristã, conforme Oliveira (1985). Desse ponto de

vista, o avivamento remove todo medo ao criar parte do paraíso na terra, afastando os males e

alimentando a fé. Avivamento e misticismo em sua expressão de contato direto com o

sagrado, parecem quase se equivaler em sua interpretação, tendo o poder de modificar a

realidade social, gerando o paraíso na terra, ou anunciando a Jerusalém, de modo messiânico.

Pode-se acrescentar a essas formulações, as tentativas de compreensão das estruturas do

imaginário, conforme o pensamento de Gilbert Durand (2001). O Espírito Santo pode ser

pensado como um símbolo verticalizante. A noção de verticalidade pode associar-se com o

eixo estável das coisas, assim como a postura ereta do homem. Essa forma remete a elevação

psíquica, bem como a moral e metafísica. Os símbolos ascensionais são meios para se

alcançar o céu, mostrando o vasto isoformismo entre a ascensão e a asa. Quando se chega ao

céu, chega-se simultaneamente a imortalidade. Afirma Durand (2001) que o instrumento

ascensional por excelência é de fato a asa, e que a escada do xamã, ou a escadaria do

zigurante são sucedâneos.

O desejo da verticalidade e da sua realização até o ponto mais alto implica a crença na sua realização ao mesmo tempo em que a extrema facilidade das justificações e das racionalizações. A imaginação continua o impulso postural do corpo. Bachelard, depois dos xamãs místicos, viu muito profundamente que a asa é já um meio simbólico de purificação racional. Donde resulta paradoxalmente que o pássaro não é quase visto como um animal, mas como simples acessório da asa. (...) O pássaro e desanimalizado em proveito de sua

116 O surgimento do movimento Pentecostal nos Estados Unidos teve como antecedentes as pregações do pastor batista Daniel Awrey, em Delaware, Ohio, com as características próprias desse movimento. Porém seu crescimento já com centenas de adeptos, tem marcos como os de 1900, no estado de Tennessee. A Assembléia de Deus nos Estados Unidos foi reconhecida com Igreja em 11 de Janeiro de 1918, expandindo-se a partir daí de modo significativo, mantendo missionários na China, África, América do Sul e Índia. A mensagem se propagou com tal velocidade, que foi chamado rapidamente de Movimento Pentecostal, sendo a revista Word and Witness (Palavra e Testemunho) uma publicação própria, a qual se somou o jornal Chirstian Evangel, dando origem ao semanário The Pentecostal Evangel. No Brasil, A Assembléia de Deus, ficou submetida à orientação das Igrejas Americanas, até 1931, quando por ocasião da convenção nacional, foram entregues a responsabilidade dos pastores brasileiros. Esses, que se concentravam nas regiões Norte e Nordeste do país formou missionários para expansão do movimento nas demais regiões do Brasil, bem como no exterior: Argentina, Uruguai, Bolívia, Chile, Venezuela, Colômbia, Honduras e Equador, conforme afirma Lima (1988).

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função. Uma vez mais não é para o substantivo que o símbolo nos remete, mas para o verbo. (Durand 2001, p. 130-131).

O batismo com Espírito Santo é uma das práticas religiosas, na qual o sagrado se

manifesta e pode ser observado mais diretamente. Segundo essa interpretação, na glossolália,

quando o fiel fala em línguas, é uma das oportunidades de se reconhecer a presença do

Espírito Santo. No Brasil, os registros pentecostais apontam que a senhora Celina

Albuquerque, em Belém do Pará, foi a primeira pessoa a passar pela experiência pentecostal

do batismo com o Espírito Santo, e falar em línguas, de acordo com a observação de Lima

(1988). Esse autor afirma que pode se distinguir, que quando o fiel continua a falar em

línguas, mesmo depois do batismo, o fenômeno é considerado como se fosse o dom de línguas

propriamente dito, podendo inclusive ser objeto de interpretação, especialmente por fiéis que

compreendem profundamente a palavra, os mais antigos do movimento. O fiel é desde o

início estimulado a ver-se como pecador e a santificação, se faz pela conduta comportamental

pautada nos modelos Bíblicos, bem como pelo contato direto com o Espírito Santo. A

referência do fenômeno da glossolalia a cena do Pentecostes, conforme relatada em Atos, 2,

1-6, é interpretada como um sopro do Espírito sobre uma reunião de fiéis. O vento e o fogo

foram associados à atitude de falar em línguas como indicativos da presença do divino entre

os fiéis. Geralmente o fogo é interpretado como elemento que ilumina, purifica renova e

fertiliza, conforme se encontra nas teofanias associadas aos textos bíblicos de At (1,2; 3,1-5;

24; 17; 1Cr 18, 38;) bem como na narrativa dos olhos de fogo de Moisés ao descer do monte

após a teofania (Ex, 34, 27) de acordo com Heinz-Mohr (1994). De forma complementar

Durand (2001) afirma que os símbolos ascensionais parecem marcar em um grupo social ou

indivíduo, a preocupação da reconquista de uma potência perdida, de um tônus degradado

pela queda. Ao lado das representações sociais do Espírito Santo, encontram-se outras como

anjos, realezas celestes, profetas, e símbolos cujo papel mágico é atribuir- lhes um poder

sobrenatural, quando relacionados aos signos e imagens. Esse poderia ser um dos sentidos da

glossolalia: introduzir o fiel em campo ascensional e marcar sua pertença e reconhecimento

social nesse espaço, finalidades nas quais, o som e a imagem da palavra, são mais potentes

que seu significado em si.

Vinte anos antes da obra de Oliveira (1985), o jornal de tendência presbiteriana

independente publicava artigo sobre o Espírito Criador, comentando sua terminologia, o que

era indicativo de sua reprodução em hinário. As influências do imaginário medieval, que

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aproximam o homem de Deus, presente nas concepções dos Reformadores, parecem ser reconhecidas e

polemizadas.Nelson A. Barroso escreveu um artigo intitulado Veni Creator Spiritus afirmando inicialmente que

essa frase foi o primeiro temário da Assembléia Geral da Aliança Mundial de Igrejas Reformadas e

Presbiterianas, ocorridas de 3 a 13 de agosto de 1964 e também está incluída em um hino muito comumente

cantado nas Igrejas presbiterianas. Essa expressão fornece o mote para seus comentários no jornal O Estandarte

datado 15/06/1965:

Foi extraído de uma frase de um velho hino medieval. É uma oração na qual os crentes pedem “VEM, ESPIRITO CRIADOR!” As palavras do referido hino, muito se assemelham o nosso – “Vem Espírito Divino, Grande Ensinador; vem descobre às nossas almas, Cristo, o Salvador”.Todavia é estranhável que para uma conferencia de tão grande magnitude se tenha buscado frase de um hino medieval e não um texto bíblico, por excelência. Aliás, esse fato foi mencionado muitas vezes em plenário e nas discussões em grupo, a maioria discordando sempre quanto ao melhor sentido da escolha.

Embora a frase Vem Espírito Criador tenha tido sua a proximidade com o hino

medieval, fato é que o Espírito Santo foi referênc ia em muitas publicações do mesmo jornal,

durante várias décadas como mostram suas páginas, especialmente no período dos anos 30 a

60. Possivelmente, mesmo sendo atribuídos significados diferentes a terminologia empregada,

sua freqüência também se faz notar no hinário utilizados pelas igrejas protestantes

(Mendonça, 1995,1997), bem como na iconografia do quadro “Os dois caminhos (Alves,

1979) e ainda em vários registros de pregações de pastores protestantes. Uma dos significados

de tal polêmica parece resid ir no processo antagônico: enquanto a tendência puritana

valorizava da moralidade individualista, que conduz a um certo descrédito da estrutura social,

a igreja que é uma instituição social necessitava de meios que mantivessem seus membros

como corpo único. Era, pois necessário à criação de recursos simbólicos como rituais e

crenças que sustentassem a dupla função de simultaneamente estimular individualidade e frear

a violência do apetite pelo lucro econômico. Desse modo às instituições religiosas através de

meios como o misticismo corporativo, mantinham os fiéis unidos por obrigações mútuas

como louvar a Deus, praticar e cuidar dos diversos ministérios, que de certo modo são vistos

como exemplos de caridade. Veja-se nesse sentido a publicação de um hino no jornal

Expositor Christão (01/01/1889) dedicado a Domingo de Herculano Govea:

Venha o Spirito precioso, Neste dia consolar-me;

Dar-me fé, paz, esperança. De Caridade inundar-me (...).

Neste dia São João

Apostolo da caridade, Foi até onde tu estás,

Na bella, linda cidade!

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O termo cidade, referido no hino acima (01/01/1889) pode ser interpretada de muitas

formas, entre as quais o subjacente conflito do papel desempenhado pela igreja diante de outra

instituição que é o Estado. No início da Reforma, a economia é por assim dizer um ramo da

ética, enquanto essa é um ramo da Teologia e da Fisolofia, as quais se subordinam ao menos

ideologicamente as atividades humanas administradas em grande parte pelo destino espiritual

da humanidade. A secularização vai desempenhar um papel social de deslocar parte dos

significados religiosos para a subjetividade humana, mantendo Deus como autoridade social

suprema. Esse sela os destinos, criando no imaginário social a ética da transitoriedade das

relações. A concepção de Jesus Cristo como modelo cristão a ser seguido pelos fiéis gera a

duplicidade da identidade social, que na intimidade acolhe o divino em si e no coletivo segue

padrões econômicos marcados pela livre iniciativa, de busca do lucro e associações humanas

por afinidades de interesses. A irrupção dessas novas idéias, advindas do capitalismo, são

expressas por Tawney (1971) da seguinte forma:

As certezas de uma época são os problemas da seguinte. Poucos recusarão seu

aplauso à magnífica concepção de uma comunidade penetrada de alto a baixo pela lei moral, que foi a inspiração dos grandes reformadores, não menos que das melhores mentes da Idade Média. Mas a fim de subjugar o árduo mundo dos interesses materiais, é necessário ter com os seus caminhos tortuosos uma simpatia no mínimo tão grande quanto aquela que é necessário par a compreendê-los. O Príncipe das Trevas tem direito a uma audiência cortês e a um julgamento justo, e aqueles que não lhe derem o que lhe é devido estão acostumados a ver que no fim de contas ele vira o feitiço contra o feiticeiro tomando o que lhe é devido e algo mais.(Tawney, 1971, p.26).

O príncipe das trevas vai identificar-se nas tensões geradas pelo crescimento do

mundo urbano, dos centros comerciais, do mercado financeiro, dos governos seculares, da

civilização industrial, do individualismo marcando as relações sociais pela impessoalidade,

ceticismo, livre jogo de interesses, que modificariam profundamente as sociedades

atravessadas por esses processos.

5.4 Misticismo Interior e Misticismo Compartilhado no Protestantismo

Nos primórdios do Protestantismo no Brasil, do ponto de vista de Mendonça (1995, p.

200) a crença religiosa era uma composição de dogmatismo, racionalismo e emocionalismo.

“Essa difícil composição epistemológica e emocional parece que marcaria uma permanente

dialética nos desdobramentos históricos do protestantismo no Brasil”. Para Mendonça (1995)

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a Teologia era mais ou menos uniforme a todas as denominações brasileiras, seguindo a

influência dos avivamentos americanos, arminianismo e pietismo, sendo que as visões mais

racionais, presentes no calvinismo, ficaram circunscritas aos seminários, durantes várias

décadas. As condições sócio-culturais do Brasil promoviam e reforçavam essa conduta dos

fiéis e dos missionários, tendo características próprias, quando comparada àquela que se

desenvolveu na sociedade americana.

No Brasil, o Protestantismo encontrou um contexto em que a cultura ibérica e a

religião oficial estavam historicamente instaladas, mesmo que faltassem às autoridades

religiosas católicas aproximação ampla com as camadas da população, de acordo com

Mendonça (1995). A mensagem protestante que foi veiculada no Brasil era aberta para o

apocaliptismo, uma vez que ao menos culturalmente, correspondia aos anseios da camada da

população por um devir compensador, já que os meios sociais para a ascensão e a participação

eram escassos. Ao mesmo tempo a falta de líderes religiosos suficientes para atender aos que

se convertiam em seus anseios por conhecimento, proporcionava uma convivência individual,

ou em pequenos grupos com a Bíblia. Essa situação foi promotora de atitude “quietista”, ou

ainda tranqüilizadora das necessidades do cotidiano, que demandava buscas por respostas às

questões do dia-a-dia, levando a práticas e hábitos de usar a Bíblia como livro de consulta,

aproximando-a de um oráculo. Desse modo há uma espécie de identidade institucional do

protestantismo, delimitada pelas práticas e crenças que são próprias ao individualismo. Essa

atitude, além da condição sócio-cultural acima então existente, parece assentar-se em outra

parte: da resultante de um processo de filtração da concepção do livre arbítrio humano para

aceitar a salvação, e do perfeccionismo e santificação adivinhas da mensagem missionária,

especialmente nos moldes americanos. Fazendo uma correspondência com as manifestações

místicas, pode-se dizer que se observam modelos de misticismo, uma vez que tem por

parâmetro: 1) interiorização de parte da experiência religiosa que se expressa entre outras

formas, na intimidade de “Deus no Coração” 2) a devoção e quietismo no cultivo da figura de

Jesus Cristo ou em expressões de hinos característicos 3)o puritanismo, promotor de

comportamentos sociais imitativos de Jesus Cristo, com identificação direta entre o fiel (eu) e

a figura divina; 4) compartilhado no culto, bem como nos significados sobrenaturais

associados pelo grupo ao conteúdo das leituras bíblicas, pregações ou cânticos; 5)misticismo

compartilhado pelas interpretações sociais formuladas enquanto presença do Espírito Santo e

suas ressonâncias na vida religiosa e nas relações sociais.

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Quanto ao primeiro e aos segundo modelos, a experiência religiosa, é representada

como um encontro íntimo com Deus ou com Jesus Cristo, e os sentimentos presentes nesse

encontro são confiança, suavidade, doçura, bondade, esperança, quase erotismo. É possível

encontrar exemplos dessa conduta nas publicações do Jornal Imprensa Evangélica da época

dos missionários protestantes, bem como no Jornal O Estandarte, quase oitenta anos depois.

No caso dos missionários assim reproduzimos a correspondência de T.L. Cuyler (1889),

mantendo-se a tipografia da época e os erros tipográficos. Já na segunda citação, trata-se da

autoria do pastor da 1ª. Igreja Presbiteriana Independente (IPI) muito influenciada pelas

religiões da Índia em sua rota devocional, cuja expressão que denota o caminho para a graça é

Bhagavad Gita, que é um poema de catequese. Nessa concepção, se um homem se dedica da

Deus de forma desinteressada de suas necessidades e desejos, ele será libertado pela graça de

Deus de transmigração conforme esclarecem Gaarder el al. (2000, p. 46). Essa proposta

representa um caminho mais direto e pessoal de comunicação com Deus do que os Vedas e os

Upanishads.

Si Chirsto reallmente nora convosco, os outros hão de descobrir esse farão. (...) Nunhum christão genuíno cabe desejar esconde-LO, nem tão pouco o poderia faze-LO, sei quizesse. (...) Si o fogo está acceso no fogão, tocar nelle o demonstrará. Aqui, pois há uma prova infallivel. Sinto e reconheço eu, que Christo está dentro do meu coração, regendo a minha conducta, revivificando a minha conducta, revivificando a minha consciência e ajudando-me, todos os dias, a não resistir ao mal e fazer o bem? Se assim é, então Elle está ahi. T.L. (Cuyler 01/12/1889) ÚLTIMA ORAÇÃO: “Vem, Senhor Jesus”. O Jesus, quando a dor domina o corpo e o definha ao extremo, Tu vens, médico divino; quando a tristeza, que é uma segunda morte, governa o coração, quando o isolamento e a desilusão ferem de morte, quando a esperança fenece, quando o pai e a mãe são chamados, deixando saudades eternas quando e esposo e a esposa partem e os órfãos gemem, quando ao filho e a filha sucumbem, marcando o coração com o sele da dor, quando enfim a morte chega, como o anjo libertador, Tu vens com ela Senhor.). Também, Senhor, quando a fé rasga o véu do infinito, quando o amor arde pela fusão das almas que desejam unir-se, Tu vens seguramente. Os tempos se cumpriram, Senhor e o mundo chegou ao fim. A seara está madura e o tempo da colheita chegou. Soa sinais dos tempos na terra e no céu falam e avisam e o sol, na longa caminhada da raça humana, vai ao seu declínio, anunciando a noite. Tu, porém, Jesus és o sol novo de cada dia e com outra luz iluminas o mundo das esperanças e das realidades. Eu te espero na figura altamente mística de noiva e noivo, de esposo e esposa, que desejam unir-se pra sempre, eu suspiro por Ti: Vem Senhor. (Jorge Bertolaso Stella 31/03/1968)

Ao ver de Mendonça (1995) existe na relação com a figura divina um outro aspecto,

que é próprio do Protestantismo pietista, manifestando-se na contemplação do fiel à cruz,

numa atitude espiritual indicativa de elevado misticismo, distinta do catolicismo, centrado

numa visão do sofrimento, conforme observado em sua obra O Celeste Porvir (1995, p.226),

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cujo título já é representativo do apocalipsismo e da esperança protestante, conforme

observado no hino abaixo citado:

Minha alma, tão ansiosa. Suspira pela vida, meu Jesus,

Oh! Faz descer, radiosa. Sobre esta alma dolorida, Tua luz117

Para Mendonça (1995) o conversionismo, herdado dos avivamentos, fundou-se na

penitência e na experiência pessoal com Jesus. Assim, a conversão é uma experiência

emotiva, uma atitude individual e íntima, na qual ocorre aproximação com Deus. Em um certo

sentido esta interpretando o protestantismo pietista, há uma busca intensa do contato e da

comunhão com Jesus Cristo, conduzindo muitas vezes ao desligamento das situações

mundanas, com desvalorização das circunstâncias de vida, voltando-se para o prazer obtido

nessa experiência mesma. O gozo espiritual se torna antagônico aos prazeres do mundo, sendo

visto como superior quando comparativamente considerado. Nesse sentido desenvolvem-se

atitudes de apego e interpretação solitária da Bíblia, transformando-se em uma mística da

contemplação do Crucificado, que quando toma a faceta monástica de fechamento à relação

social se aproxima em sua forma do catolicismo monástico, não necessariamente em seu

conteúdo significante. Essa modalidade de experiência religiosa se opôs à teologia

racionalista, à reflexão teológica sistemática, bem como ao interesse pela pesquisa histórica

de Jesus Cristo, permanecendo como uma forma de fé individualista, e atemporal.

Se isso for correto, não há no Protestantismo a necessidade de especialistas ou

funcionários especializados em prestar serviços religiosos, uma vez que o fiel, busca no

encontro com a figura de Jesus Cristo, o central de sua vivência religiosa, levando a um certo

radicalismo a máxima do Protestantismo: não se necessita de autoridade religiosa para ser

salvo. Do ponto de vista de Mendonça (1995) embora o Pietismo seja promotor mais de

experiências religiosas individuais do que sociais, existe um acordo de conveniência com as

correntes mais institucionalistas do Protestantismo, uma vez que esse último necessita da

sustentação do individualismo. Portanto há uma tensão e uma dualidade próprias do

Protestantismo, quando se trata do espírito pietista, que favorece o misticismo e por outro

117 Hino de autoria de Augusto S.P. Cadeira 1867-?

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lado, a institucionalização, que tenta manter sobre controle a relação do fiel com seus dogmas,

e, sobretudo a formação de suas lideranças. Interpretação de Mendonça, que pode ser

observada na seguinte citação:

O espírito pietista ao desenvolver uma antiteologia fecha as portas da reflexão, não permite que as inquietações sociais agitem a instituição. Desse modo, a instituição, assim como as vivências religiosas do cotidiano, podem pairar acima das contradições sociais. (...) Se no protestantismo americano o espírito pietista constituiu-se numa tendência subjacente que não chegou a perturbar a profunda involucração da teologia no social, no Brasil, é um lago extenso e pacífico em que as contradições se chegaram a produzir pequenas marolas, logo desapareceram na quietude bucólica desse lago esquecido da geografia social. (Mendonça 1995 p. 228).

No imaginário religioso brasileiro a questão da luta contra o bem e o mal, também

pode ocorrer na intimidade do coração humano, que sofre ataques por parte do mal,

necessitando assim proteger a morada do divino. No Protestantismo não havia inimigo visível

para combater, a não ser o catolicismo, que nos primórdios não parecia ser a fonte de

preocupação central, uma vez que se tratava de conquistar e instaurar o modo de ser

(protestante) no fiel, e não exatamente de confrontar diretamente os ocupantes do campo

simbólico. É no campo espiritual, tendo Jesus como guerreiro principal, que as forças do mal,

serão vencidas. Satanás ganha diferentes formas nas expressões protestantes, que merecem

observação, desde a época missionária, até os dias atuais. Existem expressões sobre a

presença do mal, mais diretas e mais indiretas como por exemplo: um peregrino enfrentando

os obstáculos para caminhar rumo ao Céu, bem como o jardim interior habitado pelo sagrado,

e que deve ser protegido das tentações e ataques do inimigo.

Nesse ponto de texto, as observações de Robert Muchembled (2001) sobre a história

do diabo, podem ser esclarecedoras, uma vez que apontam para existência dessa figura no

imaginário ocidental, mesmo em meados do século XVII, época na qual houve uma cisão

intelectual entre os racionalistas e os pensadores não laicos no campo da teologia. A imagem

de Satã vai diminuindo seu espaço na sociedade européia, que estava em mutação, deixando

de ser associada ao terror e ao castigo nas imagens de inferno, para pulverizar-se em muitos

fragmentos, que são espalhados pelos grupos religiosos. Em meios de processos sociais de

conhecimento relacionados a laicização, cientificidade, secularização, persiste parte de mito,

expressando-se ora como ser sobrenatural, ora como parte reflexa do próprio homem, através

dos movimentos representativos relacionados ao mundo onírico do fantástico, grotesco e

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maravilhoso. O Diabo pode ainda ser utilizado como forma de combate à vertentes religiosas

que ameacem a do fiel, bem como símbolo de libertação, revolta e irracionalidade nas

situações de opressões culturais e sociais. Veja-se sobre esses aspectos a publicação dos

jornais periódicos evangélicos, cuja ordem de citação abaixo, representa um recorte

longitudinal, para que se observe a permanência dessa concepção no Protestantismo

Brasileiro. O primeiro foi publicado em Puritano (01/05/1919), se tratando de Hino No. 485

do hinário Salmos e Hymnos, usado época:

“O lar do Céo”

Oh! Pensae nesse lar lá no Céo, Bem ao lado do rio de luz Onde os anjos pra sempre ali gosam Da presença do nosso Jesus

Hei de ver lá no Céo meu Jesus Face a face seu rosto mirar Longe, longe cuidados, tristezas! Com Jesus vou pra sempre morar

Oh! Pensae dos amigos no Céo Que a jornada já tem acabado E mos cantos que soam nos ares No palácio por Deus preparado

Cedo, [cedo no Céo lá estarei] Vejo o fim da jornada chegar Meu Jesus li está me esperando E melhor estar ali que aqui estar

O segundo exemplo aparece em O Estandarte (30/04/1968) na vigência da Pastoral do

então Presidente do Supremo Concílio da IPI, Daily Resende França:

Um fato parece inexcusável nessa altura – o Diabo visita com assiduidade o ambiente dos filhos de Deus! Vejamos agora alguns métodos usados por satanás em seu trabalho: O primeiro método que o diabo tem adotado é o de se fazer feio, horroroso e fúnebre. Bem ao contrario as escrituras ensinam que o Diabo apresenta-se como anjo de luz. É assim que ele age aproveitando as oportunidades quaisquer que sejam. O diabo sabe misturar o bem com o mal, o certo com o errado, é perito nessa arte, mesmo por que sua intenção é sempre persuadir. Outra modalidade é a moda; está em uso hoje a moda do cabelo comprido para homens e é curioso observar até que ponto e exagero tem chegado. E como o diabo aproveita essa situação. Algumas pessoas têm cedido muitas a Satanás. Não se apercebem que em tais concessões vão caminhando para um emaranhado do qual não sairão jamais. O terceiro exemplo foi publicado em Imprensa Evangélica em sua derradeira fase

(maio de 1985) em um artigo intitulado O Caminho da unidade evangélica.

Reconhecemo-nos como “jardineiros”. Pelo menos é assim que os poemas sagrados descrevem a vocação que Deus nos dá. No fim de todo o trabalho da Criação está um “Jardim”: lugar belo, de árvores e fontes, de frutos e flores, onde os homens e mulheres são convidados à felicidade: o jardineiro se alegra

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quando vê brotar da terra o trabalho de suas mãos... Ali existia Vida. E Deus passeava pelo jardim, pela hora da brisa fresca da tarde... Mas o Paraíso se perdeu. A Morte misturou o seu veneno em todas as coisas; as pessoas começaram a ter medo uma das outras, os campos passaram a produzir espinhos e cardos, os animais se tornaram violentos. E nos descobrimos em meio a um deserto, com a triste saudade de um Paraíso perdido... E é assim que vivemos agora. Em tudo Vida e Morte se misturam. E é por isso que, sozinhos estamos perdidos. Precisamos ser salvos. Dentro de nós, em nossos cenários interiores, é necessário redescobrir o Jardim: as visões de esperança, a libertação do medo, a confiança na vida eterna, a presença do amor, a coragem para viveres desarmados, prontos a perdoar, a não revidar, a perseverança caminhada nas pegadas de Jesus, carregando a cruz, numa total solidariedade com os mansos, os humildes de espírito, os que choram, os pacificadores. E esta renovação interior é necessária para que os nossos olhos sejam capazes de reconhecer os sinais do grande Jardim que a Vida continua a fazer brotar.

Nos exemplos acima citados, podem-se observar a espiritualização da guerra, que

parece indicar o fenômeno da interiorização da experiência religiosa. Esse cenário íntimo

parece ser um espaço do imaginário social, criado com os elementos simbólicos que atenuam

a convivência direta com os conflitos mundanos, deslocando-os para a subjetividade, ou ao

menos sustentando sua natureza enquanto própria ao indivíduo. Esse processo parece uma

tentativa de resolução da tensão indivíduo/coletivo, da forma como foi gerado pela

modernidade, cujo exemplo observam-se, nos conflitos entre pietismo e institucionalização.

Os significados associados às publicações nos periódicos acima citados podem ainda

significar a impotência do homem pobre que uma vez convertido encontrava na religião uma

forma de refugio e compensação pelo desamparo sociais e simbólicos, correspondentes à

mudança da sociedade rural para a industrial, que ocorreram no Brasil dos fins do século XIX

em diante.

A consolação espiritual é enfatizada por mestres do misticismo como Teresa de Ávila,

João da Cruz e Francisco de Sales, incentivando os cristãos a buscarem o Deus das

consolações e não as consolações de Deus, conforme se encontra esclarecido por Borriello et

al. (2003 p. 258-259). Nesse aspecto catolicismo e protestantismo têm por finalidade

promover os estados de esperança no fiel, e o misticismo é uma das experiências religiosas

estimuladas para esse fim, seja ela letrada, ou não. Ambos deixam o fiel entrever que embora

não deva esperar de Deus o consolo, não significa que isso não possa ocorrer por vontade

divina. A consolação é um estado emocional complexo, composto por alegria, tranqüilidade,

paz, relacionando-se a graça, e a purificação do crente, submetido à máxima “Deus-é-amor”.

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Nessa concepção, a alma colaboradora da construção da igreja, aperfeiçoa-se, renunciando

aos falsos prazeres do mundo, como aprendiz da mansidão e humilde do coração. Essa

pedagogia encontrada no puritanismo, no misticismo católico, une doutrina evangélica e

tradição espiritual. Empenhando-se cada vez mais na prestação de serviço de Deus, o fiel sobe

os degraus da vida espiritual, encontrando formas distintas de consolação. Cada vez mais, o

fiel que se encontra nesse percurso encontra um processo de santificação, cujo estado

emocional é indicativos da presença do divino e de um encontro próximo e íntimo, que a

comunidade pode testemunhar, manter e difundir. As manifestações afetivas foram chamadas

de moções espirituais e no catolicismo brasileiro, podem-se encontrar obras literárias e

teológicas que apontam o caminho místico para a consolação, entre as quais estão os

exercícios espirituais propostos por Inácio de Loyola. A mística católica tanto quanto a

protestante atribuem a Deus os estados emocionais suscitados no coração do fiel. Nesse

estado a alma se inflama de amor e ardor pelo Criador, e distingue na terra o que será vivido

no paraíso. Gratidão, arrependimento, participação, caridade, podem ser algumas das

experiências resultantes do estado de consolação. No Protestantismo esse processo associa-se

a graça, que produz faculdades intelectuais, vontade orientada para o bem e a satisfação

espiritual, que se renova em cada culto, ou leitura bíblica, além das visões sobre o que é

eterno e sobre as virtudes a serem desenvolvidas como no puritanismo. Com o crescimento da

institucionalização do Protestantismo, avançam as formas comportamentais mais

padronizadas do puritanismo, que tem como modelo de cristão o imitador de Jesus Cristo, o

leitor assíduo do texto bíblico, que se reconhece como pertencente a um movimento ou grupo,

tal qual identidade social. Mendonça e Velasques (1990) observam que, nesse processo,

enquanto os missionários avançavam rapidamente nas atividades de conversão, os pastores

nacionais ficavam para trás no trabalho, já que não possuíam ao menos no inicio da

implantação do Protestantismo no Brasil, as habilidades para o desenvolvimento litúrgico,

limitando-se na maioria das vezes a imitar os missionários tanto nos sermões quanto nas

tentativas de realização de culto. Nota-se nas publicações nacionais o tom informal que fala

das experiências cotidianas dos indivíduos, ao mesmo tempo em que tenta desenvolver a

consciência religiosa na direção da esfera coletiva da religião. Os jornais periódicos:

Expositor Christão e Puritano ilustram essa faceta do movimento de institucionalização do

Protestantismo:

Loterias

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É sabido que as loterias são prohibidas na maior parte dos Estados Unidos e mui especialmente nos estados de Illinois. A proibição da lei, porém não matou o vício. Não se joga alli com as loterias nacionais, se joga com as loterias estrangeiras. Visto que temos imitado os Estados Unidos da América na forma de governo, seria bom que imitássemos em todas as suas virtudes, por exemplo, a supressão da loteria118. Epidemia de Grippe

Movimento Geral Durante o período em que grassou a epidemia da grippe, ficaram paralysadas algumas das cidades da Igreja, como a Escola Dominical, a Sociedade de Esforço Christão e o serviço de pregação na Lapa e na Casa Verde, tendo sido suprimida as reuniões nocturnas, em obediência à disposições do Serviço Sanitário. Em compensação, porém a igreja não permaneceu inativa. Os voluntários trabalharam na cozinha, o pessoal de visitas domiciliares, de socorro medico e dos hospitais evangélicos todos trabalharam em prol dos necessitados gratuitamente, sacrificando até as suas próprias conveniências domésticas. (...) Os crentes não desanimam porque tem confiança em Deus e sabem que chuvas de bênçãos hão de cair sobre o mundo inteiro. É porque cofiam naquela palavra do Mestre: Sê fiel á morte, que eu te darei a coroa da vida.119 O fumo Conta-se a seguinte historia de uma certa mulher que gostava muito de fumar tinha-se entregado ao vicio de tal modo que, além de fumar o dia inteiro, muitas vezes levantava-se à noite para esse fim. Depois de umas destas diversões nocturnas, adormeceu e sonhou, que tendo morrido, dirigiu-se para o Céo. Encontrando um anjo, perguntou-lhe se seu nome estava escripto no livro da vida. Elle desapareceu e quando voltou disso que não tinha encontrado. – Oh disse ella. Vá ver outra vez: deve estar lá. O anjo foi examinar o livro novamente, mas voltou com o rosto entristecido. – Não se encontra lá, disse. –Oh disse a mulher com afflição. Deve estar lá. Vê outra vez. O anjo ficou commovido devido aos rogos da pobre mulher e foi renovar sua pesquiza. Depois de longa ausência, voltou com o rosto radiante, e exclamou: - Encontrei-o finalmente, mas estava tão apagado com a fumaça do tabaco, que mal podia ser lido. A mulher, ao acordar. Jogou fora o seu cachimbo e nunca mais fumou120.

Conforme se pode observar nas citações acima, a imprensa como uma forma de

comunicação social, serviu como instrumento para padronização do comportamento do fiel na

dupla direção que propõe de um lado a institucionalização da religião e de outro, sua

instrumentalização com recursos necessários para que seja instituinte de si mesma, como no

caso do Protestantismo de influência puritana. Desse modo se conservavam e expandem a

religião e a organização que se estabelecia expressando-se em misticismo compartilhado. O

puritanismo em seu discurso atribuía as mudanças comportamentais aos efeitos da graça

divina, que se manifestava em sonhos, visões, e ao mesmo tempo como indicativo da presença

do individualismo, reconhecia no sujeito a capacidade de mudar sua vida, responsabilizando-o

118 Jornal Expositor Christão.São Paulo (01/01/ 1889). 119 Jornal Puritano. Rio de Janeiro (16 /05/ 1919). 120 Jornal Puritano. Rio de Janeiro (01/01/1919).

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por fazê-lo. Na tentativa de padronizar o culto Protestante, encontra-se o Manual do Culto de 1892, que

inicialmente conforme observa Hahn (1989) servia de referência aos pregadores leigos, instruindo-os elementos

básicos da coordenação do evento religioso, bem como nas modalidades seqüenciais e comportamentais de

dirigir os fiéis, como se segue abaixo;

À hora de começar o culto divino, as pessoas que irão participar dele deverão estar dentro da igreja, sentadas de maneira decente, graves e reverentes. Durante o culto todos deverão prestar séria e reverente atenção abstendo-se de ler qualquer coisa exceto o que o pastor ou o leitor estiver lendo e citando. (...) O povo deverá ficar de pé durante as orações. A pessoa que dirige o culto deverá dar início ao mesmo dizendo: Invoquemos ao Senhor nosso Deus. (Manual do Culto, 1892, p. 18-19).

Invocar, nesse caso é indicativo de pedido de proteção divina, geralmente voltado a fundação de igreja

que, nesse caso protestante, que parecia estar reconhecida por aqueles que a freqüentavam ou ao menos assim

gestavam no Brasil, sua concepção imaginária e sua realização. Deus, que é posto como compartilhado, uma vez

que se usa o termo nosso, possivelmente era chamado em seu socorro de forma insistente, uma vez que os cultos

deveriam assim iniciar-se. A própria igreja para se instituir e para manter-se teve que enfrentar uma série de

obstáculos sociais, entre os quais, a criação de um modelo que correspondesse às demandas religiosas e culturais

da realidade brasileira multifacetada, autoridades religiosas católicas e a diversidade de expressão do

catolicismo, religiões afro-brasileiras, além das tendências múltiplas do interior do Protestantismo. A essa altura

do texto é possível recorrer à leitura psicanalítica sustentada por Melanie Klein, e aplicada a realidade social da

institucionalização do Protestantismo. Infere -se assim que a igreja protestante nascente em solo brasileiro, ao

enfrentar as ameaças de sobrevivência inerentes ao processo social acima descrito, utilizou-se de recursos, tais

como reforçar as representações sociais ligadas a divisão de bem e de mal, e idealizações referentes a uma figura

divina poderosa, que funcionasse como uma espécie de ícone social, como Deus ou Jesus Cristo, fortalecendo a

esperança de sobrevivência e crescimento. As imagens relativas ao “bem” quanto ao “mal” tendem a surgir de

modo caricatural, acentuando-se seus aspectos polarizados como bondade/maldade; construção/destruição;

salvação/condenação; reino do bem/reino do mal, mantendo conflitos culturais sobre controle, à medida que se

construía um modelo com aspectos ambivalentes que permitia a sobrevivência do Protestantismo.

A identificação individual e coletiva com a imagem de Jesus Cristo, como proposta pelo puritanismo,

possivelmente permitiu a instituição de condições culturais e simbólicas defensivas proporcionando aos

membros do grupo o fortalecimento de seus vínculos, pela ilusão de semelhança entre si. A partir dessas idéias é

possível compreender a necessidade de estimular os padrões comportamentais forjados pelo puritanismo para

ampliar as chances de sobrevivência do grupo, evitando sua pulverização, uma vez que o sistema de autoridade

religiosa hierarquizada proposta pelo catolicismo, era um modelo indesejável. A liderança evangélica leiga,

nascida das raízes sociais brasileiras possibilitou a permeabilidade nas atividades do cotidiano aos valores e

práticas religiosas protestantes, na medida em que outorgou-lhes os significados atribuídos ao Protestantismo,

cuja mensagem sustenta-se não em um “santo-de-oratório”, mas em um “santo-ambulante-no-mundo” ou um

“santo-no-mundo”.

5.5 Rituais Protestantes

Ao esclarecer sobre os rituais, e sua relação com a religião, Roy Rappaport (2001)

esclarece que a natureza do ser humano só pode ser reconhecida em sua atitude de significar o

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mundo. Significar é considerado um ato intrínseco ao homem, sobretudo quando de trata de

religião, na qual os elementos mais gerais, como o oculto, numinoso e divino se expressam

com a atitude criativa da linguagem que nomeia a existência no instante mesmo que a

transcende. Desse modo, o ritual, utilizando-se da linguagem escapa dos limites do presente,

informando sobre o passado e iniciando a ordenação do futuro, promovendo conhecimento,

planejamento, previsibilidade. Ao fazer uso dos rituais, o ser humano pode beneficiar-se de

formas de organização social diferenciadas, e eficazes em suas funções. A linguagem

utilizada nos rituais, ou ainda pensando que rituais podem ser uma forma de linguagem em

certas práticas religiosas, tem por finalidade provocar uma comunicação entre mundos

distantes, ou diferentes como: terreno/celeste, sagrado/ profano, Deus/ Diabo, bem/ mal. A

multiplicação das dimensões temporais, jogando com o que já foi, o que é e o que será, de

modo a pareá- los, é um dos efeitos dos rituais no imaginário social, que percorre o cotidiano.

A adaptação às mudanças do cotidiano, esclarece Rappaport (2001) incluem sustentar

movimentos de estados reversíveis em curto prazo, e outros irreversíveis em longo prazo, que

os rituais auxiliam fornecendo suporte e sentido de continuidade no tempo e no espaço. Os

rituais são ainda formas de construir a singularidade dos traços culturais de uma época ou de

uma sociedade, focados nesse trabalho especialmente em sua face religiosa. Clarificando e

definindo, conforme a terminologia utilizada pelo autor. “O termo ritual pode se usado para

referir-se a execução de seqüências mais ou menos invariáveis de atos formais e de

expressões não completamente codificadas por que as executa”. (Rappaport 2001, p. 56,

tradução da pesquisadora).

Rappaport (2001) esclarece ainda que o ritual obedece ao estabelecimento de

convenções na forma de contratos sociais. As percepções das características que compõem o

ritual são importantes, como por exemplo, a reação dos participantes a ordenação seqüencial

dos elementos componentes. A forma do ritual aponta para um elemento de profundidade, que

toda a interpretação simbólica não pode alcançar, ou ainda expressar por si mesma, deixando

com os membros do grupo um ponto que se presta à revelação no gerúndio, isso é no

acontecer social e não no acontecimento social. Desse modo, as concepções de Rappaport

(2001) fornecem subsídios para a tarefa pretendida nesse trabalho, a saber, aproximar-se do

cotidiano do fiel protestante, ou de suas relações com a autoridade religiosa.

Para alcançar a finalidade de abordagem do cotidiano, foram utilizados inicialmente

trechos selecionados da obra Lares, Escolas e Igrejas escrita por Adolpho Machado Corrêa,

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membro da Igreja Presbiteriana Independente, cujo pseudônimo era Dr. Teófilo. O critério de

seleção dos trechos escolhidos foi à adequação à reflexão da temática circunscrita pela

pesquisa. A análise principia pela situação de ordenação pastoral, descrita pelo próprio sujeito

que a experiência, promovendo assim uma modalidade de observação de elementos

discursivos e seus significados, que expressam uma visão do ritual mesmo:

Meu sermão para a solenidade de ordenação já estava pronto, completamente escrito. Iria adotar o mesmo método já adotado na licenciatura: Lê-lo várias vezes em voz alta, em tom de oratória cristã, impregnando-me de suas idéias, recebendo-o em meu coração, integrando-me em sua essência, mas sem decorá-lo. Baseava-se em Apocalipse 1:20 e desenvolvia a gloriosa idéia de Cristo postado no meio de suas igrejas, sustentando em sua destra sete estrelas representativas do sagrado ministério. Corrêa, 1980, p. 87.

Essa citação aponta para elementos místicos no ritual de ordenação do pastor. O trecho

bíblico escolhido para essa ocasião faz referência ao estado de João, suposto escritor do

Apocalipse, cujas visões mostram a realeza de Jesus Cristo, os julgamentos de Deus, as

batalhas espirituais nas quais Deus deve vencer com seus exércitos e poderes a Satanás. O

texto do Apocalipse, da forma como foi escrito, isto é como imagens visionárias originárias

da divindade ao homem, encontra paralelo na experiência de arrebatamento e foi definida em

sua própria expressão como: Achei-me em espírito no dia do Senhor (Apocalipse, 1:9). A

ordenação de Corrêa ocorreu em 1933 na Igreja Presbiteriana Independente na cidade de

Assis. No sentido de ampliar as possibilidades compreensivas sobre o sentido do trecho de

Corrêa citado acima, foi consultado o Dicionário de Símbolos (Chevalier e Gheerbrant, 1994,

p. 404-405) que esclarece que estrela faz parte de muitos rituais e textos religiosos judaico-

cristãos, sendo geralmente associada à manifestação central da Luz como centro místico, foco

ativo de um universo em expansão, obedientes à vontade de Deus e anunciadoras de sua

vontade. O caráter celeste da estrela, a torna símbolo do Espírito e particularmente do conflito

entre as forças espirituais (ou de luz) e as forças materiais (ou das trevas). As sete estrelas do

Apocalipse referem-se aos sete planetas e às sete igrejas ligadas aos destinos humanos. Os

números podem ser indicativos da imagem ou do nome do Messias esperado. De acordo com

Heinz-Morz121 (1994, p.153-156) o número 7 (sete) representa toda a plenitude da abóbada

celeste, as sete comunidades da província da Ásia ou respectivamente seus presidentes, ou

mesmo cada apóstolo vinculado à fundação da igreja. No Apocalipse (6:12) uma chuva de

121 De acordo com Heinz-Mohr (1994, p.156) em sua obra Dicionário dos Símbolos – Imagens e Sinais da Arte Cristã, o significado do termo estrela pode ser ainda relacionado a luta entre o bem e o mal, indicando que a igreja tem uma origem celeste, mas se encontra no seio do conflito. A estrela é encontrada nos lugares de peregrinação, como, por exemplo, na Espanha em Compostela (campus stellae), que foi condução do apóstolo Tiago.

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estrelas marca a visão da abertura do sexto selo, podendo ainda ser encontradas em Bíblias

com gravuras como, por exemplo, a da Wittenberg de 1522. A estrela da manhã geralmente é

relacionada ao símbolo do Cristo, assim como a estrela da noite é símbolo de Lúcifer.

A batalha relatada no Apocalipse permite que se faça analogias, tanto com a

experiência religiosa individual, na qual o pastor ao ordenar-se, toma posição na suposta

guerra espiritual, bem como à luta no mundo terrestre para a difusão e implantação dos

instrumentos religiosos favorecedores da divindade. A implantação do Protestantismo no

Brasil, de certo modo poderia ser visto como guerra a ser vencida, semelhante àquela

ocorridas no cristianismo primitivo. Nesse sentido é possível perguntar-se, sem a pretensão de

responder a pergunta nesse trabalho: em que medida o Cristianismo já estava implantado no

Brasil, por ocasião da chegada do Protestantismo, ou era ainda campo simbólico a ser

conquistado? A figura de Cristo, como um líder invencível, conquistador, messiânico, permite

a inferência da necessidade de construção de um ícone cristão, que sirva como imagem de

apóio, no momento da ordenação, e promova no nível simbólico a correlação com a imagem

do pastor. Pareando a imagem da divindade a do pastor, é possível que o fiel valide a

ordenação, e reconheça sua autoridade e liderança. De certo modo, pode-se pensar que

“mistifica” a imagem do pastor, atribuindo-lhe santidade. Comparado à autoridade religiosa

do catolicismo, que obedece a hierarquia pré-estabelecida, o pastor protestante, tem que

buscar na pregação as imagens e palavras que permitam a autorização do grupo, mais que da

instituição religiosa, para exercitar seu papel. Provavelmente ao fazer uso de recursos

encontráveis no misticismo tal como alusão a visões, sonhos e estados sobrenaturais dos

personagens bíblicos, o pastor contribuiu para a construção de um misticismo eclesiástico,

isto é admissível na igreja, uma vez que servia à sua conservação. De certo ponto de vista é

possível dizer que o Protestantismo em sua mística “encanta a palavra”, dando a letra o poder

de ir além de si, disponibilizando ao grupo um sistema de valores éticos e organizativos, que

podem se transformar em retórica teológica, social e cultural simultaneamente.

As imagens de Cristo têm uma pluralidade de sentidos e significados, entre as quais

pode-se associar a função do pastor, que estava na terra como as igrejas, representando a

possibilidade do Paraíso, e a presença do Redentor. Com essa imagem do pastor os fiéis

podem retratar e símbolar da eternidade. Já o Cristo mais realista, é o mestre que comunica

aos apóstolos às palavras de vida e salvação, que devem ser difundidas aos povos, tornando-se

doutrina. A imagem de Cristo pode na ordenação de um pastor associar-se a estes

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significados, que representam sua dupla tarefa: anunciar a palavra e sacraliza- la no interior do

fiel, espelhando (como a luz da estrela) esse processo. Desroche (2000, p. 85) observa que no

Apocalipse, as visões do apóstolo apontam para a promessa de um tempo vindouro no qual há

correspondências entre os acontecimentos celestes e terrestres. A ordenação pastoral,

enquanto ritual parece relaciona-se à necessidade de expressar aos possíveis fiéis o fim de

uma época, na qual ao menos oficialmente imperava o catolicismo e o surgimento de um

campo simbólico que anuncia a aproximação do reino do céu na terra, que a experiência

religiosa protestante tenta ocupar, enquanto significado messiânico-místico. O coração como

lócus dessa relação do pastor com Deus, parece indicativo do processo de internalização de

parte da experiência religiosa, a qual se associam esses significados, enquanto outra parte,

abre-se do interior ao exterior, na direção do messianismo.

O estudo dos fenômenos messiânicos é precisamente o estudo dos fatos religiosos enquanto sentimento vivido, enquanto ato efervescente, enquanto religião de primeira mão numa sociedade que se abre – ainda que por arrombamento – enquanto sobressalto de vida, ou rejeição de morte, de um grupo social que certas sociedades dominantes, ausentes esse sobressalto ou ausente essa rejeição, armazenaria, no melhor dos casos, nas conservas de sua memória ou nas reservas de seu território. Alíás é isso o que ela acaba, em geral fazendo. Desroche, (2000, p. 16).

Os desafios do Protestantismo ao defrontar-se com o Catolicismo em período que se

estendeu desde sua chegada ao Brasil, até as primeiras décadas do século XX, foram

estudados por Émile Leonard (1963, p.105 e ss.) mostrando que havia perseguições, e atos de

apedrejamento de locais de reunião dos fiéis e casas de pastores, violência física com

cumplicidade da polícia, protestos da imprensa, impedimentos de sepultamentos, tumultos

contra edificações de templos, interrupções de cultos e reuniões congregacionalistas, expulsão

de protestantes de cidades, incêndios de locais de culto, indicando tensões entre as duas

tendências. Essas tensões foram interpretadas por Leonard (1963) como esporádicas, quando

comparadas às perseguições ocorridas na Europa contra os protestantes, porém não deixam de

ser indicativas de processos sociais, como a adesão e conversão dos padres católicos ao

protestantismo. Tais eventos associam-se a estreiteza de visão de certas autoridades

eclesiásticas católicas, que perdiam seus sacerdotes e reativamente, promoviam a visão dos

protestantes como seres inferiores, que eram chamados de “Bodes” e muitas vezes eram

submetidos a ofensas pessoais. Diante desse contexto é possível pensar que ao menos parte da

experiência mística protestante brasileira ao descolar-se para o interior do sujeito, a relação

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mais direta com Deus, visasse uma defesa de seu ethos religioso, protegendo-se na

subjetividade própria à Modernidade.

Ainda uma outra vertente parece suportada por equações como: Estrela-Cristo- igreja-

pastor, que possivelmente são constituintes do processo de carisma. A ordenação de um

pastor, ou mesmo a sua chegada em locais distantes nos quais anunciava o Evangelho, deveria

também ser um evento com certa raridade, passível de ser visto com certo entusiasmo e

encantamento. Além disso, o pastor também se incumbia de criar uma visão “bem

espiritualizada” de sua vinda ou prática religiosa, junto ao grupo religioso que pastoreava,

atribuindo a certos eventos um significado místico: Veja-se a narrativa abaixo, que se optou

por deixar o recorte longo do texto, conforme descrita por Corrêa (1980 p. 120-121):

Viera de uma região próxima de Botucatu uma senhora gravemente enferma, que se hospedara no lar de um membro da Igreja. Corria a notícia, que ela estava endemoninhada. Outros achavam que era epilepsia. Convidaram-me para fazer uma visita e orar para ela. No trajeto para aquela casa fui pensando no problema, pedindo a Deus sua sábia orientação e sentido minha grande responsabilidade... Encontrei um ambiente carregado de apreensões. Ouvi a mulher falando com uma voz grossa e retumbante. Certifiquei-me que aquela não era a sua foz natural... Falei às pessoas presentes que se concentrassem na oração a ser feita, acompanhando com fé em Deus os rogos que seriam elevados ao trono da divina Graça em favor daquela pobre mulher. Minha oração subiu ao céu repassada de fé cristã e de confiança no poder de Deus. Lembro-me que havia dois pontos principais na oração: Se era uma enfermidade, que Deus tivesse compaixão daquela mulher tão desfigurada e fora do seu norma.; se estava possuída de espírito fosse maligno, em nome do Senhor Todo-poderoso, que esse espírito fosse expelido, e aquela mãe e esposa pudesse reaver o seu equilíbrio psicossomático, retornando às suas nobres funções no ambiente sagrado de seu lar. Ao dizer amém no fim da oração, ouviu essa mesma palavra pronunciada por todos os presentes, e também por ela que estava bem perto de mim... Graças e Deus, o maligno não tem mais poder sobre mim... Concitei a Igreja para orar muito em favor daquela senhora, o que foi feito nos lares e nas reuniões de oração.

O carisma de acordo com Borriello et al. (2003, p. 200) pode ser visto como a

manifestação da alegria e da graça de Deus que se tornam visíveis, agindo através de uma

pessoa. Em sentido literal, o carisma, significa o “dom da graça”. O apóstolo Paulo enumera

mais de vinte dons espirituais, ou graças com relação ao termo chárisma. As principais

encontrar-se- iam numeradas em Rm12 e 1Cor 12, como, por exemplo, apostolado,

ensinamento, dom de curas, obras de misericórdia, ministérios, orações, serviços à

comunidade, atos miraculosos, pregação, entre outros. Ainda Borriello (2003) observa que na

Igreja, o carisma possui inúmeras modalidades de expressão, sendo atribuídos ao Espírito

Santo, enquanto doador da graça edificadora e unificadora da mesma. O Espírito está

associado à origem do dom perfeito, no imaginário cristão. A continuidade do trecho acima

descrito por Corrêa, parece corroborar essas idéias:

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À luz das atitudes de Cristo, em inúmeros casos, não podemos deixar de crer na existência de demônios e dos males que provocam nos seres humanos. O divino Mestre asseverou categoricamente “Se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus, certamente é chegado o Reino de Deus sobre vós” (...) Apeguemo-nos, portanto a Cristo, pois Ele é o supremo vencedor das hostes malignas. Firmados em Cristo, recebendo sua infinita Graça, sairemos vencedores. (Corrêa 1980 p. 121).

As descrições da experiência religiosa feita por Corrêa (1980, p.120-121) permitem

aproximação dos estudos do fenômeno do xamanismo, conforme realizados por Mircea Eliade

(1960). Esse autor observa que um xamã só é reconhecido pelo grupo, quando recebe uma

dupla instrução, sendo a primeira de ordem extática (sonhos, transes, visões) e a segunda de

ordem tradicional (técnicas xamânicas, genealogias do clã, linguagem secreta), que as tornam

em um ritual público, uma prática religiosa legitimada. A iniciação de um xamã através de um

sonho obedece a modelos tradicionais, coerentes, bem articulados, e um conteúdo teórico rico.

Há possíveis correspondências entre as idéias de Eliade (1960) e o relato do sonho de Corrêa

(1980 p. 76):

Certa noite tive um sonho muito significativo, lindo, lindíssimo... Acordei-me de manhã com o coração imensamente alegre, e feliz. Na hora do café, reunida toda a família de meu irmão, disse-lhes que havia sonhado com a pessoa mais querida de minha vida... Sonhei com Jesus, afirmei, pois Ele é meu maior amigo, a que eu amo acima de tudo... Eu estava no canto de uma praça e ele em outra extremidade. De lá Ele me chamou pelo meu nome, dizendo-me em alta voz: “Adolfo vem aqui, bem perto de mim”. Senti um imenso prazer espiritual, porque Ele me chamou pelo meu nome e para estar bem perto de sua divinal pessoa... Aproximei-me do bem amado Mestre, pus-me ao seu lado... Experimentei uma infinita emoção por estar tão perto do divino Redentor. Mais poder sobre o meu ombro aconchegando-me para bem perto de seu Reino, para atingir os corações e levar-lhes a luz de seu Evangelho e oferecer-lhes a felicidade verdadeira e eterna... Pode haver sonho mais lindo e da mais alta significação? Ele confirmou minha vocação para o sagrado ministério. Os olhos de todos brilharam de contentamento. Meu coração exultava.

Este sonho de Corrêa, ocorrido no começo do século XX obedece a uma estrutura de

sentidos, que revela sua relação com o sagrado, marcado por chamamento, aproximação,

reconhecimento, compartilhamento de um espaço social comum, promessa, missão, emoção

intensa. Essa experiência parece repetir-se em várias passagens de sua vida, conforme

relatado em sua obra (1980). Em visitas as montanhas do Rio de janeiro e ao Pico da Tijuca,

descreve Simonton (1980 p. 79):

Tinha-se a gloriosa sensação de paragens celestiais...Adoramos espontaneamente o supremo

Criador daquelas maravilhas tão esplendorosas.Estávamos mais perto do céu, mais perto de Deus... Sentíamos um halo de santidade e felicidade...Nossas almas se alcandoravam, aquele vento suave e puro pareciam que eram auras do paraíso celeste, como que o Espírito de Deus soprava sobre nós e nos inspirava aos mais sublimes e santos ideais.Mas era preciso descer daquele monte da transfiguração, o que fizemos fortalecidos, porém, para as lutas da vida, a fim de prosseguirmos nas batalhas do Reino de Deus.

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Trata-se do relato de um pastor, que permite a observação do processo de construção

do imaginário social, no qual o poder da autoridade emana da própria divindade, que o elege

através do campo onírico ao exercício do ministério pastoral. Eliade (1960) aponta em seus

estudos, que fenômenos mórbidos como doenças, ou dificuldades pessoais, ocorrem na vida

do xamã, e de seus familiares, sendo interpretado pelo grupo, como provas de sua autoridade

religiosa advinda da divindade, uma vez que promove a cura ou o ultrapassamento de

obstáculos terrenos. Vejam-se as correlações entre essas idéias e o relato de Corrêa, (1980, p.

109):

No outro dia, bem cedo a Helia (esposa) submeteu-se a uma grave intervenção cirúrgica. (...) Lembro-me que antes da operação, pedi licença e ergui uma fervorosa prece ao Todo Poderoso, pedindo pela minha extremada esposa e pelos médicos, para que fossem instrumentos nas mãos de Deus...o Senhor esteve conosco, pôs suas divinas mãos sobre a Helia e ela melhorou, recuperou a saúde. Graças a Deus.

As correlações que se podem estabelecer entre os textos de Corrêa (1980) e as idéias

de Mircea Eliade (1960) indicam que há aproximações significativas entre as concepções e

práticas religiosas presbiterianas, e os fenômenos religiosos característicos do xamanismo.

Essa aproximação pode ser indicativa de processos sócio-culturais que guardam relações entre

si. Uma hipótese é que os Protestantismos que se instalaram no Brasil tiveram que se

relacionar com as matrizes simbólicas presentes nas relações sociais, entre as quais as

concepções mágico-religiosas. Não significa que o pastor ou os fiéis que o rodeavam nas

práticas religiosas buscavam diretamente no xamanismo sua modalidade religiosa por

excelência, e sim que os processos construtores do imaginário social brasileiro, amalgamavam

os fenômenos religiosos, com elementos inter-culturais, como os da Religião Africana ou ao

menos os justapunham como afirmou Roger Bastide (1975).

A fé prática das igrejas norte-americanas conduziu ao desenvolvimento de instituições

“para-eclesiasticas” afirma Leonard (1963) que permitiam a propaganda indireta, ampliando a

construção de uma civilização cristã, senão a realização do Reino de Deus na Terra. Fazendo

um paralelo com o processo brasileiro, é possível pensar, que as práticas mágico-religiosas,

nas quais se encontram as modalidades xamanicas, serviram aos missionários e aos primeiros

pastores protestantes não apenas como meio de coexistência simbólica, mas como estratégia

de penetração e difusão do evangelismo, em uma sociedade marcada pelas diferenças sociais,

culturais, políticas e históricas, que tentava conviver com as possibilidades da modernidade.

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Do ponto de vista doutrinal, Leonard (1963, p. 132) pontua que o calvinismo brasileiro

herdeiro das práticas missionárias já era uma diluição das diluições anteriores, como por

exemplo, o presbiterianismo americano, já era uma diluição do britânico. Este lutando com o

catolicismo e o anglicanismo se afastou do Calvinismo. As velhas igrejas americanas ao longo

de século XIX diluíam as práticas religiosas a um “moralismo e pragmatismo de valor

espiritual muito pequeno”. Portanto os elementos mágico-religiosos presentes nos

protestantismos brasileiros parecem relacionar-se a um tipo de misticismo, que deslocam

parte das demandas sociais vinculadas, por exemplo, a saúde, para a dimensão religiosa, na

qual o pastor passa a ocupar o lugar do xamã, que reconhecido pelo seu grupo social, mantém

no imaginário social a idéia da cura pela religião, equacionando cura físico-mental e cura

espiritual.

Aproximar-se do homem em suas atividades cotidianas, abordando a constituição de

seu tempo diário, pode ser aqui entendido como a abordagem da privacidade, que se

manifesta em hábitos, costumes, rituais, modos de ser social e individual, tomando-os como

significativos e expressivos da relação cultura-sociedade. Assim posto, esse trecho do trabalho

visou contemplar o homem presbiteriano e sua relação com o sagrado, inserindo-o nas

atividades expressivas da habitação, escola, igreja, e nas pequenas atividades do viver social.

É, pois a ótica da Sociologia do Cotidiano, que guia o olhar da pesquisadora, em busca de

compreensão do misticismo do cotidiano. Veja –se como essa idéia do contato direto com

Deus se estendem a prática religiosa cotidiana da confissão conforme publicado no jornal

Imprensa Evangélica de 12/ 1881

Quem deseja salvar-se deve adoptar a confissão como meio de ser absolvido. A

verdadeira confissão esta baseada n’um verdadeiro pezar pela comissão de pecados e n’um

forte desejo de se emendar. Isto devemos nós dizer a Deus, não para informar do que se passa

em nós outros porque Elle vê nos nossos corações, mas como condição pra obtermos perdão,

e por conseguinte par nosso proveito.(...) Jesus como “Sacerdote sobre o seu Throno” está

encarregado por Deus Pai de receber nossa confissão e de nos dar Absolvição. Confessando a

outro pecador nossos peccados occultos há perigo de o contaminar com o conhecimento de

tanta perversidade e se elle fosse muito puro temeríamos que fosse demasiado severo para

com os outros. Mas o Sancto Jesus ao mesmo tempo que não pode ser contaminado, é tão

compassivo que o maior criminoso pode contar com o mais benévolo tratamento.

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A confissão permite descortinar a questão da redefinição que o Protestantismo teve

que operar no campo simbólico na demarcação entre pureza e perigo, conforme tematizado

por Mary Douglas (1976). Assim, certos rituais católicos foram vistos como capazes de

contaminar a “fé” protestante, sendo classificados como perigosos. Na exclusão de certas

práticas como a confissão de seu repertório sócio-cultural, o Protestantismo postula um

sistema de crenças e estabelece o que é puro e o que é impuro. “A contaminação nunca é um

acontecimento isolado. Ela só pode ocorrer um vista de uma disposição sistemática de

idéias”,afirma Douglas (1976, p. 57). Um de seus objetivos é treinar os fiéis a reconhecerem-

se em suas crenças, marcarem sua pertença simbólica, e caminhar para atingir sua santidade,

Desse modo surge um código de ética de um grupo, que estabelece o comportamento de seus

membros e os protege dos estrangeiros indesejáveis, criando mecanismos de integração social

da religião. Buscar a santidade com o próprio comportamento é deixar o divino surgir em si

mesmo, mostra Douglas. Qualquer indagação sobre o cosmos começa com a investigação

sobre o poder o perigo. O corpo e tudo que dele emana pode ser uma fonte de perigo, a

medida em que tem uma vontade própria que resiste a institucionalização. O Puritanismo

instaurando sua ética do corpo enquanto instrumento simbólico, imaginário e real de

santificação, aproxima o divino do fiel, marcando nesse território seu nome. A perfeição, a

integridade e o trabalho, instauram o divino no corpo, em um misticismo sem palavras, que se

comunica diariamente a metáfora viva da salvação. Essa espécie de utopia deixa sua imagem

no corpo de cada fiel, em um misticismo partilhado, pois visível e reconhecível pelo outro. A

todo custo o peregrino tenta aproximar-se do céu, seja pela fé, pelo corpo purificado, ou ainda

pelo sonho acordado, criando o paraíso. Veja-se a esse respeito a publicação do jornal

Imprensa Evangélica de 18/04/1874, intitulado: O Céo é a Nossa Pátria:

Que doce pensamento nas horas de pezar é o da Pátria? Afigurai-vos na situação mais angustiosa na qual tendes de obter a vosso sustento diário e que vos rodeiam abusam continuamente de vossa paciência e bom caracter (...) Que encantadora é a reflexão de que no céo não há divisão! Todos glorificam ao Salvador, todos se amam, todos desfructam a felicidade eterna. Aquella não é uma reunião de estranhos, mas uma mesma família. Ali estão todos os filhos de Deus. Ali não há nem pode haver discórdia, nem inveja, nem egoísmo. Tão pouco deveria aqui entre christãos haver mais que amor e fraternidade; todos deveríamos dirigirnos a receber a gloriosa herança, animados por carinhosas esperanças e guiados pelo mesmo espírito. Deveríamos amor nuns aos outros fervorosamente, e perdoar nossas mutuas injurias e sem dificuldade.

Fazeis isso leitor?

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Conclusão

As reflexões realizadas nesta tese visaram as relações sócio-culturais que contribuíram

para a constituição do Protestantismo, focando-se as experiências místicas e seus significados.

O método científico empregado para essa finalidade baseou-se nas proposições de Edmund

Husserl para visar o fenômeno religioso, em atividade múltipla e contínua, propiciando um

contato de dimensões amplas e variadas, que auxiliou a pesquisadora no movimento de

“voltar-se às coisas mesmas”. Em seu manuscrito de 1930 (AVII 13) Husserl pergunta-se:

O que significa então a experiência com um objeto cultural? Por um lado significa a facticidade original do substrato de conotações naturais propriamente ditas e por outro lado uma apercepção que apesar de não propiciar ulteriores determinações, é sempre uma apercepção daquelas conotações, que se encontram no horizonte da realidade natural como não desveladas e desconhecidas ou mesmo conhecidas, mas não como conotações que se apresentam como naturais. (Husserl in Bello, 1948, p. 43).

A multiplicidade cultural e o recorte vertical nas camadas de significados encontrados

na história do Protestantismo foram focados a partir da Antropologia cultural e da arqueologia

fenomenológica, conforme orientação e descrição de Angela Bello (1998). A mística

protestante mostrou-se como um fenômeno cujo desvelamento encontra-se sensivelmente

visível no Pietismo e no Puritanismo, percorrendo o desenvolvimento do Protestantismo

desde seus elementos precursores e primordiais, passando pelas concepções dos reformadores

como Martinho Lutero, João Calvino e João Wesley, até o avanço da Modernidade.

As primeiras visadas sobre as expressões do misticismo corroboram a afirmação de

Luis Henrique Dreher (2004) em A mística protestante em sua expressão alemâ, que apontam

para a variação dos sentidos da experiência mística no Protestantismo guardando estreita

relação com os contextos sócio-culturais nos quais se expressam. Revelam-se fenômenos

ligados à concepção de indivíduo como sinônimo de autonomia e singularidade,

característicos da passagem da Idade Média à Modernidade, de acordo com os apontamentos

de Alain Touraine (1997), e Alain Renaut (1998) representando uma modalidade do sujeito

relacionar-se com o sagrado, gerada e geradora do pluralismo religioso em sua variação de

significados. Nesse sentido, inicialmente é mister atentar-se para a afirmação do sujeito

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enquanto “categoria social e cultural”, que corresponde ao princípio protestante de

“sacerdócio universal dos crentes”. Esta proposição religiosa firma a liberdade enquanto

imanente ao indivíduo A experiência mística concebida enquanto uma vivência própria do fiel

aponta para um processo de interiorização da escatologia, deslocamento e espelhamento de

parte dos conflitos sociais para a “consciência do indivíduo”, exercício de poder religioso

individual, renovação das modalidades de experiência religiosa, conversão como modalidade

de contrato individual com o sagrado e construção de identidade religiosa singularizada. A

revelação dessa forma de experiência religiosa, promovida pelo Pietismo, é observável nos

modelos de oração, nos estados emocionais, na interpretação do texto bíblico, na construção

do carisma e nas ressonâncias do êxtase interior. Os sonhos, visões, graças místicas, êxtases

são formas freqüentemente utilizadas para comunicar, modelar e difundir esse tipo de

experiência religiosa, conforme afirma Roger Bastide (1959):

Primeiro o místico parte dos dados tradicionais. (...) O Deus que o místico encontra dentro de si não é mais que o Deus exterior que a tradição lhe fornece. (...) Cada místico guiado pela insatisfação encontra na tradição um certo número de noções, de categorias mís ticas, presenças de Deus, contemplação. Mas cada místico tira de cada um desses temas uma música diferente. De virtude criadora, porque a tradição mística se transforma, se aperfeiçoa, se diferencia: Nunca se repete identicamente, exceto naqueles a que se chama místicos de imitação. E essa parte de invenção é do indivíduo. (...) O misticismo não é recomeço, é descoberta.(...) Mas é necessário ir mais longe ainda. Não somente a explicação sociológica do misticismo não suprime a explicação psicológica, como para nós o seu valor é muito inferior ao dessa última. (...) Assim, há na experiência mística, pelo menos, uma parte que escapa á influência da sociedade e depende apenas do indivíduo (Bastide, 1959, p.174 e ss.).

Os movimentos de avivamento e despertar contribuíram para o desenvolvimento do

Protestantismo na Europa e, especialmente nos Estados Unidos, ancorados em um modelo de

pregação caracterizado pela espontaneidade e emocionalismo. Esse tipo de prática religiosa

encontrou nas camadas da população mais atingidas pelas sucessivas crises sócio-econômicas

do capitalismo em expansão, um meio cultural fecundo para a tentativa de realização de

projetos originados no imaginário medieval vinculados às utopias de Paraíso e Justiça (Hilário

Franco Junior, 1992) e posteriormente aos ideais Iluministas. Os pastores avivalistas dirigiam-

se para os aglomerados de pessoas que se juntavam em praças e espaços públicos para ouvi-

los temporariamente, uma vez que tinham um percurso itinerante. O emocionalismo focou-se

nos estados de insegurança relacionados às mudanças sócio-econômicas trabalhando com as

representações do medo, terror e esperança, conforme observou Jean Delumeau (2003).Vale

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lembrar que a experiência mística encontra-se acessível, sobretudo na Bíblia, cuja

recomendação de leitura e orientação é um dos alicerces das práticas protestantes.

Considerando-se que o acesso à Bíblia dependia das condições culturais locais, que

implicavam não somente a disponibilidade do texto, mas de recursos de educação e

alfabetização que eram precários, os pregadores utilizaram como estratégia de ação o discurso

emocional e a dramatização para a difusão das idéias religiosas. O imaginário social,

alimentado pela visão do Paraíso que aproxima o fiel da divindade em uma lógica

desenvolvida entre fé e predestinação, corresponde a prática religiosa do Pietismo, expresso

em visões e sonhos sobre o futuro e êxtase interior. Esse modelo de pregação encontrou no

metodismo de Wesley seu desenvolvimento associado às propostas de práticas religiosas

voltadas às populações socialmente marginalizadas. Antônio Gouvêa Mendonça (2001)

clarificou o conceito de Pietismo comentando:

Estamos habituados a distinguir, sem crítica, misticismo de pietismo. Aquele tem a ver com a espiritualidade católica, e este com a protestante, mas na realidade são a mesma coisa: uma busca apaixonada da intimidade com Jesus, quer dizer, um conhecimento, uma posse do Bem supremo sem nenhuma mediação. Tanto o misticismo como o pietismo são individualistas e independentes da religião institucionalizada, enquanto religiosidade. Entretanto é necessário reconhecer que na relação com o mundo o misticismo se distingue do pietismo: aquele é mais contemplativo e este mais voltado para o mundo da ação (Mendonça, 2001, p. 136).

A literatura protestante tem no escritor John Bunyan um de seus representantes de

maior difusão. Em suas obras A Peregrina e O Peregrino freqüentemente são descritas

experiências místicas tais como visões, sonhos, graças e êxtase como instrumento de

veiculação das idéias desse movimento retratando a jornada do fiel para a cidade celestial.

Escrevendo em vocábulos populares, com enredos de fácil compreensão, Bunyan cria um

herói religioso capaz de vencer os obstáculos que o separam da fé, descobrindo-se um

predestinado ao paraíso. Essas obras, escritas na prisão enquanto Bunyan pregava aos demais

prisioneiros e os ensinava a ler e escrever, é tomada como modelo de resistência na luta

religiosa e social especialmente para as populações economicamente desprivilegiadas. O herói

peregrino consegue chegar ao Paraíso após enfrentar inúmeras barreiras sócio-culturais que o

desviavam de seu caminho. Na concepção de Bunyan o fiel é um ser de passagem nesse

mundo, devendo procurar no contato com o divino, especialmente espelhando-se nas imagens

e nos ensinamentos bíblicos, “a porta” para cumprir seu destino de salvação. O mundo é o

palco de luta e guerra contra as dificuldades (terrenas) para se chegar a cidade celestial, cujo

destino, embora traçado de antemão, precisa ser alcançado. As experiências místicas são

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construtoras do imaginário do Paraíso, da relação direta com o divino e da conquista da

santificação duradoura. Esse último aspecto lança o Protestantismo como religião na qual o

fiel se vê ativo no mundo, isto é, ao buscar sua santificação transforma o mundo, laiciza o

conhecimento, acelera a produção econômica. Desse ponto de vista, o Protestantismo

“seculariza” a vida e mundaniza a religião, criando novos paradoxos culturais que as

experiências místicas ora parecem simplesmente expressar, ora tentam perpetuar ou dialetizar.

Os reflexos da obra de Bunyan podem ser encontrados na publicação do jornal Imprensa

Evangélica publicado em 18/04/1874, intitulado O céo é nossa pátria:

O peregrino não deve queixar-se porque precisa das commodidades do lugar da pousada que descança. Vos tão pouco, leitor, deveis queixar-se da vida quando tendes de ir para o céo.(...) Os sonhos de felicidade terrenal se reduzem a nada, e no céo a felicidade é eterna. Meu coração póde desfallecer quando penso em todas as cousas queridas que me rodeiam e que tenho de abandonar; porem ver o meu Salvador cara a cara, estasiar-me com sua presença, oh! Isto faz commover meu coração da maneira mais grata!

Os missionários americanos, aponta Mendonça (1998), utilizaram como meios de

difusão do Protestantismo a literatura e a imprensa, criando uma identidade religiosa enquanto

cultura letrada, veiculando seus modelos de fé. Os jornais Imprensa Evangélica, Estandarte,

Puritano e Expositor Christão publicaram obras literárias em pequenos trechos nas suas

edições, além de hinos e editais que serviam de parâmetros e referências religiosas aos

leitores. Assim, observa-se a “guerra do indivíduo”, de um lado com as concepções e as

práticas católicas que o antecederam, de outro a ideologia da racionalidade que acompanhou e

favoreceu a expansão do capitalismo, conforme afirmou Max Weber (1967). Mesmo sendo

portador das influências iluministas cuja convicção é de que a razão em seu progresso

esclareceria todas as questões do homem e, sustentados na esperança de que seria possível

reorganizar as bases da sociedade através de princípios estritamente racionais, o

Protestantismo expresso na imprensa e na literatura contém características das experiências

religiosas que privilegiam os sentidos ao intelecto, ou ao menos a hipótese de que a realidade

“religiosa” pode ser apreendida pelos sentidos, como se mostra no misticismo. Por outro lado,

usando o termo iluminismo em sentido mais amplo, surgiu a doutrina de uma “iluminação

interior” vinculada às inspirações diretas de Deus, tendo como um de seus principais

representantes Swedenborg (1688-1772). As concepções dos iluministas místicos como

Swedenborg e Louis-Claude Saint Martin (1743-1803) embora se colocassem frontalmente

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em oposição ao iluminismo, entendido como sinônimo da ilustração e de século das luzes,

têm com esses um ponto comum que é a inimizade com a Igreja e com o sacerdócio. Nessa

direção, a leitura e análise cuidadosa dos jornais de tendências protestantes revelam a menção

de experiências místicas desde os primeiros exemplares publicados dos periódicos: O

Estandarte, Puritano, Imprensa Evangélica e Expositor Cristão até sua extensão ao século

XX. Cita-se, nesse sentido, a publicação do sermão de José Manoel da Conceição no jornal

Imprensa Evangélica e Revista Christã, em agosto de 1881, intitulado O Nascimento de Jesus

Cristo:

O Evangelho nos faz observar que os pastores virão cercados de uma claridade divina que primeiro os aterrou. Também nós somos investidos de todas as felicidades de uma claridade divina. A graça nos fez nascer no meio da claridade pura da revelação mas que effeito produz sobre nós o seu brilho? Nós o gozamos sem sentir o seu preço: nós não pensamos mesmo em dar graças a Deus por este benefício inestimável, pelo que elle os preferiu a tantas nações infelizes. Tal como um dia muito brilhante esta luz celeste fere nossos olhos delicados e fracos, que se desviam para não encontrá-la ou que voluntariamente se fecham para não serem d’ella tocados. Seu brilho nos intimida como aos pastores; mesmo nós não nos deixamos tranqüilizar com elles pelos anjos de salvação, pelos ministros que o Senhor nos envia para nos anunciar suas verdades santas.

Pode-se observar que apesar de se representar como uma cultura religiosa letrada, o

Protestantismo fez ampla utilização das imagens bíblicas presentes na literatura popular

(metáforas e alegorias) para veiculação de sua mensagem. Obras literárias como as de John

Bunyan, e expressões imagéticas freqüentemente utilizadas nos sermões dos missionários e

pastores, bem como na imprensa evangélica, apontam para um possível ajuste na

comunicação da mensagem à cultura brasileira, predominantemente oral e de maioria

populacional analfabeta durante o século XIX e inicio do século XX. A variabilidade de

apreensão da mensagem própria a linguagem visual, amplia o idioma da imagem, fazendo-o

atingir um número maior de pessoas. A imagem costuma ser recebida de um só golpe e de

forma sintética, imediata dos signos que a compõem, sendo passível da comunicação de

vários significados. Os textos bíblicos foram “traduzidos” em imagens e enredos populares

em muitas pregações dos pioneiros do Protestantismo no Brasil, como apontam sua história e

literatura, o que possivelmente facilitou sua difusão em uma população marcada pela

diferença cultural, econômica, geográfica e social. Esse tipo de linguagem favorece as

experiências místicas em sua expressão e eficácia simbólica.

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Do ponto de vista de Mendonça (2001), nos hinos de inspiração pietista encontram-se

palavras como amor e gozo, que se ligam a Jesus, expressando os anseios de uma relação

intima e sensual com ele. Esse autor afirma que existem razões para acreditar que esse tipo de

composição musical foi muito apreciado pelos protestantes brasileiros, que provavelmente o

utilizavam para suas práticas de devoção individual. Das publicações do jornal Imprensa

Evangélica e da Revista Christã em outubro de 1881, cita-se aqui um trecho apenas como

amostra das inúmeras poesias e hinos publicados com essas características, dando veracidade

a afirmação de Mendonça (2001, p. 137). O título é O mundo:

Oh1 mundo insano! Coroas o ímpio, Dos vivos algozes faz anjos faqueiros; Difamas ao justo, a honra, o valor: Do mundo de abrolhos ameno jardim Jesus! Vem sarai-os da sua demência As almas ligadas por doces affectos, Viram acatar-te com grato louvor Teremos unidos perenes festim Eu vago no mundo por os escolhos, Jesus! Piedade! Envolto nas trevas, sem guia, sem luz Oh vem me valer A vida no mundo é duro desterro No mundo tyranno Oh dá-me teus braços, bondoso Jesus D’amargo sofrer É ainda Mendonça (2001) que assinalou que se pode encontrar no Brasil a clássica

coletânea de hinos (Salmo e Hinos) organizada pelo casal Kalley, que é a base litúrgica de

todas as igrejas protestantes brasileiras, contendo numerosas composições musicais de origem

pietistas. Essas composições circularam nas primeiras décadas século XIX nas campanhas dos

metodistas e Wesley utilizou muitas delas possivelmente sobre a influência das Igrejas

moravianas. O componente emocional vinculado ao Pietismo brasileiro, com sua temática de

desterro, trevas, anjos (espíritos) provavelmente manteve-se sustentado nas raízes pluralistas

da cultura brasileira ajustando-se as expressões indígenas e africanas, estudadas por Bastide

(1971, 1995). O misticismo pietista como possibilidade de estabelecer correspondência entre

campos religiosos diversos faz uso de crenças populares vinculadas a cura espiritual, mental e

corporal, que se encontra também nos estratos mágicos da religiosidade brasileira. A

publicação intitulada O mundo (1881) aponta para esse processo de ajuste cultural. A

purificação decorrente de uma aproximação com o sagrado também se apoia em outra crença

freqüentemente encontrada no imaginário brasileiro que é o triunfo sobre o Demônio. Esses

hinos bem como as publicações de jornais e as pregações assumem um caráter dramático, no

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qual o fiel ou seu grupo são retratados como submetidos a situações sociais de doença,

precariedade econômica e social lançando um apelo ao sagrado para que transforme essa

condição. O Espirito Santo geralmente é associado a representação do sagrado capaz de

vencer “as agruras sociais e individuais” cotidianas vinculadas às enfermidades, doenças,

desavenças, dificuldades econômicas, vícios, ou qualquer outra aflição ou infortúnio, que

pode ser inclusive o confronto com outro universo religioso. Essa sincronicidade e

aproximação entre campos simbólicos distintos provavelmente operam para manter e atualizar

as justaposições que sustentam a convivência do pluralismo religioso brasileiro. A esse

respeito, é possível observar os registros do diário de Ashebel Green Simonton (2002, p. 84):

Em mim mesmo percebo pouca mudança. Em meu caso, não há nada de encorajador senão o fato de que fui capacitado a confiar nas promessas bíblicas e andar cuidadosamente na luz que já tenho, enquanto espero mais do Espirito prometido. Assim procedo porque tive a compreensão clara e racional de minha condição de pecador justamente exposta à condenação e total incapacidade de melhorar esse estado por mim mesmo, (...) O fato de ter chegado a essa resolução é evidência certa de que o Santo Espírito está operando; e o que ele começou, não iria ele completar? (...) em meus passeios solitários, quando me assentava e contemplava uma bela paisagem sorridente sob o céu limpo, senti que ter condições de dizer que o criador de tanta beleza é meu amigo e pensa em mim seria uma alegria muito mais alta do que a terra pode dar.

A observação dos registros de Simonton parece corroborar a hipótese de Danièle

Hervieu-Léger de que há compatibilidade entre a religião e a modernidade, que não só

questionou e combateu certos fenômenos religiosos, mas simultaneamente engendrou formas

de sua subsistência nas “produções religiosas da modernidade”. Nessa direção, as crises de

sentido expressas por Simonton diante do contraste de sua formação religiosa e da realidade

cultural brasileira, podem ser interpretadas como uma busca de releituras secularizadas das

promessas religiosas de salvação. Conforme observa Rivera (1997) na resenha da obra de

Hervieu-Léger, a incerteza ocasionada pelo possível fracasso dos projetos seculares gera

espaço ou tempo adequados para a mobilização de capital simbólico religioso. Conforme

escreveu Rivera (1997, p. 176):

Isto significa que a memória não pode desaparecer totalmente; ou em todo caso teria que ser substituída. O imaginário moderno de continuidade apresenta-se agora como um grande

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tecido de memórias difusas e dispersas; memórias criadas, inventadas e permanentemente modificadas em função das imposições de um presente cada vez mais submisso ao imperativo do novo. Se desenvolvem então muitas memórias de substituição que tentam preencher o vácuo deixado pela perda de densidade e de unidade da memória coletiva. É a isto que nossa autora chama de “reinvenção da linhagem” (la linée réinventée). A identidade do Protestantismo brasileiro possivelmente têm na expressão mística uma

das formas de ajuste a esses processos sócio-culturais que implicam a memória coletiva e

individual presentes nos contextos de modernidade e que acolhem o pluralismo religioso, a

divergência de valores, as diferenças econômicas e as transformações das concepções do

tempo. As “conquistas e agruras” cotidianas desempenham o papel de “razoabilidade” e

“racionalidade” apontados por Bernardo Araújo (2005) em seus comentários sobre as idéias

do filósofo político John Hawls. Razoabilidade no sentido de que a experiência mística torna-

se um ponto de proximidade entre as tradições religiosas brasileiras: africanas, indígenas,

católicas e protestantes, uma vez que todas buscam o contato direto com o sagrado. A

modernidade “retraduz” as relações indivíduo-sociedade-cultura, reconhecendo a livre

expressão de cada uma delas. Racionalidade no sentido de legitimação do campo simbólico

próprio que se transforma e se mantém nos inúmeros processos culturais marcados pela

dialética, justaposição, fragmentação e vazio que “reformatam” a experiência mística.

A experiência mística parece possuir na Modernidade um duplo significado de

“atestar” e “contestar” simultaneamente, nos termos de Henri Desroche (1985), a própria

religião, uma vez que ocupa o espaço central e periférico do Protestantismo. Esse ponto de

vista se complementa com a visão de teólogos como Rudolf Otto (1985) e Paul Tillich (1987).

Para o primeiro, nos Protestantismos os elementos racionais e não-racionais da vida afetiva se

aproximam por uma necessidade racional, isto é, os elementos racionais são sinais analógicos

que apresentam afinidades sensíveis com os elementos não-racionais. Já a relação de

proximidade entre misticismo e racionalismo encontra sustentação em Paul Tillich (1987)

baseada na sua compreensão de revelação e mistério. O primeiro termo refere-se ao

descortinar de um elemento que está oculto em decorrência de uma manifestação especial e

extraordinária. O segundo vocábulo, mistério, refere-se a manutenção da qualidade oculta e

surpreendente do religioso, ou seja, a experiência do indizível. A revelação inclui os

elementos cognitivos, mas não dissolve o mistério em conhecimento, permitindo que se

desenhe seu contorno, mas se mantenha uma parte do fundamento religioso para além do

fundamento mesmo. O misticismo protestante, para Tillich, se dá na experiência concreta que

funda o mundo objetivo com a experiência de experimentar o mundo. Nos escritos

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esclarecedores de Jessé Pereira da Silva (1995, p. 60), lê-se: “É o espírito divino que sintetiza

de modo supremo a revelação objetiva que em de fora e o salto ou a experiência da fé que se

dá dentro do indivíduo”. E mais adiante afirma:

O protestantismo brasileiro esquartejou a mística e a manipulou, empobrecendo-a de forma tendenciosa. O mundo foi dividido de forma dual entre aqueles que possuem a mística (encontro com Deus) e aqueles que não a possuem. Passou a ver a razão como fundamentalmente oposta a revelação e, consequentemente, não entendeu a mística como a arte de fundir o conteúdo da revelação com o concreto, mas ao contrário, estabeleceu uma “barreira santa” entre o divino e o mundo. Fez com que o homem-perante-a-eternidade se torne superior e oposto ao homem-no-mundo. Ao mesmo tempo, privilegiou a emoção que, freqüentemente, fica presa ao meramente psicológico, tornando o indivíduo uma presa fácil do processo de cristalização institucional. O “amor de entrega a Cristo”, é domesticado como “amor de entrega à igreja”.

A polêmica em torno da experiência mística no Protestantismo parece revestir os

aspectos relacionados ao conflito, de um lado no interior da própria teologia e dogma

denominacional, e por outro lado, os ajustes culturais vinculados ao pluralismo da sociedade

moderna, possibilitando a emergência da multiplicidade de experiências religiosas e seu

sentido individualizado que apontam para a relação de estabelecimento de plausibilidade com

os contextos sócio-culturais nos quais se expressam (Peter Berger e Tomas Luckmann, 1985)

ou ainda as dificuldades simbólicas de estabelecê- la. Essas dificuldades são inúmeras e

podem ser consideradas inicialmente a partir da própria categoria de experiência quando

posta como um adiamento do sentido. A irremediável indeterminação da experiência privada

distingue-a da “realidade objetiva’, dificultando a expressão clara de sua vinculação com o

mundo social no qual ocorre. O dado imediato da percepção, conforme se passa na

experiência, resiste a própria significação. O místico nesse sentido expressa tanto o dizível

quanto o indizível no Protestantismo, mas nem por isso menos existente socialmente. Sobre

esse tema, assim escreveu Miguel Rizzo em seu texto Aperfeiçoamento Espiritual (1948, p.

224):

Um indivíduo entusiasmou-se por atividades de caráter religioso e o fez de tal modo que parecia verdadeiro apóstolo; organizou planos grandiosos; idealizou movimento de alarga projeção; mas seu espírito voltado, assim apenas para a grandiosidade de programas fascinadores, esqueceu-se por completo de certas exigências da verdadeira piedade que seriam absolutamente necessárias para que ele

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pudesse alcançar sucesso real no seu apostolado. Com os olhos fixos nas grandes realizações, perdeu inteiramente de vista certas falhas da sua própria vida espiritual.(...) Queria fazer grandes coisas em prol da religião, sem todavia acomodar-se às condições espirituais que Jesus estabelece para que se alcance sucesso no seu Reino.

Estudando as relações entre religião, biografia e conversão, Reginaldo Prandi e Flávio

Pierucci (1996) observaram que mudar de religião, não significa apagar a religião anterior. Ao

seu ver, as pesquisas indicam que cada mudança religiosa agrega uma nova identidade

religiosa, cujo sentido é complementado na interação com a identidade religiosa anterior, a

qual se pode voltar definitiva ou temporariamente, o que não é raro de acontecer. Assim a

crença inicial não é substituída, nem rejeit ada, mas acrescentada, ampliada por outras fontes

que as dotam com novos elementos de ajuda na sua luta de sobrevivência. Mesmo em se

tratando de campos culturais distintos, o fiel encontraria formas de justapor crenças e práticas

distintas, sem violar sua lógica. Quando as tensões culturais são intensas, os processos de

ajustes podem tomar formas carismáticas, nas quais a autoridade religiosa é revestida de um

poder ampliado, que inclui várias esferas da vida cotidiana, possibilitando a reordenação da

vida afetiva, social, familiar, carências interiores e aspectos não diretamente vinculados com a

vida religiosa. A religião, por sua vez, quer demonstrar que é capaz de oferecer uma nova

vida, plena de descobertas e realizações, desenvolvendo os ritos e as crenças de um novo

homem e combatendo as religiões “rivais”. Nas práticas missionárias no Brasil, observou-se a

relevância da conversão para a expansão do Protestantismo, conseguido na base de um

percurso itinerante de homens como José Manoel da Conceição, o “padre protestante” e de

seus aprendizes. O estilo de vida de Conceição, descrito como desapegado do conforto

material e ao mesmo tempo como homem erudito dedicado ao serviço religioso, contribuiu

para a constituição de uma imagem carismática de sua prática religiosa. Conceição associava

o “serviço religioso” propriamente dito com práticas auxiliares no tratamento de saúde,

educação, organização e realização de trabalho, adaptando seus conhecimentos às

necessidades sociais das populações que encontrava. Um sentido para o misticismo presente

no carisma das práticas conversionistas missionárias aponta para a tensão entre Catolicismo e

Protestantismo, fazendo surgir uma figura de dupla pertença, que “negando” sua origem

religiosa, “sacrifica-se”, transformando sua jornada em um ritual de purificação que faz surgir

o modelo de um novo homem, fiel a pregação baseada no texto sagrado e, combativa a

autoridade romana. A esse respeito escreve Leonildo Silveira Campos (2002, p. 100):

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Essa tarefa de implantação de novos hábitos religiosos não era tarefa fácil, pois predominava no interior do País, especialmente nas fronteiras agrícolas aonde se plantava café, depois nas cidades aonde explodiu um processo desenfreado de urbano- industrialização, uma sociedade baseada na violência da ocupação da terra, no uso da força na solução dos problemas políticos e corriqueiros da vida cotidiana e no enfraquecimento moral. Por isso mesmo, em atas de igrejas presbiterianas brasileiras, do final do século XIX, encontramos com freqüência o registro de exclusão de membros por alcoolismo, adultério, prática de atos violentos, participação em festas folclóricas ligadas ao catolicismo ou até mesmo ter assistido a um desfile de carnaval. Desde então, o crente como é conhecido o convertido ao protestantismo, tinha que dar testemunho e deixar de fumar, beber bebida alcóolica ou dançar, pois tudo isso eram coisas mundanas e próprias dos católicos ou ateus. A conversão se dava e era mantida dentro de um clima da guerra. Daí o significado de cânt icos guerreiros.

A “guerra” percorreu a chamada era missionária, que se circunscreve por todo o século

XIX até a I Guerra Mundial, correspondendo em termos político-econômicos a expansão do

capitalismo mundial. Na Era Missionária a preocupação era recuperar e preservar a foça das

igrejas da Reforma, enfraquecidas pelos conflitos denominacionais e pelos efeitos do

racionalismo, bem como unificar sua mensagem religiosa de modo a não causar confusões

inter-denominacionais, afirma Mendonça (1990). A ideologia do modelo civilizatório do

protestantismo americano que orientou os projetos missionários no Brasil foi muito

influenciada pelo individualismo, uma vez que se originou na teologia dos avivamentos

americanos. Conforme descreve Mendonça (1995, p.173):

A ideologia do protestantismo civilizador, isto é, de que as formas sociais e políticas que o povo americano havia descoberto e implantado em sua própria sociedade, poderia ser entendida como produto da teologia do puritanismo. As instituições americanas, refletindo os ideais puritanos do “povo escolhido por Deus” eram modelos que deviam ser compartilhados com os outros povos a fim de que o Reino se implantasse no mundo todo. (...) essas ideologias (americanas) só se contradizem no método. Uma queria transferir para outros povos as instituições americanas acabadas (american way of life) e avia escolhida era a educação; a outra queria começar pelas bases, esto é, converter os indivíduos à fé protestante segundo o modelo do avivamento na expectativa de que os indivíduos transformados em grande número acabariam por instituir uma nova sociedade segundo os modelos da civilização protestante. Esta ideologia escolheu a via religiosa propriamente dita. Em última instância, trata-se do grande

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sonho messiânico norte-americano do “Destino Manifesto” visto dos dois lados de uma mesma moeda.

O Puritanismo, como uma das modalidades de interpretação do Calvinismo, visava a

realização não de uma reforma doutrinária, mas de uma reforma da vida da igreja,

expandindo-se para toda a cultura humana em nome de Jesus e para a glória de Deus. No

Calvinismo à luz do Puritanismo não há, portanto, dicotomia entre cristianismo e cultura.

Entre os fundamentos da visão calvinista, que orientou o pensamento sócio-político

reformado, não há distinção entre as esferas humana e divina de atuação. Assim entendido, o

evangelho não é uma doutrina de fala, mas de vida. A santidade é, pois um de seus princípios-

chave: “ao ouvir qualquer menção de nossa união mística com Cristo, deveríamos recordar

que o único meio para desfrutá- la é a santidade” (Calvino, 2003, p. 22). O protestantismo

torna-se então por um lado uma forma de protesto das modalidades de vida que não seguem

sua cultura, não acreditam na realidade da graça e na cotidianidade da fé. Desse ponto de

vista, a cultura protestante se aproxima dos conflitos entre secularização/ encantamento do

mundo; verdades contextuais/ verdades eternas; ousadia e risco/ estabilidade; realismo da fé/

imaginário da fé; que tenta em parte responder com a Ética protestante. A aproximação entre

o sagrado e o profano se encontra como movimento básico da cultura do Protestantismo, que

assim tem que redefinir e criar formas de simbolizar “pureza e perigo”, conforme observou

Mary Douglas (1976).

Nortear o comportamento do fiel baseado no modelo exemplar dos apóstolos, de Jesus

Cristo e dos princípios cristãos, conforme se encontram no texto bíblico, já se desenha como

um marco de identidade protestante desde as obras de John Bunyan, passando pelos escritos

de Calvino, Lutero e Wesley, amplamente publicados pela impressa evangélica vinculada a

suas orientações. O calendário ritual puritano estende-se assim a todos os dias do ano, de

modo que a Reforma revoluciona a própria teoria ritual. A atitude laica para com os

sacramentos moldou o controle do corpo mediante sua santificação. A santificação

reconhecida pela comunidade religiosa puritana firma o fiel como membro de sua Igreja e do

Protestantismo, separando-o de outros grupos. O sacramento para certas interpretações

protestantes é apenas uma promessa de Deus, vista como um símbolo. Vale lembrar que a

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Reforma tem como característica contrapor-se aos outros movimentos religiosos tradicionais,

usando como estratégias as pequenas lutas locais. Por exemplo, uma imagem de santo que

pode acalmar, pode também ser fonte de perigo, uma vez que se desagradada do

comportamento do fiel. Porém quando todos os fiéis se propõem a alcançar a santificação, o

perigo do sacrifício e do ataque é socializado e minimizado, afirma Edward Muir (2001).

Assim, as imagens dos santos são sacrificadas e em seu lugar nasce a santificação de todos os

fiéis, o que certamente significa um novo modelo de rito e de poder religioso que integra

indivíduo/ coletividade.

O poder da prática religiosa da contemplação, que por seu caráter radicalmente

individualizador preocupava os protestantes institucionalistas por temerem a total autonomia

do fiel diante da Igreja, foi substituído por uma proposta de santificação do fiel, que assim era

“visto” por todos os demais, podendo mesmo assim encontrar espaço para algumas formas de

expressões particularizadas de comportamento religioso. A palavra de Deus teria que se tornar

viva na forma de estilo de vida pessoal e social dos Protestantes. Essa é uma modalidade de

misticismo partilhada, na qual a santificação atesta a presença do divino no fiel e no mundo.

Partindo do objetivo de purificação da Igreja inglesa do século XVI, os puritanos inauguram a

vertente protestante que se expandiria no sentido da “purificação” da sociedade e do indivíduo

mesmo. Assim, os puritanos estabeleceram suas convicções: a) a salvação pessoal é decisão

de Deus; b) a Bíblia é um guia imprescindível para a vida; c) a Igreja deve refletir os

ensinamentos expressos na Escritura e; d) a sociedade é uma totalidade a ser unificada

segundo esses ensinamentos. A experiência religiosa na concepção puritana não tem origem

no homem, mas em Deus e seu chamado.

A conversão na ótica puritana é a resposta do homem ao chamado divino, exigindo sua

total dedicação e obediência aos propósitos de Deus. Partindo desse ponto de vista, a

pessoalidade na experiência religiosa não é interpretada como espiritualidade unicamente

individual, mas basicamente comunitária, uma vez que Deus fez uma aliança com sua Igreja e

não somente com indivíduos. Nesse sentido, o misticismo enquanto puritanismo, não

privilegia a espiritualidade solitária e sim a comunitária. Esses pressupostos alimentaram o

projeto de “conquista” do Paraíso na América, embarcando 102 peregrinos no navio

Mayflower, que iniciou sua viagem aportando não exatamente no destino que era previsto, a

Colônia de Virginia, mas nas áridas terras do cabo Cod, o que os obrigou a enfrentar acordos

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políticos inicialmente não previstos. A convicção de que ganhariam o mundo para Deus

possivelmente contribuiu para que os viajantes persistissem em seus propósitos de

“territorializar” a América, pois em 1630 já haviam conquistado terras e direitos,

desembarcando cerca de mil “peregrinos” na chamada “Grande Imigração” na Bahia de

Massachusetts, no norte de Plymouth. A persistência puritana, sustentada no imaginário

coletivo do cumprimento do mandato divino da instauração de um “novo mundo”, engendrou

o projeto missionário que desembarcou os “peregrinos” no Brasil. Para o Puritanismo o

espaço sagrado é o mundo a ser conquistado e purificado. No entanto é possível questionar se

esse projeto puritano ao encontrar a cultura brasileira pôde se desenvolver no sentido acima

proposto. A esse respeito escreve Mendonça (1998, p. 20):

A espiritualidade ou o misticismo protestante expresso e vivido dentro daquela

racionalidade tão bem estudada pelos seus analistas, não pode ser vivida em nossa

cultura. O conversionismo protestante teve, então, de percorrer caminho inverso: nos

seus lugares de origem o convertido era um instrumento enviado pela religião ao

mundo para mantê-lo ou aperfeiçoá-lo; aqui, o convertido é indivíduo tirado do

mundo para que se salve na religião, o que quer dizer na igreja. Esta inversão

poderia ser assim resumida: aqueles salvam-se na cultura e estes salvam-se da

cultura. A que se reduziu então a mística ascética mundana do Protestantismo? A

resposta a ser dada pelos seus observadores parece ser esta: a mística ascética

protestante tornou-se monástica. Talvez assim se explique o vazio que o

protestantismo deixou no cotidiano dos seus adeptos, principalmente daqueles que,

em conseqüência de seus parcos recursos intelectuais e materiais, não tem acesso à

literatura piedosa.

Seguindo os passos de seu questionamento, Mendonça (1998) coloca que o

Protestantismo Brasileiro, embora tenha conseguido ao longo de quase quatro séculos ajustar-

se aos movimentos filosóficos e culturais, não está resistindo aos processos de pós-

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modernidade, uma vez que não cedeu as demandas de trans formação do mundo, mantendo-se

em seus redutos metafísicos. De seu ponto de vista, a velha vertente mística de viver no

mundo os passos de Jesus de Nazaré, considerada na ótica fundamentalista como o perigo

modernista a ser combatido e evitado, sobrevive em pequenos grupos ou indivíduos, mas

correndo o risco de se tornar monástica. Nesse sentido Roger Bastide(1975) com sua

proposição do “Sagrado Selvagem” pode auxiliar a perscrutar sobre as possibilidades de

sobrevivência da experiência mística protestante. Essa expressão cunhada por Bastide refere-

se aos conflitos ente os processos de institucionalização da religião e os resíduos das

demandas da experiência religiosa, que resistem a esse processo. Nesse sentido o pressuposto

de Bastide é que a religiosidade existe para além das fronteiras da expressão institucional.

Essa proposição bastidiana não conduz necessariamente a uma interpretação “essencialista”

da religião, indicativa de uma faceta transcendental, mas pode indicar que o processo de

institucionalização produz resíduos, ou limita-se a abarcar apenas parte da religiosidade de um

dado contexto sócio-cultural, deixando a sua margem o que a linguagem, os dogmas, ritos e

crenças não deram conta de expressar, permanecendo presente nas relações sociais não

visíveis ao olhar “institucionalizado”. Essa fronteira da institucionalização é o espaço de

menor controle religioso, o ponto cego da figuração do mito original, as bordas de ajuste da

diversidade cultural, o movimento de mudança de uma mentalidade a outra, o vazio histórico,

a aproximação ecumênica, o paradoxo entre alteridade/ semelhança. Essa temporalização da

religiosidade nos seus paradoxos revelam os choques das instituições, denominações e, por

vezes, a anomia social. Bastide apontou e descreveu esse jogo simbólico dentro da linguagem

conceitual e categoria da sociologia presente em seu tempo. Em seus escritos se encontram

assim registrados:

O transe, com efeito, é um meio de extrair da sociedade presente “outra” que pode ser o contra-pé dessa sociedade presente. Ela não pode sem dúvida sê-lo sempre, porque os caminhos do imaginário são múltiplos (Bastide, 1975, p. 6).

Tomando as idéias de Bastide (1975) sobre o transe de forma paradigmática, entende-

se que a experiência mística é uma expressão da cultura em mutação, na qual a representação

da relação direta com o sagrado expressa os múltiplos sentidos do “outro”, visado

constantemente pelos grupos sociais uma vez engendrados no interior de suas relações e de

seu movimento histórico. Esse outro pode ser interpretado como o auto-retrato da cultura

religiosa mesma em seu movimento de fragmentação, junção, simbolização, justaposição que

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aponta suas transformações. Assim, o misticismo pode ser uma busca e uma expressão do

gerúndio da cultura em seu acontecer sócio-histórico, o que não significa uma interpretação

reducionista aos sentidos transcendentais a ela atribuídos e, sim, um acréscimo aos múltiplos

sentidos que o misticismo pode adquirir em sua manifestação no Protestantismo. Nesta ótica,

é coerente a afirmação de Roger Bastide de que toda Igreja constituída tem sem dúvida seus

místicos, mas desconfia deles. A Igreja delega a seus confessores e seus diretores a função de

dirigir, canalizar, controlar seus estados extáticos, quando não os prendem em algum espaço

como o convento, onde seus gritos de amor perdido não possam ecoar. É nesse espaço entre

as infra-estruturas móveis e as superestruturas conservadoras que aparecem as visões, sonhos,

profetas, graças místicas, êxtases que revelam à instituição religiosa o espectro cultural que

transborda em sua fronteira. Nas palavras de Bastide (1975, p. 7):

Donde todos esses deuses sonhados de que fala excelentemente Henri Desroche e todos estes delírios místicos que abalam a intervalos regulares o equilíbrio das igrejas. Porque Deus que já falou outrora aos homens, teria se tornado subitamente mudo e não teria mais mensagens a transmitir a humanidade sofredora? Os católicos sonham com e após Joaquim de Fiore com um reino de Espírito Santo que substituiria aqueles da lei e da graça, que fizeram seu tempo. Os protestantes, com o pentecostalismo substituem a religião do livro pela de inspiração divina. Os revolucionários tentem ler, nas mudanças da sociedade, o discurso ininterrupto do Senhor de História. E certamente, estes despertares, que podem se acabar em danças, estes messianismos que podem se acabar em transes, esses pentecostalismos que invertam novas línguas extáticas, não rompem inteiramente com o passado. Trata-se de uma descontinuidade contínua mais que de ruptura propriamente dita, entretanto estamos com o advento desses novos deuses sonhados muito próximos já da busca desse sagrado selvagem (...).

A experiência mística protestante mostra-se como uma modalidade de expressão

religiosa em seus múltiplos significados, caracterizando-se por uma plasticidade e

flexibilidade que promovem sua expressão tanto do ponto de vista do indivíduo, quanto da

coletividade. A autonomia do sujeito parece firmada em suas interpretações singulares de sua

aproximação com o sagrado. Já as modalidades de misticismo partilhado podem adquirir o

sentido de matrizes identificatórias grupais, produzindo formas de intervenções no mundo,

ideologias ou utopias. Paradoxalmente são “institucionalizantes” do misticismo, como em

certas versões do puritanismo. Às Ciências das Religião caberiam a inclusão em suas

investigações do sentido do misticismo como auto-retrato de um movimento religioso, em sua

figura complementar, de fundo ou de relevo, ou ainda como a ausência do retrato do “outro”

desejado, imaginado, fragmentado, esvaziado, e ainda assim existente enquanto realidade

social religiosa. Nesse sentido Roger Bastide é um sociólogo que na abrangência de suas

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idéias descortina um instrumental e uma visão interdisciplinar, que atravessa seu tempo

“sociológico”, abrindo uma perspectiva científica que permitiu a pesquisadora revelar a

mística protestante como constituinte das raízes desse movimento e por vezes expressão

simbólica da resistência às forças sócio-culturais que a ele se opõem. Nas palavras de Bastide

(1975, p. 12): “Então permitam-me ver nestas experiências do sagrado selvagem, mesmo se

elas são ainda desajeitadas, a vontade de retomar o gesto de Moisés quando bateu sua vara

(...) no solo ressecado para fazer dele brotar a água que faz reflorescer os desertos.”

O pensamento de Bastide lança as Ciências Sociais na direção de uma interpretação

múltipla dos fenômenos religiosos, o que parece complementar ao método fenomenológico de

“voltar-se às coisas mesmas” e indagar constantemente sobre elas. A mística protestante,

assim visada é um campo que se projeta ao estudo e a exploração dos sentidos desse

movimento, espaço que esta tese apenas revelou como intencionalidade possível, clarificando

a necessidade de os cientistas prosseguirem essa tarefa.

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