Mirações em Tela: “Experiências, Percepções e...

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Belém, vol. 2, n. 2, p. 92-114, julho/dezembro 2016 . ISSN 2446- 8290 Mirações em Tela: “Experiências, Percepções e Antropologia” Maria Lucia da Silva Coelho 1 Resumo Este ensaio etnográfico e resultado do terceiro capítulo do meu TCC e esboça a minha experiência do uso da Ayahuasca no contexto ritual do Santo Daime junto ao grupo da igreja Luz de Maria em Marabá, sendo esta experiência ao mesmo tempo individual e coletiva. Neste sentido busco fazer uma reflexão sobre o processo de criação da mesma e um breve estudo sobre a performance da narrativa, através da pintura e da “memória partilhada”, reconhecendo e registrando modos de estar nesse universo, de ver, de sentir, de perceber e de conhecer. O Santo Daime será pensado a partir do que os Cientistas Sociais denominam como “novos movimentos religiosos”, traçando assim a história do surgimento da Igreja do Santo Daime Luz de Maria, que surge a partir de uma dissidência de um grupo anterior. Através do trabalho de campo (realizada no período de setembro de 2010 a janeiro de 2013) na referida igreja, é que entro em contato com o universo místico/religioso das mirações. As mirações são consideradas experiências de natureza espiritual ou mística já que são experiências vividas em outros planos, que só podem ser traduzidas para o plano material de forma descritiva, performática e simbólica. Dentre as diversas imagens presentes nas mirações, procurei destacar neste trabalho, alguns significados das imagens que aparecem em minhas telas, assim como alguns contrastes que eles podem passar dependendo da cultura local. Palavras-chave: Santo Daime; Mirações; Antropologia; Religião e Modernidade. 1 Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (2013). Tem experiência na área de Antropologia.

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    Mirações em Tela: “Experiências, Percepções e Antropologia”

    Maria Lucia da Silva Coelho1

    Resumo

    Este ensaio etnográfico e resultado do terceiro capítulo do meu TCC e esboça a minha experiência do uso da Ayahuasca no contexto ritual do Santo Daime junto ao grupo da igreja Luz de Maria em Marabá, sendo esta experiência ao mesmo tempo individual e coletiva. Neste sentido busco fazer uma reflexão sobre o processo de criação da mesma e um breve estudo sobre a performance da narrativa, através da pintura e da “memória partilhada”, reconhecendo e registrando modos de estar nesse universo, de ver, de sentir, de perceber e de conhecer. O Santo Daime será pensado a partir do que os Cientistas Sociais denominam como “novos movimentos religiosos”, traçando assim a história do surgimento da Igreja do Santo Daime Luz de Maria, que surge a partir de uma dissidência de um grupo anterior. Através do trabalho de campo (realizada no período de setembro de 2010 a janeiro de 2013) na referida igreja, é que entro em contato com o universo místico/religioso das mirações. As mirações são consideradas experiências de natureza espiritual ou mística já que são experiências vividas em outros planos, que só podem ser traduzidas para o plano material de forma descritiva, performática e simbólica. Dentre as diversas imagens presentes nas mirações, procurei destacar neste trabalho, alguns significados das imagens que aparecem em minhas telas, assim como alguns contrastes que eles podem passar dependendo da cultura local.

    Palavras-chave: Santo Daime; Mirações; Antropologia; Religião e Modernidade.

    1 Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (2013). Tem experiência na área de Antropologia.

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    Mirações on canvas: “"experiences, perceptions and anthropology”

    Abstract The present etnographic essay is a result of the third chapter of my under graduation final project e drafts my experience with Ayahuasca in the ritual context of Santo Daime. The research was done with the religious group of the church Luz de Maria in Marabá City and that experience was both individual and collective. On that way, I try to reflect about the process of construction of the church and I present a brief study about the performance of the narrative through the shared paint and memory, recognizing e registering ways of being in that universe, ways of looking, feeling, perceiving and knowing. Santo Daime is thought as from the social scientists name as “new religious movements”, outlining the history of the coming into being of the church Luz de Maria, that immerges as from a dissidence of another group. Though the fieldwork (took place from September 2010 to January 2013) in that church, I took in contact with the mystical/religious universe of the mirações. The mirações are considered spiritual or mystical experiences as they are experiences lived in another spheres that can be translated to material dimension only through descriptive, performative and symbolic form. Among the images that are part of the mirações, I tried to show on this paper, some meanings of the images that occurs on my canvas, as well as some contrasts that they could transmit depending on the local culture.

    Key Words: Santo Daime, Mirações; Anthropology; Religion and Modernity

    Oh! Minha Mãe estou aqui Recebendo a Vossa luz de amor Que universo encantado Dentro de mim se revelou Este jardim tão cintilante Reinado do meu beija flor De pedras finas tão brilhantes Que o Meu Pai me entregou Todos os seres Divinos Me acompanham para o Além E vai subindo, vai subindo Sobe até aqui quem me convém A harmonia envolvente Do som da harpa e do clarim Meu Jesus Cristo vai na frente Esta viagem não tem fim Brilho no sol, brilho na lua Eu brilho em todo jardim

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    A Minha Mãe está comigo Meu Pai é quem zela por mim2.

    INTRODUÇÃO

    Neste artigo apresento meus trabalhos em telas, as quais objetivam não

    apenas a representação do mundo externo e natural, e sim o vasto mundo interior

    que através do Santo Daime se revelou, bem como um resumo do conceito de arte

    visionaria e ainda a análise da construção social das imagens refletindo sobre os

    significados das memórias partilhadas através de entrevistas sobre mirações.

    evidenciando as mirações que geram, de forma aleatória, imagens e sons que

    acompanham os movimentos. Dessa forma, podemos compreender a plasticidade

    dos corpos, pois o daime amplia os sentidos, modificando o “estar” no mundo, por

    meio da interação homem e natureza, bem como um resumo do conceito de arte

    visionária e ainda a análise da construção social das imagens refletindo sobre os

    significados das memórias partilhadas através de entrevistas sobre mirações.

    ARTE VISIONÁRIA

    As artes constituem, sem dúvida, um dos instrumentos mais poderosos para o desvelamento de fenômenos tais como estados não ordinários de consciência. A conexão entre a criatividade e experiências com enteógenos – especialmente com a ayahuasca – intrigou-me. São vários artistas que conheci na Amazônia que me disseram ter recebido sua inspiração nas visões (LUNA 2004, 194)3.

    Arte visionária4 pode ser entendida como um fazer artístico onde a

    produção é feita durante o efeito do chá, ou no momento da “força”, onde os

    artistas materializam o conteúdo de suas visões, através de diversas obras como

    pinturas, esculturas, nas variadas artes visuais, ou através da poesia e da música. A

    2 Hino nº 37 “Universo Encantado” do hinário “A Chave”, recebido por Júlio César. 3 Apud Mikosz (2009, p. 107). 4 Para um histórico sobre a arte visionária e ayahuasca, bem como os primeiros autores a reportar isso

    em seus estudos, ver Mikosz (2009).

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    definição mais sucinta e de mais fácil entendimento é dizer que a Arte Visionária é

    o resultado de experiências de expansão de consciência retratadas plasticamente.

    Esse conceito de arte não é novidade, ele existe desde o tempo das cavernas, como

    por exemplo, as pinturas rupestres. Esse estilo de arte também esteve presente nas

    obras de vários artistas do Renascimento, como Paolo Ucello, Arcimboldo e Bosch,

    marcou também a arte de William Blake, além de ocorrer no Simbolismo,

    Surrealismo, Realismo Fantástico, Psicodelismo e, atualmente aparecem mais

    consistentemente nas obras dos artistas visionários5, que se dedicam a retratar

    suas visões e experiências com a ayahuasca, tais como Pablo Amaringo, Alex Gray,

    Alexandre Segrégio, entre outros.

    A arte visionária tem como propósito transcender o mundo físico, retratar

    visões que muitas vezes incluem temas espirituais e místicos ou pelo menos

    referentes a tais experiências. Outra característica da arte visionaria é a tentativa

    do artista em busca de uma representação original. Dentro deste contexto, também

    está envolvida a “arte enteógena”6, ou seja, criações feitas sob o efeito de

    substâncias desse gênero. Esse termo foi adotado por ser muito usual entre os

    artistas e também por sua maior flexibilidade, envolvendo o uso de visões

    compreendidas em várias formas de expansão de consciência, com ou sem o uso de

    substancias enteógenas.

    MIRAÇÕES EM TELAS

    Em junho de 2012, por motivos pessoais e financeiros tomei a decisão de

    viver uma verdadeira aventura antropológica, inspirada pela antropóloga Florinda

    Donner-Grau, autora do livro “Shabono: uma viagem ao universo místico dos

    índios ianomâmis”. O livro de Florinda conta a história de uma antropóloga que se

    entrega como aprendiz aos guias indígenas que a levam por estranhos caminhos de

    uma sabedoria intuitiva e misteriosa. Para conhecer os segredos de cura destes

    5 Chamados aqui de visionários por causa da característica de pintarem suas visões. 6 Enteógeno foi um termo proposto por Wasson et. Al. (1969), eleito para livrar-se de rótulos tais como droga ou alucinógenos, desgastados e carregados de preconceitos. Além de conflituosos em relação as visões nativas. Segundo MacRae (1992, p.16), enteogeno deriva do grego antigo entheos que significa “Deus dentro”; o neologismo enteógeno significaria então “o que leva o divino para dentro de si”.

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    habitantes das matas, adere aos costumes tribais e consegue desvendar, a partir do

    seu próprio ser, a magia ancestral dos espíritos da floresta. Inspirada por esse livro

    rico em magia e mistério, decidi passar um tempo morando no sítio da igreja,

    durante esse período de aproximadamente seis meses, fiz um verdadeiro mergulho

    em um mundo ainda desconhecido, mas muito real em meio as minhas mirações.

    Essas mirações tornaram-se cada vez mais encantadoras e mágicas, com

    elementos desconhecidos, novas mirações que transcendem os modos comuns de

    percepção que me conduziram a criação de um verdadeiro “tesouro”, pois é assim

    que me refiro a minhas telas. Para descrever uma dessas experiências utilizo parte

    do meu diário de campo.

    Marabá, 5 de agosto de 2012

    Tomei o daime logo cedo, havia poucas pessoas no sítio e queria aproveitar o momento de sossego para fazer uma tela especial, até agora à força não chegou, sinto apenas uma leve sensação de bem estar. Depois de alguns minutos fechei os olhos para senti-la, durante a força comecei a observar o detalhe das coisas, os riscos das folhas, as diversas cores das flores e o aroma da natureza. Por um momento pude sentir o silêncio dos meus pensamentos, fiquei atenta a qualquer movimento, atenta a tudo, comecei a perceber que tudo aquilo que desejamos leva ao sofrimento. Nunca estamos vivendo o agora sempre estamos pensando no que seremos ou no que teremos no futuro. Isso quase sempre nos deixa deprimidos e sempre vivendo “o que ainda será”, deixamos de viver o mais importante que é o agora. A força me levou para uma viagem ao além da minha consciência, parti em busca da desconstrução deste mundo ilusório. Comecei a criar novas saídas para atravessar as dificuldades que estava passando naquele momento e o daime me ensinava como mudar a energia do meu corpo e do meu espírito. Estava observando tudo com outros olhos e estes comtemplavam o belo com todas as suas cores, com todo o seu brilho colossal, sentia o doce cheiro sedutor das flores, ouvia com muita atenção o cantar dos pássaros com milhares de acordes e sentidos, seus voos de liberdade, suas asas que ao baterem me traziam os ventos, contemplei à noite com suas estrelas incandescentes, e o brilho protetor da lua. Neste momento pingos d’água começaram a cair sobre o meu corpo, águas que levam o mal para o além, chuva que vem nos banhar e nos trazer vida, o florescer da natureza. Tudo era tão magico, uma vida que traz outras possibilidades, criações divinas feitas para serem comtempladas e amadas. Durante a força junto com toda essa compreensão eu ia traçando a minha nova obra, as cores me conduziam a um mundo profundo existente dentro de mim, elas tornavam-se amplamente dispersas, fascinada observei a transparência do ar a dissolver as sombras a minha volta. Uma suavidade envolvia o pincel que se expandia revelando os vários contornos sobre a tela, sentia a minha volta uma brisa suave que tinha cores desconhecidas de um brilho envolvente. Pintei até o momento em que a força passou...

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    Cada tela é um mundo, um aprendizado, uma cura, um novo caminho,

    quando estou pintando sinto uma onda de sentimentos que invadem e me levam

    para dentro do próprio daime ,os desenhos formam uma vibração que modela,

    conserta, cura e cria, a força aumenta e percebo meu corpo estremecer. O canto

    dos pássaros me dá o tom, as flores me dão o seu brilho, as árvores e o céu a sua

    suavidade, deixo os detalhes brotarem. Cada tela é uma história, cada figura tem o

    seu significado e sentido, que variam de acordo com o ponto de vista de cada

    pessoa, assim como afirma o autor José Bizerril, no texto “O território da

    confluência: Poética e Antropologia”:

    ...tais convenções variam de acordo com cada tradição e mesmo no interior de cada gênero particular. Pode estar ligado a determinados tipos de contextos, instituições e sujeitos sociais (Bizerril ano, 107).

    Ao olhar para a tela cada pessoa faz a sua própria viagem de acordo com

    seus conceitos e cultura. Cada tela possui o seu ensinamento, a força das imagens,

    muitas vezes sensibiliza o espectador de forma inconsciente. Os olhos são fisgados

    pelo colorido e o encantamento decorrente desse encontro devolve a graça ao dia,

    reconstrói em segundos a ponte com a fantasia e o mágico que os transporta para

    outro lugar. Em meio a essas viagens conheço seres de luz que vem até mim, para

    mostrar os seus conhecimentos, que serão repassadas através das pinturas. São

    seres cheios de magia e conhecimentos, belas sereias, princesas, rainhas e reis.

    Cada tela é um reflexo de mim, do que estou sentindo, são frutos da emoção

    que emprego nelas, esses sentimentos permanece estampado em cada detalhe e

    em cada cor. As pinturas retratam, em sua maioria, paisagens iluminadas pelo sol

    ou pela lua, quase sempre com presença de flores. Em muitos quadros, se vê água,

    principalmente de rios e cachoeiras, mas também o mar.

    Uma das dificuldades em pintar minhas visões é justamente encontrar em

    um modo material, as tintas nas cores que costumo ver na força, pois as cores que

    encontro são menos vivas e brilhantes, e não exprimem a ideia da experiência

    original.

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    3 CADA TELA UM “NOVO OLHAR”

    Figura 15: Tela 1 da série "Encantos do mar". Em março de 2013. Fonte: Arquivo

    pessoal.

    A primeira tela foi uma grande surpresa, a minha preferida, passei por

    tantas provas durante a sua confecção, tantos obstáculos que por um momento

    pensei em não pintar mais, porém o amor pela arte superou tudo. A arte vem de

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    dentro, o amor é quem a constrói. Essa tela foi especial porque além de ser a

    primeira, ainda existiu o perdão, a compreensão e o amor profundo. Ela me fez

    entender que cada pessoa tem seu valor, que nossos erros são reflexos de nossas

    vitórias e que através deles podemos construir algo muito melhor (FIGURA 15).

    Essa tela me ajudou a exercer a caridade e o amor pelo próximo, me fez

    entender que a raiva, o rancor e o orgulho não valem de nada, são apenas reflexos

    de nossas derrotas e obstáculos para a nossa evolução. O Daime é a chave de tudo,

    os desenhos são sonhos de um mundo melhor, são refúgios para os que acreditam

    no amor, no canto dos pássaros, no brilho da lua e na magia das matas.

    Essa tela possui varias figuras e formas, e cada uma delas tem algo a nos

    ensinar, estão nos repassando sentimentos e inspirações. A começar pela primeira

    tela sempre existiu a figura de uma grande serpente que dentro da doutrina

    representa conhecimento e é quem abre nossas mirações, conhecida como a

    protetora da mãe terra. Sempre começo a tela pela serpente ou por algo que vai se

    ligar a ela. Para Chevalier e Gheerbrant (1982):

    As serpentes são animais que parecem inspirar simultaneamente medo e

    fascinação devido a sua beleza, seus mistérios, seu perigo. Alguns

    desenhos, desde o período paleolítico, são linhas sinuosas relacionadas

    ao movimento das serpentes, do mesmo modo que os pigmeus ainda as

    representam, com uma linha no chão (CHEVALIER & GHEERBRANT

    1982, 814).7

    A figura da serpente possui diversos significados e uma infinidade de

    aspectos simbólicos, tanto pelas suas características físicas, como pela variedade

    de habitats. Ela é considerada como o símbolo da fertilidade, da sexualidade

    ambivalente, representa ainda as fontes da vida e da imaginação. Também é

    chamada de Kundalini8, que significa o poder do desejo puro dentro de nós, é a

    energia de nossa alma, de nossa consciência, é a nossa emanação do infinito, a

    energia do cosmos dentro de cada um de nós. Como nossa energia criativa, ela

    7 Apud Mikosz (2009, p. 123). 8 O texto desse parágrafo foi parafraseado das informações presentes no sítio:

    (acessado 12 de janeiro de 2013).

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    pode ser imaginada como uma serpente enroscada adormecida na base da nossa

    coluna vertebral representa a energia da libido que sobe pelos chakras9, abrindo-

    os, iluminando-os, ajudando a renovar as personalidades, além disso, pode ser a

    serpente do paraíso que tentou Eva, que trouxe a queda simbólica da humanidade.

    Para os Xamãs Ancestrais10 a serpente é um animal de poder uma grande

    aliada de cura, ela é poderosa e indispensável. Ela tem a capacidade de devorar

    doenças, comendo tumores e outros patógenos virulentos, pois o organismo da

    Serpente não é vulnerável às mesmas doenças que os nossos. Na medicina a

    serpente representa o símbolo do bem e do mal, portanto da saúde e da doença; é o

    símbolo da astúcia e da sagacidade; símbolo do poder de rejuvenescimento, pela

    troca periódica da pele; além de ser considerado o ctônico, elo entre o mundo

    visível e invisível11.

    Nessa tela podemos observar a figura de uma bela índia com seu penache

    colorido, ela simboliza os seres da mata (FIGURA 15). Que nos trás a sua proteção,

    suas penas coloridas representam a alegria dos pássaros, que nos transmitem

    conforto. Notamos a presença de borboletas que nos envolvem com o brilho das

    matas, nos transportando para um novo tempo de transformação. Os pássaros

    presentes na tela tem o poder de nos transmitir através do seu colorido uma

    energia pura, que nos leva a um mergulho pelos mundos encantados e profundos.

    A lua prateada presente em quase todas as telas dessa série “encantos do

    mar”, simboliza Nossa Senhora da Conceição, nossa mãe protetora. As flores

    simbolizam a beleza e o encanto das cores. O índio que aparece no canto esquerdo

    nos remete aos estados iniciais dos efeitos do daime, onde padrões coloridos de

    diversas formas costumam ser vistos, espirais que se movimentam e nos levam a

    9 Chakra, em sânscrito, significa “roda de luz”. Na filosofia hindu, são os pontos de junção por onde passa

    a energia vital, geralmente sete, distribuídos da base do períneo até o topo da cabeça. São como centros de consciência (CHEVALIER & GHEERBRANT 1982, 231). Em sentido mais amplo, “Chakra significa círculo, esfera” (CAMPBELL 1991, 191). Os Chakras são centros de energia, que representam os diferentes aspectos da natureza sutil do ser humano. São eles: corpo físico, emocional, mental e energético. Os sete principais Chakras ficam localizados ao longo da coluna vertebral do corpo humano e, segundo a Tradição Hindu, seguem as cores do arco-íris. 10 O texto desse parágrafo foi parafraseado das informações presentes no sítio: < http://usuarios.cultura.com.br/jmrezende/Simbolo.htm> 11

    O texto desse parágrafo foi parafraseado das informações presentes no sítio:

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    viver aquele momento, desprendendo nossa mente de tantos pensamentos, nos

    conduzindo para outros mundos. As espirais são efeitos de energia e movimento,

    presentes em várias culturas e religiões e exprimem a conexão com o universo

    espiritual, assim como podem representar os labirintos e as teias de aranha, com a

    ideia de centro e periferia. Vale lembrar que elas também estão presentes nas

    pinturas pré-históricas e são usadas desde a antiguidade como símbolos

    ornamentais12.

    Figura 16: Tela 2 da série "Encantos do mar". Título: Iluminação, em março de 2013. Fonte: Arquivo pessoal.

    Na pintura “Iluminação”, retrato a historia de uma jovem sem rosto, perdida

    em meio a pensamentos sem rumo e vazios, que a levam ao nada a solidão do

    mundo. Os seres presentes nessa tela tem seu sentido voltado para os espíritos da

    12 Para um histórico sobre espirais ver ainda Mikosz (2009, p. 143).

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    floresta, todos eles vêm para abençoar a jovem sem rosto e ajuda-la a sair do

    mundo de ilusões (FIGURA 16).

    A pintura nos modifica, nos leva a construir novos mundos, nos transporta

    para uma viagem em meio às cores, nos conecta com o universo cósmico, nos traz

    força e alegria. No momento em que estava pintando sentia que uma luz muito

    forte me iluminando, que me levava para um mundo encantado que estava em

    constante transformação, onde tudo se ligava as serpentes, reis, curandeiros e

    espíritos da floresta que me ofereciam o poderoso balsama protetor feito pelo

    daime.

    Essa tela possui uma ligação muito forte com o momento que eu estava

    passando. Ela remete a transformação, uma busca pelo autoconhecimento,

    momento de tomar uma decisão, uma saída do mundo de ilusão, desapego das

    pessoas e dos bens materiais, foi o momento em que decidi passar um tempo no

    sitio. Durante o processo de criação da tela passei por uma fase de reconhecimento

    de encontro comigo, com meu ser interior. Ela representa o amor próprio, me

    ensinou através das pinceladas que quem tem que me amar acima de tudo é eu

    mesma. Que todo amor que necessito está dentro de mim, que ele deve ser

    repassado para as pessoas a minha volta através da pintura. Pintar essa tela me

    ajudou a compreender que sou importante para o mundo, que essa arte vai ajudar

    muita gente a se reconhecer também.

    Essa pintura tem muita magia e encantamento vindo dos seres da floresta,

    ela foi construída pelo amor as matas e aos seres que nela habitam. A serpente

    nesta tela representa os ensinamentos de uma velha curandeira, que vem trazer

    todo conhecimento a menina sem rosto, que ainda não se reconheceu, ainda não

    sabe do seu valor perante as pessoas. As serpentes, em muitas mirações descritas

    durante as entrevistas pelos daimistas, servem como meio de transporte para os

    reinos celestes ou subaquáticos.

    As borboletas que a levam pela mão para mostrar-lhe a transformação do

    mundo, o novo tempo que se aproxima. A borboleta assim como a serpente

    também possui varias simbologias, ela nos ensina a perceber todas as etapas

    necessárias a uma verdadeira transformação, interna ou externa. Ela passa por

    vários estágios, de ovo para larva, desta para casulo. E finalmente nasce. Com isso,

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    ela nos ensina que os estágios são importantes, indispensáveis, para que não se

    pule de fase sem a devida atenção ao que está sendo feito. Devemos ter sempre

    clara a ideia de eterno ciclo de autotransformação. Pode representar ainda Clareza

    mental, novas etapas e liberdade.

    A sereia13 que aparece no canto inferior do lado esquerdo da tela representa

    à senhora das águas, que vem entregar para a jovem a folha da Rainha14. Através

    do canto suave da sereia a jovem será conduzida ao que procura há muito tempo,

    buscava a sensibilidade, o equilíbrio e a liberdade da alma.

    No canto superior direito podemos contemplar a imagem de um rosto

    verde representante dos poderes das águas, de sua boca notamos a queda de uma

    cachoeira, que cai sobre a sereia com o poder de purificar as energias negativas, já

    no canto superior direito está à figura de outro rosto que representa o senhor dos

    ventos, que com um só sopro afasta todos os maus pensamentos. Entre os dois

    seres, por traz da lua tem um pássaro de fogo que representa nessa tela os raios do

    rei sol, quem ilumina a terra e nos salda todos os dias, a lua é a mãe que com o seu

    brilho nos leva ao bom caminho.

    13 Sereia vem do grego antigo: Σειρῆνας é um ser mitológico, parte mulher e parte peixe. É provável que o mito tenha tido origem em relatos da existência de animais com características próximas daquela que, mais tarde foram classificados como sirénios. Filhas do rio Achelous e da musa Terpsícore, tal como as harpias, habitavam os rochedos entre a ilha de Capri e a costa da Itália. Eram tão lindas e cantavam com tanta doçura que atraíam os tripulantes dos navios que passavam por ali para os navios colidirem com os rochedos e afundarem. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sereia 14 Psychotria viridis, componente feminino do chá, chamada também de chacrona.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_grega_antigahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Mitologia_gregahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Mulherhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Peixehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Mitohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Sir%C3%A9nioshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Acheloushttp://pt.wikipedia.org/wiki/Musashttp://pt.wikipedia.org/wiki/Terps%C3%ADcorehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Harpia_%28mitologia%29http://pt.wikipedia.org/wiki/Ilhahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Caprihttp://pt.wikipedia.org/wiki/Costahttp://pt.wikipedia.org/wiki/It%C3%A1lia

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    Figura 17: Tela 3 da série "Encantos do mar". Em março de 2013 Título: Brincadeira de Sereia. Fonte: arquivo pessoal.

    Para criar essa tela recebi as inspirações das profundezas do mar, com o

    objetivo de trazer a purificação e a suavidade, ela veio nos mostrar os encantos das

    sereias e das belas cachoeiras para lavar todo o mal. Essa tela é uma das mais

    simples, porém cheia de magia para aqueles que enxergam a beleza. A correnteza

    do mar traz para a tela os seres místicos e mágicos adormecidos em nosso interior,

    nos leva a nossa infância, nos faz lembrar como é bom brincar e ser feliz, rir sem

    culpa, ter a doçura de uma flor e ver a beleza de um pássaro. Durante o processo de

    criação percebi que as crianças amam sem pedir nada em troca, fazem confusão

    por tudo e se perdoam no mesmo instante, ao mesmo tempo percebi que a vida

    passa tão depressa que muitas vezes deixamos que ela passe por entre os dedos,

    deixamos de sonhar, não damos atenção para o presente, sempre pensando no

    futuro ou no passado, deixamos de viver momentos importantes estando neles

    sem estar, permitimos que o tempo passe e depois nos cobramos por não termos

    aproveitado enquanto tínhamos a oportunidade de fazer o melhor momento de

    nossa vida. Não subimos nas árvores, não corremos, não gritamos, não fazemos o

    que é maior, coisas mais importantes que nada, essa tela representa o chega de

    acordar e repetir (FIGURA 17).

    A tela “Brincadeira de sereia” retrata as brincadeiras e a magia das sereias, a

    pintura mostra a magnífica cidade brilhante de Encantos do Mar. Esta cidade é o

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    local de encontro das mais belas criaturas aquáticas, onde elas se reúnem para

    brincar e receber a sabedoria das mais antigas. As belas cachoeiras servem de

    senário para toda essa viagem, onde na primeira descansa a serei mais antiga

    Ynaré, que observa o lindo arco-íris e os botos. Ela é aliada dos grandes mestres,

    ajuda a resgatar pessoas que se perderam nas águas profundas, ela está segurando

    uma flor feita de poesia. Brincando próximo às pedras estão às sereias Janaína e

    Jurema, filhas de Ynaré, elas trazem consigo flores medicinais e irão aprender

    sobre cura, Essas sereias vivem nas rochas e simplesmente desaparecem nelas se

    alguém tenta capturá-las. Mais atrás, do lado direito, estão algumas borboletas

    vindas de uma terra distante, vivem no bosque do arco-íris e são aliadas das belas

    fadas, elas auxiliam no controle das energias dos ventos e das tempestades. Atrás

    das sereias, estão cachoeiras de grande esplendor e beleza.

    O círculo colorido ao fundo, simboliza proteção é o símbolo da perfeição, da

    ausência de divisão, da totalidade e da eternidade, podendo também simbolizar os

    ciclos celestes. Nessa tela o círculo pode representar os caminhos que a alma

    percorre até chegar a essa miração. Campbell diz que:

    O círculo, por outro lado, representa a totalidade. Tudo dentro do círculo é uma coisa só, circundada e limitada. Esse seria o aspecto espacial. Mas o aspecto temporal do círculo é que você parte, vai a algum lugar e sempre retorna. Deus é o alfa e o ômega, o princípio e o fim. O círculo sugere imediatamente uma totalidade completa, quer no tempo, quer no espaço (CAMPBELL 191, 234)15.

    No canto superior esquerdo do quadro está o lindo passarinho verde

    responsável pelo poder do arco-íris. Ele representa o passarinho verde do qual se

    refere o hino 69 do Mestre Irineu. A seguir o hino “Passarinho” do Mestre Irineu.

    Passarinho está cantando Discorrendo o ABC E eu discorro a tua vida Para todo mundo ver Passarinho está cantando Canta na mata deserta Dizendo para o caçador Você atira e não acerta

    15 Apud Mikosz (2009, p. 201)

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    Passarinho Verde canta Bem pertinho para tu ver Sou Passarinho e tenho dono E o meu dono tem poder Passarinho Verde canta Com alegria e com amor Sou Passarinho e canto certo E com certeza aqui estou16

    Neste hino apresentam-se vestígios de lendas amazônicas que foram

    ressignificadas pela Doutrina do Santo Daime. A seguir trecho do livro “O jardim de

    belas flores” de Juarez Duarte Bomfim, que apresenta o significado do passarinho.

    Deus é tudo e todos, Todos os Seres, e olha por toda sua criação. Aqui é apresentada uma de suas criaturas, um singelo passarinho, cantando solitariamente na floresta, e a sua pungente melodia cala tão fundo no coração que é como se examinasse as nossas vidas. É comum a crença, em diversas regiões rurais brasileiras, na existência de seres encantados defensores da floresta, que vivem na mata zelando pelas árvores e animais. Esses encantados voltam-se “contra qualquer um que queira caçar apenas por prazer, ou desmatar a floresta sem propósito” 17. Por outro lado, são amigos dos que vivem na mata sem agredi-la, caçando apenas para alimentar-se e respeitando a flora18. Para atrapalhar os que não agem com boas intenções ecológicas, esses encantados têm muitas artimanhas19.

    16 Hino nº 69 “Passarinho”, do hinário “O Cruzeiro Universal”, recebido pelo Mestre Irineu. 17 Aliverti (2005, p. 54). 18 O texto desse parágrafo foi parafraseado das informações presentes no sítio: Ibidem. Portal do Santo Daime 19 Apud Bomfim (2009, p. 123)

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    Figura 18: Tela 4 da série "Encantos do mar", março de 2013. Título: Canta Praia. Fonte: Arquivo pessoal.

    A pintura foi feita entre os dias doze e quinze de agosto de 2012, ela assim

    como as outras que busco descrever neste capitulo, fazem parte da serie “Encantos

    do mar” e seu titulo é “canta praia”, o mesmo foi sugerido pela daimista Camila,

    pois durante o trabalho do dia 15 de agosto, ela viu em sua miração que o nome da

    tela deveria ser “canta praia”. A miração aconteceu na hora em que estávamos

    cantando o hino 24 do Mestre Irineu, o qual possui o titulo “Canta Praia” (FIGURA

    18).

    Canta praia, Canta praia Canta praia é quem me ensina Eu sou um filho eterno Não devo pensar à toa Conhecer este poder Que me traz as coisas boas Não devo te desprezar Para ir atrás da ilusão Que me traz tanta riqueza E me derriba pelo chão Devo ser eternamente Para sempre, amém Jesus Eu sou um filho eterno

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    De joelhos em uma cruz20

    Para descrever com mais clareza como foi essa miração faço uso de um

    trecho da entrevista feita com Camila Moreira que consagra o Santo Daime há

    cinco anos.

    Com o passar do tempo, novas pessoas foram chegando ao sitio e com chegada da Malu aqui eu vi nela uma grande amiga mesmo, assim que a gente se conheceu eu nunca esqueci que ela me pediu para eu ser madrinha dela e pra mim foi muito bacana. Desde quando ela começou a fazer os primeiros desenhos eu sempre gostei, sempre fiquei muito admirada com os desenhos e quando ela começou pintar as telas nossa eu falei pra ela que queria ter dinheiro pra comprar todas as telas dela, pois as telas são lindas. Teve um dia especial que ela tinha terminado de pintar uma tela e era dia de trabalho e ela me levou no quartinho dela aqui onde ela guarda as telas que já pintou e me mostrou uma tela muito bacana, que tinha uma entidade uma índia ou uma cabocla e ela estava bem próxima à água, era mesmo assim um convite para aquela água. A gente subiu para o trabalho as nossas posições dentro do salão, agente fica uma do lado da outra, quando agente cantou o hino que chama “canta praia”. “Canta praia” também significa cantar pra ir, pra alcançar, pra subir e no momento que a gente começou a cantar aquele hino eu entrei totalmente para a história daquela tela que ela havia me mostrado, eu vi aquela cabocla e entendi que toda aquela situação que estava sendo cantada no hino ela tinha conseguido inconscientemente expressar na tela e depois eu contei a ela que acabou dando o nome de “Canta praia” para a pintura. Eu vi também que naquela tela tinha uma mulher com um vestido longo feito de água eu conseguia ver no meio do vestido dela os peixinhos nadando e se harmonizando com toda aquela situação da tela do hino, tudo em perfeita harmonia, como se ela tivesse cantando pra Malu pintar, ela mesma aquela entidade que devia ser Iemanjá.

    A pintura é um momento de performance, como já foi comentado no

    capítulo anterior, é quando estabelece-se um quadro interpretativo a partir do qual

    se compreende as mensagens, deste modo implica a capacidade da plateia e do

    narrador, no sentido de ir mais além de um micro sentido referencial. Nesse

    sentido posso dizer que durante a experiência descrita acima proporcionei

    simultaneamente uma ampliação da experiência.

    A tela “Canta Praia” remete ao encontro de vários seres encantados, que

    vem trazer varias oferendas para quem a observa. Cada uma das mulheres

    presentes na tela representa um elemento da natureza, repletas de boas vibrações

    e muita harmonia. A mulher do canto esquerdo superior simboliza os ventos da

    20 Hino nº 24 “Canta Praia”, do hinário “O Cruzeiro”, recebido por Mestre Irineu.

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    alegria que transmitem vida e um novo florescer, as flores são o nascimento de um

    tempo prospero e cheio de amor.

    A sereia representa nessa tela a magia das águas, ela é a rainha protetora

    das profundezas do mar, seu olhar envolvente encanta e transmite à beleza, a flor

    que ela segura traz a proteção e o respeito ao próximo. Os peixinhos simbolizam as

    crianças, a grande índia vem oferecer bons sentimentos, ela traz segurança e a

    força de uma guerreira das matas. Em fim a mulher que está com a lua na mão,

    representa à senhora das águas a rainha da lua, a mãe protetora do universo, ela

    traz o conforto e o amor de mãe.

    Figura 19: Tela 5 da série "Encantos do mar". Título: Ia guiado pela lua, março de 2013. Fonte: Arquivo pessoal.

    Essa tela representa o despertar da consciência cósmica, através da

    mediunidade21 é a tela que possui maior significado espiritual, seu título é “Ia

    21Mediunidade é a faculdade dos médiuns, ou seja, a faculdade que possibilita uma pessoa servir de

    intermediária entre os Espíritos desencarnados e os homens. A palavra médium é uma expressão latina

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    guiado pela lua” o mesmo do hino 84 do Mestre Irineu (já citado no capitulo

    anterior) ambos remetem ao chamado da virgem mãe, Nossa Senhora para uma

    viagem até um ponto destinado e quem ira conduzir por este caminho será Deus e

    Ela (FIGURA 19).

    Essa viagem leva ao caminho do conhecimento interior, do despertar do

    autocontrole e do equilíbrio. A serpente que sai do alto da cabeça da fada

    representa a serpente Kundalini guardiã dos sete chakras principais, as flores cor

    de rosa que aparecem em três pontos da tela representam os pontos que precisam

    ser trabalhados pela fada, são os centros de energia em desequilíbrio e sinaliza o

    que é preciso melhorar. Os pontos a serem analisados são: o terceiro chakra

    chamado de Plexo Solar representa a força do indivíduo, onde "mora" o ego de

    cada um, suas funções primordiais são o poder e a vontade e está relacionado com

    as emoções. Quando muito energizado, indica que a pessoa é voltada para as

    emoções e prazeres imediatos. Quando fraco sugere carência energética, baixo

    magnetismo, susceptibilidade emocional e a possibilidade de doenças crônicas,

    esse chakra é representado pela cor amarela e localiza-se na região do umbigo.

    Outro ponto a ser trabalhado é o sexto chamado de Chakra Frontal,

    conhecido como “terceiro olho” na tradição hinduísta, situa-se no ponto entre as

    sobrancelhas, representa a mente e está ligado à capacidade intuitiva e à

    percepção subtil. Quando bem desenvolvido, pode indicar um sensitivo de alto

    grau, é representado pela cor azul índigo. O ultimo chakra analisado é o sétimo

    chamado de Coronário, é o mais importante de todos, pois representa nossa

    ligação com a energia superior, com o universo, abre a consciência para o infinito,

    relaciona-se com o padrão energético global da pessoa, através dele recebemos a

    luz divina.

    A sua função principal é evoluir, ascender e se aprimorar como ser humano,

    situa-se no topo da cabeça, na tela “ia guiado pela lua” está representado pela

    serpente. Também conhecido como chakra da coroa, é representado na tradição

    que significa "meio" ou "intermediário". Allan Kardec apropriou-se dessa expressão para designar as pessoas que são portadoras da faculdade mediúnica. Para um histórico sobre esse assunto ver “O Livro dos Médiuns” Allan Kardec(1861).

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    indiana por uma flor-de-lótus de mil pétalas na cor violeta. A tradição de coroar os

    reis fundamenta-se no princípio da estimulação deste chakra, de modo a dinamizar

    a capacidade espiritual e a consciência superior do ser humano. Percepção além do

    tempo e do espaço.

    Na tela “ia guiado pela lua” a fada está vestida com uma roupa cor de rosa

    que representa a amor incondicional, a cor da suavidade, do feminino. A água que a

    fada oferece para a serpente traz uma simbologia muito forte, remete ao ato de

    alimentar a mediunidade. A espiral que aparece ao fundo da tela remete a ideia de

    passagem para um espaço além, diferenciado do mundo material. A espiral é o

    movimento circular que sai do centro e se alarga ao infinito. Ela se assemelha a um

    círculo ou a um sistema de círculos concêntricos. Na sua associação com

    movimento, as espirais estão conectadas à ideia de danças circulares, em labirinto

    e nas danças que evoluem na forma da espiral.

    Na parte inferior do lado esquerdo da tela tem uma embarcação antiga feita

    de ouro e prata, ela é quem conduzirá a fada pelo caminho do equilíbrio e da

    iluminação, para que ela compreenda e aprenda a lição.

    Este ensaio teve como objetivo fazer um exercício etnográfico da minha

    experiência ao participar do ritual do Santo Daime, como um requisito de trabalho

    de campo exploratório referente à disciplina “Tópicos Temáticos em Antropologia”

    sobre Nova Consciência Religiosa. A ideia foi mostrar a complexidade de se

    etnografar o “invisível”, o não palpável, o silêncio, já que o que geralmente se

    concebe como um elemento possível e importante para ser pesquisado, é algo

    literalmente concreto e visível nas relações humanas.

    As minhas mirações traduzidas em telas foram o fio condutor, mas

    especificamente o método, para etnografar esta experiência que se tornou central

    no trabalho de campo, enfatizando cada vez mais que ela é ao mesmo tempo

    individual/subjetiva e coletiva. Dessa forma, considerei aqui as telas que eu mesma

    criei, um dos elementos importantes da linguagem e da cosmologia daimista, para

    a compreensão deste saber local (Geertz,1997), reforçando a concepção de cultura

    como um texto que deve ser lido e interpretado. Neste sentido, foi que considerei

    as mirações traduzidas em telas como um texto que fiz um primeiro exercício de

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    interpretação, assumindo todos os “riscos” e “impurezas” que este território de

    confluência, entre Antropologia e Arte, imagens, percepções me possibilitaram,

    questões estas que serão aprofundadas, quem sabe, em um “futuro próximo”...

    A suposta objetividade é uma miragem, tanto na antropologia, quanto na

    Arte não é possível analisar sem expectativas. O exercício da performance no

    contexto antropológico é ter expectativas de aproximação com o outro, com o que

    não conhecemos, nos desafia o contato, a interação. Outros modos de se fazer

    antropologia, outros modos de se fazer arte. Olhares atentos a lugares onde o

    corpo está restrito à lei e à ordem permitem-nos expandir o olhar...

    Aqui findei Faço a minha narração Para sempre se lembrarem Do velho Juramidam22

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    22 Trecho do hino 111 – Estou aqui, do hinário “O Cruzeiro” Mestre Irineu.

    http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142005000200016&script=sci_arttext&tlng=pthttp://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142005000200016&script=sci_arttext&tlng=pthttp://www.santodaime.hbe.com.br/

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