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O Mar Que a Gente Faz João Negreiros

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O Mar Que a Gente FazJoão Negreiros

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I

Era um menino que não sabia nadar e o mar feito à tona e à medida para gente que boiava sem esforço.

O menino chama-se Sargo e o mar não tem nome por ser grande e o que tem está esquecido no mapa. Sargo é nome de peixe e aí começa a história.

A família estava junta, como os irmãos quando se entendem, com o menino enrugado no meio. E esse menino ria e sorria como nun-ca um recém-nascido fi zera. E a família ria e sorria, mas era um sorriso engelhado e um riso nervoso.

Porque ria tanto aquele bebé? Não tinha saudades do cordão? Não tinha saudades do útero mole e húmido como as alforrecas? Não, não tinha. Tinha um ar redondo e feliz e a famí-lia afeiçoava-se aos risos pequeninos. E de noi-te, quando os pais novos não podem dormir, ele embalava-os com sonos profundos e soninho às gargalhadas.

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Voltando ao presente, que é de dia, está a família nas escadas da igreja e vai um casamen-to a passar e um funeral também. E a tudo eles sorriem pela força do baptizado. Nisto, entram para dentro, que é o que se faz quando se quer muito, e misturam-se pelos bancos esfregando as mãos feitas para sacudir escamas. Começa o padre a missa. E há velas, e velas mais peque-nas, e ainda mais pequenas, e uma grande lá ao fundo mesmo, mesmo junto à pia que é feita de água por dentro e de pedra por fora. Vai e canta um, vai e cantam dois, vai e cantam todos, vai e soletram, vai e murmuram, vai e pegam nele, pegam nele mãos estranhas, e ele vai, e ri como sempre, e olha para cima e há um céu a fi ngir com nuvens pintadas, e depois uma concha que começa a verter. E vem-lhe um mar desconhe-cido, santo e doce pela testa, pelos olhos, pelo nariz, pela boca. E Sargo lança o primeiro grito junto com o primeiro choro que esteve guarda-do desde o momento em que nasceu. A família pára de rir. O padre nunca se riu, mas pára tam-bém. E o púlpito, os acólitos e a cera que se fez e desfez, estão agora solenes e carregados como os olhos.

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II

Vamos passar à frente, que é o que fazem os ditadores e os impacientes. E passa-mos à frente um… não, dois ou três…

bem, passemos quatro para arredondar. E va-mos até uma tarde soalheira e próxima como os fi ns-de-semana. Vem para ele uma mulher bo-nita e quase a deixar de ser nova. Ela chama-se Deolinda, mas todos dizem que ela é Linda, por isso é linda porque ainda há pouco lhe des-crevi a beleza… não, espera que não descrevi, mas descrevo agora: olhos cor de avelã, pele crestada pelo Sol como mel quando está duro, cabelos compridos a fazer comichão às costas e castanhos por dentro com umas madeixas louras que uma vizinha cabeleireira lhe deu de presente e que lhe fi cam mal para não existir perfeição. Esta é Deolinda. É a mãe do Sargo. Anda de chinelos e avental e tem um colo gran-de e fofo, que deve ser das pernas grossas que andaram a levantar molhos de redes. Esta é a Deolinda e é a minha mãe, porque agora isto

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começa a tornar-se muito pessoal e devo ser eu a contar.

A Deolinda está pela direita, então eu vou pela esquerda. A Deolinda vem agora para a es-querda e eu vou pela direita. Recuo. Pelas frin-chas do avental a roçar as meias de lã, vejo a luz da porta que dá para o pátio. A porta tem uma janelinha e por isso é que vejo a luz. A De-olinda, que é a minha mãe, avança para mim e quase me agarra, mas eu vou pelo meio das per-nas dela e roço-me, como o gato quando está molhado, até à maçaneta grande demais para a mão. A Deolinda, que é a minha mãe, roda, e a maçaneta não roda com uma mão só, junto-lhe outra. E a Deolinda, que é a minha mãe, vem, abraça-me, levanta-me, amarra-me e beija-me no pescoço que está sujo dela não parar de o dizer. A Deolinda é a minha mãe e eu estou sempre a dizê-lo, sempre no presente mesmo quando isto foi há muito tempo. A Deolinda é a minha mãe. E eu dou-lhe pontapés a ver se ela me larga. E ela puxa-me as orelhas porque pensa que elas comandam as pernas, mas não comandam e eu não paro. E vou aos pontapés para a banheira, que quando lá chego já estou cheio de chorar. Despe-me à força, molha-me à força, ensaboa-me à força e eu faço chafari-zes que a molham tanto como ela a mim. E eu

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choro, e ela quase, e ela ri-se, e eu só não me rio porque parece mal.

E já para o fi m, chega a parte que custa mais, quando é para tirar o sabão do cabelo, da cabeça e da frente dos olhos. No reclame diz que não arde, mas os meninos do reclame são pagos para não arder e a mim arde-me, porque faço tudo de graça. Olho para ela, ela olha para mim. Paro de chorar durante esse bocadinho e ela pára um bocadinho dela também.

— Mamã, cuidado agora, está bem? Não me deixes entrar no nariz e na boca, está bem? E nos olhos pode ser, mas pouquinho. E só pode ser pouquinho, porque eu fecho-os muito, está bem?

E ela responde forte como as mãos:— Está bem. Vá lá, não tenhas medo que eu

não te afogo.Sinto-lhe a mão no cachaço, fecho os olhos,

estou entregue ao destino. Se ela quiser agora, mata-me. Mas não quer agora, nem nunca, por-que é a Deolinda e é a minha mãe.

O peito bóia, a barriga bóia, os calcanhares assentam no chão da banheira. Tenho a man-gueira do chuveiro enrolada entre dois dedos e aperto-a como uma bóia quando tem medo. Ela puxa-me para baixo. E o sabão faz uma auréo-la branca que eu não vejo por causa dos olhos

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fechados. Os ouvidos mergulham-se e ouço ao longe um refrão que a água afasta. Abro os olhos só uma fresta, e vejo uma tromba de água por cima de mim, e eu faço uma cara feia, e ela afoga-me todo por meio segundo, e depois er-gue-me até estar sentado pelo cachaço como as mães que seguram os gatos.

E a parte má termina, e leva-me pelo ar numa toalha na vez de roupa, e o mano, que eu vejo pelo ombro da mãe, ri-se muito por eu ter medo à banheira e grita:

— Se tens medo da banheira não podes ir ao mar.

O Lito tem nove anos e é mais velho do que eu, não pela idade mas pelo que diz e pelos cachaços que me dá que me deixam o pescoço a arder. O Lito tem todos os anos que eu te-nho e ainda os que me faltam. O Lito com nove anos já vai com o pai ao mar e às vezes salta da ponte para depois dar beijinhos à Rute que já tem doze anos, mas que já é quase mais nova do que ele. O Lito é mau, mas é bom em tudo e eu gosto dele só que ele uma vez meteu-me a cabeça no lavatório mesmo debaixo da tornei-ra e eu nunca mais lhe perdoei. O Lito é o meu mano.

Ele chamava-se Carlitos há muito tempo, mas eu não sabia dizer Carlitos até há pouco

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tempo, então ele fi cou Lito, mas não se impor-tou. Ele é bom, o meu mano.

Mas isto foi só para explicar o que foi, para se perceber melhor o que é. E o que é agora é isto: é ele a dizer asneiras e a mãe a dizer para que ele se cale.

Diz o Lito:— Ó Mãe, deixa que eu seco o menino,

dou-lhe banhinho, levo-o a pescar ao fundo da banheira.

E a mãe defende-me enquanto eu me agar-ro ao colo e diz:

— Caladinho, Carlos. Deixa o menino em paz. Não vês que ele tem medo?

Diz o Lito:— Eu tiro-lhe o medo, quando acabar está

uma foca… grande… com bigodes e tudo.Digo eu:— Eu já sou grande, e não tenho bigodes

nem nada, e não ensinas nem nada.E a mãe seca-me a boca com a toalha para

eu não falar, e dá-me um beijo para não sufo-car, e o Lito ri-se ao longe que a mãe atira-lhe uma das socas à cabeça para ele se ir embora. E ele vai um bocadinho, mas fi ca a rir à porta do quarto com a soca deitada no soalho do corre-dor, muito longe de lhe ter acertado.

E a mãe canta agora e sabe bem como o ca-

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lor. O Lito, ao fundo, imita a canção da mãe e depois canta uma canção com muitas asneiras que lhe ensinaram os repetentes lá da escola, os que já fumam. Eu não digo asneiras. O Lito já diz porque tem muitos anos à minha frente e foi aprendendo.

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III

Agora e hoje é outro dia diferente do ou-tro, mas parecido porque é com os mes-mos no mesmo sítio. Só que desta vez

é mais tarde, melhor, é mais cedo, mais cedo é quando chega o pai do mar. Chega do mar e é grande. E só entra pela porta porque a porta deve ter cinco metros e ele quatro e meio. O pai entra, e eu corro para ele, e ele parado. Subo por ele acima até à altura e lá de cima, com as mãos na careca dele, o Lito não chega nem pode go-zar comigo, porque sou maior que tudo, e tudo é mais alto que as montanhas, mesmo com o homem em cima delas com a bandeira.

Eu agora estou cá em cima e não tenho medo. E o Lito grita:

— Pai, também quero.E o pai:— Deixa agora estar o menino! – que sou eu.— Não deixo nada! – diz o Lito.— Ai deixas, deixas! – diz o pai.— Quando o Sargo sair, vais! – diz a mãe.

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O Lito avança para o pai, agarra-se à perna, desaperta-lhe os cordões, tenta trepar pelas cal-ças, mas não me chega aos calcanhares e eu cá de cima:

— Sou grande, sou grande. Vês, mano? Não chegas para mim, sou grande.

E o pai:— Vá, não aferroes o teu irmão! – diz o pai

um bocadinho zangado e eu não aferroo.Mas o Lito não desiste, e começa à luta com

o pai, e o pai à luta com o Lito, e a montanha começa a abanar, e eu tenho medo, não por ser alto, mas por parecer a cair… que o Lito faz có-cegas, e a montanha ri-se, e eu começo a chorar. E o pai e o Lito lutam ainda mais na brincadeira, com cócegas, amassos, empurrões e calduços. O Lito cai muitas vezes, mas levanta-se sempre mais uma vez do que as vezes que caiu, e o pai mexe-se com o riso, e eu estou a tremer, não por ter medo, mas porque treme o pai. E a mãe diz:

— Ó Nelson, ainda és pior que eles!!!E o pai pára e o Lito não pára, mas o pai

agarra-o para ele parar e ele pára. E fi cam todos parados menos eu que estou a chorar. E a mãe vem para mim, e o pai abaixa-se, a mãe pega em mim ao colo e diz:

— Pronto, já passou!E eu pronto… passo.

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Depois de um tempo pe-quenino, mas grande que chegue para eu soluçar baixinho até sor-rir, depois da mãe na cozinha a fugir aos espirros do peixe frito

com uma colher de pau, depois do pai ir para a porta fumar com

um ar pensativo que ele só tem dez minutos por dia e depois do Lito lhe pe-

dir quatro vezes uma passa, a mãe pára o tempo pequenino por ser hora do tempo maior e grita para que toda a casa ouça e nós também e, já agora,

todas as casas da ilha também:— Está pronto o comer!E todos correm p’ra comer o comer menos

eu que vou na anca da mãe que leva o tacho numa mão e a mim na outra. Quando chega o tacho à mesa e eu a fazer guarnição, diz a mãe:

— Olha, falta o peixe. Lito, vai buscar o pei-xe.

E o Lito:— Manda o Sargo.E a mãe:— O Sargo é pequenino.E o pai:— Pois, é pequenino. Vai lá buscar o peixe,

Carlos.

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O pai chama-lhe Carlos quando quer que o Lito faça alguma coisa, mas ele nunca responde pelo nome.

E o Lito:— Ele anda às cavaleiras toda a noite, anda

no colo todo o dia e eu ando com o peixe.Quando o pai vai para se zangar, mesmo

antes da mãe ir para o acalmar, dá-me uma coi-sa, uma coisa… e digo:

— Eu vou ao mar buscar o peixe!E todos riem menos eu, porque vou mes-

mo. Estrebucho até o colo fi car lasso, desço pe-las escadas das curvas da mamã e caio só até ao chão, do chão levanto-me até correr e chego à cozinha. Quando lá chego, olho para trás e vejo que ninguém vem atrás de mim… e aí aperce-bo-me: confi aram em mim, confi aram em mim. Vou atrás da porta, arrasto o banco pelo baru-lho fora até à banca, subo até a cabeça ver, mas falho, porque o peixe fugiu mesmo para o lado do fogão. Empurro outra vez o banco pelo ba-rulho para o lado e nisto ouço a mãe:

— Ó meu amor, deixa que a mãe vai aí.E eu zangado:— Não, já estou quase! Já o cacei.A mãe cala-se e eu também para me con-

centrar. Estico os braços curtos até ao prato longe, apanho-lhe as bordas com as pontas dos

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dedos e puxo-o com a louça a raspar o mármo-re. Levo-o até à beirinha e ponho o prato à ca-beça como as varinas e as peixeiras, que são a mesma coisa, fazem. Vou com o peixe à cabeça até à mesa da sala e todos riem e batem palmas quando vêem o que pesquei. A mãe tira-me o prato da cabeça, limpa-me o pão ralado que foi do prato para a testa e para o nariz, senta-me à mesa e todos comem a minha pescaria que já vinha morta e frita, que é como são os peixes bem comportados que os meninos corajosos pescam.

Avancemos só o tempo de comer quase tudo, e paramos só quando o prato da mãe já está cheio com as minhas espinhas e com as dela, e com o garfo dela a levar um naco do pei-xe pelo ar para a minha boca, e eu com os braços e as mangas sujas da vez de guardanapo a tapar a aterragem do fantasma do peixe-voador que quer aterrar na minha língua, mas eu não deixo. E bebo água para ganhar tempo, e ela insiste de novo, e eu mais água, para ganhar mais tempo, até que tenho que ir fazer chichi… vou e demo-ro muito a brincar com a cortina de plástico que tem uns brilhantes que mudam de cor. Foi o tio Nelo que trouxe da América. Pois, não se sabe ainda quem é o tio Nelo, não é? Pois é, não tem mal. Eu mais à frente explico, agora não posso

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que tenho que fazer chichi e contar os azulejos da parede… e os do chão também, muitas vezes só até ao dez, é o que sei. E nisto a mãe chama:

— Ó Sargo, olha o peixe à tua espera.E eu:— Já vou, diz-lhe que já vou.E faço de conta que estava a fazer cocó e

sento-me na sanita a fazer de conta para demo-rar mais tempo e no fi m de muito, levanto-me e não me limpo, porque era a fi ngir. Vou à sala e… vitória… A mãe já levantou a mesa e já nem se lembra do peixe. A mãe leva a loiça toda, a mãe lava a loiça toda e eu estou agarrado ao avental a desviar-me das pingas de água a saber a espuma.

O pai e o Lito vão para o sofá, ligam a te-levisão. A mãe volta comigo, pega em mim na cozinha e leva-me para a sala. Espera, é melhor explicar como é a minha casa… e assim já se sabe…, e pronto. É assim: a minha casa tem uma cozinha pequenina que dá para três ou quatro pessoas, que não se mexam muito; tem uma sala grande com uma mesa, um sofá e um móvel com brinquedos em baixo e outras coisas que eu não posso mexer, porque não me deixam e porque não chego em cima. O sofá abre à noite e dur-mo lá mais o Lito. É grande, dá para os dois mas o Lito queixa-se que eu devia dormir no berço,

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mas eu uma vez fi z uma birra para não dormir mais lá e fi z bem, nunca mais dormi lá. Agora durmo com o mano. Ele não gosta mas eu gosto que ele não goste e gosto porque gosto. Depois tem o quarto da mãe e do pai que tem uma cama e uma fotografi a grande do casamento deles. É grande a minha casa, não é? Até há sítios onde nem chego. Pronto, já se percebeu, não já?

Agora continuo: estou no sofá que ainda não está cama, porque a mãe me pousou lá vin-da da cozinha. O Lito e o pai já lá estão, a tele-visão está em frente. A mãe vai ao móvel buscar o croché, senta-se com o croché ao colo e eu ao lado, e depois trocamos, e fi co eu ao colo, e o croché ao lado. Está a dar uma coisa que não sei bem, o pai e o Lito riem-se muito. A mãe nem por isso, porque está entretida com o cro-ché e com os meus caracóis. Ainda não tinha dito, pois não? Tenho caracóis, não gosto muito deles, porque o Lito diz que pareço uma meni-na, mas a mãe diz que não e eu com ela já gosto. Pronto, não interessa. O pai e o Lito estão a rir muito e, a certa altura, riem ainda mais por cau-sa duma anedota qualquer que dá na televisão, de um homem que vai ao médico, porque dava muitos peidos e a mulher queixava-se. O Lito e o pai riem-se muito do senhor, mas eu até tive pena que ele deve ter vergonha. A mãe também

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deve ter, porque também não se ri. Lá para o fi m da anedota, que foi muito grande, o homem da anedota, que tem chapéu e que é o mesmo de outras anedotas, começa a descuidar-se muito e a dar muitos peidos, e o Lito, e o pai riem, riem, riem… O Lito rebola pelo chão, o pai já chora de riso, o Lito salta no sofá, o pai bate com as mãos no chão, e limpa as lágrimas com as man-gas, e por aí fora até que a mãe se zanga:

— Pára lá com isso, Nelson. És pior que a canalha.

O Lito pára mesmo não sendo para ele, o pai vai para parar, mas quando vai mesmo para estar quieto, dá um peido enorme e arrastado e faz a cara que o homem fazia. O Lito explode às gargalhadas, o pai também, atiram-se para o chão agarrados um ao outro, a mãe tira-me do colo, levanta-se, pega no croché, guarda o cro-ché. Enquanto leva o croché ao móvel, bate com as socas no chão mas eles continuam. Enquanto fecha o croché na lata de bolachas de mantei-ga em inglês, faz barulho mas eles continuam. Enquanto fecha o croché na lata, faz barulho e, quando fecha a gaveta, faz barulho mas eles continuam. E então, ela tira uma soca de um pé, e deixa uma no outro, e fi ca meia manca com a mão na anca. O pai pára e o Lito imita-o. Diz a mãe:

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— Nelson, vais parar ou vou-me chatear? – muito alto e muito vermelha.

Diz o pai com a voz a imitar o outro: — Desculpa, querida. São gases! – e pei-

da-se muito. A mãe pequena pega na soca e atira-se ao pai

grande. Eu vou para chorar, porque tenho medo pela mãe e pelo pai. O pai agarra-a, a mãe dá-lhe com a soca, mas ele ri-se. E nisto ela também se começa a rir. Agora está a família toda no chão menos eu que estou no braço do sofá a chorar baixinho para ver o que acontece e se tenho que chorar mais alto. Olham os dois para mim a rir com o Lito no meio deles a rir também.

Diz a mãe:— Estás a ver, Nelson? Assustaste o meni-

no. – E depois para mim – anda cá, meu amor. O pai é maluco. Não ligues. Anda cá, não tenhas medo que o pai e a mãe estavam a brincar.

E eu paro de chorar um bocadinho e ponho um pé devagarinho à frente do outro até che-gar ao meio deles. A mãe dá-me beijinhos, o pai passa-me a mão pelos caracóis, o Lito estrebu-cha para me enxotar, mas a mãe diz:

— Ó Lito, arranja um cantinho para o teu irmão.

E ele arranja… um cantinho no chão para mim entre o pai e a mãe, ao lado do mano. O

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chão da minha casa é duro mas está-se melhor do que no sofá… E vemos as anedotas até ao fi m… a rir… todos… no chão… nos braços a adormecer por cima uns dos outros até ao fi m das horas.