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Em nome da lei Fernando Francischini Delegado Federal

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Em nome da lei

Fernando Francischini

Delegado Federal

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Francischini, Fernando.Em nome da lei - a história da prisão do maior tra�cante do

mundo, Juan Carlos Ramírez Abadia / Fernando Francischini; organizadora: Miriam Karam. - Curitiba, PR : Editora Fator, 2010.

144 p.: il. ; 21 cm.

ISBN 978-85-63776-00-6

1. Abadia, Juan Carlos Ramírez, 1963- . 2. Narcotra�cantes – Colômbia. 3. Investigação criminal – Brasil. I.Karam, Miriam. II. Título.

364.17709861 CDD ( 22ª ed.)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira

Preparação de texto e organização

Miriam Karam

Capa

CCZ Comunicação

Imagem da capa

Agência Estado

Projeto grá"co e diagramação

Clarissa M. Menini

Rua Joaquim Amaral, 852 A Jardim das Américas

Curitiba – PR | CEP 81530-430

Tel.: 41 3024 0103

2a. edição

Impresso no Brasil

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Agradecimentos

Aos policiais federais e agentes da Drug Enforcement Administration (DEA)

que participaram ativamente das investigações que culminaram na prisão do tra�-

cante Juan Carlos Ramírez Abadia. Sem sua dedicação e e�ciência essa operação

não teria sido realizada com tamanho êxito.

À minha família, que soube suportar as ausências e me deu o apoio necessário

para que minha dedicação pudesse ser efetiva, obtendo o resultado almejado.

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O Senhor é o meu pastor

Salmo de Davi

1. O Senhor é o meu pastor, nada me faltará.

2. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas.

3. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu

nome.

4. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum,

porque Tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.

Sl. 23, 1-4

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Índice

Apresentação por Beto Richa 9

Prefácio por René Dotti 11

Introdução 17

A identificação 21

A prisão 31

A chegada 41

A operação 51

A história 61

A investigação 69

O homem de US$ 1,8 bilhão 77

Agosto, o mês do cachorro louco 85

Os depoimentos 91

As ruas e as rotas 95

A entrevista 101

A palestra 117

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Apresentação

A situação caótica da criminalidade no Paraná tem origem nas drogas, o grande mal deste século. Por isso, o trabalho de combate ao trá�co precisa ser sistêmico e integrado entre as três esferas de poder: fede-ral, estadual e municipal. Mas é preciso também a participação da so-ciedade, que tem função estratégica; associações, igrejas, escolas, todos temos responsabilidades no enfrentamento ao problema e no trabalho para recuperar o futuro de tantos jovens e crianças que sucumbiram no submundo das drogas.

Como prefeito de Curitiba no período de 2005 a 2010, senti na pele o problema se alastrando no seio das famílias em Curitiba e na Região Metropolitana. Pais e mães desesperados me pediam ajuda. Decidi, então, convidar o delegado da Polícia Federal Fernando Francischini, que passava por um momento de grande reconhecimento na instituição, para me ajudar na dura tarefa de lutar contra as drogas.

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Fui direto à fonte – e a Polícia Federal tem um histórico de combate im-

placável ao trá�co -, fui em busca do homem que havia prendido um dos

maiores tra�cantes de drogas do mundo, Juan Carlos Ramírez Abadia.

Para minha satisfação, Francischini aceitou o convite e juntos criamos a

primeira Secretaria Antidrogas em uma capital brasileira.

E aí vem a grande diferença do nosso trabalho: o foco principal da se-

cretaria não é a tarefa policial (prisões e apreensões de drogas) e sim a

educação, a conscientização e capacitação dos jovens para defenderem-

-se das drogas. Francischini dedicou-se por dois anos a esta luta, que

também envolveu toda a sociedade paranaense; conseguiu unir igrejas,

conscientizar pais, mães e professores; formar uma rede de informações

estratégicas para repassá-las à polícia, sem comprometer o informante.

E, �nalmente, preparar terreno para um projeto piloto de recuperação

da dependência química do crack para crianças e adolescentes carentes

de Curitiba.

Este livro traz a experiência de um policial extremamente competente e

dedicado ao trabalho de prevenção às drogas junto à sociedade. Além de

amigo pessoal, Francischini tornou-se um importante representante e

interlocutor dos pro�ssionais de segurança pública do Paraná.

Beto RichaPrefeito de Curitiba (gestão 2005-2010)

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Prefácio

O registro das experiências humanas, nos mais distintos campos de ati-

vidade, constitui uma valiosa contribuição para a sociedade do presente

e do futuro. Entre as diversas modalidades de gravação estão as mais

antigas: a impressão de sinais e imagens sobre material mineral sólido e

sobre um suporte de papel, em forma de livro. A Cultura e a Civilização

dos povos acolheram o signi�cado da sentença latina: verba volant; scrip-

ta manent (as palavras voam; o escrito permanece).

Fernando Francischini certamente compreendeu o valor dessa antiga

máxima e decidiu divulgar em livro algumas passagens fundamentais de

suas experiências funcionais, como delegado de Polícia Federal e titular

da Secretaria Antidrogas do município de Curitiba. Esse importante

órgão de Política Criminal foi concebido por ele na gestão do prefeito

Beto Richa, que o nomeou para dirigi-lo a partir de sua criação, em abril

de 2008. Com um expressivo detalhe: foi a primeira, no gênero, em todo

o país. Lembro que a minha atenção para com o seu fecundo trabalho

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foi despertada pelo artigo “Trá�co de drogas x homicídios. A prisão de

quantos Abadias são necessárias?”, publicado com destaque na Gazeta do

Povo, em 29 de janeiro de 2008. No referido texto, o delegado Francis-chini decifrou o enigma da es�nge acerca do imenso número de chacinas e outras formas bárbaras de homicídios praticados nas últimas décadas em nosso país, especialmente nos grandes centros urbanos e periféricos. E não foi devorado pelo fabuloso monstro da Grécia mitológica, como tem ocorrido frequentemente com inúmeros responsáveis pela plani'-cação e execução de (más) políticas de segurança pública. Pretende-se, equivocadamente, combater o aumento da violência e da criminalidade com o endurecimento da lei penal e a restrição das garantias processu-ais, como se a epidemia pudesse ser debelada com a homeopatia. Ao contrário, Fernando Francischini resolveu o enigma com duas lúcidas conclusões no mencionado texto: “A relação entre o trá�co de drogas e o

aumento das taxas de crimes violentos, como homicídios, está cada vez mais

nítida. A atuação repressiva do Estado sem a contrapartida preventiva não

obtém resultados palpáveis”.

Esta mensagem tem um caráter evidentemente preventivo e um objeto muito claro quanto ao combate inteligente da violência, que é um dos a1uentes que deságuam no caudaloso rio do trá'co de entorpecentes

e drogas a'ns. Seu depoimento é ilustrativo quando se refere à organi-

zação da criminalidade que dirige esse mercado negro. Vale repetir: “O

organograma é piramidal e seus integrantes são ‘descartáveis e substituíveis’,

com maior ou menor grau conforme o posicionamento na estrutura. Funcio-

nam como uma empresa: graus de che�a, divisão de funções, planejamento

estratégico, logística apurada, departamento �nanceiro, assessoria jurídica e

tecnológica, corrupção estatal, bem como, pasmem, uma política bem de�ni-

da de recursos humanos” (“Trá'co de drogas x homicídios”, cit.).

Um detalhe impressionante: estudos realizados no Rio de Janeiro de-

monstram que cerca de 70% dos homicídios resultam de disputa pelos

pontos de venda de drogas; da cobrança de dívidas dos dependentes e

dos tra'cantes intermediários; do desespero dos consumidores na busca

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de dinheiro para manter o vício, além dos confrontos de quadrilhas. O

delegado Francischini informa que o Estado do Paraná é rota do trá�co

internacional de drogas e de armas porque está em região fronteiriça

com o Paraguai, com destaque para as cidades de Foz do Iguaçu e Gua-

íra e dos 173 quilômetros do lago de Itaipu, onde diuturnamente gran-

des apreensões são feitas. As principais organizações criminosas estão

em São Paulo e Rio de Janeiro, atuando na receptação de drogas e armas

de fogo.

O gravíssimo problema já chegou a Curitiba e região metropolitana.

Tratando-se de áreas de desenvolvimento econômico, são alvos de qua-

drilhas do trá�co ilícito, que geram o aumento da violência. Esta é a

constatação de uma autoridade experiente e corajosa. Começa, a partir

daí, a relação entre drogas e mortes; entre criminosos e vítimas; entre

Polícia e Justiça Criminal.

A Política Criminal, como já foi dito por alguém, “é a sabedoria legislati-

va do Estado na luta contra a violência e a criminalidade”. Surge, então, a

pergunta: é possível reduzir o grande número de homicídios dolosos em

nossa cidade e nas regiões vizinhas, em estatística que ganhou lamentá-

vel repercussão nacional?

Conforme o diagnóstico feito por Francischini, a maior causa da violência

em nosso país está ligada ao trá�co ilícito de entorpecentes e drogas a�ns.

Ele enumera como ocorrências frequentes: homicídios (na modalidade de

chacina), latrocínios, roubos, sequestros relâmpagos e extorsões que com-

põem o sinistro repertório alimentado pelas drogas. Sugerindo medidas

alternativas, de caráter social, para a prevenção de muitos desses atenta-

dos, ele observa que os municípios podem desenvolver projetos de extra-

ordinária e�cácia. Mesmo não exercendo o poder constitucional inerente

às polícias civis, de apuração das infrações penais, os municípios podem

participar do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, criado

pela Lei nº 11.343, de 23.8.2006. O SISNAD visa prevenir o uso inde-

vido de drogas e promover a reinserção social de usuários e dependentes.

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A coordenação municipal de projetos de lazer, esporte e cultura nas re-giões pobres das cidades e direcionados para crianças, adolescentes e

jovens de até 25 anos, é um dos caminhos e�cientes de Política Criminal

para retirar da marginalidade seres humanos utilizados pelas organiza-

ções criminosas pela falta de oportunidade em empregos lícitos.

O crime e a violência de um modo geral são fenômenos complexos, pro-

duzidos por variadas causas e circunstâncias. Não é possível enfrentá-

-los somente com a ameaça da pena, por mais grave que possa ser. A

perda da liberdade do infrator não constitui um meio su�ciente para

prevenir a reincidência ou neutralizar a vontade ilícita se o Estado não

conceber e executar uma e�ciente Política Criminal. A luta contra a de-

linquência deve ser orientada pela conjugação das instâncias formais e

materiais de reação. Constituem exemplos da primeira, a lei, a polícia, o

Ministério Público, os juízes e tribunais, os órgãos de execução da pena

e os estabelecimentos penais. E são exemplos da segunda a família, a

escola, a religião, a universidade e as organizações não governamentais.

A “contrapartida preventiva” a que alude Francischini em seu artigo, para

complementar a “atuação repressiva do Estado”, tem o seu foco na educa-

ção das crianças e dos adolescentes. Partindo da teoria para a prática, ele

concebeu e executou projetos destinados a promover a autoestima das

vítimas das drogas, mostrando-lhes caminhos saudáveis como antídotos

e�cientes para prevenir os malefícios do simples uso ou da dependência.

Alguns programas executados pela Secretaria Antidrogas, sob a lide-

rança de Fernando Francischini, obtiveram excelentes resultados porque

partem do princípio da não violência para combater a violência. A lição

da experiência prosperou e os meios e métodos contra a proliferação

das drogas ilícitas virou modelo em muitos municípios paranaenses que

também criaram secretarias com essa �nalidade especí�ca.

O livro Em nome da lei mostra a outra face da criminalidade violenta,

quando os poderes públicos e quali�cados gestores de programas pre-

ventivos investem na educação, no lazer, no esporte e na cultura como

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terapias para salvar a infância e a juventude da tentação das drogas ou do

tratamento para deixá-las. Revela, também, que a prisão do tra�cante e

a perda de bens materiais obtidos com o hediondo comércio é a resposta

necessária para desmisti�car esse agente de viagens alucinantes que, apa-

rentemente destinadas ao paraíso, fazem uma escala no purgatório até

chegar ao inferno. E, na maioria das vezes, sem o bilhete de volta.

René Ariel Dotti

Advogado — Professor Titular de Direito Penal — Medalha Mérito

Legislativo da Câmara dos Deputados — Presidente da Comissão

Nacional da OAB para Defesa da República e da Cidadania.

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Introdução

Quando aquele homem baixo, mas forte, desceu de um veleiro numa

praia do Ceará, ninguém da Polícia Federal que o vigiava poderia imagi-

nar sua identidade; nem o que ele representaria nos próximos três anos

ou o desfecho que o caso teria e a repercussão no país, no mundo e na

própria instituição.

O fato de estar sempre de óculos escuros e nunca tirar o boné não cha-

mava a atenção. A�nal, o dia ensolarado e a areia branca justi�cavam a

proteção de um suposto turista rico que aproveitava aquela maravilha da

natureza para descansar.

Era agosto de 2004. A prisão do perigoso tra�cante de drogas Juan Car-

los Ramírez Abadia só aconteceria em outro mês de agosto, em 2007.

Nesse período, Chupeta, como era conhecido o bandido (em português

o apelido soa ainda mais ridículo que em espanhol, língua em que sig-

ni�ca pirulito), montaria uma organização rami�cada por seis Estados

brasileiros, com 17 empresas de fachada que movimentariam cerca de

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Em nome da lei18

US$ 70 milhões mensais com o trá�co de cocaína.

O valor impressiona mas não chega perto dos US$ 7 bilhões que lu-

crava o Cartel de Cali, organização criminosa onde Chupeta deu seus

primeiros passos e aprendeu tudo o que deveria saber para se tornar o

tra�cante mais procurado no mundo na época de sua prisão, com a cabe-

ça a prêmio. O governo norte-americano garantia o pagamento de US$

5 milhões a quem desse informações que levassem à captura de Abadia.

Mas sua identi�cação apresentava um componente que di�cultava em

muito a missão. Além de toda uma estrutura montada com alta tecno-

logia de comunicação e despiste, Abadia se submetera a uma série de

cirurgias plásticas, modi�cando o corpo e o rosto de forma espantosa.

Era o homem das mil faces. Literalmente.

Mas nada diminuiria o ânimo da Polícia Federal para tirá-lo de circu-

lação. Quem de nós trabalha com a repressão a entorpecentes carrega

marcas profundas de dor e revolta pelo que vê diariamente nas ruas e

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19Fernando Francischini

nos noticiários. As drogas, principalmente o crack, estão matando nos-

sos jovens e até crianças, destruindo vidas e famílias inteiras, corrom-

pendo futuros promissores e jogando no lixo os esforços de tantos quan-

tos dedicam a vida ao combate ao trá�co e à recuperação de dependentes

químicos.

Os entorpecentes representam um mal em praticamente todo o mundo.

A cada dia aumenta o número de países nos quais atuam quadrilhas

transnacionais. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime

(Unodc) avalia que o combate ao trá�co só consegue retirar das ruas

cerca de 40% da produção mundial de cocaína, estimada em 850 tone-

ladas ao ano. Os 60% restantes alimentam um mercado formado por

25 milhões de usuários que colocam nas mãos dos tra�cantes um valor

próximo aos US$ 50 bilhões por ano.

Isso dá um imenso poder de fogo aos barões do pó, como são chama-

dos os temíveis chefões das grandes organizações criminosas que atuam

principalmente em alguns países da América do Sul, especialmente a

Colômbia. O desmantelamento dessas quadrilhas é um trabalho que

não pode ter descanso.

Mas esta é uma missão que só alcançará sucesso verdadeiro quando di-

minuirem as terríveis consequências registradas na outra ponta: quando

conseguirmos diminuir o número de usuários e obtivermos a recupera-

ção de tantos que sofrem – e às vezes nem sabem disso – com o vício, a

drogadição.

Tal certeza e preocupação levaram, em 2008, o então prefeito Beto Ri-

cha a me convidar para juntos encontrarmos uma forma de envolver o

município de Curitiba no combate a esse mal do século. E foi a mesma

certeza que me levou a propor a criação da primeira Secretaria Munici-

pal Antidrogas de uma capital brasileira, que começa a apresentar resul-

tados animadores.

Mas esta é uma tarefa de todos. Sem exceção.

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A identificação

A identi�cação de Juan Carlos Ramírez Abadia ocorreu apenas um mês

antes da prisão do tra�cante no condomínio Aldeia da Serra, em São Paulo.

Durante quase três anos, a Polícia Federal empregou boa parte de seu tem-

po vigiando, muito de perto, um homem de quem se conhecia praticamente

tudo, até os hábitos mais corriqueiros. Mas ninguém sabia quem era.

As várias residências do tra�cante eram observadas cuidadosa e ininter-

ruptamente em seis Estados das regiões Sul e Sudeste: São Paulo (ca-

pital, Campinas e Barueri), Santa Catarina (Florianópolis), Rio Grande

do Sul (Guaíba), Minas Gerais (Pouso Alegre), Rio de Janeiro (Angra

dos Reis) e Paraná (Curitiba).

E simplesmente não era possível identi�cá-lo. Dezenas de identidades,

todas falsas é claro, foram checadas nesse período e centenas de foto-

gra�as analisadas. As inúmeras cirurgias plásticas estavam cumprindo o

propósito de esconder os traços verdadeiros de Abadia.

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Em nome da lei22

Sabia-se, pela movimentação e pela riqueza demonstrada e, de certa

forma ostentada, que se tratava de alguém muitíssimo importante no

trá�co internacional de drogas. Mas quem? Era apenas o “Big Fish” nos

relatórios e nas conversas entre as equipes da Polícia Federal que traba-

lhavam no caso.

Se o tra�cante tivesse sido preso naquele período, era quase certo que

sua verdadeira identidade jamais fosse conhecida e ele não pudesse ser

julgado pelas 300 mortes de que era acusado na Colômbia e outras 15

nos Estados Unidos. Com muito dinheiro e acusações menores, era

provável que estivesse livre novamente em pouco tempo para continuar

aterrorizando o mundo e até mesmo comparsas acostumados a ver os

atos mais cruéis de que já se ouviu falar.

Aliás, isso �cou demonstrado no episódio de sua identi�cação. A Polícia

Federal dispunha de autorização judicial para grampear telefones e abrir

o sigilo de Abadia na internet. Acontece que as equipes do tra�cante

Abadia: pego pela câmera de um shopping de Curitiba

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23Fernando Francischini

espalhadas pelo Brasil e no exterior trocavam chips e aparelhos celulares

a cada três meses no máximo. Cerca de 70 chips de celular eram usados

ao mesmo tempo, o que di�cultava a obtenção dos números para poder

grampeá-los.

Na casa em que o tra�cante estava no momento de sua prisão, foram

encontrados 150 aparelhos de telefonia celular. Diz a lenda que Abadia

usava um telefone apenas uma vez. Em seguida, descartava-o para di�-

cultar as investigações. Dinheiro para isso não faltava.

Todo o grupo que o cercava, e ele mesmo, tinham as identidades muda-

das de tempos em tempos. A cada período era necessário praticamente

recomeçar quase do zero.

Também as reuniões dos asseclas de Abadia eram feitas de uma forma

inusitada para despistar a vigilância. Certa vez, seguindo o grupo de tra-

�cantes colombianos que atuava em Curitiba, os agentes federais espe-

raram o piloto André Luiz Telles Barcellos, que desceu no Aeroporto

Afonso Pena em vôo comercial.

O piloto encontrou algumas pessoas e todos entraram num Fiat Doblò,

que estava no estacionamento do aeroporto. Mas não foram a lugar ne-

nhum. Simplesmente �caram rodando durante uma hora na região de

São José dos Pinhais, na Grande Curitiba.

Depois de deixarem André Barcellos novamente no aeroporto, um deles

levou o carro até um estacionamento da Rua Vicente Machado, centro

de Curitiba. Descobrimos então que a quadrilha mantinha um veícu-

lo em cada um dos aeroportos de São Paulo e Porto Alegre, além de

Curitiba, para usar nas reuniões. Cada veículo estava em nome de um

laranja, depois investigados e presos.

E aí entra uma regra apontada pela sabedoria popular que já se tornou

lugar comum em histórias e �lmes policiais: em algum momento o vi-

giado há de cometer um erro. Até o mais treinado e poderoso chefão do

trá�co internacional de drogas sucumbiu.

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Em nome da lei24

Certo dia, num momento de descuido, Abadia usou o telefone “errado”:

um celular grampeado com autorização da Justiça Federal de São Paulo

que não havia sido protegido pelos equipamentos de despiste da quadri-

lha. A ligação foi feita para um dos comparsas e falava sobre o Uruguai.

Abadia cobrava resultados de suas aplicações e a montagem de uma em-

presa de investimentos naquele país.

E a voz de um dos homens mais procurados por praticamente todas

as polícias e serviços de inteligência do mundo �cou gravada. Era um

trunfo apenas sonhado até então. A voz de Abadia foi enviada à Drug

Enforcement Administration (DEA), agência de combate ao trá�co de

drogas dos Estados Unidos.

A gravação percorreu inúmeros presídios federais norte-americanos

sendo apresentada a dezenas de tra�cantes colombianos extraditados e

em processo de negociação, ou seja, delação premiada. Aqueles bandi-

dos estavam entregando comparsas para diminuir suas próprias penas

ou para serem colocados em prisão domiciliar.

O silêncio e as negativas chegaram a impressionar os agentes da DEA,

que, em alguns casos, percebiam que o terror se estampava no rosto dos

presidiários. O medo os impedia de falar.

Até que, em Miami, um homem chorou. Tremeu ao ouvir a voz e, cho-

rando muito, desesperadamente, repetiu várias vezes: “É o Chupeta, é o

Chupeta”. O apelido de Chupeta fora dado por um tio porque o perigoso

tra�cante comia muitos doces quando criança. Um apelido tão ridículo

não comprometeu o crescimento desse capo, nem tanto doce diminuiu

sua crueldade. A partir daí, vários colombianos encorajaram-se e foram

unânimes em reconhecer a voz de Abadia.

O primeiro a falar foi um colombiano também preso e extraditado para

os Estados Unidos chamado Victor Patiño Fómeque, apelidado Químico,

que tinha motivos de sobra para temer Chupeta. Juan Carlos Abadia fora

responsável pela morte de 35 pessoas de sua família. Só restavam ele e a

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25Fernando Francischini

mãe, que está sob proteção da polícia norte-

-americana, incluída no programa de prote-

ção a testemunhas.

O homem contou que toda a família es-

tava envolvida no trá�co e um de seus

irmãos era o braço direito e laranja de

Abadia na Colômbia. Acontece que o tal

homem de con�ança se recusara a devol-

ver uma enorme fazenda com milhares de

cabeças de gado e cavalos de raça que havia

sido colocada em seu nome para encobrir a identidade do verdadeiro

proprietário.

Os capangas do chefão foram eliminando a família do tal traidor um a

um, sem poupar velhos e crianças. Amigos e advogados também fazem

parte da lista dos mortos. Era preciso ser exemplar para evitar novas e

futuras traições. O traidor sofreu crueldade ainda maior. Foi morto, es-

quartejado e suas partes espalhadas pela região. Então, o próprio Abadia

telefonou para a mãe do morto e indicou cada um dos locais em que ela

poderia recolher braços, pernas, corpo e cabeça do �lho. “O trá�co não

perdoa. Ele matou toda minha família”, relatou o preso colombiano.

O tra�cante de Miami também con�rmou à DEA detalhes dos atos e

crueldades cometidos pelo impiedoso chefão. Naquele momento, Aba-

dia era um dos dez criminosos mais procurados pelo Federal Bureau of

Investigations (FBI) em todo o mundo, e tinha a cabeça a prêmio no

valor de US$ 5 milhões. Era julgado quase tão perigoso quanto o mega-

terrorista Osama Bin Laden – cuja captura estava pagando recompensa

de U$ 25 milhões por ter planejado os atentados terroristas conhecidos

como “11 de Setembro”, que derrubaram as torres gêmeas de Nova York

e levaram à morte mais de 3 mil pessoas de diversas nacionalidades.

Procurado: cabeça a

prêmio por US$ 5 milhões

de dólares

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Em nome da lei26

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27Fernando Francischini

Caça ao tesouro

Quando a correspondência da DEA chegou à Polícia Federal em São

Paulo, instalou-se um misto de júbilo e preocupação. Finalmente “Big

Fish” fora identi�cado. O texto do documento dizia em suma: “Quem

está com você é o maior tra�cante do mundo....”

Tanto trabalho, a�nal, não fora em vão. Sabíamos que era um peixe

grande, mas ninguém imaginava que podia se tratar da �gura mais im-

portante, naquele momento, do maior cartel de drogas da Colômbia, o

Cartel del Norte del Valle, produtor e distribuidor de mais da metade

de toda cocaína consumida no mundo.

Alguns meses antes chegamos a descon�ar da identidade do nosso “Big

Fish”, mas avaliamos, por uma série de dados, que era praticamente im-

possível que fosse Abadia. Seria o contador do chefão? Alguma pessoa

muito próxima a ele? Não havia dados seguros para avaliar. No entanto,

em janeiro de 2007, as casas que a polícia colombiana invadiu, a partir

de informações que repassamos a ela, através da DEA, pertenciam ao

tra�cante.

Nas três casas, a polícia colombiana encontrou US$ 81 milhões em di-

nheiro vivo, no piso e nas paredes das construções. Havia pequenos con-

têineres lotados até a boca de dólares. Da parede de um lavabo, saltaram

1.309 lingotes de ouro.

Mas agora, identi�cado Abadia, era preciso agir rápido e com segurança.

E era preciso lidar com duas novidades que mexem com os nervos de

todos que se vêem em semelhante posição. De um dia para o outro, nosso

grupo se tornara a sensação e os heróis da Polícia Federal. Todos os olhos

se voltaram para nós. Estávamos com o maior peixe do trá�co nas mãos.

Atraímos ainda o olhar e a atenção dos serviços de inteligência de cinco

países que também queriam colocar Abadia atrás das grades: Estados

Unidos, Colômbia, Espanha, Uruguai e Argentina. Os países haviam

sido alertados pela inteligência norte-americana, que se lançou na busca

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Em nome da lei28

de dados sobre Abadia em todo o mundo quando soube que ele estava

no Brasil e poderia ser preso a qualquer momento.

Todos queriam colaborar conosco e enviaram ao Brasil equipes e equi-

pamentos de alta tecnologia para ajudar na captura do temido chefão do

narcotrá�co internacional. E também para identi�cação e rastreamento

de contas. A DEA trouxe, por exemplo, um aparelho para escanear pa-

redes, porque já sabia que Abadia escondia dinheiro e lingotes de ouro

dentro de paredes. A Operação Farrapos se tornou então uma operação

de alta tecnologia e de cooperação internacional. Foi iniciada uma ver-

dadeira caça ao tesouro.

Praticamente não dormimos naquele mês. A ansiedade era muito gran-

de porque sempre havia a possibilidade de uma fuga. As equipes passa-

ram a dormir na porta do Abadia, onde quer que ele se encontrasse. Ha-

via muita coisa por fazer para que a prisão fosse capaz de tirar Abadia

Em vários endereços de Abadia,

no Brasil e na Colômbia, a

polícia encontrou pilhas de

dinheiro; na foto ao lado, a pilha

alcança a altura de um homem

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29Fernando Francischini

de circulação da forma mais efetiva em todos os sentidos. Um tra�cante

preso que ainda pode dispor de seus bens continua sendo um homem

poderoso. E perigoso.

Esta é a visão capitalista da repressão ao trá�co, criada com base na ob-

servação de muitos casos em muito tempo de trabalho no combate às

drogas. No momento da prisão, todos os bens de um tra�cante já devem

estar bloqueados pela justiça.

Ele não pode dispor de nada, caso contrário continuará podendo lançar

mão de recursos a �m de livrar-se das acusações, recursos e capangas

para ajudá-lo a fugir da cadeia e até sequazes dispostos a cumprir ordens

de matar pessoas, inclusive seus captores. Rico, Abadia era uma ameaça;

pobre, não passava de mais um tra�cante preso.

Naquele último mês terminamos de mapear todas as posses de Abadia

e identi�car seus comparsas espalhados pelo território brasileiro, nos

Estados em que a organização atuava com presença física, e nos cinco

países que �zeram parte da operação.

Em cada uma dessas bases Abadia dispunha de uma equipe ligada ao

trá�co diretamente além de outras pessoas, brasileiras para melhor des-

pistar, que serviam de laranjas e testas de ferro para os negócios de fa-

chada e para a lavagem de dinheiro.

Naquele momento, a operação bloqueou 351 imóveis em cinco países,

aviões, submarinos, helicópteros, uma ilha no Caribe com um hotel cin-

co estrelas, fazendas com búfalos, en�m, uma gama sensacional de valo-

res. E ainda viria mais, muito mais.

No dia da prisão saímos a campo com 17 mandados de prisão tempo-

rária e 30 mandados de busca e apreensão a serem cumpridos em São

Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Guaíba, Florianópolis, Campinas, Angra

dos Reis, Jundiaí, Santana do Parnaíba, Uberaba e Pouso Alegre.

Os mandados foram assinados pelo juiz Fausto de Sanctis, da Justiça

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Federal de São Paulo. Era o mesmo juiz da Operação Satiagraha, da

Operação do Corinthians e de outras entre as operações mais compli-

cadas. De Sanctis banca ações que poucos juízes enfrentam. Grampear

uma pessoa de quem ninguém sabe o nome, só mesmo um juiz que real-

mente combate o crime organizado.

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31

A prisão

Cumpridos tantos detalhes, organizados tantos procedimentos, tantas

noites insones, chegamos à véspera do dia marcado para o cumprimento

do mandado de prisão e de alcançar um objetivo tão arduamente bata-

lhado. Então, um pequeno detalhe, fora da alçada da Polícia Federal,

quase pôs tudo a perder.

O site do Supremo Tribunal Federal (STF) publicou o pedido de prisão

para extradição de Juan Carlos Abadia feito pelo governo norte-ameri-

cano. Parece que nossos irmãos do Norte não suportaram a ansiedade e

queriam ser os primeiros a pedir o “passe” do tra�cante. Era já tarde da

noite e uma onda de preocupação percorreu tantos quantos trabalha-

vam nos últimos preparativos na Superintendência da Polícia Federal

em São Paulo, de onde coordenávamos a operação.

Naquele momento equipes de outros Estados viajavam às cegas para

cumprir mandados de prisão e busca em locais fora de suas bases. Numa

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Em nome da lei32

operação de tal envergadura, todo o cuidado é pouco. Mesmo interna-

mente. Os policiais são convocados sem serem informados sobre a ope-

ração da qual vão participar e têm seus telefones celulares desligados.

Daquele momento em diante, eles só sabem que participarão de movi-

mentações importantes, mas não sabem sequer para onde serão embar-

cados. Nada pode vazar.

Estavam envolvidos 180 policiais somente na capital de São Paulo e

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33Fernando Francischini

mais de 200 nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Para-

ná, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A estratégia comumente

usada pela PF é fazer as buscas e prisões logo no �nal da madrugada, ao

mesmo tempo em todos os Estados onde se encontram rami�cações da

operação em questão.

Tínhamos muita coisa para nos preocupar. O ambiente estava agitado. E

nervoso. Era preciso deixar tudo pronto, tudo bem planejado e ensaiado,

Residência em condomínio fechado na Aldeia da Serra (SP) nesta casa Abadia e

a mulher, Yessica, foram

presos

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Em nome da lei34

sem nenhuma brecha para o acaso. Eram dezenas de alvarás assinados

pelo juiz que precisavam chegar às cidades corretas para que as prisões fossem feitas e os locais vasculhados pelos policiais. E decididamente não precisávamos de mais uma questão para resolver naquela noite.

Mas o susto veio à queima-roupa: o pedido de prisão de Abadia estava lá, para qualquer um ver. Um advogado – e eram muitos os que traba-lhavam para Abadia – que estivesse navegando naquele momento pode-ria dar o alerta e tudo iria por água abaixo. Para contornar o problema, deslocamos várias equipes para um condomínio em Aldeia da Serra, em São Paulo, onde �ca uma das mansões usadas pelo tra�cante, e onde ele estava naquela noite.

As equipes que já se revezavam há um mês na vigilância tiveram que in-tensi�car o trabalho e passaram a noite vigiando entradas e saídas do condomínio; elas estavam estratégicamente espalhadas em vários pontos do local. Naquele mês, Abadia havia feito duas viagens a Foz do Iguaçu, o que nos deixou de cabelo em pé. A fuga não estava descartada, apesar dos grandes cuidados que tomamos. Era uma possibilidade a ser conside-rada. E se o tra�cante cruzasse a fronteira e entrasse na Argentina, onde a polícia sabia de sua identi�cação? Ele poderia ser preso lá e perderíamos o crédito depois de tanto trabalho e dinheiro público envolvidos.

Às 4 horas da madrugada do dia 7 de agosto de 2007 começaram a chegar as equipes de várias cidades do interior de São Paulo e de outros Estados escaladas para participar da Operação Farrapos. Às 5h30, com o apoio total e irrestrito do então Superintendente Regional em São Paulo, delegado Jaber Saadi, �zemos uma reunião no auditório da Polícia Federal na Lapa, contando a que se

Residência em condomínio

fechado em Angra dos Reis (RJ)

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35Fernando Francischini

prestava a operação e orientando os participantes sobre a importância

da coleta de material que resultasse em provas do trá�co internacional e

lavagem de dinheiro em vários países.

Às 6 horas da manhã já estávamos, todos, em frente aos locais em que deveríamos entrar, em oito Estados brasileiros. Nossa equipe estava em frente ao número 71 da Alameda Dourada, no Condomínio Moradas do Lago, região de Aldeia de Serra, município de Barueri, na Grande São Paulo. Dado o sinal combinado, liberamos a entrada da casa de Abadia usando um aríete, uma peça de ferro bastante pesada. Bate-se com ela na altura da maçaneta e as travas da fechadura estouram.

Dois agentes quebraram a porta e eu subi rapidamente, baseado na plan-ta da casa que já estudara bem, e cheguei ao quarto do casal. Acendi a luz e ali estavam Abadia e sua terceira mulher, Yessica Paola Roja Morales, inteiramente nus, dormindo tranquilamente na cama do casal.

Abadia foi rendido e Yessica, sua mulher, se enrolou num edredom. Duas policiais federais femininas �caram sozinhas com ela para que pu-desse se vestir longe dos olhares masculinos. Abadia também se vestiu e perguntou qual era a polícia que estava fazendo sua prisão. Ao ouvir que éramos da Polícia Federal, o tra�cante se deixou cair sentado na cama e colocou as duas mãos na cabeça num gesto de desconsolo, como se tivesse percebido então que tinha �nalmente perdido o jogo.

O homem mau tremeu. A música tema do �lme “O Fugitivo” até que podia servir de trilha sonora para aquele primeiro interrogatório de Abadia. Com 315 homicídios nas costas e a acusação de tentar corrom-per grande quantidade de autoridades e parlamentares colombianos para impedir a votação da lei que permite a extradição. Apesar de ter esquartejado pessoas e ser conhecido como homem de poucas palavras e muitos tiros, Abadia tremeu. Tremeu muito na frente do delegado no momento do interrogatório.

Durante a revista na casa, con�rmou todos os crimes – de trá�co de

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Em nome da lei36

drogas, lavagem de dinheiro, homicídios –, e confessou estar cansado

de uma fuga que já durava muitos anos. Pedimos que colaborasse e foi

o que ele fez. Indicou, tanto naquela casa como em casas de outros Es-

tados, os locais onde havia grandes quantidades de dólares, euro e reais para serem apreendidos. O total, naquele dia, girou em torno de R$ 4,5

milhões, além de jóias, veículos e outros bens, como relógios e roupas

de alto valor, várias TVs de plasma e LCD, equipamentos de ginástica.

Naquele dia, Abadia foi interrogado no escritório da casa do condomí-

nio de Aldeia da Serra, onde encontramos o computador usado para

mandar mensagens internacionais em código. O tra�cante dispunha de

uma ferramenta de alta tecnologia, uma técnica conhecida como estega-

nogra�a, que faz a criptogra�a de arquivos de áudio e texto e os esconde

em fotogra�as ou outras imagens. Ele usava fotos de crianças e adoles-

centes, seus sobrinhos, e imagens da boneca Hello Kitty, que pareciam

ser uma mania de Yessica.

Em todas as casas, Abadia tinha TVs de plasma espalhadas por

todos os cômodos, até nas dependências da empregada

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37Fernando Francischini

A mesma tecnologia já serviu a outras operações criminosas. Foi usa-

da no planejamento dos atentados de 11 de setembro de 2001, quando

aviões foram lançados sobre as torres gêmeas do World Trade Center,

em Nova York, e sobre o Pentágono, em Washington. Por trás dos atos

terroristas, responsáveis pela morte de mais de 3 mil pessoas, estava a Al

Qaeda, de Osama Bin Laden.

O escritório da mansão de Abadia era decorado com centenas de quin-

quilharias da Hello Kitty, o que nos chamou a atenção. Ou era uma for-

ma calculada para que a presença da bonequinha em e-mails e em torpe-

dos pelo celular parecesse natural. Só que neste caso, a inocente boneca

cor-de-rosa escondia mensagens criptografadas com ordens para matar.

Extraímos das imagens gravações de áudio e texto, com a voz do próprio

Abadia, dando ordens de lavagem de dinheiro, entrega de valores, trá�co

internacional, informando datas de embarque e desembarque de drogas

e recomendações gerais. E até ordens para queima de arquivo. Na outra

ponta, as pessoas que recebiam os e-mails tinham de decodi�car os ar-

quivos das fotos. Mas dinheiro nunca faltou.

A quem ainda pode pensar que a vida de um tra�cante é cheia de aven-

turas, como em �lmes mocinho-bandido açucarados por Hollywood,

Abadia é um dos melhores exemplos para provar o contrário. A fuga

constante acaba por tornar-se uma prisão das mais monótonas. Em cada

uma das residências de alto luxo que montou no Brasil, encontramos

inúmeros aparelhos de televisão de alta de�nição, outros de LCD, e cai-

xas e mais caixas de �lmes em DVD.

Abadia comprava diretamente de produtoras e estúdios de cinema to-

dos os �lmes que estavam sendo lançados. Encontramos em todos os lu-

gares muitos DVDs de vários tipos, espécies e gêneros. Estavam lá, por

exemplo, a trilogia de O Poderoso Chefão e os �lmes de Indiana Jones.

A maioria, no entanto, era de séries da TV norte-americana, como CSI

e Without a Trace. Lazer e utilidade? Ao desvendar crimes, as séries

sempre podem servir de inspiração ou revelar cuidados a tomar. O tra�-

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Em nome da lei38

cante passava grande parte do dia assistindo �lmes em casa e praticando

�siculturismo, aliás, outra mania que tinha. Em pelo menos cinco casas

preparadas para ele encontramos academias pro�ssionais de ginástica e

musculação.

Em vários locais também encontramos equipamento de alta geração de

criptogra�a de telefone celular, coisa que só existia no exterior em 2007.

Abadia havia trazido de Buenos Aires, conforme investigações que �ze-

mos, chips de criptogra�a militar, o que lhe possibilitou manter o ano-

nimato por tanto tempo e só ser identi�cado um mês antes da operação.

Por ter de permanecer recluso, e com dinheiro à disposição, Abadia

montou em cada Estado em que atuava um espaço para si e a mulher

com tudo o que pudesse precisar em qualquer tipo de emergência: sem-

pre uma casa em condomínio fechado, com uma célula de pessoas liga-

das a ele que não conheciam os comparsas de outros Estados. Assim,

se o grupo fosse pego e ele escapasse, poderia recomeçar vida nova em

outro lugar, já que ninguém poderia delatar as pessoas com quem ele

estava depois da fuga. A estratégia é a mesma usada pelo terrorismo

O novo e o antigo: transformação impressionante

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39Fernando Francischini

internacional. Em cada residência, Abadia dispunha de dinheiro, identi-

dades novas e estrutura para começar uma vida nova.

Ao ser preso, Chupeta se dizia cidadão italiano e usava passaporte ar-

gentino (No. 16036657) com o nome de Marcelo Javier Unzue. O do-

cumento data de 23 de novembro de 2005, emitido pelo Ministério de

Governo de Buenos Aires. Naquele momento, Chupeta guardava pou-

quíssimas semelhanças com as fotos de alguns anos antes que constam da lista dos tra�cantes mais procurados do mundo.

A mudança foi operada por um alto número de cirurgias plásticas re-alizadas em clínicas de São Paulo, Porto Alegre e Curitiba. Foram seis apenas no rosto. Descobrimos que algumas foram estéticas, para escon-der os traços originais da face, mas outras cirurgias foram feitas para sa-tisfazer o ego, dele e de sua mulher. Abadia chegou a fazer implantes de silicone nos bíceps, na batata das pernas e outros lugares do corpo para parecer mais forte. Yessica aproveitou para passar por uma lipoaspira-ção, uma abdominoplastia, uma cirurgia no nariz e outra para colocação de silicone nos seios.

A febre por operações plásticas alcançou também a família de Yessica. Alçada a uma nova condição �nanceira, a mãe, Marta Morales, e algu-mas de suas irmãs �zeram várias cirurgias cosméticas. Yessica tinha 24 anos ao ser presa. Sempre cuidou da família em termos �nanceiros e o marido foi bastante generoso com ela. Uma fonte judiciária con�rmou que desde a prisão de Yessica Roja, sua família veio diversas vezes ao Brasil, incluindo o Natal e o Ano Novo, para ver a �lha. Dizem que a cada mês, a mãe ou uma das irmãs visitam Yessica na prisão. Ao ser preso, o marido apaixonado tentou várias vezes salvar a pele da mulher, repetindo aos policiais que a deixassem ir, porque nada sabia de suas atividades.

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41

A chegada

Na Polícia Federal de São Paulo há um setor, modelo para todo o país,

chamado GISE, mas conhecido internacionalmente como SIU (Uni-

dade de Investigações Especiais), um serviço de inteligência que tem

convênio com os Estados Unidos. Os dois países têm acordos de coope-

ração técnica para treinamento de pessoal, intercâmbio de informações

criminais e desenvolvimento de ações integradas de investigação.

Lá estão lotados policiais federais que trabalham apenas no combate ao

trá�co internacional. Eles são muito especializados, têm treinamento no

exterior e dedicação exclusiva. Quando transferido para São Paulo para

coordenar melhor a Operação Farrapos, passei a cooperar com esse setor.

Antes, porém, em 2004, o SIU recebeu uma série de informações que

intrigaram os policiais: agentes federais de boa parte dos Estados bra-

sileiros avisavam que o colombiano que estava sob sua vigilância estava

se deslocando para o Ceará. Uma coincidência enorme que chamou a

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Em nome da lei42

atenção de todos. Os suspeitos eram de alto nível no trá�co internacio-nal, mas não dispúnhamos de provas concretas contra eles. Ou a reunião

se tratava de uma conferência de luxo ou algo muito especial aconteceria

em Fortaleza.

Os colombianos que operavam no Brasil não �caram em Fortaleza. Se-

guiram para Camocim, um agradável balneário de frente para o Oce-

ano Atlântico, na costa Norte do Brasil, distante 365 quilômetros de

Fortaleza. Um verdadeiro paraíso: 62 quilômetros de litoral, a maior

costa litorânea do Estado, um espaço de dunas, praias e lagoas. Uma

curiosidade: a cidade recebeu o nome da baía onde se encontra, que em

tupi signi�ca “buraco para enterrar defunto”.

Mas não foi exatamente para enterrar algo que os colombianos se reuni-

ram em Camocim. Seria mais correto dizer que eles foram desenterrar,

ou saudar a chegada de um homem misterioso, mas certamente muito

importante no esquema do trá�co, o que justi�caria tal movimentação.

Conta a história do município que Camocim fazia parte de uma Ca-

pitania Hereditária, mas permaneceu abandonada por muito tempo, à

mercê de corsários estrangeiros. Pois foi nesse local, com um passado de

exploração, que Juan Carlos Abadia chegou ao Brasil em agosto de 2004,

vindo da Colômbia em um veleiro de luxo.

Abadia trocava de refúgio constantemente e se encontrava

com capangas em estacionamentos e dentro de carros

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43Fernando Francischini

A DEA tinha informações que naquela região costumava chegar muita droga para abastecer o Nordeste brasileiro. Mas num pedaço paradisí-aco de praias do Ceará, e dali até o Caribe, um veleiro não despertaria suspeitas, a princípio, de quem quer que fosse. Depois se soube que Juan Carlos Ramírez Abadia havia embarcado em Porto La Cruz, na Vene-zuela, e viajado 15 dias para chegar ao litoral brasileiro.

Os policiais enviados para vigiar a reunião de colombianos em Camo-cim viram desembarcar um homem baixo, forte, musculoso, sempre protegido por um boné e óculos escuros. Abadia estava muito diferen-te das fotos existentes de quando era mais jovem; usava cavanhaque e os cabelos tinham modi�cado de cor, estavam aloirados. Na ocasião ele portava três passaportes com os nomes de Miguel Ângelo Cano Ramos, Carlos Arturo Mora Calderón e José Martin Colque Cruz.

Com aquele homem desceram quatro malas enormes e, à primeira vista, até foi levantada a hipótese de estarem cheias de drogas. Impossível. A “expertise” da Polícia Federal registra que um chefão nunca viaja com a droga. Raramente chega perto dela. Para isso existe todo um batalhão a seu serviço. Além do mais, um carregamento jamais seria presenciado por vários membros da cúpula dos cartéis colombianos em todo o Bra-sil. Só poderia tratar-se de alguém muito importante chegando ao país. Mas quem?

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Em nome da lei44

Também mais tarde soube-se que US$ 4 milhões estavam acondiciona-

dos na bagagem desembarcada em Camocim. Depois viria mais, muito

mais. Mas, ao menos por enquanto, aquilo deveria ser su�ciente para

iniciar uma nova vida e implantar a estrutura necessária para que o tra-

�cante mais procurado do mundo continuasse a trabalhar a partir do

Brasil. Era o início de um novo império das drogas, que havia escolhido

o Brasil para espalhar seus tentáculos sobre o mundo.

Naquele momento uma dúvida se instalou na coordenação: o que fazer?

Abordar todo mundo, sem mandado de prisão... e se não houver droga

nas malas? Não poderíamos prendê-los, a não ser que os pegássemos em

�agrante, com muita droga. Mas os chefões do Brasil inteiro estariam se

expondo dessa forma ingênua? Estranho, muito estranho.

Depois de passar a noite na pousada mais cara de Camocim, Abadia

rumou para Sobral, uma cidade a cerca de 150 quilômetros de distância,

embarcou num bimotor e desapareceu. Naquele momento, desistimos

de abordá-lo e ali o perdemos. Ficamos um ano sem contato. Depois

soubemos que ele foi para São Paulo, montou uma super estrutura, célu-

las em várias cidades, instalou 17 empresas para lavar dinheiro... en�m,

se estabeleceu em um ano.

Mas, ainda em Sobral, descobrimos que o aviãozinho fora pilotado por

André Luiz Telles Barcellos, contratado por US$ 30 mil para levar a

�gura para onde quer que fosse. Soubemos mais tarde que a aeronave

partiu de Sobral e fez o primeiro pouso na Bahia, em Bom Jesus da

Lapa, de onde seguiu para Araxá, em Minas Gerais. Ali, aquele desco-

nhecido se hospedou por uma noite para viajar, no dia seguinte, de carro

até São Paulo.

Abadia passou a noite num hotelzinho modesto de Araxá, cidade tu-

rística procurada pelas águas medicinais e por ser o lar da mítica Dona

Beja, cortesã do Século XIX transformada em novela muito tempo

depois pela TV Manchete. Na manhã seguinte, o tra�cante seguiu de

carro para São Paulo, seu destino �nal naquele momento. São Paulo

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45Fernando Francischini

era um bom lugar para passar algum tempo despercebido, em meio a 19 milhões de anônimos e desconhecidos.

Nas duas primeiras semanas na capital paulista, Abadia trocou de refú-

gio inúmeras vezes, sempre na região dos Jardins. Seguia à risca a lição

aprendida no Cartel do Valle del Cauca de manter o anonimato. Só abriu

exceção para mais uma manobra de despistamento: uma nova cirurgia

plástica, que deixou seu queixo quadrado e os olhos a�lados como os de

um oriental. Ele havia tirado o cavanhaque para cultivar um bigode �no.

Gente em volta do tra�cante achou que ele �cara parecido com o roquei-

ro Fred Mercury, do grupo inglês Queen. Mas ninguém teve coragem

de fazer qualquer comentário. Até porque Abadia levava muito a sério

a própria masculinidade. E estava fazendo os últimos preparativos para

trazer ao Brasil a jovem e bela Yessica Paola Roja Morales, a Gegê, ter-

ceira de suas mulheres, que desembarcaria no país cinco meses depois

sob a identidade de Millareth Torres Lozano.

Mas tudo isso ainda não sabíamos. Só quase um ano depois, em 5 de

março de 2005, um acidente sem importância alguma, no Aeroporto do

Bacacheri, em Curitiba, chamou a atenção da Polícia Federal. Com três

pessoas a bordo, a pequena aeronave particular Beechcraft A-36, pre�-

xo PR-AAJ, caíra dentro de um buraco no �nal da pista de decolagem.

Junto com o piloto e outra pessoa, havia um colombiano a bordo, o que

chamou a atenção. Investigações revelaram que os três haviam se hospe-

dado num hotel três estrelas, no centro de Curitiba.

Na lista de hóspedes estavam os nomes de um passageiro da aerona-

ve, do colombiano Efren Rodriguez e do piloto André Luiz Telles Bar-

cellos. Eureca!! Tratava-se do mesmo piloto que transportara o miste-

rioso personagem que entrou no Brasil pela costa do Ceará. Tínhamos

reencontrado nosso “Big Fish”.

Na conta dos hóspedes do acidente curitibano, entre muitos telefonemas,

havia ligações para a Colômbia. Indício de trá�co? De qualquer forma,

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Em nome da lei46

não o soltamos mais. Começamos a segui-lo pelo Brasil todo – Curitiba,

Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina. Formamos um

grande mosaico com sua movimentação, porque a cada deslocamento

do tra�cante encontrávamos um novo endereço, uma nova empresa; na

região sempre havia um colombiano, um esquema de documentos falsos

e dinheiro escondido. Em todos esses locais Abadia encontrou um bra-

sileiro para lhe dar sustentação e assumir os investimentos.

Os US$ 4 milhões trazidos por Abadia na bagagem deveriam servir,

pelos cálculos do tra�cante, para manter nos primeiros meses de Brasil

o estilo de vida que levava na Colômbia. Em suas próprias palavras, para

“viver como um rei”. O novo lar poderia representar um porto seguro

naquele momento, quando vislumbrava muito trabalho a ser levado a

cabo nos próximos meses para manter a organização funcionando.

Entre outras tarefas, seria necessário estabelecer novos canais para dar

vazão à cocaína que passaria a chegar da Colômbia. Também era preciso

montar uma fachada respeitável para legalizar a enorme quantidade de

dinheiro movimentada pelos negócios e estabelecer com pessoal brasi-

leiro a vasta rede de operadores, tenentes, contadores, mulas e agregados

que formam a base da pirâmide do narcotrá�co.

Gegê

Assim como o marido, Yessica nunca havia sido reconhecida, por ami-

gos e parentes, pelos dotes como estudante. Em compensação, era a ter-

ceira e mais bonita das quatro exuberantes �lhas de Rafael e Martha

Roja Morales, um casal colombiano de classe média que deixou a região

de Sucre para �xar moradia em Cartagena, onde imaginavam encontrar

melhores condições para criar as meninas. Aos 18 anos, Gegê havia sido

atraída para o mundo das passarelas.

Um ano depois, em 2001, ela despertou a atenção de Abadia durante

um des�le, e o julgou “muito agradável”. Do namoro ao casamento, foi

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47Fernando Francischini

um pulo. E a vida dos Roja Morales mudou da água para o vinho. Logo a família estaria morando em uma enorme mansão de Pie de la Popa,

região nobre de Cartagena. E Yessica passou a conviver com carrões im-

portados, roupas �nas e jóias, presentes do marido apaixonado.

Como Abadia, a mulher também se habituou ao luxo. E logo depois

da chegada ao Brasil passou a comprar mansões em vários Estados. O

primeiro investimento no país foi uma mansão com cinco suítes orçada

em R$ 1,5 milhão, no exclusivíssimo condomínio Moradas do Lago, em

Aldeia da Serra, área residencial nobre do município de Barueri, a 32

quilômetros de São Paulo, onde ele viria a ser preso três anos depois.

Fiel ao princípio de não guardar todos os ovos no mesmo cesto, Abadia

logo começou a estender rami�cações, implantando células pelo país, es-

palhando casas, empresas de fachada e sócios no negócio do narcotrá�co

por seis Estados do Sudeste e do Sul.

Na praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis, Abadia comprou

uma mansão avaliada em R$ 2,5 milhões. Na mineira Pouso Alegre,

comprou o Rancho Santa Bárbara; em Angra dos Reis, uma casa de R$

700 mil no Condomínio Porto do Frade, equipada com uma reluzen-

te lancha Azimuth 520 Full, avaliada em US$ 1 milhão. Em Curitiba,

onde instalaria por alguns meses a sede da quadrilha, outro casarão em

um condomínio de luxo no bairro Campo Comprido foi arrematado

por R$ 2 milhões. No Rio Grande do Sul, comprou uma fazenda em

Guaíba.

A compra e manutenção dessa vasta rede imobiliária exigiam, além de

dinheiro, um bando de laranjas e gente com “expertise” em corrupção de

agentes legais, falsi�cação de documentos e lavagem do dinheiro obtido

com o trá�co de drogas. Na condição de turista, Juan Carlos Abadia

precisava renovar o visto a cada 90 dias. Para agilizar o processo e ga-

rantir o anonimato, o colombiano contratou os serviços de uma dupla

de colaboradores em Foz do Iguaçu indicados pelo piloto André Luiz

Telles Barcellos.

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Em nome da lei48

Ângelo Reinaldo Fernandes Cassol, ex-chefe da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), ligado a uma agência de turismo na cidade de fron-teira, e o ex-policial federal Adilson Soares da Silva, que trabalhava no se-tor de Imigração, eram os responsáveis pela “cobertura” na documentação falsa de Abadia. O tra�cante aproveitou-se de passaportes falsos de nacio-nalidade argentina e venezuelana, de vistos e prorrogação de permanência no Brasil, com aposição de carimbos, ao preço de US$ 200 por operação.

Laranjas

O gaúcho André Barcelos, que pilotara para Abadia o primeiro vôo so-bre território brasileiro, também iria ganhar papel importante na orga-nização criminosa. Contas de sua empresa seriam utilizadas para lavar o dinheiro da droga. A ele caberia ainda a compra de carros, imóveis e telefones, que lhe rendiam uma recompensa mensal que variava de US$ 5 mil a US$ 8 mil. Mas as compras não eram exclusividade de Barcelos.

Muitos dos negócios imobiliários, por exemplo, eram feitos pelo casal Daniel Brás Maróstica e Ana Maria Stein, que em troca de US$ 3 mil mensais tornaram-se os felizes proprietários – �ctícios, claro – de ca-sas, mansões e chácaras em Aldeia da Serra, Pouso Alegre e Angra dos Reis. Com o passar dos meses, a quadrilha aumentava na medida em que Abadia estendia suas operações.

A negociação de compra da mansão no so�sticado Jurerê Internacional, foi fechada por Victor Garcia Verano (Peter) e sua mulher, Aline Nu-nes Prado. Os dois também locavam os muitos imóveis alugados pelo colombiano em viagens pelo país, além de arregimentar laranjas para assumir a propriedade de casas, carros e empresas de fachada.

Um deles foi o irmão do próprio Peter, Jaime Hernando Martinez Ve-rano, responsável pelo aluguel da casa de Campinas, um endereço tran-quilo no Condomínio Vila Verbenas, onde tempos depois o tra�cante esconderia uma bolada de US$ 1,4 milhão.

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49Fernando Francischini

Teia humana

Por mais cuidadoso que fosse o “modus operandi” da quadrilha de Aba-

dia, a movimentação de tanto dinheiro com a compra de imóveis, car-ros, lanchas e outros bens, e o envolvimento de táxis-aéreos, agências

de turismo e empresas de fachada e, claro, as próprias características do

narcotrá�co, com a imensa teia humana formada das regiões produtoras

até o consumidor �nal, não conseguiriam passar incólumes para sempre.

Não demorou muito tempo para que a Polícia Federal começasse a se

debruçar sobre os rastros deixados pela quadrilha. No mundo do crime,

dizem que bandido sente de longe o cheiro da polícia. Abadia pareceu

con�rmar a regra. Para Gegê – que admitia ser a única pessoa em quem

realmente con�ava – ele revelou que já sentia a presença de policiais na

vigilância de membros da quadrilha e em suas pegadas.

A partir de então, já no �nal de 2005, a desenvoltura com que o tra�can-

te se movia pelo país, e por meio das células de sua rede de negócios, co-

meçaria a se tornar coisa do passado. De Curitiba, onde se sentia seguro

a ponto de marcar reuniões com os comparsas em movimentadas praças

de alimentação de shopping-centers, Abadia decidiu por uma apressada

mudança para Florianópolis.

As saídas do casal rarearam. Gegê já não tinha mais por onde des�lar

sua coleção de 260 pares de sapatos e 60 óculos de sol. Nem Chupeta

podia exibir os 170 pares de sapatos masculinos ou os mais de 100 reló-

gios – de marcas como Bulgari, Rolex, Breitling e Tag Heuer – avaliados

em US$ 2 milhões. As raras escapadas tinham como destino, invariavel-

mente, clínicas de cirurgia plástica.

Reclusão

De volta à mansão de Aldeia da Serra, em São Paulo, o casal de colombia-

nos passou a viver um cotidiano de reclusão. No caso de Abadia, isso signi-

�cava tempo de sobra para dedicar-se a duas de suas paixões: musculação

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Em nome da lei50

e �lmes, muitos �lmes. Na nova casa, só a academia da marca Reebok era

avaliada em US$ 100 mil, com toda sorte de equipamentos de ginástica.

Pela mansão também foram espalhados mais de vinte aparelhos de TV,

plasma e LCD, de todas as marcas e tamanhos. Havia um, moderníssi-

mo, até no quarto da empregada.

Apesar da vida reclusa e da apreensão com a movimentação policial, os

negócios de Abadia continuavam de vento em popa. Estimativas sobre

os valores movimentados pelo trá�co de drogas são sempre aproxima-

das, porque seguir o dinheiro pelos intrincados meandros do submundo

do crime e da sua legalização, da lavagem por empresas de fachada ou

em contas em paraísos �scais, é tarefa que envolve muitos especialistas

em governos e instituições. Muitas vezes sem sucesso.

De qualquer forma, calcula-se que, no seu melhor período, a quadrilha

de Juan Carlos Abadia chegou a movimentar, na América do Sul, perto

de US$ 70 milhões mensais com o trá�co de cocaína. A manutenção

da quadrilha também custava caro. Abadia queixou-se, certa vez, a um

de seus contadores que os custos operacionais nos vários países em que

operava, por volta de 2005, estavam na casa dos US$ 5 milhões por mês.

A�nal, trata-se de um negócio altamente organizado e com rami�cações

por diversos países. Sem contar que o silêncio custa caro. Muito caro.

Em cada casa, Abadia mantinha uma academia de

ginástica com equipamentos profissionais

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51

A operação

O nome da operação que prendeu o tra�cante colombiano nasceu de

uma brincadeira interna do grupo que começou as investigações. Éra-mos mesmo esfarrapados. O chute inicial na operação foi dado na sede antiga da Polícia Federal em Curitiba, na Rua Ubaldino do Amaral. Num porão de seis metros quadrados trabalhavam cinco pessoas que disputavam dois computadores: três agentes e um escrivão, além do de-legado.

A partir dessa piada caseira, adotamos o nome da Guerra dos Farra-pos – 1835-1845 (também chamada Revolução Farroupilha, a rebelião gaúcha foi comandada por Bento Gonçalves e chegou a declarar inde-pendência em relação ao governo imperial. Os revoltosos se inspiraram na então recente independência conquistada pelo Uruguai e tiveram o apoio do italiano Giuseppe Garibaldi, que declarou a República Juliana, em Laguna, Santa Catarina, e junto com Anita Garibaldi lutaria em se-guida pela uni�cação da Itália).

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Em nome da lei52

Mas a relação com a Guerra dos Farrapos só apareceu quando fomos apresentar a operação para o então diretor da Polícia Federal, Paulo

Lacerda, e para o superintendente em São Paulo, Jaber Saadi. Éramos esfarrapados, mas não podíamos dizer que o nome era uma alusão a

nossas condições de trabalho. Aí dissemos que a escolha se deu porque

Abadia ia muito para o Rio Grande do Sul e nos sentíamos revolucio-

nários, empenhados em mudar o combate ao trá�co. O diretor e o supe-

rintendente acharam ótima a história.

A importância da operação cresceu à medida em que se foi revelando a

atuação de Abadia no Brasil e a transformação do tra�cante em nosso

“Big Fish”, ainda sem nome porém. Passamos a receber apoio de toda

a estrutura da Polícia Federal. Operações deste tipo obtêm prioridade

sobre outras investigações. Abrem as portas de todos os departamentos

da polícia em todo o país.

Fui transferido para São Paulo para estar mais perto do olho do furacão,

uma vez que era lá a base do nosso peixão. Assumi a Delegacia de Re-

pressão a Entorpecentes da Polícia Federal de São Paulo, coordenando

as delegacias que cuidam de drogas no Estado, para poder montar uma

base e levar adiante a operação. Até então, em Curitiba, eu era coorde-

nador de operações especiais de fronteira da Região Sul. Passamos por

uma mudança fantástica: num dia estávamos em cinco num porão e no

outro éramos prioridade para a Polícia Federal.

A transferência para São Paulo aconteceu por tratar-se de uma situação

que exigia controle rígido, pois havia corrupção na polícia local. A partir

do que apuramos, o Ministério Público de São Paulo processou dois de-

legados da Polícia Civil paulista, um deles o próprio diretor do Denarc

(Departamento de Investigações sobre Narcóticos); e seis investigadores

da Polícia Civil. Também foram presos e condenados um agente da Polícia

Federal em Foz do Iguaçu, que ganhava dinheiro de Abadia para carimbar

os passaportes falsos, e um subo�cial da Força Aérea Brasileira que co-

mandava o aeroporto de Foz e dava cobertura aos vôos de André Barcellos.

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53Fernando Francischini

Em troca, Abadia comprava as passagens aéreas que precisava na agên-

cia de viagens da mulher desse subo�cial. Foi uma verdadeira limpeza

em São Paulo. Alguns já foram demitidos e os condenados pegaram, em

média, 10 anos de reclusão. Os delegados respondem ao processo afas-

tados do cargo. E os dois baseados em Foz do Iguaçu foram condenados

junto com Abadia, por corrupção.

Ao �m de investigações paralelas, a Corregedoria da Polícia Civil de São

Paulo indiciou outras 20 pessoas, sendo 17 policiais e três informantes

da polícia, os chamados gansos. Um dos policiais foi acusado de seques-

trar o piloto André Barcellos e exigir veículos importados como resgate.

Com os alvos da Operação Farrapos identi�cados, as diligências se in-

tensi�caram e obtivemos autorização judicial para quebrar os sigilos dos

investigados. Agora já contávamos com várias equipes. Todos os nomes

que apareciam nas investigações eram vigiados 24 horas por dia. Fica-

mos sabendo de tudo sobre Abadia e seus asseclas, menos os nomes

reais.

O esquema de Abadia era bastante complexo e muito organizado. O

grupo usava tecnologia de comunicação internacional de difícil intercep-

tação, programas de conversa instantânea via computador tipo MSN

e Skype. Tinha conhecimentos para burlar técnicas de investigação

policial, como o uso de celulares em circuito fechado de pessoas com

constante mudança de números e aparelhos, e comunicação via telefones

públicos.

A quadrilha tinha grande facilidade para obter documentos falsos, ad-

quirir bens em nome de terceiros e sempre demonstrou ter muitos re-

cursos �nanceiros. Nunca economizou na montagem da estratégia de

vida e de fuga de Abadia, comprando veículos caros e motos de grande

cilindrada, alugando mansões e apartamentos de alto luxo, e até adqui-

rindo fazendas.

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Em nome da lei54

Outros frutos

A Operação Farrapos deu ainda muitos frutos depois da prisão de Chu-

peta. Mesmo antes havia permitido a localização das três casas na Co-

lômbia. E logo depois, também na Colômbia, foi preso outro chefão do

Cartel del Norte del Valle, Diego Montoya, conhecido como Don Die-

go, o senhor da guerra. A polícia o prendeu numa casa abandonada, com

base em informações fornecidas por Abadia. A cúpula do cartel estava

sendo desmantelada. Luis Hernando Gómez Bustamante, o Rasguño

(“Arranhão”), havia sido capturado em Cuba em julho de 2004.

A prisão de Abadia desencadeou prisões também em outros lugares do

mundo. A DEA, até hoje, cita a Operação Farrapos nos relatórios in-

ternacionais como referência, porque não se tratou apenas da prisão de

alguém que passava na rua, com um mandado de prisão. Teve a inteli-

gência de identi�car os membros da quadrilha, mapear os bens e reunir

informações de muitos países.

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55Fernando Francischini

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Em nome da lei56

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57Fernando Francischini

Às vésperas do Ano Novo de 2007, Abadia tentou fazer um acordo de delação premiada, porque tinha medo de morrer nos presídios brasi-leiros. Em troca da rápida extradição, propôs entregar US$ 35 milhões em notas de dólares e euros ainda escondidos no Brasil, revelar o nome de mais três comparsas com mandado de prisão expedido pelos Esta-dos Unidos; portanto, seriam peixes grandes. E daria o nome de um brasileiro que não fora preso, que era o encarregado pelos aviões. Seria um ótimo acordo para nós em troca da extradição, que seria concedida de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde. O tra�cante reivindicou também o abrandamento da pena da mulher, Yessica.

O juiz de primeira instância não levou em conta o pedido, mas juntou o documento ao processo de extradição. O Supremo Tribunal Federal (STF) e a Secretaria Nacional de Justiça ainda poderiam ter concordado com a negociação no momento em que autorizaram a extradição. Mas ignoraram totalmente os termos. Por conta da lei brasileira, os minis-tros da Corte concederam a extradição com a condição de que o governo norte-americano assumisse o compromisso de converter uma eventual pena perpétua ou mesmo de morte em uma pena máxima de 30 anos. Outra condição era o desconto, na pena, do tempo já cumprido no Brasil.

Isso é o que prevê a legislação brasileira e também jurisprudência forma-da no STF. Assim, o governo brasileiro está impedido juridicamente de extraditar qualquer criminoso para um país em que ele seja condenado à pena de morte ou à prisão perpétua. O STF autorizou a extradição do tra�cante em 13 de março de 2008. Mas só soubemos do �nal do processo pela imprensa. Numa sexta-feira à tarde, um repórter telefonou contando que Abadia seria embarcado para os Estados Unidos no dia seguinte.

O secretário nacional de Justiça deu parecer favorável à extradição sem levar em consideração o que podia ser obtido com o acordo negocia-do. Perdemos o dinheiro, três tra�cantes internacionais e um brasileiro. Que pena! Espero que o “esquecimento” brasileiro seja corrigido com informações obtidas nos Estados Unidos.

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Em nome da lei58

Nós abrimos mão dos US$ 5 milhões oferecidos como recompensa,

porque a PF é um órgão constitucional do governo brasileiro e tem por

obrigação prender tra�cantes e criminosos internacionais. Pedimos en-

tão que os Estados Unidos incluíssem esse valor no acordo que existe

entre os dois países, que prevê o repasse de recursos para a PF.

No começo de 2009 soubemos de outro fato também muito mal expli-

cado. Um homem preso pela posse de 60 comprimidos de ecstasy estava

encarcerado já há quase um ano no Centro de Detenção Provisória Pi-

nheiros 2, em São Paulo, e só então foi levado diante de um juiz. Não

havia relação com a nossa operação, mas soubemos que o preso esteve

sob os cuidados do Denarc em São Paulo.

O tal homem que se dizia mineiro foi levado à presença do juiz possivel-

mente por uma equipe policial que não tinha conhecimento de algum

acordo. Quando o juiz lhe perguntou o nome, a resposta soou num forte

sotaque espanhol: “Mi nombre es Manoel de Oliveira Ortiz, soy minei-

ro de Borda da Mata”. O juiz, é claro, descon�ou e pediu que a Interpol

investigasse o caso. Soube-se então que se tratava de Ramon Manuel Ye-

pes Penagos, conhecido como El Negro, que também usava a identidade

de Carlos Ruiz Santamaría.

El Negro revelou ao juiz ter pago R$ 1 milhão em propinas a policiais para

manter em segredo a identidade colombiana. Ele era o contador de Juan

Carlos Abadia que estava cuidando dos US$ 35 milhões oferecidos pelo

tra�cante na proposta de delação premiada e era acusado pelo envio de 13

toneladas de cocaína para a Espanha. Ele contou que depois da extradição

de Abadia, um grupo de colombianos foi contratado para levar o dinheiro,

em notas de euros, de volta à Colômbia, para entregar de volta ao cartel.

Cada pessoa, chamada de mula, levava E$ 1,5 milhão em pacotes de E$

50 mil grudados ao corpo. Apenas duas mulas foram presas ao chega-

rem ao aeroporto de Bogotá.

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59Fernando Francischini

A condenação

Por formação de quadrilha, corrupção ativa, lavagem de dinheiro e uso

de documentos falsos, Juan Carlos Ramírez Abadia foi condenado a 30 anos de reclusão e ao pagamento de R$ 4,3 milhões. Sua mulher, Yessica Paola Roja Morales, que está presa em São Paulo, recebeu a condenação

de 11 anos de reclusão e multa de R$ 1,37 milhão por falsi�cação, uso

de documentos falsos, lavagem de dinheiro e associação ao trá�co.

Outras dez pessoas também foram condenadas pelo juiz Fausto Martin

de Sanctis, da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, que era contrário

à extradição do tra�cante. O piloto André Luiz Telles Barcellos recebeu

a pena de 23,6 anos de reclusão e pagamento de R$ 2,4 milhões; Da-niel Brás Maróstica e Ana Maria Stein foram condenados a 6,3 anos de reclusão, mais o pagamento de R$ 535,8 mil. Victor Garcia Verano e

Aline Nunes Prado receberam a pena de 7,6 anos de reclusão, mais o pa-

gamento de R$ 644,1 mil; Jaime Hernando Martinez Verano também

foi condenado a reclusão por 7,6 anos e R$ 42,94 mil de multa.

A condenação atingiu ainda Ângelo Reinaldo Fernandes Cassol com a pena de 9,2 anos de reclusão e pagamento de R$ 19 mil; Adilson So-

ares da Silva à pena de 9,4 anos de reclusão e pagamento de R$19,38

mil; Eliseo Almeida Machado a três anos de reclusão; e Antonio Marcos

Ayres Fonseca a quatro anos de reclusão.

Meio ano depois, caía na Colômbia o quarto e último chefão do Cartel del Valle del Norte. Em fevereiro de 2008, Wilber Varela, o Jabón, por

quem o governo dos Estados Unidos também oferecia US$ 5 milhões,

foi assassinado na Venezuela. O corpo foi encontrado crivado de balas

num hotel próximo à cidade de Mérida. O capo era procurado por seis

acusações de narcotrá�co e teria sido executado por alguns de seus pró-

prios homens, a mando de Carlos Mario Jimenez, o Macaco, um dos

líderes das forças paramilitares colombianas.

A partir do desmantelamento do Cartel del Valle del Norte, pequenos

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Em nome da lei60

tra�cantes tomaram conta do narcotrá�co na Colômbia. Não se formou

outro grande cartel, mas no fundo a situação ainda é a mesma. Entre os

“pequenos” chefes que, segundo a polícia colombiana, antes pertenciam

ao segundo escalão do Norte del Valle, estão Daniel Barrera (El Loco);

Carlos Alberto Rentería (Beto Rentería); Néstor Ramón Caro Chapar-

ro (Felipe); Daniel Rendón Herrera (Don Mario), Fredy Rendón Her-

rera (El Alemán), Pedro Guerrero Castillo, o Cuchillo; Luis Henrique

Calle Serna (Comba); e Diego Pérez Henao (Diego Rastrojo).

Hoje, os grandes cartéis são mexicanos, com base principalmente em

Ciudad Juárez, na fronteira com os Estados Unidos, na região de El

Paso (Texas). Autoridades mexicanas consideram Ciudad Juárez uma

das mais violentas cidades do mundo, com 2,7 mil assassinatos ligados

ao trá�co de drogas na cidade apenas em 2009.

Bastante reduzido, o grupo de Abadia encontrou um novo chefe apenas

uma semana depois da prisão do capo.

Os grupos daquela região têm fortes ligações com os cartéis mexicanos,

que assumiram o papel antes desempenhado pelos colombianos. São os

novos “barões” do narcotrá�co, com tudo que isso implica em venda de

drogas em praticamente todo o mundo; e em barbárie e crueldade. E a

Colômbia segue sendo o maior produtor de cocaína do planeta.

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61

A história

Juan Carlos Ramírez Abadia tinha 44 anos quando foi preso em São

Paulo na Operação Farrapos. Sua vida de crimes havia começado aos

19 anos, quando a paixão por cavalos o levou a trabalhar no haras de

Ivan Urdinola Grajales, empresário colombiano instalado em Cali cria-

dor puros-sangues árabes e ingleses. (Mais tarde, Urdinola seria assassinado com veneno na prisão).

A localização do haras não era por acaso. A verdadeira fonte de renda do

patrão de Abadia era o trá�co de drogas. Nessa época, Abadia conheceu

também os irmãos Miguel e Gilberto Rodríguez Orejuela, de quem se

tornou discípulo aplicado. Os irmãos eram os barões das drogas do Cartel

de Cali ao lado de José Santacruz Lodoño. O cartel controlava as planta-

ções na região do Vale do Rio Cauca, produzia, distribuía e vendia a droga.

Depois da queda do Cartel de Medellín, com a morte de Pablo Escobar, o

Cartel de Cali aumentara seu poder e chegou a controlar 80% da produ-

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Em nome da lei62

ção e exportação de cocaína da Colômbia, faturando US$ 7 bilhões por

ano. O cartel, porém, não demorou a ruir por conta da nova política de

enfrentamento do governo colombiano com apoio dos Estados Unidos.

Abadia tinha posição de pouca importância no Cartel de Cali e conse-

guiu sobreviver à débâcle. Transferiu-se então para o Cartel del Norte

del Valle, que �orescia mais ao Norte do Vale do Rio Cauca. Ali, Abadia

cresceu rapidamente e granjeou fama internacional pela grande capaci-

dade de organização da estrutura do trá�co e pelos métodos violentos

que usava, servindo-se de crueldade jamais imaginada antes.

Ele foi responsável por um verdadeiro banho de sangue. Ao contrário

dos antigos cartéis, no Norte del Valle ocorreram massacres internos e

mortes isoladas atribuídas a disputas no seio da organização. Questões

internas eram resolvidas à bala e eram frequentes os assassinatos entre

parceiros. Apesar da prática local da violência ser comum, Abadia con-

seguiu levá-la a extremos. A polícia da Colômbia contabiliza em milha-

res as mortes daquele período – os anos 90/2000. Foi o perigo interno

crescente que teria levado Abadia a procurar um novo endereço para

reerguer seu império de drogas e outros crimes.

O tra�cante havia sido preso antes, na Colômbia, quando cumpriu parte

da pena de 24 anos de prisão. Naquela ocasião, Abadia se entregara à

polícia junto com o amigo Juan Carlos Ortiz Escobar, conhecido por

Cuchilla, para bene�ciar-se de leis que ofereciam redução de pena a

quem se entregasse e se declarasse culpado.

Naquela época, Abadia confessou à polícia colombiana ter enviado 30

toneladas de cocaína aos Estados Unidos. O relatório da Interpol falava

em 500 mil quilos que teriam entrado nos país passando pelo México.

Mais tarde, o montante do contrabando de droga feito por Juan Carlos

Abadia foi calculado em mil toneladas.

Os dois parceiros no crime cumpriram quatro anos da pena e foram

libertados em 2000. Poucos dias depois Cuchilla foi assassinado. O

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63Fernando Francischini

crime foi atribuído a Wilber Varela, o novo parceiro de Chupeta. Outro assassinato interno com muitas sombras em sua explicação.

Já no Cartel del Norte del Valle, Abadia fez carreira rápida, voltado para

o mercado norte-americano, estabelecendo as bases para distribuição de cocaína e heroína em Nova York. Outros dois chefões, Luis Hernando

Gómez Bustamante, o Rasguño (Arranhão), e Wilber Varela, o Jabón,

se dedicavam ao mercado europeu. A divisão de negócios e do poder

Abadia: rotina de cirurgias plásticas e tatuagens

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Em nome da lei64

seguia um modelo diferente de cartéis tradicionais onde um único e po-

deroso capo reinava sobre toda a organização. Autoridades avaliam, no

entanto, que a divisão de poder muito contribuiu para minar o novo

cartel.

Chupeta �cou apenas seis meses em liberdade. Teve que voltar à clan-

destinidade quando uma corte de Washington emitiu ordem de captura

contra ele. E ofereceu US$ 5 milhões em recompensa a quem desse in-

formações que levassem à sua prisão. A acusação citava narcotrá�co no

Colorado, em 1994; e no Distrito Leste de Nova York em 1995 e em

2004.

Na divulgação do rosto e de informações sobre o tra�cante procurado, a

DEA listou uma série de apelidos usados por Abadia, além de Chupeta,

como era mais conhecido na Colômbia: Cien, Don Augusto, El Patron,

Gustavo Ortiz e Charlie Pareja.

Marcelo Javier Unzue A última identificação falsa

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65Fernando Francischini

Na época, ao se sentir cercado, Chupeta usou de um estratagema sórdi-

do: espalhou o boato da própria morte. Com isso imaginava tirar a polí-

cia de seu encalço, talvez por um bom tempo. Abadia chegou a usar um

o�cial do exército colombiano recrutado pelo chefão Diego Montoya,

Don Diego, que passou informações de onde poderia ser encontrado o

suposto cadáver.

Abadia também esteve perto de ser capturado em 2006, mas escapou

por pouco em função de um deslize da polícia argentina. Depois, foi

muito procurado no Paraguai, no Uruguai e, por �m, informes davam

conta que Abadia poderia estar em Tijuana (México). Chupeta tinha

bons contatos com bandidos mexicanos desde os tempos do Cartel Cali.

Por indicação de um dos chefões, Hélmer Herrera, o Pacho, Abadia ha-

via feito os primeiros contatos com os tra�cantes mexicanos. Pacho foi

assassinado em outubro de 1998 em meio a uma sangrenta guerra entre

má�as.

Oportunidades para seguir outra vida, no entanto, não faltaram ao jo-

vem Abadia, nascido em 16 de fevereiro de 1963, em Palmira, na Co-

lômbia. Foi um jovem de classe média, sem problemas �nanceiros, for-

mado em engenharia numa universidade de Bogotá, mas conhecido por

ser um mau estudante. Ou um estudante pouco dedicado.

O problema é que o exemplo estava em casa. O que talvez explique como

um homem apelidado Chupeta tenha conseguido alcançar posição de

comando no trá�co internacional num mercado disputado não apenas

pelos demais cartéis colombianos, mas também pela Cosa Nostra italia-

na, os chineses e as má�as russas.

Juan Carlos Ramírez Abadia é o único �lho de Osmar Ramírez e Car-

men Alicia Abadia, de classe média, que também faziam parte da orga-

nização criminosa. Eles atuavam como testas de ferro do narcotrá�co,

escondendo-se sob a fachada de um negócio de medicamentos, a Dis-

Drogas. O casal pretendia que o �lho assumisse os negócios da família,

mas aquilo era muito modesto para o ambicioso Abadia.

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Em nome da lei66

Abadia é mesmo engenhoso e uma inteligência usada para o mal. Chegou

a idealizar pequenos submarinos para fazer a travessia entre a Colôm-

bia e o México. Apesar de rudimentares, os submarinos transportavam

quatro toneladas de drogas. Navegando a cinco metros da superfície, os

submarinos chegavam à costa mexicana sem serem descobertos pelas

patrulhas marítimas. A primeira viagem do submarino teve no comando

o próprio Abadia, que acabou por desenvolver uma pequena frota.

Cauca

A ocupação habitacional do Vale do Cauca é bastante recente – data do

�nal do século 19. Interessado em tomar posse efetiva e marcar presença

naquela parte do território da Colômbia, o governo incentivou a migra-

ção. E para lá foram presidiários bene�ciados por redução de pena para

trabalhar a terra; outros presidiários foram levados para fazer trabalhos

forçados e acabaram �cando por lá como agricultores.

O trá�co de drogas começou cedo e a região �cou marcada pela violência

registrada desde o início do século 20. A lei do silêncio, os sequestros e

mortes de jornalistas passaram a fazer parte da rotina local. Os chefões

Diego Leon Montoya, Luís Hernando Gómez e Wilber Varela já ha-

viam se deslocado mais para o Norte daquela região quando Juan Carlos

Ramírez Abadia se juntou a eles, formando a cúpula do Cartel del Norte

del Valle.

O cartel se movimentava depois da queda do Cartel de Cali. Mas en-

controu já instalados pequenos cartéis regionais que disputavam entre si

o controle do comércio e das rotas de envio de droga desprezadas pelos

chefões do narcotrá�co. Assim, a violência se intensi�cou ainda mais.

O novo cartel chegava com vantagens, pois já contava com a facilida-

de do domínio de rotas e contatos internacionais de há muito usados

por antigos barões da droga. E os novos chefões buscaram arduamente

permanecer no anonimato. Perceberam que publicidade era contrapro-

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67Fernando Francischini

ducente. Não queriam repetir os erros de Pablo Escobar, por exemplo,

o primeiro chefão a obter fama internacional. Escobar fazia o tipo do

bandido romântico, gostava de ter Medellín a seus pés, o que conseguia

por meio da distribuição de dinheiro e da assistência à comunidade de

uma forma que ela nunca fora assistida pelo governo. Ele foi quase um

herói em Medellín. Mas os quatro chefões do Norte del Valle lutavam

pela tranquilidade do anonimato. Quanto menos aparecessem, melhor.

Mas a ambição é mais forte. De acordo com as autoridades colombianas,

as disputas entre os chefões do Cartel del Norte del Valle começaram

com os planos de Varela para afastar Don Diego e Rasguño. Um de-

talhe: Varela já era acusado de assassinar Cuchilla, o amigo de Abadia,

provavelmente com a anuência deste. A guerra entre as quadrilhas au-

mentou e, a partir de 2000, envolveria também grupos paramilitares em

uma onda de violência inédita no Norte do Valle del Cauca. O banho

de sangue assumiu proporções épicas com a contribuição de Chupeta.

Abadia trouxe ao Brasil sua terceira mulher, Yessica Paola Roja Morales,

que ele conheceu em 2001 em Cartagena, quando ela tinha 19 anos e

trabalhava como modelo. Os dois passaram muito tempo na Venezuela

antes de virem para o Brasil. O casal jamais viajava junto; seguiam sem-

pre rotas diferentes. Apesar disso, Abadia disse em seu depoimento que

Yessica não sabia do pedido de extradição que pesava sobre ele, pois, “na

Colômbia, não explicamos esses problemas para mulheres porque elas

�cam nervosas!”

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69

A investigação

O trabalho de um delegado da Polícia Federal está longe de se asse-

melhar aos famosos personagens da literatura policial. O charme do

elegante Arsène Lupin certamente foi desenhado para o encanto dos

leitores; um Sherlock Holmes, altamente racional e dedutivo, porém, se

aproxima mais da realidade.

Mas um Sherlock acrescido de um James Bond tecnológico, capaz de

usar uma imensa gama de parafernálias eletrônicas hoje à disposição das

investigações. Um caso como o que resultou na prisão de Juan Carlos

Ramírez Abadia só foi possível com o uso de meios como a vigilância

eletrônica, equipamentos para comparação antropométrica e para des-

vendar mensagens criptografadas ou em sistema de Camou�age; inter-

ceptação telefônica e na internet; e análise de Extratos e ERBs – Esta-

ções Radio Base (antenas de telefonia celular).

Na recuperação de altas somas em dinheiro e dos muitos bens do tra-

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Em nome da lei70

�cante foi usado equipamento para escanear paredes, por exemplo, tra-

zido pela equipe norte-americana que se juntou à Polícia Federal brasi-

leira, num esquema de cooperação internacional que incluiu também a Espanha, Argentina, Uruguai e Colômbia.

Mas que ninguém se iluda sobre aspecto aventuresco de uma investi-gação. Esses casos costumam levar anos para serem deslindados e, mais que tudo, exigem paciência de Jó aos policiais. É preciso ter controle absoluto da ansiedade e da tentação do impulso irracional.

“Qual cão de caçador, sagaz e ardido”, descreveu Luiz de Camões na obra “Os Lusíadas”. Pois é como um cão farejador, arguto e capaz de perceber com rapidez as coisas mais sutis, que a Polícia Federal chega a bandidos internacionais da estatura de Abadia. No �nal, porém, também resu-mem análises interessantes, acontecimentos curiosos e, principalmente, raciocínio frio com deduções precisas, decorrentes da experiência e da mais aguda observação do gênero humano.

Antes de tudo, é preciso ter método. Os crimes não mudam desde que o mundo é mundo; o que muda é a forma de cometê-los. A tecnologia apenas criou novas armas para que fossem cometidos velhos crimes. Os crimes, muitas vezes perpetrados “de longe”, pela internet ou por outra via oferecida pela parafernália eletrônica disponível nos dias de hoje, exi-gem um tipo de detetive melhor preparado tecnicamente.

A solução, no entanto, ainda depende do raciocínio lógico, dedutivo, cheio de argúcia e todos os demais adjetivos que se apliquem a quem é capaz de desatar nós de crimes cibernéticos complicados ou intrigas das mais so�s-ticadas. E da interpretação de pequenos sinais. Como antes. E como antes ainda é verdadeiro o conselho de Sherlock Holmes ao amigo Watson: “Não despreze absolutamente nada, por mais insigni�cante que pareça”.

O lado pesado de uma investigação, como a do trá�co internacional de drogas, é a necessidade de sangue frio para entrar em contato com um mundo de barbárie. Um espaço cheio de rami�cações com linguagem e

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71Fernando Francischini

códigos de conduta próprios, onde a simpli�cação maniqueísta do bem

e do mal, que grassa na sociedade de hoje, encontra sua maior expressão.

A opção de Juan Carlos Abadia pelo Brasil para implantar um novo cen-

tro de operações não se deu por acaso. Foi feita após consultas a diversos

amigos do submundo do crime, dos quais muitos já operavam no país.

As vantagens, segundo eles, eram muitas: as dimensões do território

permitiam a montagem de um sistema de células de negócios – modelo

adotado pelo capo colombiano – em cidades bem distantes entre si, mas

dotadas de e�ciente estrutura de comunicações.

A geogra�a também ajudava. Com 17 mil quilômetros de fronteira seca,

o Brasil faz vizinhança com todos os países produtores de drogas da

América Latina – Paraguai, Bolívia, Peru e a própria Colômbia. Melhor

ainda para o negócio dos narcotra�cantes, essas fronteiras são esparsa-

mente povoadas e, por isso mesmo, pouco policiadas. Além disso, como

a maior economia do continente, o Brasil mantém intenso intercâmbio

de carga e pessoas com os Estados Unidos e a Europa – os principais

centros consumidores de drogas do planeta.

As informações recebidas por Abadia batiam com os dados da Drug

Enforcement Administration (DEA), a agência de combate às drogas

do governo dos Estados Unidos, sobre o mercado brasileiro para drogas

ilícitas. Nas estatísticas dos norte-americanos, o país é um importante

corredor do narcotrá�co para o abastecimento do continente europeu e,

em menor escala, da América do Norte. O volume de drogas que tran-

sita pelo território brasileiro, aliado ao tamanho do seu mercado con-

sumidor, transformou o Brasil no segundo maior usuário mundial de

cocaína, só atrás dos Estados Unidos.

No último relatório sobre o Brasil, divulgado em 2009, a DEA reco-

nhece que o país reforçou a cooperação com os Estados Unidos e seus

vizinhos no combate ao trá�co de drogas. Apesar disso, alerta que os

esforços para controlar o trá�co vindo da Bolívia, a principal fonte de

cocaína para o Brasil, ainda eram limitados:

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Em nome da lei72

O Brasil é um importante país de trânsito para o hidrocloreto de cocaína (HCl) e um destino signi�cativo para base de cocaína e outros deriva-dos de cocaína, por exemplo drogas assemelhadas ao crack consumidas localmente.(...) O HCl que entra no Brasil muitas vezes é reembarcado para a Europa via África. Ainda que o Brasil cultive pequenas quan-tidades de maconha de baixa qualidade, a maior parte da maconha de potência mais alta consumida no país vem do Paraguai.

Para maior preocupação da sociedade, o relatório aponta a participação de quadrilhas brasileiras no negócio do trá�co:

As autoridades brasileiras constataram envolvimento crescente do PCC, em São Paulo, e do CV, no Rio de Janeiro, em trá�co de armas e nar-cóticos. Essas gangues criminosas têm uma presença internacional cada vez maior em lugares como Bolívia, Paraguai e possivelmente Portugal, bem como elos internacionais crescentes com tra�cantes colombianos e mexicanos.

Na avaliação dos norte-americanos, as dimensões do território brasilei-

ro tornam o país dependente de operações conjuntas, unindo os serviços

de informações de diferentes países, para controlar o trá�co internacio-nal de drogas e outras mercadorias ilícitas.

Carências que levaram o Brasil a aderir à Convenção da ONU sobre as Drogas em 1991. O país já era signatário da Convenção contra o Crime Organizado Internacional da ONU, de 1971, bem como de seus três protocolos, e da Convenção da ONU Contra a Corrupção e da Con-venção sobre Substâncias Psicotrópicas. O Brasil é signatário, ainda, da

Convenção Interamericana Contra a Corrupção, da Convenção Intera-

mericana de Assistência Mútua em Assuntos Criminais, da Convenção

Interamericana Contra o Terrorismo e da Convenção Interamericana

Contra o Trá�co de Armas de Fogo Ilegais.

Acordos bilaterais baseados na Constituição de 1988 formam a base para a cooperação no combate a narcóticos entre o Brasil e os Estados

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73Fernando Francischini

Unidos, e uma nova carta de acordo (LOA) foi assinada em agosto de

2008. Estados Unidos e Brasil assinaram também um tratado bilateral

de assistência legal mútua (MLAT), em 2001, e um acordo de assis-tência mútua em questões alfandegárias, em 2002. Por meio dele, es-sencialmente, os dois governos se comprometem a trocar informações para ajudar a prevenir, investigar e reprimir quaisquer violações das leis aplicáveis no Brasil e nos Estados Unidos:

Os programas bilaterais entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos

em 2008 incluíram treinamento básico e avançado de combate a nar-

cóticos a agentes do Departamento de Polícia Federal (DPF) e outras

forças policiais brasileiras; apoio a programas expandidos de detecção e

interdição de narcóticos nos portos e aeroportos brasileiros; elevação do

número e reforço da capacidade das Unidades Especiais de Investigação

do DPF e garantir um papel crescente em suas operações para a polícia

dos países colaboradores na região; auxiliar autoridades estaduais e lo-

cais no combate às gangues criminosas que controlam os narcóticos e o

trá�co de armas em suas jurisdições; ajudar as autoridades brasileiras

a combater a lavagem de dinheiro e outros crimes �nanceiros; e elevar o

apoio do governo norte-americano ao governo e ONGs brasileiros para

programas de prevenção e tratamento.

O Brasil também tem diversos acordos de controle de narcóticos ou ar-ranjos semelhantes com os vizinhos sul-americanos, com países euro-peus (especialmente Portugal, Espanha e Reino Unido) e com a África do Sul. E coopera, rotineiramente, com outros países quanto a crimes relacionados a narcóticos, além de participar do Programa de Controle de Drogas da ONU (UNDCP) e da Comissão de Controle de Abusos e Combate às Drogas da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Apesar de elogiar os esforços em cooperar com seus vizinhos, o relatório da DEA também reserva críticas, ainda que injustas, ao papel do Judi-ciário brasileiro, por considerá-lo excessivamente brando com os consu-midores de entorpecentes:

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Em nome da lei74

O sistema judicial (brasileiro) tem autoridade para tomar posse de ati-

vos (apreendidos) e a lei brasileira permite que esses ativos sejam com-

partilhados com outros países. Mas a lei brasileira de combate às drogas,

de 2006, que proíbe e penaliza o cultivo e o trá�co de drogas ilícitas,

também oferece considerável latitude de interpretação ao Judiciário, que

virtualmente descriminalizou a simples posse e consumo de pequenas

quantidades de drogas.

O relatório dos norte-americanos cita também dados do Departamento da Polícia Federal, situando na região Nordeste boa parte da produção brasileira de maconha, e que quantidades limitadas de base de cocaína, de Ecstasy e de produtos semelhantes ao crack processados no país se destinam primordialmente ao consumo interno.

Mas lembra, ainda com dados da Polícia Federal, que o Brasil é o maior fabricante de produtos químicos da América do Sul. A existência de mais de 25 mil companhias registradas para trabalhar com materiais químicos facilita o desvio de precursores químicos e/ou narcóticos.

O DPF executou diversas operações de repressão ao uso ilegal de produ-tos químicos em 2008, incluindo a apreensão de 20 toneladas em diver-sas empresas de Pernambuco, em setembro de 2008. O DPF também desmantelou uma organização criminosa em Minas Gerais responsável pelo desvio de toneladas de produtos químicos. Oito suspeitos foram detidos, com base em 13 mandados de busca. Adicionalmente, o DPF apreendeu e desmantelou o primeiro laboratório de ecstasy que viria a ser fechado no Brasil, infelizmente localizado na cidade de Pinhais, no Paraná.

A Polícia Federal mapeou o �uxo de drogas pelo território brasileiro. A cocaína que chega da Bolívia e a maconha vinda do Paraguai servem basicamente para consumo interno, enquanto que a cocaína de mais alta qualidade, da Colômbia e do Peru, passa pelo Brasil para ser exportada à Europa, via África. A droga parte de navios pelos portos de Suape (perto de Recife), Salvador e outros terminais do Nordeste, mas tam-

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75Fernando Francischini

bém pelo Porto de Santos, o maior do país, pelos portos do Paraná e de

Santa Catarina. Volumes signi�cativos são contrabandeados por meio

de transporte pessoal (mulas), em vôos internacionais originários prin-

cipalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Devido à Lei do Abate, que a partir de outubro de 2004, permite o uso

de força letal contra aviões não identi�cados, os narcotra�cantes pas-

saram a con�ar menos em vôos clandestinos de longa distância sobre

o Brasil. Apesar disso, a despeito do avanço na cooperação brasileira

com países vizinhos e no aumento do número de centros conjuntos de

informações ( JICs) operando em pontos estratégicos ao longo da fron-

teira brasileira, os tra�cantes de narcóticos continuam a explorar essas

regiões, vastas, pouco habitadas e difíceis de controlar, especialmente no

Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que fazem fronteira com a Bolívia,

e no Paraná, separado do Paraguai pelo Rio Paraná e pelo lago da Hi-

drelétrica de Itaipu. O mesmo relatório ainda aponta:

As drogas vêm �uindo em quantidades crescentes da Bolívia para o

Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul e para a cidade de Guaíra, no

Paraná, se tornou um dos principais pontos de entrada de armas, mu-

nições e drogas no Brasil. Gangues organizadas como o PCC e o CV

operam abertamente na cidade e um comitê de investigação estabelecido

pelo Congresso brasileiro reportou que o PCC está conduzindo vendas

de armas abertamente na área. O DPF não dispõe de recursos para

controlar com e�ciência as vastas regiões fronteiriças brasileiras, e outras

agências policiais não trataram devidamente desse problema. As Uni-

dades de Investigações Especiais (SIUs) do governo brasileiro e outras

operações de inteligência semelhantes ajudaram a melhorar um pouco a

situação na região Noroeste e propiciaram grandes melhoras aos esforços

nacionais de interdição. As SIUs agora são formadas rotineiramente

por agentes do DPF e da polícia de combate a narcóticos (CN) dos alia-

dos que cooperam com esses esforços, o que dá às unidades a capacidade

de antecipar e interditar embarques signi�cativos.

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Em nome da lei76

Mas o número de SIUs e sua capacidade operacional vem sendo in-

su�cientes para acompanhar o ritmo de avanço do trá�co de drogas.

Embora as atividades de combate às drogas no Brasil sejam executadas

por todos os níveis de governo, os sistemas con�áveis de coleta de dados

e as melhores estatísticas sobre apreensões são as mantidas pela Polícia

Federal.

Em resumo, na visão de Juan Carlos Abadia, o território brasileiro era gigantesco, com fronteiras imensas e mal vigiadas, um grande mercado consumidor de drogas e portos e aeroportos com tráfego intenso para os Estados Unidos, a África e o continente europeu. Tudo o que o narco-tra�cante poderia desejar para estabelecer a nova sede de seus negócios ilegais.

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O homem de US$ 1,8 bilhão

Alguém ainda se lembra do “Homem de 6 milhões de dólares”? Era uma

quantia fantástica na década de 1970, aplicada em tecnologia para dar

nova vida a um ex-astronauta gravemente ferido e mutilado. Pois o nos-

so homem, Juan Carlos Martínez Abadia, “valia” um tanto mais que isso:

US$ 1,8 bilhão. O valor corresponde apenas aos bens conhecidos e ao

dinheiro apreendido do tra�cante, num levantamento feito pelo governo

dos Estados Unidos.

Tal é o poder do trá�co de drogas. Numa vida praticamente curta –

Abadia estava com 44 anos quando foi preso e teve seus bens bloque-

ados – ele havia conseguido amealhar tal fortuna, descontando os al-

tíssimos custos da manutenção da estrutura, que chegou, segundo ele

mesmo, a US$ 5 milhões por mês.

Um homem com US$ 1,8 bilhão em patrimônio está entre os 500 mais

ricos em todo o mundo. Em todo o planeta. Seguindo a lista da revista

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Em nome da lei78

norte-americana Forbes dos homens mais ricos do mundo, Abadia seria

o número 556, num ranking que começa com o mexicano Carlos Slims, o rei da comunicação em boa parte do mundo, e Bill Gates, o criador da Microsoft.

O primeiro brasileiro a aparecer na lista da Forbes é o empresário Eike Batista, com US$ 27 bilhões em patrimônio. Só dois colombianos fre-quentam o ranking mundial, Julio Mario Santo Domingo, controlador de mais de 100 empresas espalhadas pelo mundo, na posição 123 (a �lha de Santo Domingo, Tatiana, é noiva do príncipe Andrea Casira-ghi, �lho de Caroline de Mônaco). O outro colombiano é o banqueiro e construtor Luis Carlos Sarmiento, na posição 135. Os dois colombianos têm bem mais que 70 anos. E provavelmente trabalharam a vida toda.

Há que se levar em conta, também, que Abadia não economizava. E tinha métodos estranhos. Comprava jatos por quantias entre R$ 10 e 15 milhões e os usava uma única vez. Depois da primeira viagem, os aviões que iam para o México ou para a África eram incendiados. A aeronave saía vazia do Brasil e rumava para a Venezuela, porque o presidente da-quele país, Hugo Chávez, acabou com o controle aéreo e com a coopera-ção internacional de combate às drogas na região.

Os aviões desciam na �oresta amazônica venezuelana sem controle al-gum, protegidos pelas Farc, que atravessaram a fronteira da Colômbia para a Venezuela e colocaram o país de Hugo Chávez numa situação ainda pior que a do vizinho. Em apenas uma das viagens, o avião de Abadia carregou três toneladas de cocaína na Venezuela. São dados como este que con�rmam que 90% da coca consumida no mundo sai da Colômbia, Peru e Bolívia, embora a Venezuela venha aumentando vertiginosamente sua participação.

O dinheiro que Abadia angariava com o trá�co de cocaína era retirado dos EUA pelo México e da Europa pela Espanha, e desses dois países era remetido a bancos sulamericanos. Aqui havia rami�cações das em-presas laranjas mantidas pelo tra�cante no Brasil para tornar legal o lu-

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79Fernando Francischini

cro obtido com a droga. Assim era lavado o dinheiro que manteve o luxo

do tra�cante e seus asseclas no Brasil. Além das 17 empresas de fachada em território brasileiro, o tesouro norte-americano apontou outras 23 na Colômbia.

Os números do trá�co são fantásticos, geram enriquecimento rápido para pessoas sem escrúpulos. Mas na outra ponta, observa-se a mais triste exploração. A folha da coca sempre é cultivada nas regiões mais pobres desses países andinos, pelos chamados cocaleiros. O problema é que, ao mesmo tempo em que a cocaína é extraída da folha da coca, a mesma folha faz parte dos hábitos tradicionais desses povos. É quase sagrada, com vários usos medicinais. É usada para fazer chá e masca-da depois de seca, especialmente para facilitar a respiração nas grandes altitudes que existem nesses países. Mas também serve para enganar o estômago dos que pouco têm para comer. São muitos milhares os cam-poneses que dependem do cultivo da coca para sobreviver.

O movimento dos cocaleiros é muito forte e organizado na Bolívia, a ponto de um dos seus líderes, Evo Morales, ter chegado à Presidência do país em 2002. Morales defende com unhas e dentes a chamada folha sa-grada e quer sua industrialização. Para isso ele negocia com os governos venezuelano e cubano. Mas, na prática, até agora Evo Morales nada fez para mudar a vida dessa gente que acaba servindo ao trá�co de drogas por completa falta de opção.

Teoricamente, a Bolívia permite o plantio e a distribuição da folha den-tro de margens estabelecidas em lei e até permitiu o aumento das terras destinadas ao plantio, exigência do movimento dos cocaleiros. Mas o fato é que tanto o governo da Bolívia, como os do Peru e do Equador, não se empenham em tirar os camponeses das mãos do trá�co.

Os únicos países que trabalham seriamente, onde existe enfrentamento com o trá�co, são a Colômbia e o Brasil. A Colômbia, pela presença dos norte-americanos, que têm lá bases militares e uma forte estrutura; e no Brasil porque hoje a Polícia Federal tem credibilidade. O salto de

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Em nome da lei80

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81Fernando Francischini

qualidade ocorreu nos últimos 15 anos, com investimentos em pesso-al, treinamento e tecnologia. Antigamente havia pouca estrutura para o combate às drogas, o trá�co dominava. Os colombianos consideravam o

Brasil uma terra de ninguém. Aliás, foi por isso que Juan Carlos Abadia

mudou-se para nosso país.

Por muito tempo bases do trá�co colombiano funcionaram no Brasil.

Além de menos problemas com a polícia, é mais conveniente exportar a

droga para todo o mundo tendo o Brasil como origem e não a Colômbia,

país muito visado. Os tra�cantes ainda usam muito Santos, Paranaguá

e Buenos Aires como portos de origem, porque são cidades de países

pací�cos, com credibilidade.

Recursos

O símbolo mais forte da Operação Farrapos foi o leilão dos bens do

maior tra�cante de drogas do mundo. Foi importantíssimo para mos-

trar que esses bens poderiam ser revertidos para o trabalho de preven-

ção ao uso de drogas e também para ações da própria Polícia Federal no

combate ao trá�co.

A apreensão das propriedades e outros bens levantou recursos em lei-

lões efetuados com autorização da Justiça. Recursos revertidos na pre-

venção ao uso de drogas, para o tratamento de dependentes químicos,

em treinamento e equipamento para aperfeiçoar a Polícia Federal e au-

mentar o número de operações contra o trá�co internacional.

O primeiro leilão vendeu os imóveis comprados por Juan Carlos Aba-

dia. Foram arrematados imóveis em Aldeia da Serra, na Grande São

Paulo, Angra dos Reis (RJ), Jurerê Internacional (SC), Guaíba (RS) e

Pouso Alegre (MG). Apenas essas vendas renderam R$ 5,44 milhões.

Dezoito veículos foram doados a instituições assistenciais.

Abadia tinha dinheiro escondido também em locais supostamente mais

seguros, ou menos suspeitos. Em notas de dólares e euros, R$ 3 mi-

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Em nome da lei82

lhões estavam enterrados na casa do pai do motorista Eliseo Almeida

Machado, que trabalhava para um dos colombianos que serviam como

testas de ferro a Abadia: Jaime Hernando Verano Garcia. O colombiano

morava em Campinas (SP) e, tanto ele como o motorista, foram presos

na mesma operação. Verano disse à polícia que pagava R$ 7 mil por mês

para o motorista esconder o dinheiro.

Os leilões das peças menores despertaram enorme curiosidade do pú-

blico. As pessoas �zeram longas �las para arrematar relógios, celulares,

televisores, aparelhos de som, trajes de grife, objetos de decoração e até

roupas íntimas do tra�cante e de sua mulher.

Entre eles havia móveis de design nada baratos. A cadeira Garden Egg,

uma cadeira à prova d’água do designer húngaro Peter Ghyczy, por

exemplo, estava em todos os cantos; o preço de mercado: cerca de R$

1,3 mil. Obras de artistas plásticos nacionais ajudavam na decoração da

casa de Abadia em São Paulo, entre elas, uma do modernista Antônio

Gomide. As obras foram encaminhadas a um museu. Na cozinha, rica-

mente equipada, outras peças de design, como copos da marca alemã

Ritzenho� (uma simples caneca para café pode custar US$ 40), que

foram vendidos a apenas R$ 15 cada.

Camisas e calças, de tamanho 40 ou 42, em quantidade capaz de lotar

uma sala do Jockey Club, revelaram um guarda-roupa so�sticado. As

peças eram praticamente todas importadas, de marcas como Hugo Boss

e Lacoste. Havia cerca de 170 pares de sapatos masculinos no tamanho

40 de Abadia, e outros 260 de sua mulher, que no bazar foram vendidos

a preços que variaram entre R$ 40 e R$ 70.

Os bens mais caros foram leiloados no dia seguinte, num evento fechado

por motivos de segurança. Da relação �zeram parte dois carros e duas

TVs de 61 polegadas e outros objetos de valor. Só com a venda dos cerca

de 100 relógios de Abadia foi arrecadado R$ 1 milhão. Por um deles

Abadia havia pago mais de R$ 200 mil.

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83Fernando Francischini

Em outra etapa, a Justiça Federal leiloou 71 itens, entre os quais se des-

tacava uma lancha Modelo Intermarine Azimut M520, de 2005, que

valia mais de R$ 2 milhões. Também estavam disponíveis outros reló-

gios de luxo, uma mania do tra�cante, de marcas como Cartier, Rolex,

Bulgari, Chopard, Mont Blanc, TAG Heuer, entre outras, com preços

que chegavam a quase R$ 110 mil. Os lances foram feitos virtualmente,

através do portal Leilão Eletrônico Judicial (LEJ), operado pelo Institu-

to Nacional de Qualidade Judiciária (INQJ).

Abadia vinha sofrendo perdas em suas propriedades já há algum tempo.

De uma só vez o governo colombiano havia bloqueado 40 propriedades

em Cali avaliadas em US$ 3,5 milhões. Em 2005, outras 91 proprie-

dades do tra�cante foram con�scadas em Cali e Armênia. Em janeiro

de 2007, já com informações levantadas pela Polícia Federal brasileira,

as autoridades colombianas apreenderam US$ 90 milhões que estavam

em pequenos contêineres escondidos, enterrados em casas de Ramírez

Abadia. Das paredes de uma humilde casa no bairro Prados del Norte

saltaram 1.309 lingotes de ouro.

No auge das apreensões na Colômbia, um ministro daquele país decla-

rou com muita propriedade: “Com este dinheiro os tra�cantes compram

fuzis, munição, sequestram, recrutam crianças, compram minas, preju-

dicam muito o povo colombiano, por isso temos que continuar esta luta

contra o narcotrá�co”.

Com a prisão do chefão, e de muitos asseclas, outros elos da corrente co-

meçaram a aparecer. Os primeiros bens apreendidos pareciam ser ape-

nas alguns trocados. Basta lembrar do megacon�sco feito pelo governo

colombiano 20 dias após a prisão de Abadia. Nunca é demais repetir:

foram 321 propriedades – prédios inteiros, fazendas, mansões e até uma

ilha no litoral de Cartagena, no Caribe, com um hotel 5 estrelas –, ava-

liadas em mais de US$ 400 milhões.

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Em nome da lei84

Uma curiosidade: em uma das mansões leiloadas as paredes foram des-

truídas pelo comprador que ingenuamente sonhava encontrar pilhas de

lingotes de ouro ou montanhas de dinheiro vivo escondidas pelo tra�-

cante. Mal sabia ele que a Polícia Federal já tinha efetuado busca seme-

lhante, mas com um moderno scanner de paredes fornecido pela DEA.

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Agosto, o mês do cachorro louco

Para não comprometer as investigações, costumam ser criadas histórias de cobertura quando uma ação precisa ser feita antes da prisão do inves-tigado. Alertado o bandido, há o risco de fuga e comprometimento de todo o trabalho já realizado. No caso de Abadia, a polícia colombiana estourou três esconderijos e apreendeu uma bolada de dinheiro em ja-neiro de 2007 a partir de informações repassadas do Brasil pela Ope-ração Farrapos. A Polícia Federal havia rastreado ligações do tra�cante para a Colômbia e chegado a endereços que pertenciam a Abadia.

A imprensa, no entanto, foi informada que as casas haviam sido locali-zadas por meio de carta de um informante para o presidente colombia-no, Álvaro Uribe. A carta realmente existiu, e embora não tenha sido a partir dela que os esconderijos foram localizados, serviu para que Aba-dia não percebesse que estava grampeado.

A carta foi enviada a Uribe em dezembro de 2006 por um homem

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Em nome da lei86

que se identi�cou como Raúl Mangosta. Ele se disse uma das pessoas

mais próximas de Abadia e explicava, com detalhes, o funcionamento

da complexa estrutura montada pelo tra�cante. Em oito páginas, mui-

tas vezes fantasiosas, o informante dizia que Chupeta tinha comparsas

in�ltrados no exército colombiano, no departamento de segurança do

país, na polícia, na Fiscalía (Ministério Público da Colômbia) e até na

norte-americana DEA.

O informante nomeou algumas dessas pessoas apenas pelo primeiro

nome ou pelo apelido. Um deles exerceria in�uência em vários serviços

de informações tanto da Colômbia como dos Estados Unidos. Em Bo-

gotá, outra pessoa tinha um parente que era funcionário da DEA. Man-

gosta entregou ainda três escritórios de cobrança que serviam a Abadia,

um deles che�ado por um ex-membro do Gaula (Grupo de Ação Uni�-

cada para a Libertação de Pessoas) da polícia. Outro grupo de doze pes-

soas, che�ado por um ex-policial, teria a única incumbência de localizar

colaboradores de Víctor Patiño, considerado traidor de Abadia.

Mangosta conta que Abadia estava diminuindo o número de proprie-

dades para deixar mais leve a organização, por isso tanto dinheiro foi

encontrado na Colômbia e no Brasil. Grande parte do dinheiro foi in-

vestida na compra de euros; outra parte, em dólares, estava escondida

em buracos e paredes para garantir o futuro da família de Abadia, inclu-

sive suas duas ex-mulheres. Na época da carta, Abadia teria escondida

a quantia de US$ 150 milhões e E$ 50 milhões. Em um desses escon-

derijos estaria a coleção de relógios e objetos de ourivesaria de Chupeta.

Com a carta, a polícia localizou um escritório de advocacia que cuidava

dos interesses de Chupeta e era a cabeça de lança da penetração do tra�-

cante nos círculos judiciais. O escritório era comandado por uma pessoa

que seria o responsável pelas propinas pagas a funcionários da Fiscalía

para mexerem nos processos contra Abadia. Naquele momento, cuida-

vam especialmente dos processos contra as ex-mulheres de Chupeta,

que deveriam ser retiradas do país porque o cerco estava se fechando.

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87Fernando Francischini

Complô

Juan Carlos Ramírez Abadia foi extraditado para os Estados Unidos no

dia 22 de agosto de 2008. Ele saiu de Campo Grande, no Mato Grosso

do Sul, onde havia chegado um ano antes, no �nal da tarde de 11 de

agosto de 2007. Tanto na chegada como na saída, Chupeta tinha os pés

e mãos algemados e usava colete à prova de bala. Era protegido por es-

colta de 36 agentes fortemente armados. Todo cuidado era pouco, por-

que não seria de estranhar se comparsas do tra�cante tentassem alguma

coisa para libertá-lo.

O tra�cante passou aquele ano na Penitenciária Federal inaugurada

menos de um ano antes para abrigar até 208 criminosos de alta pericu-

losidade. Na mesma prisão e na mesma época, estava o tra�cante Luiz

Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar. Equipamentos de segu-

rança de última geração, 200 câmeras de vídeo, aparelhos de Raios-X e

de impressão digital, detectores de metais de alta tecnologia estão ins-

talados para impedir fugas. Presos no Regime Disciplinar Diferenciado

(RDD), como Abadia, são isolados totalmente dos demais detentos.

Embora todas as celas sejam individuais e delas os presos não saem nem

para tomar banho de sol – há uma clarabóia para a entrada de luz –,

Chupeta e Beira-Mar conseguiram se comunicar por meio de seus advo-

gados. A Polícia Federal recebeu informes que os dois tra�cantes teriam

planejado sequestrar um dos �lhos do presidente Luiz Inácio Lula da

Silva, Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha. Ele seria levado para a Co-

lômbia e entregue aos cuidados das Farc. A idéia era pedir a libertação

de Abadia e Beira-Mar em troca de Lulinha. Boatos contavam com a

participação de outros bandidos nesta ação, do porte de José Reinaldo

Girotti (Alemão), autor intelectual do assalto ao Banco Central de For-

taleza, em 2005, que levou R$ 164,7 milhões; e João Paulo Barbosa, um

dos chefões do Primeiro Comando da Capital (PCC).

Lulinha trabalhava como preparador físico do Corinthians e viajava

constantemente com as equipes. Em 2008 quando o time brasileiro jo-

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Em nome da lei88

gou com o Independiente Medellín, pela Copa Libertadores da América.

O governo colombiano montou um esquema especial de segurança para proteger Lulinha e o jogador Ronaldo Fenômeno. A delegação brasileira

era protegida desde a chegada ao aeroporto por uma escolta de motos,

carros e militares fortemente armados. O percurso só era de�nido na

última hora, sem divulgação para a imprensa.

Agosto

Se Chupeta acredita em coincidências ou desígnio dos astros, deveria

estudar bem o mês de agosto. O colombiano desembarcou no Brasil

num mês de agosto, foi preso em agosto e extraditado também num mês de agosto, o mês das superstições que rimam com desgosto. Pelo menos em relação ao Brasil, o mês não trouxe notícias agradáveis ao tra�cante. E como dizem os espanhóis, “Yo no creo en brujarias; pero que las hay, las hay” (não creio em bruxarias, mas que existem, existem).

Con�nado numa prisão de segurança máxima nos Estados Unidos,

O desembarque nos Estados Unidos

extraditado em agosto de 2008

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Abadia deve permanecer preso até os 75 anos. Se estiver vivo e ganhar a liberdade, não deverá enfrentar problemas econômicos. Os cartéis fun-

cionam como as má�as, nunca esquecem os seus. No caso de não encon-

trar os velhos companheiros, Abadia ainda poderá contar com muito di-

nheiro que continua escondido na Colômbia. Desde que alguém espere

30 anos para devolvê-lo.

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Os depoimentos

O juiz Fausto Martin de Sanctis, da 6ª Vara Criminal Federal de São

Paulo, julgando denúncia formulada pela Procuradora da República,

�améa Danelon Valiengo, condenou Juan Carlos Ramírez Abadia a

30 anos de prisão por formação de quadrilha, corrupção ativa, lavagem

de dinheiro e uso de documentos falsos. Na sentença, o juiz descreve

como funcionava a organização criminosa e traça o per�l psicológico de

Abadia.

Alguns trechos:

Comprovou-se que Juan Carlos Ramírez Abadia, após julho de 2004,

direcionou seus negócios no Brasil notadamente para aquisição de imó-

veis, veículos e outros objetos com utilização de valores decorrentes do

narcotrá�co perpetrado a partir da Colômbia. Para tanto, e com vistas

a dissimular a propriedade, registrou seus bens em nomes de terceiros.

Trata-se de criminoso pro�ssional, fazendo do delito o seu modo de vida.

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Em nome da lei92

Todo o seu patrimônio, mesmo aquele trazido ao Brasil e aqui investido

com identidade falsa, somente deve ser considerado produto ou provei-

to do crime, de tal forma não ser necessário, neste contexto, rastrear a

origem de cada bem de seu patrimônio para vinculá-lo a um especí�co

crime de trá�co, o que, aliás, seria tarefa extremamente árdua e prati-

camente impossível.

Não se tem notícia de realização de qualquer atividade lícita que jus-

ti�casse o patrimônio do indiciado. Ao contrário, toda a prova é no

sentido de que os seus bens, ao menos os que foram investidos no Brasil,

possuíam espúria origem. Tanto que foi necessária sua remessa por meio

de procedimentos não usuais (altas somas em espécie e em moeda não

em curso no país), o cruzamento físico da fronteira também por cami-

nhos não regulares, a utilização de diversos veículos (barco, aeronave e

automóvel) e trajetos (Venezuela, Nordeste, Minas Gerais) para chegar

a São Paulo. Além disso, utilização de falsa documentação, tudo para

que não fosse detectado pelas autoridades brasileiras.

A organização criminosa liderada por Juan Carlos Abadia esteve estru-

turada em três grupos, que o auxiliaram na prática do delito de “lava-

gem” de dinheiro, mas devidamente coordenados entre si, fornecendo-lhe

a logística e infra-estrutura necessárias para garantir a sua ocultação no

país. Além de lhe terem prEstado serviços na aquisição de bens, colocan-

do-os em nome de terceiros para assegurar a ocultação e dissimulação da

origem ilícita dos recursos utilizados na compra.

O grupo do Rio Grande do Sul contou com a intensa participação de

André Luiz Telles Barcellos, que atuou em diversas frentes. Contratou

Antônio Marcos Ayres Fonseca para aquisição de diversos veículos em

nome de terceiros. Alguns dos veículos foram registrados em nome de

familiares e empregados do próprio André Luiz Telles Barcellos; outros

foram registrados em nome de pessoas indicadas pelo co-réu Antônio

Marcos Ayres Fonseca.

Por sua vez, o grupo do Paraná/Campinas foi integrado pelos acusa-

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93Fernando Francischini

dos Victor Garcia Verano e sua esposa, Aline Nunes Prado. Além dos

indivíduos residentes em Campinas Jaime Hernando Martinez Verano e Eliseo Almeida Machado. Este último participou de um único ato de

“lavagem” de valores consistente na ocultação do numerário apreendido

na residência de seu pai em Campinas/SP.

Por �m, o último grupo, de São Paulo, era integrado pelo casal Daniel

Brás Maróstica e Ana Maria Stein. Estes acusados recepcionaram Juan

no país e foram os responsáveis pela aquisição de veículos (automóveis

e motocicletas), imóveis e lancha, sempre em nome de terceiros, além de

serem responsáveis pela conservação destes bens para plena utilização

de Juan Carlos Ramírez Abadia e sua esposa. Davam efetivo apoio lo-

gístico em todas as suas atividades no Brasil, inclusive quando das ope-

rações plásticas levadas a efeito para alterar a aparência física de Juan.

Ângelo Reinaldo Fernandes Cassol foi o responsável pela obtenção de

carimbos de entrada e saída no território nacional em um dos passapor-

tes falsi�cados utilizados por Juan Carlos Ramírez Abadia, cuja ativida-

de se processou da seguinte forma: Cassol recebeu o passaporte de André

Luiz Telles Barcellos e o entregou ao Agente da Polícia Federal Adilson

Soares da Silva, oferecendo-lhe vantagem indevida, para determiná-lo a

praticar ato de ofício, cujo procedimento teria ocorrido por 04 (quatro)

vezes.

Adilson Soares da Silva foi o agente da Polícia Federal que carimbou, de

forma irregular, o passaporte utilizado por Juan Carlos Ramírez Aba-

dia, percebendo, para si, diretamente, em razão de sua função, vanta-

gem indevida consistente na quantia de US$ 200,00 (duzentos dólares)

por cada carimbo.

Yessica Paola Roja Morales, apesar de negar qualquer participação nas

atividades empreendidas por seu marido; inclusive a�rme que ele tenha

lhe pedido perdão após a prisão; e em suas alegações �nais assevere ine-

xistir nexo causal entre as suas condutas e as atividades imputadas a seu

companheiro e; por conseguinte, qualquer ato comissivo que a vincule à

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Em nome da lei94

prática de “lavagem” de valores, a prova coligida demonstrou valida-

mente ter ciência de todos os fatos. E seu efetivo auxílio na aquisição de

imóveis, móveis e veículos com valores oriundos do trá�co internacional

de entorpecentes, bem ainda sua contribuição para a ocultação e dissi-

mulação da propriedade destes por meio de registro dos bens em nomes

de terceiros.

Em outro trecho, o juiz diz sobre Abadia:

“Mostrou-se de uma individualidade ímpar, egocêntrico desmedido, que

se desvincula facilmente dos parâmetros sociais para satisfação de bene-

fício econômico seu e de sua esposa (conduta social). Suas qualidades ou

habilidades mais marcantes não se lastreiam na preservação de valores

da ética ou correção, apesar de alegar ser originário de família evangéli-

ca e, juntamente com Yessica, orar diariamente”.

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As ruas e as rotas

Basta dar uma olhada nos números da fortuna que o tra�cante Juan

Carlos Ramírez Abadia conseguiu amealhar, apesar dos altos custos de

manutenção da organização criminosa e de sofrer tantas apreensões e

bloqueios de bens, para ter a certeza de que poucos negócios são tão

lucrativos como o trá�co de drogas ilícitas. O Escritório das Nações

Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) revela que o combate ao trá�co

realizado pelos governos e organizações retira das ruas apenas 40% da

produção mundial de cocaína, estimada em 850 toneladas ao ano. Os

60% restantes são consumidos por um mercado de cerca de 25 milhões

de usuários, que movimenta cerca de US$ 50 bilhões por ano.

Os números são grandiosos em todos os sentidos. Inclusive no crime.

O governo federal tem estatísticas que revelam que 70% dos homicídios

têm relação com drogas; no Paraná, o governo do Estado divulga um

percentual ainda superior: os crimes motivados pelas drogas chegariam

a 90%. E não estamos computando o alto número de pessoas e famílias

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Em nome da lei96

que tem suas vidas devastadas por drogas ilícitas. Das plantações cul-tivadas pelos cocaleiros até o consumidor �nal, a cocaína tem seu valor elevado em até 3.000%. Desde os tempos de Pablo Escobar e seu Cartel de Medellín, a Colômbia é o principal fornecedor da droga, controlando 80% do mercado mundial. Praticamente todo o restante é produzido no Peru e na Bolívia. O que preocupa o Brasil é que as plantações de coca estão se alastrando e já foram encontradas áreas de plantio na fronteira do Brasil com a Colômbia e com o Peru.

O Relatório Mundial sobre Drogas 2009, divulgado em junho pelo Es-critório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), mostra que o mercado global de cocaína, opiáceos (ópio, mor�na e heroína) e maconha está estável ou em declínio. Parte disso, porém, está sendo substituída pelo uso de drogas sintéticas, especialmente nos países em desenvolvimento. Em compensação, lamentavelmente, apreensões cres-centes revelam que o trá�co tem se espalhado em termos geográ�cos, e já afeta todas as regiões do planeta. Em 2005, 131 dos 165 países do mundo registraram apreensões de cocaína. Duas décadas antes, havia registros em apenas 69 países.

O que aumentou de fato no Brasil foram as atividades de grupos de tra�cantes de cocaína na região Sudeste e a presença de grupos do cri-me organizado internacional. O país é utilizado como importante ponto para o trá�co de droga vinda da Colômbia, Bolívia e Peru. Dentro do Brasil, o maior consumo é registrado nas regiões Sudeste e Sul. Com relação à América do Sul, o relatório aponta que a maior parte do cultivo ilícito ocorre nas regiões sem a presença do Estado – cuja ocorrência a ONU considera uma tragédia –, e que a maior parte da droga é vendida em regiões urbanas fragilizadas pela violência.

Relatórios de organizações internacionais de combate ao crime con�r-mam que a principal rota do trá�co ainda segue dos países andinos para a América do Norte. Mas nos últimos três anos cresceu muito o trânsito de drogas da América do Sul para a África, para então ser enviada à

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97Fernando Francischini

Europa. O Brasil aparece como escala nessa rota que segue para o Oeste

da África e até diretamente para a Europa. Dizem as autoridades que países como Guiné-Bissau são usados porque têm governos fracos, fá-ceis de corromper e onde a população sabe muito pouco sobre drogas. A ponto de uma aldeia da costa africana ter encontrado um grande núme-ro de sacos de pó branco e, sem saber do que se tratava, espalharem nas plantações imaginando que fosse fertilizante.

Na África, os países mais utilizados pelos cartéis são Ghana, Costa do Mar�m, Togo, Nigéria, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Ilhas Canárias. Au-toridades da Guiné calculam que cerca de 60% da cocaína que chega ao país passaram pelo Brasil e o restante foi enviado diretamente da Co-lômbia. A entrada da droga na Europa se dá principalmente por Por-tugal e Espanha, que registraram as maiores apreensões de cocaína nos últimos 20 anos. No aeroporto de Madri também é grande o número de prisões das mulas, com o estômago e o intestino cheios de cápsulas de cocaína. Em espanhol são chamados de “boleros”. Apenas nos cinco primeiros meses de 2010, os policiais espanhóis interceptaram 160 tra-�cantes, quase a metade deles com a droga dentro do corpo. Eles carre-gam em média de 80 a 100 cápsulas de uma vez e recebem entre E$ 3 mil e E$ 4 mil como pagamento.

Os tra�cantes têm lucro bem maior na Europa, onde 450 gramas de cocaína podem render US$ 21 mil, mais que o dobro que nos Esta-dos Unidos, onde custariam US$ 10 mil (na América do Sul o quilo da pasta-base de cocaína vale US$ 1,5 mil).

O Brasil não é um importante produtor de drogas, mas é considerado um grande consumidor. O maior problema, porém, é a enorme quanti-dade de empresas que vendem produtos químicos que também servem para a produção de entorpecentes. O Brasil também é uma região de difícil �scalização, porque tem mais de 10 mil aviões e mil helicópteros, e mais de dois mil aeroportos espalhados pelo território. Muitos deles não são o�ciais e, portanto, não têm controle da Agência Nacional de

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Em nome da lei98

Aviação Civil (Anac) e da Infraero.

O relatório da ONU estima que a produção mundial de maconha te-nha diminuído. Em 2005, a maior parte da maconha foi produzida nas

Américas (46%) e na África (26%). Em termos de volume, a maconha é a substância ilícita mais tra�cada no mundo – 90% (148) dos 165 países do mundo registraram apreensões. O trá�co, porém, é intra-regional, com inclusão de países vizinhos em alguns casos, mas não é de longo alcance. É assim como se cada país produzisse sua própria maconha. O mercado brasileiro é abastecido em grande quantidade pelo Paraguai. O México e os Estados Unidos são os maiores produtores de maconha do mundo.

O Sudeste da Ásia continua sendo o maior mercado mundial de anfeta-minas, seguido da América do Norte e da Europa. Cerca de 14 milhões de pessoas – 55% dos consumidores mundiais de anfetaminas – vivem na Ásia. O número total de usuários de anfetaminas na América do Norte é estimado em 3,8 milhões de pessoas (15% do total mundial). Na Europa é de 2,8 milhões de pessoas (11% do total mundial). No âmbito sub-regional, a maior prevalência de uso de anfetaminas está no Brasil, que também é o maior mercado de opiáceos da região. São 600 mil pessoas, ou 0.5% da população entre 12 e 65 anos. Os dados são da pesquisa domiciliar realizada em 2005 (Cebrid/Senad).

Os cartéis

Os grandes cartéis hoje estão no México. La Familia Michoacana, por exemplo, é uma espécie de sindicato de tra�cantes no Estado de Micho-acán. Os métodos são os mais cruéis. É comum corpos desmembrados serem enviados como mensagens para algumas vilas da região; o bilhete escrito à mão que acompanha o corpo costuma dizer “ele falou demais” ou “Teve o que mereceu”. Autoridades mexicanas dizem que o trá�co em grande escala existe há décadas na região, mas recentemente a violência parece ter saído de qualquer controle.

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99Fernando Francischini

Mais de 23 mil pessoas já foram mortas desde 2006, quando Felipe Cal-derón assumiu a Presidência do país e declarou guerra contra os barões

do trá�co. Recentemente, estimativa de organizações não governamen-

tais avaliaram que 85% das empresas legalmente instaladas em Micho-

acán têm alguma ligação com tra�cantes e são usadas para lavagem de

dinheiro. O cartel La Família também é considerado dos mais violentos.

Em setembro de 2006, cinco cabeças humanas foram jogadas na pista

de dança de um night club na cidade de Uruapan, no Estado de Micho-

acán. Outros cartéis signi�cativos que atuam no México são o Sinaloa

e o Zetas.

As próprias autoridades admitem que o crescimento do controle de

regiões inteiras pelos tra�cantes se dá pela falta de con�ança, entre a

população, na polícia e na Justiça. E, na contramão das liberdades indi-

viduais, muitos políticos creditam o aumento das atividades do crime

organizado à democracia multi-partidária mexicana. Durante 71 anos,

até 2000, o México foi governado por um único partido, o PRI.

Os sanguinolentos cartéis mexicanos transformaram Ciudad Juárez, na

fronteira com os Estados Unidos, na mais violenta cidade do mundo. Só

no ano passado, as autoridades mexicanas contabilizaram 2,7 mil assas-

sinatos ligados ao trá�co de drogas na cidade, vizinha à texana El Paso.

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101

A entrevista Entrevista publicada pelo jornal O Estado do Paraná

em 13 de junho de 2010

A sensação de enxugar gelo, um sentimento muito próximo da revolta pela impotência, começou a minar a satisfação do delegado da Polícia

Federal Fernando Francischini sempre que obtinha uma vitória contra

o crime organizado, mesmo que fosse um gol de placa como a prisão do

maior tra�cante do mundo, Juan Carlos Ramírez Abadia. Cai o grande

capo de um grupo, logo outro toma conta da venda e entrega de drogas

num número de locais cada vez maior.

E o que é pior: a entrega de drogas a um número crescente de crianças.

Crianças!!! Crianças caídas na sarjeta porque o crack faz parte do coti-

diano das escolas. E então, Curitiba aparece em pesquisas como a sétima

capital brasileira em homicídios dolosos. A cidade ecológica, com aspi-

rações turísticas, é recordista em violência. E, mais uma vez, as drogas

estão na raiz do problema.

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Em nome da lei102

Já era mais que hora de fazer alguma coisa, além das palestras a que

vinha se dedicando, nos horários de folga, para trabalhar na prevenção e

recuperação de dependentes químicos. O convite do então prefeito Beto

Richa veio bem a calhar, e juntos criaram em 2008 a primeira Secretaria

Municipal Antidrogas do país. O prefeito também estava muito empe-

nhado a contribuir para resolver o problema. Já no primeiro ano, alocou

R$ 1,2 milhão para começar o projeto, valor era maior do que o governo

federal aplica em todo o país na prevenção do uso de drogas. Em 2010

o orçamento já estava em R$ 6 milhões, revelando o comprometimento

da prefeitura de Curitiba.

Atraindo um público curioso dos detalhes da prisão de Abadia, as pa-

lestras de Francischini saíram das igrejas e se espalharam por auditórios

de escolas e universidades. E, grata surpresa, o delegado descobriu que

até jovens de classe média se interessam pelo combate ao crime organi-

zado, ainda não estão totalmente descrentes da polícia e consideram a

pro�ssão de delegado da Polícia Federal uma real opção para si próprios.

Até posam para fotos ao lado do delegado que prendeu Abadia. Fran-

cischini não deixa escapar a chance de manter contato com uma geração

altamente vulnerável às drogas e agarra mais uma arma para usar contra

bandidos: as mídias sociais, como o Orkut, Twitter e Facebook.

Por que o senhor optou pelo combate às drogas quando en-

trou para a Polícia Federal?

Fernando Francischini: Foi uma opção. Há muitos assuntos na Polí-

cia Federal, crimes de ordem �nanceira, fazendária, de ordem política,

eleitoral, e a parte mais dura é a de drogas, porque envolve a rua, sangue,

tiro, risco de vida pesadíssimo. Estamos lidando com gente como Aba-

dia, Beira-Mar, tra�cantes, policiais presos, políticos que se envolvem

em corrupção e trá�co, como o deputado federal e coronel Hildebrando

Paschoal, aquele da moto-serra. Não são muitos os que se dedicam a

isso, só os abnegados. Tem que ter vocação.

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103Fernando Francischini

E o motivo dessa escolha?

Francischini: Eu vi a devastação da droga. Ver crianças nas drogas é o que

mais dói, porque elas estão largadas nas calçadas, no meio-�o. E sabemos que a droga que chegou à criança passou perto da gente, porque cuida-mos de fronteiras, perseguimos grandes tra�cantes. Isso machuca muito e sempre me preocupou. Com a Secretaria Municipal Antidrogas estou desenvolvendo mais esse lado de cuidar de crianças. Prevenir e recuperar.

O trabalho de recuperação foi uma decorrência.

Francischini: A primeira opção foi dedicar meu trabalho para tirar de circulação esses caras que trazem drogas para os meninos que estão nas ruas. Com o passar do tempo, no �nal de cada uma dessas grandes ope-rações, ao invés de comemorar, eu começava a ter a sensação de enxugar gelo. É que muito rapidamente �cávamos sabendo que o tra�cante já ha-via sido substituído, que estava chegando outro carregamento de droga. Aquela sensação de desconsolo: ‘Acabamos de pegar um e já chega outro!!’

Delegado Francischini em coletiva

de imprensa em São Paulo

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Em nome da lei104

Qual foi sua reação?

Francischini: Comecei a dar palestras. Fui convidado por um amigo da

igreja que frequento para falar sobre Drogas a outras pessoas e tivemos

tanta repercussão que outras igrejas também pediram a palestra. Quan-

do percebi, estava indo em igrejas em toda a cidade de Brasília e, de

repente, estava em outros Estados. Criamos então um projeto de capa-

citação de lideranças de escolas, das igrejas, que queriam aprender para

dar palestras. Já que a droga chega até aquele menino da rua, queríamos

evitar que ele pegasse a droga, ensiná-lo a recusar a droga e ensinar o pai,

a mãe, professores para que pudessem orientar essa criança.

O senhor percebeu que é mais efetivo na ponta de cá.

Francischini: Percebi exatamente isso, que o efeito é maior. Cada meni-

no para quem a gente conseguia falar poderia ser um a menos a cair nas

drogas. E comecei a levar uma vida pro!ssional dupla. De um lado era o

delegado que fazia as prisões, linha dura, que prendia, levava tiro, dava

tiro; do outro, aquele que ia a escolas, igrejas, que fazia um trabalho de

capacitação. Por isso a minha ligação tão forte com a igreja.

Pode-se dizer que a crueza das ruas não o endureceu?

Francischini: Muitas vezes parece uma coisa estranha estar em pontas

tão diferentes. Mas é muito compensador. Para o pessoal é um orgulho

ver alguém da igreja deles, gente muito simples, prendendo tra!cantes,

obtendo esse sucesso. E isso se expandiu bastante.

O Abadia e o delegado da Polícia Federal foram instrumen-

tos para fazer um trabalho de prevenção.

Francischini: Se estivesse ali um psicólogo, um psiquiatra, um profes-

sor, o auditório estaria vazio, infelizmente tenho certeza. Na média reu-

nimos entre 800 e mil pessoas. Uma palestra para alunos de uma Facul-

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105Fernando Francischini

dade de Direito em Curitiba lotou dois auditórios. Tiveram de instalar

um telão num segundo local para receber mais estudantes.

E essa faixa é a menos receptiva a esse tipo de palestra, não é?

Francischini: Exatamente, sobretudo nas faculdades particulares, fre-

qüentada pela classe média, classe média alta. Até o reitor #cou impres-

sionado.

Isso pode se dar pelo lado charmoso, da aventura, que o ci-

nema usa muito?

Francischini: A operação do Abadia é um #lme. Acho interessante por-

que o menino vai à palestra porque viu as notícias e quer ver como foi

preso, como é que não houve corrupção na última parte. Tenho perce-

bido que os jovens sentem falta de exemplos. No #nal, os estudantes

querem tirar foto comigo, coisa que o jovem não faz. Meu #lho não faz.

(O delegado Francischini tem quatro �lhos, de 19 anos, 16, 6 e um recém

nascido)

É justamente a faixa etária em que os jovens querem distân-

cia dos pais, de autoridades.

Francischini: Vejo pelos meus próprios #lhos. Nessa idade, eles têm

vergonha de se aproximar. Mas no #m das palestras os meninos querem

conversar comigo, tirar foto, querem meu Orkut.

O senhor usa essas mídias sociais?

Francischini: Criei ferramentas jovens justamente para isso. Estou

montando o terceiro per#l no Orkut, porque é uma coisa de menino.

Meus #lhos me ajudam a responder perguntas, eles acabam se envol-

vendo, perguntando o que responde aqui, outro pede material... O mais

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Em nome da lei106

velho viajava comigo para ir às palestras. Hoje, deu uma segurada agora

porque a faculdade de Direito exige muito.

O exemplo pode ser usado dentro e fora de casa.

Francischini: Sinto que essa situação se transforma em exemplo para os

jovens. Eles estão acostumados a ver a polícia de forma pejorativa, a ver a

polícia como corrupção, como violência, quase do outro lado (do crime).

E quando ouvem a história das prisões, das apreensões, vêem o lado

humano do delegado e começam a se identi'car. Pensam: ‘ainda existe

alguém em quem consigo me espelhar’...

Às vezes até como tábua de salvação...

Francischini: E quando falo sobre a pro'ssão de delegado da Polícia

Federal, com bom salário, credibilidade e estrutura, percebo que várias cabecinhas que fazem perguntas no 'nal estão sonhando em seguir a pro'ssão, principalmente os alunos de cursos de Direito. Fazem per-guntas muito práticas sobre o salário, o trabalho. Dá para perceber que eles realmente se interessam. Este aspecto é muito interessante. Às vezes saímos de alma lavada mais do que quando se prende um tra'cante.

A sua liberação da Polícia Federal foi obtida com facilidade

junto ao Ministério da Justiça?

Francischini: Num primeiro momento foi. Cheguei a tomar posse, mas o ministério quis voltar atrás. Aí entrou em campo o ex-governador Paulo Pimentel. Sem que eu soubesse, ele fez ligações para Brasília e ameaçou fazer críticas ao governo federal todos os dias, até o 'nal do ano, na primeira página do jornal O Estado do Paraná, se eu não fosse li-berado. Ele estava muito animado com a criação da secretaria, acreditava que poderíamos fazer a diferença.

Depois ele me telefonou e até foi engraçado. “Alô, Francischini, aqui é o

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107Fernando Francischini

Paulo”. Respondi mas nem sabia de quem se tratava. E ele: “Como vai,

menino? Você não está me reconhecendo, é o Paulo Pimentel, do Estado

do Paraná, menino.” Há dez dias eu estava no limbo, nem na Polícia Fe-

deral nem na secretaria. No dia seguinte saiu minha liberação.

Como Curitiba entra nessa história?

Francischini: Eu já conhecia o Beto e depois da operação que prendeu

Abadia, ele pediu ao ministro da Justiça para me liberar da Polícia Fe-

deral para montar a primeira Secretaria Antidrogas do país. O governo

federal tinha uma estatística em que Curitiba aparece como a sétima

capital brasileira em homicídios dolosos. Então o prefeito queria um

projeto que no fundo era o meu trabalho. Um trabalho dentro das esco-

las, das igrejas, capacitação de lideranças comunitárias...

Como o senhor mesmo já disse, juntou a fome com a vontade

de comer.

Francischini: O Beto precisava de alguém de peso para dirigir a secre-

taria. Para usar a fama para atrair as pessoas e intensi#car o comba-

te às drogas. Sempre pergunto nas palestras se as pessoas estão lá por

causa das drogas ou pela curiosidade em ver o delegado que prendeu o

Abadia. A resposta é a mesma: pelo Abadia. Então mostro tudo sobre

a operação, vídeos, detalhes, prendo a atenção de todos e no #nal deixo

o meu recado.

As prisões são importantes didaticamente, como exemplo,

mas como o senhor diz, não vão acabar com o tráfico.

Francischini: Quando o Beto me chamou e falou dos dados sobre ho-

micídios em Curitiba, ele estava muito preocupado, mas segurança é

atribuição do governo do Estado e do governo federal. Ele me deu dois

exemplos que mexiam com ele: andando pelos bairros, uma mãe o pega

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Em nome da lei108

pelo braço, conta que a �lha é dependente química e foi na escola que conheceu o crack. E o prefeito me perguntou: ‘O que respondo para ela?’ O mesmo quando um pai conta ter visto o �lho morrer na escada de casa, executado por tra�cantes. É fácil dizer que a atribuição não é do município, mas o que se diz a um pai que o aborda na rua, desespera-do porque não quer que isso aconteça com os outros dois �lhos? Não dá para dizer que liguem para o governador, para o presidente. O Beto queria fazer alguma coisa.

Nasceu então a secretaria antidrogas.

Francischini: Começamos a estudar e mapear os crimes na cidade. Em março de 2008, descobrimos que, em pelo menos 70% dos crimes, quem morreu ou quem matou tinha relação com drogas. A droga estava sem-pre por trás. A secretaria do Estado divulga que o índice é ainda maior, chega a 90%.

Estava ali o problema a enfrentar.

Francischini: O foco era a droga. E como diminuir a droga? A qua-tro mãos, Beto e eu escolhemos os projetos. Lembro das palavras dele: educação, conscientização e prevenção nas escolas. Queríamos chegar a todos os alunos da rede municipal, que beiram os cem mil, a maioria até a quarta série. E implantamos projetos de prevenção, alguns em parceria com a Polícia Federal, como o Bola Cheia, o Papo Legal.

Num segundo momento, vimos que era preciso criar vagas gratuitas em entidades de recuperação química de drogas. Quando abordamos crianças de rua dependentes do crack e a levamos ao pai, ele diz que não tem dinheiro para pagar pela recuperação do �lho; a criança foge, pula a janela; ou a mãe está presa, é prostituta. Para este ano de 2010, temos R$ 1 milhão no orçamento para enfrentar esse problema.

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109Fernando Francischini

Parece que a secretaria tem tudo para consolidar um bom

trabalho.

Francischini: Pois é, tinha gente que pensava que era uma secretaria de vitrine. Quando viram o orçamento, um dos maiores da prefeitura

proporcionalmente falando, a repercussão na mídia e o respaldo popu-lar nos bairros, perceberam que era sério e a secretaria se transformou numa força muito grande.

Qual é o orçamento da secretaria?

Francischini: Em dois anos, passou de R$ 1,2 milhão para R$ 6 mi-

lhões. Mesmo no primeiro ano, quando os recursos foram usados para

montar a estrutura e começar pequenos projetos, o valor já era maior do

que o governo federal aplica em prevenção em todo o Brasil.

Em dois anos a secretaria saiu de duas salas para 1,8 mil metros quadra-

dos em quatro andares de um prédio; saiu de nove assessores para 78 fun-

cionários. São dados que mostram a força que criamos. O Beto está estu-

dando a expansão dessas comunidades para todas as regiões do Estado.

Muitos municípios já se interessaram pela secretaria, não

foi?

Francischini: tivemos de criar um projeto para atender a demanda de

municípios que queriam um trabalho igual. Comecei a dar palestras no

interior; foram mais de 50 em dois anos. Nessas andanças, o prefeito

criava uma secretaria ou um departamento antidrogas ou encarregava a

Secretaria de Ação Social pelo projeto. Chamamos isso de Exportando

Idéias. Quase 20 cidades já criaram ou estão criando a secretaria.

Apenas no Paraná?

Francischini: Fora também. Cuiabá, Manaus, São Paulo... é uma febre

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Em nome da lei110

por intensi�car o trabalho de prevenção. Normalmente as ações estão

espalhadas em várias secretarias e a nossa era uma espécie de articulado-

ra. Não pretendia ser a protagonista, por isso funcionou bem. Colocava

na mesma mesa a educação, saúde, ação social e propunha um programa

conjunto.

Quando muitos órgãos se reúnem sempre há problemas de

relacionamento.

Francischini: Sempre tem, mas quem não quer ser protagonista resolve

fácil. Conseguíamos com o argumento de que é em favor dos meninos,

não de alguma autoridade. Funciona bem.

O senhor já sofreu atentados?

Francischini: Muitas represálias e ameaças de morte. Muitas vezes senti

o perigo muito próximo. Fui atropelado uma vez, mas não conseguimos

provar nada, porque era um carro roubado. Fiquei dois dias no Cajuru,

arrebentado. Meu segurança no Espírito Santo foi baleado. O juiz... era

um dos meus melhores amigos e foi morto a duas quadras do meu pré-

dio. São coisas muito pesadas. No Espírito Santo combatemos o crime

organizado face a face, o poder público e autoridades envolvidas, no Ma-

ranhão a mesma coisa. As ameaças passaram a fazer parte do cotidiano.

Hoje ameaças graves vêm de presídios onde estão policiais que prendi,

de autoridades acusadas de desvio de dinheiro público e narcotrá�co.

Várias vezes a própria Polícia Federal me avisa para ter cuidado. Agora

estou recebendo ligações de um presídio aqui do Paraná avisando que

vão encomendar um pistoleiro para me matar.

O senhor anda com seguranças?

Francischini: Tenho andado com amigos policiais. O delegado às vezes

precisa cuidar de si próprio, e é difícil, sendo policial, andar com outros

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111Fernando Francischini

policiais cuidando de você. Não há palestra em que dois ou três policiais

não estão comigo. Eles até fazem uma escala (rs).

Numa palestra em Araucária, uma pessoa que já foi presa por trá�co e

por fraudes em licitações levantou e me ameaçou. Eu o botei para correr

da palestra e ele, de dedo em riste, dizia que a CPI do Narcotrá�co não

o tinha pego. O empresário fora preso por fraudar licitações da Funasa,

usando helicópteros, fez delação premiada, portanto entregou outras

pessoas para livrar a sua pele, e quer posar de bacana na cidade. Porém,

ainda existem muitos crimes da esfera estadual que estão no referido

Processo, espero que o Ministério Público Estadual requisite cópias da

Polícia Federal e inicie uma nova ação.

O contato com o tráfico e situações degradantes não o derru-

ba emocionalmente?

Francischini: Derruba. Mas o lado igreja me sustenta. Chego em casa

e tem a oração, tem a esposa, a família é muito forte, a fé te levanta e no

outro dia está novo. Mas é difícil, porque a gente recebe uma carga ne-

gativa muito grande. Na CIC, em Curitiba, um policial e dois tra�cantes

que eu já havia prendido entraram no meio da palestra e �caram me

encarando, para me intimidar.

O senhor tem medo?

Francischini: Acho que passei da fase. O medo é o limite entre a vida e

a morte. Porque o medo alerta para determinadas situações e você cria

um sistema de defesa. A autocon�ança excessiva pode te expor à morte.

Mas a gente acaba se acostumando a conviver com o medo.

O senhor já obteve resultados concretos com a atuação da

secretaria?

Francischini: Se uma criança recebe bem a informação de que não pode

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Em nome da lei112

nem experimentar o crack, que esta droga não é como a maconha, por-

que a maconha ainda tem volta, já valeu a pena. E, na verdade, são mi-lhares. Quando deixei a secretaria, em março de 2010, estávamos atin-

gindo quase sete mil crianças por mês.

Mas a criança não é muito receptiva quando já esteve envol-

vida com drogas.

Francischini: Aí vem a segunda parte, que é a recuperação. A prevenção

pretende atingir 96% das crianças, porque elas nunca tiveram contato

com drogas; o percentual vem de estatísticas da Senad. E os 4% que já

tiveram o primeiro contato, se foi com crack, precisam de recuperação;

se foi com outra droga mais leve, podem ser acompanhados com orien-

tação. Há dois braços: o braço forte para o crime organizado, tra"cante

pro"ssional, como o Abadia, o Beira-Mar, lavagem de dinheiro, um po-

lítico envolvido em corrupção. Do outro lado, o braço que tem uma mão

amiga na ponta, que previne e recupera os jovens.

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113Fernando Francischini

Antes de prender o tra�cante Juan Carlos Ramírez Abadia e mesmo du-

rante os três anos de investigações, o delegado federal Fernando Francis-

chini participou de uma série de outras operações de combate ao crime

organizado, corrupção e drogas. Algumas delas:

Operação Fênix: realizada pelas superintendências da Polícia

Federal do Paraná e do Rio de Janeiro para desbaratar a quadrilha de

Fernandinho Beira-Mar, especializada no trá�co de drogas e armas. Na

operação foram presos também João Marino, em Foz do Iguaçu, com

3,6 toneladas de maconha. Em Passo Fundo (RS), Alcione Norberto

com 100 quilos de cocaína. Marcelinho Niterói foi preso em Pedro Juan,

no Paraguai, e com ele foram apreendidas 270 pistolas, duas metralha-

doras e 47.330 cartuchos. Em Goiânia, foram feitas as prisões de Luis

Cláudio Salvador e José Elias Campos, com 36 quilos de cocaína; em

Brasília, presa a Vovó do Pó, com 18,5 quilos de cocaína. Apreensões

também foram feitas no Rio (208 quilos de coca, 50 quilos de crack e 5

de haxixe) e em Curitiba (50 quilos de cocaína, 2 fuzis 7.62, 2 metralha-

doras, 2 pistolas Glock e 1,5 mil cartuchos.

O nome da Operação (Fênix) foi escolhido porque o objetivo da inves-

tigação era evitar que Fernandinho Beira Mar, mesmo encarcerado no

Presídio Federal de Catanduvas, ressurgisse das cinzas (como a ave mi-

tológica), por meio da lavagem de dinheiro e novos carregamentos de

drogas para o Rio de Janeiro.

Os delegados da Polícia Federal Wagner Mesquita e Gilberto Castro

coordenaram esta e várias outras operações; a sua equipe, policiais fede-

rais que trabalharam sob meu comando por muitos anos, herdados com

minha transferência para São Paulo, foram decisivos e fundamentais em

todas as operações relatadas neste livro e que sem os quais seria impos-

sível o sucesso obtido.

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Em nome da lei114

Operação Ícaro: no dia 5 de julho de 2006, desmantelou a quadri-

lha de outro integrante de peso do trá�co internacional operando no

Brasil, Floriano Nolasco da Silva Junior. Realizada no Paraná, São Pau-

lo e em Santa Catarina, a Polícia Federal descobriu dois laboratórios de

re�no de cocaína que funcionavam em duas fazendas nos municípios de

Pardinho e Gália, no interior de São Paulo, onde foram apreendidos 80

quilos de cocaína re�nada e cerca de 700 quilos de produtos químicos

para re�no de drogas; e prendeu mais de dez pessoas. O grupo trans-

portava cocaína da Bolívia até São Paulo com a ajuda de helicópteros.

Foram vários anos de investigação até a identi�cação dos integrantes da

quadrilha.

Operação Zapata: em 20 de julho de 2006, prendeu o perigoso

tra�cante Lucio Rueda Bustus, que usava o nome falso de Ernesto

Plascência San Vicente, conhecido como Mexicano, e morava no bairro

Hauer, em Curitiba. Mexicano fazia parte do Cartel Juarez, considerada

a maior organização criminosa do México, responsável pela remessa de

dezenas de toneladas de cocaína para os Estados Unidos, arrecadando

US$ 200 milhões por mês. Diversas empresas, imóveis e veículos te-

riam sido adquiridos com o dinheiro obtido com as drogas. Mexicano

e outros comparsas tinham diversas empresas estabelecidas em Santa

Catarina. A cabeça desse mexicano estava a prêmio por US$ 1 milhão.

Essa operação foi responsável também por revelar corrupção policial

in�ltrada na Promotoria de Investigações Policiais (PIC). Foi preso o

investigador da Polícia Civil Ricardo Abilhoa, �lho de um procurador

de justiça que exercia a função de coordenador da PIC.. Eles foram acu-

sados pelos crimes de corrupção passiva, de usurpação de função e por

lavagem de dinheiro. Em junho de 2004, Ricardo e outro policial civil,

Carlos Eduardo Carneiro Garcia (Carlinhos), prenderam o tra�cante e

pediram US$ 1 milhão para não entregá-lo à Polícia Federal. Eles teriam

recebido, de fato, US$ 350 mil. A sentença de condenação do Mexicano

e dos poiliciais envolvidos foi exarada pelo Juiz Federal Sérgio Fernando

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115Fernando Francischini

Moro, titular da 2 Vara Criminal Federal, especializada em Lavagem

de dinheiro e Crime Organizado. Graças a perseverança, con�ança e coragem de alguns juízes como Sérgio Moro e Pedro Sanson Corat, da

Vara de Inquéritos Policiais de Curitiba, da Justiça Estadual do Paraná,

e da promotora de Justiça Marla Blanchet, diversas ações de combate ao

narcotrá�co foram concluídas com êxito para o bem da sociedade.

Operação Tentáculos: a partir da investigação do assassinato do major Pedro Plocharski, comandante do 13.º Batalhão da Polícia Mili-tar, 2005, foi preso o tra�cante Éder de Souza Conte, conhecido como o Beira-Mar do Paraná. O major foi executado numa emboscada, pos-sivelmente porque investigava uma quadrilha formada por tra�cantes, advogados e policiais corruptos. Mais de 30 pessoas foram presas, en-tre elas nove policiais militares. Éder foi solto por falta de provas, mas voltou para a prisão na Operação Ressaca, em 2010, por acusações de trá�co de drogas. Nesta época, Francischini já estava na Secretaria Mu-nicipal Antidrogas e forneceu informações, por escrito, que ajudaram na prisão do tra�cante. O caso também alcançou notoriedade porque junto com Éder foi presa a segunda colocada no concurso Miss Curiti-ba/2010.

Máfia chinesa: o chinês Law Kin Chong, apontado como o maior contrabandista em atividade no Brasil, que movimentava milhões de dólares em mercadorias ilegais na Avenida 25 de março em São Paulo, foi preso novamente pela Polícia Federal em 2007. A Polícia Federal e a prefeitura de São Paulo encontraram grande quantidade de mercado-ria contrabandeada num esconderijo no shopping Pari, de propriedade do empresário. Law também é acusado de escravizar imigrantes ilegais e brasileiros, normalmente nordestinos desempregados, em trabalhos com salários irrisórios, horários extenuantes e obrigação de empenho.

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A palestra

Em 13 anos, o delegado da Polícia Federal Fernando

Francischini trabalhou em mais de onze Estados. Sempre

transferido para alguma cidade que estava pegando fogo

ou havia suspeitas de casos graves de corrupção e ativi-

dade do crime organizado. O delegado enfrentou gran-

des quadrilhas, prendeu policiais e políticos corruptos. E

vive sob constante ameaça de morte. No ano que passou

no Espírito Santo e viu um amigo ser assassinado (o juiz

Alexandre Martins de Castro Filho, assassinado a tiros

aos 32 anos porque lutava contra o crime organizado),

Francischini participou das investigações contra o Crime

Organizado em todo o país. Da prisão de Juan Carlos

Abadia, o megatraficante colombiano ao chinês Law Kim

Shong, um dos controladores da Rua 25 de Março, em

São Paulo. Como ele diz: o “pessoal” não gostava de sua

presença no Estado, mas a população aplaudia, porque a

sociedade está cansada de corrupção e desvios de con-

duta em todos os níveis de autoridades de todos os Três

Poderes.

Nosso principal objetivo em Curitiba foi criar uma política pública de

prevenção ao uso de drogas, porque tudo que costuma ser feito, nos três

níveis de governo, é pontual: campanhas eventuais em rádio e TV, uma

ou outra palestra em escolas ou uma igreja empenhada na recuperação

de dependentes químicos. Nunca houve uma política bem de�nida para

a cidade toda, com ações permanentes e pessoal capacitado para lidar

com o problema.

Em muitas situações, as operações que nossa equipe comandou e ob-

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teve sucesso desmantelando quadrilhas, prendendo políticos e policiais

corruptos, tirando de circulação perigosos tra�cantes, percebíamos uma

aprovação enorme por parte da população. Senti que era preciso usar

toda essa notoriedade, principalmente depois da prisão do tra�cante

Juan Carlos Abadia, para chamar a atenção de lideranças que podem

atuar no combate às drogas e para abrir os olhos de crianças e adolescen-

tes para os riscos trazidos pelos entorpecentes.

Só na Operação Farrapos, que prendeu o Abadia, foram indiciados pelo

Ministério Publico (GAECO SP) por Corrupção: dois delegados e seis

investigadores da Polícia Civil de São Paulo. Também um agente da Po-

lícia Federal e um Subo�cial da Força Aérea Brasileira foram presos e

condenados em média de 9 a 10 anos de reclusão cada um, com perda

de função pública. Prender policiais, especialmente, é perigoso e �cou

difícil de andar na rua em São Paulo. Mas cumpri a missão, como cum-

pri em outros Estados.

As palestras começaram já há alguns anos e até criamos um programa

informal, executado nas horas de folga na Polícia Federal para aumentar

o trabalho de prevenção, porque uma pesquisa mostrou números oti-

mistas, de certa forma: 96% das crianças e jovens em idade escolar ainda

não haviam sido conquistados pelas drogas. Havia muita esperança para

eles, mas é preciso tornar as escolas um espaço saudável; e para os outros

4%, é preciso intensi�car os programas de recuperação.

Com a prisão de Abadia, nossa equipe foi promovida a algo parecido com

o estrelato. E não podíamos deixar isso escapar. Por coincidência, o então

prefeito de Curitiba, Beto Richa, de quem já era amigo, mostrou enorme

preocupação com o alto índice de violência na cidade. Embora a segu-

rança não seja atribuição municipal, ele disse que não podia �car de bra-

ços cruzados. Levantamento feito nos crimes registrados pela polícia em

2007 revelou que mais de 70% dos crimes violentos tinham a participa-

ção de tra�cantes ou usuários de drogas. E mais: Curitiba ocupava a séti-

ma posição entre as 27 capitais brasileiras com mais homicídios dolosos.

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O Paraná tem alguns recordes de que não se orgulha. Foz do Iguaçu tem o maior índice de homicídios de adolescentes em TODO Brasil. De cada mil pessoas assassinadas, dez são adolescentes em Foz. A média nacional é de 2,3. Percebam a enorme diferença!!

O Beto estava vendo isso de perto, porque percorria os bairros da ci-dade todos os dias. A primeira pessoa a sentir o efeito da violência não é o governador nem o presidente. É o prefeito e o vereador, as lideran-ças de bairro, o pastor, o padre. O Beto também estava cansado de ser procurado por pais que viram o �lho morrer na porta de casa, baleado por tra�cantes; ou mães que diziam não saber mais o que fazer com os �lhos, viciados em crack dentro das próprias escolas.

Eu ainda che�ava a Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal em São Paulo e o prefeito me pediu ajuda. Não dava para recu-sar porque tínhamos as mesmas preocupações. E começamos a fazer um estudo para ele, e concluímos que o importante não é apreender drogas ou prender pequenos tra�cantes. Claro que isso precisa ser feito tam-bém. Mas é na outra ponta que vamos ganhar a guerra contra as drogas e contra os crimes vinculados ao Trá�co Internacional.

O importante é dar o primeiro passo! É preciso ter esperança. E eu acredito que estas palestras e reuniões são uma forma de chacoalhar a sociedade, de fazer pensar, chamar a imprensa para multiplicar e vários segmentos começarem a se mobilizar para enfrentar o problema!

No Paraná estamos sentados sobre a maior rota de trá�co internacional de drogas que passa pelo Brasil nos dias de hoje. E muitas vezes, acaba logo ali, no Porto de Paranaguá. Muita droga entra por Foz do Iguaçu, pelo Lago de Itaipu e por Guaíra. Há poucos meses, foi apreendido um “container” com quase quatro toneladas de cocaína. Isso é muita dro-ga!! E seguidamente a Polícia Federal apreende 2, 3 quilos de droga com gente que trabalha nos navios e leva para Europa.

Ainda em São Paulo, começamos a estudar o Paraná, para ver o que

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poderia ser feito para mudar a história da Segurança Pública no Estado. Hoje, só se pensa em comprar viaturas, apreender drogas e encher as cadeias. Fomos em busca de projetos que funcionavam em outros locais e eram certi�cados academicamente, que apresentavam resultados.

Durante os dias em que Abadia �cou sob minha custódia na Polícia Federal em São Paulo, diariamente o tirava da cela, ligava a �lmadora e conversava com ele. Quem era o pai, quem era a mãe, onde estudou, quando ele entrou na droga. Se era usuário, se era dependente. Por quê? O sábio chinês Sun Tzu, que escreveu a Arte da Guerra traçando estra-

tégias, dizia: estude “soile” para saber como lidar com ele! Aprenda tudo o que ele sabe fazer de melhor ou de pior para você saber como agir contra ele.

Passei vários dias estudando uma das maiores mentes criminosas do mundo, aquele tra$cante que tinha nas costas tantos homicídios, trá$co, violência, mortes em vários países. Chamo de “efeito Abadia” as pergun-tas que ele me fez durante essas conversas, e que $zeram uma diferença

gritante no meu modo de pensar e de encarar o crime.

A primeira pergunta que ele me fez, era quase uma provocação: “Dr.

Francischini, o senhor acha que a minha prisão afetou o trá#co de drogas?”

O que ele queria dizer com essa pergunta? Queria dizer que a prisão

dele não afeta o trá$co. Porque cada tra$cante preso é substituído ime-diatamente.

De fato, já no dia seguinte à prisão de Abadia, a polícia colombiana nos avisou: “Olha, já tem um novo Abadia na organização.” Um jovem prepa-rado para assumir o lugar do chefão, se este fosse preso ou morto, a quem o trá$co pagou os estudos durante toda a vida, com pós-graduação nos

Estados Unidos. E o que vale para o Abadia, vale para esse tra$cante que

vende drogas aqui nas ruas das cidades brasileiras.

Cada vez que a polícia prende um jovem que vende drogas, sem fazer

uma grande investigação sobre o que existe atrás dele, nada acontece de

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fato. Ele é substituído em segundos. O trá�co é  uma atividade comer-

cial.

Trá�co visa mudar poder político? Trá�co visa mudar ação religiosa?

Alguma coisa assim? Não! Trá�co é  dinheiro. A única coisa que inte-

ressa é o bolso. E todos são substituíveis. Todos podem ser descartados

a qualquer momento. Com o crack, a situação é ainda pior.

As pessoas mais velhas costumavam dizer: “Tra�cante é esperto! Ele não

usa droga!” “Só vende!”

Hoje é diferente. O grande tra�cante trabalha para viciar os pequenos

que vendem na esquina, nas ruas. Por quê? Porque ele vai ter o melhor

vendedor do mundo, aquele que �ca 24 horas sentado na beira de uma

esquina, na porta de um colégio vendendo. Porque a cada 10 pedras que

ele vende, ganha 2 para usar.

E por que tanta violência no trá�co? Sob o efeito da droga, o vendedor

não consegue fazer essa contabilidade. Acaba usando mais do que é au-

torizado ou até usando tudo. Quando está totalmente endividado, e não

tem mais quem pague a conta, ele é descartado! Ele morre!

Em Curitiba sabemos que os tra�cantes torturam o jovem ou a jovem

antes de o matar. Em Foz do Iguaçu cortaram a cabeça de um menino

de 12 anos; em Colombo, também cortaram fora a cabeça de uma garota

de 19. Colocaram numa sacola de lixo e mandaram entregar na casa da

família. Por quê? Para servir de exemplo para o bairro inteiro. Para que

toda aquela vila �que sabendo que quem deixa dívidas com o crack não

é só morto; é torturado com crueldade antes de morrer, para servir de

exemplo.

E isto é apenas uma parte da violência. Os índices de homicídio têm

relação direta com o crack: 70% no Rio de Janeiro; 70% em Curitiba.

Estatísticas altíssimas.

A segunda pergunta do Abadia foi a que de�niu a política pública de

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Curitiba. “Doutor, o senhor acha que eu não sei que foi sua equipe que

ajudou a derrubar o meu avião? O senhor acha que aquilo me afetou �nan-

ceiramente?”

Ele se referia a um avião no qual colocamos um GPS no motor, ajudados

por pessoal do governo americano. O avião saiu vazio de Curitiba, rea-

basteceu em Manaus e desapareceu do radar brasileiro quando passou

para o lado venezuelano da selva amazônica. Então o satélite americano

continuou rastreando o avião, que pousou sem problemas e foi carre-

gado com 3 toneladas e 600 quilos de cocaína. Quando sobrevoava a península do Yucatán no México, a Força Aérea interceptou o avião e mandou que ele baixasse. O avião não baixou e caiu. Os jornais cometa-ram, na época, que a força aérea teria derrubado a aeronave.

Eu realmente cheguei a pensar que aquele golpe o tinha deixado com di'culdades 'nanceiras.

Pura ingenuidade. Três toneladas e 600 quilos de cocaína signi'cam a mesma quantia em ouro. A cocaína pura custa R$ 60,00 mais ou me-nos. Havia cerca de US$ 200 milhões naquele carregamento. É muito dinheiro. E não abalou o tra'cante.

A Polícia Federal tinha trabalhado meses para pegar um grande carre-gamento de Abadia. Ele comprava aviões a jato em Curitiba, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina. O avião saía vazio do Brasil, entrava na selva amazônica, desaparecia e reaparecia queimado na África ou no México.

Abadia virou para mim e falou: “Olha, aquilo não fez nem cócegas.”

E por que não fez? Porque a cada 20 carregamentos desses, a polícia só pega um. E isso acontece também com o pequeno tra'cante da rua. Quantos caminhões cheios de drogas passaram para a polícia conseguir pegar um? Muitos passaram!

Por isso é que precisamos de políticas de Estado. A polícia inteligente

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combatendo a corrupção dentro da polícia, combatendo a corrupção na

política. Combatendo o dinheiro da droga que vai bancar campanhas

políticas. Porque depois, o vereador, o deputado, o prefeito, até presi-dentes �cam amarrados e não podem agir contra o trá�co. A primeira coisa a fazer é a Repressão Inteligente.

Quando se prende um tra�cante, é preciso fazer como a Polícia Federal tem feito nos últimos anos: prende o atravessador. Prende o �nanciador. Prende o empresário que dá uma de bacana na cidade, mas está lavando o dinheiro das drogas. Ele �ca distante da droga e não quer nem saber. Ele dá R$ 10 mil e recebe R$ 20 mil no mês seguinte, e não quer saber o que está acontecendo.

É preciso prender o intermediário, o policial envolvido com os tra�can-tes para afetar realmente o trá�co. Enquanto prender só o menino da esquina que vende umas pedrinhas de crack, a gente não vai conseguir efeito algum. Prender a mula não é política de segurança. Isso é ação pontual que não resolve o problema do crime.

E, por último, a prevenção! “Repressão Inteligente, Prevenção Existente!”

Mas é difícil convencer um político, para aplicar dinheiro em prevenção. Por que é difícil? Porque quando o político asfalta uma rua, tem inaugu-ração. Quando constrói um prédio, tem placa com o nome pregado lá. A placa vai �car pregada por 20 anos, para ser vista em todas as reeleições.

Agora, gastar dinheiro público de orçamento na prevenção? Em Curi-tiba, a primeira coisa foi convencer o prefeito. “Beto, você acredita que a

prevenção pode fazer a diferença?” Ele acreditou! Por isso tem funciona-do.

É preciso preparar o professor que está na escola orientando o aluno; preparar o pastor, o padre, o pai, a mãe, para que eles saibam o que é a droga. Saber que aquela pedrinha não é um chiclete mastigável. É uma pedra de crack. E isso mata.

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Todos têm que entender que alguma coisa precisa ser feita. Se �carmos parados, vamos ser engolidos. E não adianta mais pensar que a droga só está na casa do vizinho.

Concluimos então que precisamos do braço forte contra os grandes tra-�cantes e o crime organizado e da mão amiga para os jovens nos proje-tos de prevenção e de recuperação gratuita da dependência química do Crack.

O Projeto Curitiba

Pesquisas mostraram que os bairros onde o trá�co era mais forte eram os mesmos onde havia mais homicídios. Então, se não enfrentássemos o trá�co de drogas trazendo a prevenção para as escolas, igrejas, não haveria diminuição no número de homicídios.

Enquanto a Política de Segurança Pública for somente colocar viaturas policiais nas ruas, e a família não estiver preparada para evitar que o �lho se envolva, continua tudo igual. Os adolescentes continuam mor-rendo, sendo presos, tornando-se criminosos pro�ssionais. E o crime continua intocado.

O segundo ponto, talvez o mais importantes desse projeto, é a Reinci-dência Criminal. É uma palavra difícil. Reincidir quer dizer o que? Co-meter o crime novamente. O Ministério da Justiça tem uma estatística analisando os presos que voltaram a cometer crimes depois de terem sido presos a primeira vez: 83% voltam ao crime.

Quer dizer: se eu soltar 10, mais de 8 vão furtar, roubar, tra�car de novo. Portanto, o sistema está errado e falido. Se a reincidência é tão alta é porque ninguém está fazendo Reinserção Social. Cuidando para que, quando sair da cadeia, o jovem tenha uma nova chance. Um exemplo: um jovem de família que frequenta igreja; o pai, a mãe são pessoas que deram boa educação. Não tinha nenhum fator que o levasse ao crime, à droga.

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Nunca cometeu um crime. Não tem exemplos negativos. Podia estar

sentado aqui dentro com sua família, hoje. Mas tem a pressão do grupo de amigos e uma bela noite, o pai descobre que ele experimentou crack, sem saber que era uma viagem sem volta. E se torna um dependente químico. O pai se desespera, leva na igreja, faz oração, tenta fazer algu-ma coisa. Mas a dependência química vai engolindo aquele menino. E, aos poucos, começam os furtos dentro de casa. Portas e armários são trancados.

Certo dia, �ca dentro de um bueiro, porque �cou na rua, sem roupa, tro-cou tudo o que tinha de roupa no corpo pela droga. Tênis já não existe mais. Só chinelo. Se fosse uma menina, estaria se prostituindo para ter a pedra do crack. O menino também se prostitui, vai se degradando até que a família não aguenta mais. Não há família que aguente quando começa a violência. Pai matando �lho. Filho matando pai. Houve dois casos de pais matando �lhos, mês passado na Região Metropolitana de Curitiba, por causa do crack.

O pai defendendo a família de jovens violentos sob a in�uência de dro-gas, querendo espancar a família inteira, e ele teve que atirar e matar o �lho. Isso é o pior que pode existir no mundo. Um pai matar o próprio �lho por causa da droga. E aí, a gente vê que acaba a relação familiar, e o pai e a mãe acabam botando na rua esse jovem. É esse jovem que vai para a praça perambular, porque não tem mais para onde voltar. Não tem local apropriado de tratamento de dependência química. Não tem uma mão estendida para ele.

Acaba cometendo um crime pela primeira vez. Pega um tijolo no chão, olha e quebra a vidraça do carro para roubar o DVD. E acaba preso. Se for um jovem pobre, dependente químico, jogado nas ruas pela família, vai conseguir negociar com a Polícia Militar? “Olha, sargento, livra a mi-

nha aí, poxa! Tava brincando com esse tijolo e acertei o vidro”. Não, ele vai para o camburão. Algema e camburão. Não tem a mínima chance de conversa.

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Na Delegacia da Polícia Civil, o delegado vai estar lá, esperando? Vão telefonar pro delegado, dizendo que um jovem foi preso porque quebrou o vidro de um carro. Dependente químico, pobre, expulso de casa. O delegado vai estar às 3 horas da manhã na delegacia? Não. O jovem vai �car preso até o delegado chegar no dia seguinte, 9, 10 da manhã, pra ver se vai fazer o �agrante, o que vai fazer com esse jovem.

A falta de efetivo da Polícia Militar e da Polícia Civil, os baixos salários das bases das instituições e as de�ciências estruturais colocam aquele sargento e o delegado em posições difíceis e constrangedoras.

Se o jovem levado à delegacia é pobre, dependente químico, jogado nas ruas, alguém vai estar pronto no �nal de semana pra dar um “habeas

corpus” para esse jovem? Vai se preocupar se usaram algemas? Nem o juiz da cidade viu o caso ainda. Vão dizer que ele foi injustiçado? Estava brincando com tijolo e foi preso.

Ninguém vai fazer isso. O jovem vai para cadeia, muitas vezes esque-cido, abandonado. Aí começa a se fechar o ciclo do crime. Lembrem: família de bem, não tinha maus exemplos, tinha uma família da igreja. A dependência química o jogou dentro de uma cadeia.

Se existe inferno, com certeza tem o cheiro da delegacia de polícia, de uma custódia. De um presídio. É terrível. Um amontoado de pessoas, sarna, doença venérea. Todas as doenças num cubículo. Um lugar onde cabem 30 pessoas tem 200. Três andares de redes para dormir. Escala de serviço pra poder dormir, porque não cabem todos no chão. Esse jovem é jogado lá dentro. Boa pinta, arrumado. A primeira coisa que vai acon-tecer é violência sexual. E deve ter alguém com Aids, alguma doença venérea, e esse jovem vai continuar nesse ciclo do crime.

Ali, ele vai aprender de verdade. Se ele não era bandido, agora vai apren-der. Vai passar 5, 6 meses convivendo com assaltante,  com tra�cante, com homicida, estelionatário. Ele vai fazer uma faculdade. E quando bo-tar o pé pro lado de fora, pelo menos estará recuperado da dependência

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química? Nem isso, porque não há tratamento de dependência química, psicólogo, assistente social. Mas droga tem. E muita.

Entra droga à vontade e a família é extorquida pelo tra�cante pra pagar a droga que o �lho usa dentro da prisão. Então aquele menino, que além de deixar a família destruída, estar preso, faz a família, que recebe salário mínimo, pagar a droga dele, porque é avisada: ele vai ser morto na próxi-ma rebelião. E a família trabalha pra pagar a droga dele dentro da cadeia.

E quando ele sair? Seis meses depois, dependente químico, pobre, aban-donado, o empresário vai dar emprego pra esse jovem ser motorista da família, cuidar do caixa do comércio? Não vai dar! Uma mulher vai con-tratar uma menina que passou pela cadeia para ser babá? Não vai, nin-guém vai dar uma chance.

Se não �zermos nada, estamos fazendo uma fábrica de criminosos. Cada vez que a Polícia Militar recolhe um jovem dependente químico da rua, que não é um tra�cante pro�ssional, e o joga dentro de uma delegacia, estamos ajudando a produzir um criminoso pro�ssional. Quem vai dar emprego a ele é o trá�co, o crime organizado. E é com ele que vamos cruzar num sinaleiro, que vai nos assaltar com uma arma... Infelizmente é o que tem acontecido em Curitiba e em praticamente todas as cidades brasileiras.

A culpa não é do juiz, promotor, do delegado da Polícia Civil ou do coronel da Polícia Militar, mas sim da Política Pública de Segurança equivocada que está sendo aplicada em todo o Brasil.

E a terceira constatação: Cidadania e Auto-estima. Faltam ações para os jovens nos bairros. Nas grandes cidades, todos vão para o shopping no �nal de semana, inclusive aqueles meninos que a gente chama de “carçu-dos”, é aquele menino do boné quadrado, que a bermuda chega ao meio do joelho, com um pedaço da cueca aparecendo nas costas, mas não é um bandido. Não é criminoso só pelo jeito de se vestir. É um jovem da periferia da cidade, que tem poucas atividades de cidadania, de esporte,

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de cultura, de lazer onde ele mora. O esporte, a cultura, o lazer para ele

é ir para o shopping.

Então propusemos ao prefeito criar uma secretaria para formular polí-

ticas públicas municipais sobre drogas com prevenção, com reinserção social para esses jovens, para criar oportunidades de cidadania e auto--estima onde ele mora e no horário em que ele precisa.

Assim nasceu a Secretaria Antidrogas de Curitiba. A primeira do país a ser criada em uma capital. Um projeto único que já se espalhou para mais 20 cidades do interior e 3 ou 4 capitais de Estados. Temos uma rede de colaboração. A própria ONU diz que o principal fator que leva o jovem à dependência química é a falta de informações. Usa o crack sem saber que crack é um caminho sem volta. Se ele usar o crack uma ou duas vezes, já foi. Não volta mais.

A bebida alcoólica usada muito cedo pode aumentar a predisposição de uma pessoa se tornar dependente químico. Então planejamos: vamos fa-zer palestras educativas com líderes da sociedade, que agem como multi-plicadores. Se eu for num colégio só com os alunos, �ca ali. Se eu falar com as lideranças da nossa cidade, multiplico por cinquenta, por duzentos.

Cada palestra tem um programa sério e, no �nal, meus bolsos costumam �car cheios de papeizinhos: vinha uma professora escondida e colocava um papelzinho na minha mão, que dizia “o tra�cante da vila, fulano de tal, mora na casa tal.” Caramba! Será que alguém viu essa professora me dando papelzinho? Ele vai ser preso e ela vai correr risco de vida.

Em outra palestra, um guarda municipal me entregava um papel e dizia que tal policial comanda o trá�co em determinada região. Criamos uma rede que se chama “Salomão” – aquele que tudo vê. É um site da internet que temos em Curitiba, onde a pessoa pode dar informações anônimas. Mas só os multiplicadores, as lideranças é que recebem senhas. Pessoas que vão dar palestras e podem escutar uma informação, �ngir que não escutou, e repassar pela internet.

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Temos uma central de Inteligência na Secretaria Antidrogas, em parce-ria com a Guarda Municipal. Alguns guardas, cada um na frente de um monitor, recebem essas informações on-line. Pesquisamos os anteceden-tes criminais, quem é o dono de tal placa de carro. Então eu assino uma informação para a Polícia Civil ou para a Polícia Militar e a liderança comunitária, evangélica, religiosa, não aparece. Não corre o risco de ser identi�cado, não vai precisar depor na Justiça nem vai �car frente a fren-te com o tra�cante denunciado.

É uma forma diferente, um sistema excelente e funciona bem. O número de trotes é mínimo.

Estamos multiplicando projetos de geração de renda para os jovens. O primeiro curso que oferecemos é em parceria com uma faculdade - um curso de Web Designer. Os jovens em tratamento são enviados pelas Associações de Moradores e Comunidades Terapêuticas. A idéia é dar uma chance a esse jovem conseguir um emprego.

O último passo é o banco de talentos. Estamos fazendo um estudo ju-rídico para inserir uma cláusula nos contratos assinados pela prefeitura que obrigue que uma porcentagem das vagas que a empresa gerar sejam preenchidas por jovens que têm di�culdade para encontrar emprego. São as vagas sociais.

Criamos uma Rede de Comunidades Terapêuticas, em todas as nove regiões de Curitiba, com vagas sociais. Teremos um núcleo de recolhi-mento, de encaminhamento, de cidadania, que vai receber todas essas pessoas. A prefeitura vai contratar vagas para tratamento de quase mil pessoas por ano, dependentes químicas de droga. Vamos pagar um valor justo por mês para cada jovem ou para cada adulto internado.

O Beto colocou orçamento su�ciente para a secretaria funcionar bem. Quando foi criada, nosso orçamento era de R$ 1,2 milhão. Agora é de R$ 6 milhões. O novo prefeito de Curitiba, Luciano Ducci, médico con-ceituado, com certeza continuará o projeto que já tem cerca de R$ 1

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milhão só para usar nas Comunidades Terapêuticas. Estamos ajudando

as comunidades a se adaptarem a todas as exigências do Ministério da

Saúde. Queremos evitar que esses meninos se transformem em bandi-

dos. Eles não são bandidos, mas se deixarmos certamente se tornarão.

E temos o programa BOLA CHEIA. Conheci esse projeto em Nova

York, quando fui colaborar com a polícia norte-americana com informa-

ções sobre o Abadia. Pedi à prefeitura de Nova York para conhecer um

projeto de prevenção. Numa noite, fomos com o administrador de um

bairro, que disse ser um local em pé de guerra. Mas quando chegamos,

foi um susto ao contrário: turistas com câmera pendurada no pescoço;

igrejas abertas de madrugada; um bairro muito bonito, iluminado.

O que tinha acontecido ali? O administrador contou que o ex-prefeito

Rudolf Giuliani tinha implantado um projeto planejado por dois so-

ciólogos (Broken Windows): eles diziam que o jovem se comporta de

acordo com o ambiente em que vive. Se o ambiente é fechado, sujo, de-

gradado, ele se comporta da mesma forma. Se ele é desrespeitado todos

os dias, se não tem seus direitos básicos atendidos; se a casa em que

mora é toda pichada, ele vai reagir com desrespeito às autoridades, com

desrespeito ao pai e à mãe. Aos poucos, vai se tornando um bandido.

O que o prefeito fez? Limpou aquele bairro. Trocou os vidros quebra-

dos, rebocou os carros que estavam com os pneus furados, pintou as

paredes. Arrumou todo o bairro. E o jovem começou a se comportar de

uma forma diferente. Começou a sentir orgulho, a respeitar e não querer

mais ir embora dali. E aí vem o BOLA CHEIA, que é o principal.

A prefeitura reformou uma quadra de esportes que �cava entre esses

blocos de apartamentos. E colocou a escolinha de basquete para funcio-

nar durante a madrugada. No horário em que mais havia ocorrências

na sexta, sábado e domingo. Eles chamavam de “Midnight Basketball”.

Copiamos uma parte desse projeto. Abrimos as quadras de esportes de

escolas da prefeitura de Curitiba nos horários de pico de ocorrências de

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trá�co, de homicídio. Contratamos professores de Educação Física, as-

sistentes sociais, psicólogos. Gente que vai ser amiga daqueles jovens. E

no meio das brincadeiras, de lazer, do esporte, vão passando princípios,

valores.

Dois meses depois, exigem que voltem a estudar, caso contrário, não po-

dem mais �car. Mas o jovem já criou um círculo de amigos, uma rotina,

começou a ser respeitado ali. E não quer sair. Ele volta a estudar. Com

três meses, ele tem que deixar a assistente social visitar sua casa. Vamos

saber se o pai é  alcoólatra, se a mãe  é  prostituta, vamos ver qual é  o

problema daquela família. Ver onde a prefeitura, o governo do Estado, o

governo federal podem entrar para ajudar aquela família.

Em Brasília, na Ceilândia, que também copiou as bases do projeto de

Nova York, o índice de homicídios de jovens já baixou em 25%. Lá se

chama “Esporte à Meia-Noite.” Em três meses na região de Vila For-

mosa, em Curitiba, baixamos de uma média de 15 ocorrências policiais

para cinco. Só tirando os meninos das esquinas em que vendiam drogas,

que �cavam brigando na porta dos botecos com cachaça, com sinuca, e

levando esses jovens para uma nova situação de cidadania, onde é respei-

tado e tem uma nova chance.

Hoje, temos em média 1,2 mil adolescentes por noite no programa Bola

Cheia em Curitiba. São 1,2 mil jovens que a cada dia renovam a ex-

pectativa de vida, jovens que poderiam não amanhecer vivos ou terem

cometido um crime brutal contra a sociedade, e que, por estarem dentro

de um projeto desses, estão ganhando um dia a mais de vida, e, talvez,

nós também!

Todos os projetos são articulados entre si. Para a reinserção social que-

remos gerar um emprego para ele. Se é dependente químico, vamos levá-

-lo para as Comunidades Terapêuticas.

Temos tentado todos os dias, em Curitiba e na Região Metropolitana,

levar mais um jovem a esses programas. Estamos dispostos a disputar, a

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levá-lo pelo braço. Encarar cada menino e cada menina de uma maneira

diferente, para tirá-los do trá�co, salvá-los do homicídio. O que pre-

tendemos é plantar a semente de uma política pública linha dura contra

os criminosos pro�ssionais e mais humana e solidária para os nossos

jovens.

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Este livro foi impresso em tipos Rockwell e Adobe Jenson Pro,

11/14.5 no inverno de 2010 sobre papel alta alvura 90g pela

Grá�ca Fotolaser