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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE CUIABÁ PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO JOCIMAR JESUS DE CAMPOS AS NARRATIVAS MÍTICAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE MORRINHOS / POCONÉ / MT E OS FAZERES ESCOLARES Cuiabá-MT 2017

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE CUIABÁ

PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

JOCIMAR JESUS DE CAMPOS

AS NARRATIVAS MÍTICAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE

MORRINHOS / POCONÉ / MT E OS FAZERES ESCOLARES

Cuiabá-MT

2017

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JOCIMAR JESUS DE CAMPOS

AS NARRATIVAS MÍTICAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE

MORRINHOS / POCONÉ / MT E OS FAZERES ESCOLARES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós

Graduação de Mestrado em Educação da

Universidade Federal de Mato Grosso, como

requisito parcial, para obtenção do título de

Mestre em Educação. Linha de Pesquisa:

Movimentos Sociais. Política e Educação

Popular.

Orientação: Profª. Dr.ª Suely Dulce de

Castilho.

Cuiabá-MT

2017

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AGRADECIMENTOS

Este momento não teria chegado sem a participação de diversas pessoas com as quais

convivi nessa longa jornada de vida e estudo. Agradeço imensamente aos meus familiares.

Aos meus pais, Antônio João de Campos e Eurídice Maria de Campos (in memoriam), que

não mediram esforços e me incentivaram a enveredar pelos caminhos do conhecimento. Do

mesmo modo, aos meus irmãos, Terezinha (in memoriam), Antônio, Maria, José, Manoel,

Francisco, e, sobretudo, Aidê pelas leituras e reflexões dos textos aqui reunidos e pelo

incentivo durante essa caminhada.

Especial agradecimento à minha orientadora, professora doutora Suely Dulce de

Castilho, pela atenção, dedicação e acompanhamento nessa caminhada, principalmente, por

ter sempre palavras de incentivo e, por dividir suas experiências e conhecimentos comigo, que

foram imensamente importantes para que pudesse enxergar melhor os meandros a serem

seguidos nesse percurso de estudo, e por oportunizar-me mais essa conquista importante em

minha vida. Muito obrigado!

Nesse sentido, o meu reconhecimento e gratidão às professoras e professores do

Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE), do Instituto de Educação da Universidade

Federal de Mato Grosso (UFMT), por compartilharem suas experiências: foram momentos de

profundas reflexões e aprendizagens para pensar a educação brasileira, especialmente, com os

professores (as) doutores (as): Anunciação, Cleomar e Rute.

Do mesmo modo, agradeço aos professores doutores Nilce Vieira Campos Ferreira,

(UFMT), Acildo Leite da Silva (UFMA), Sérgio Pereira dos Santos (UFMT) e Rose Cléia

Ramos da Silva (UFMT), que prontamente aceitaram o convite para participar das bancas de

qualificação e defesa, tendo contribuído de forma decisiva e minuciosa para a reflexão e o

êxito deste trabalho.

Sou grato à professora doutora Márcia e seus colaboradores (as) da Secretaria do

Programa Pós-Graduação do Mestrado em Educação, pois sempre estiveram prontos a

atender-me com muita simpatia e eficiência em suas tarefas.

Abro parênteses para agradecer aos colegas do Grupo de Pesquisa Movimentos

Sociais: Bruna, Luciano, Vanessa, Silvana, Itamar e José Ferreira, que me ajudaram a pensar

de forma reflexiva acerca dos temas abordados no grupo de pesquisa. Nesse mesmo sentido,

estendo os agradecimentos aos demais colegas da Turma 2015 e 2016 pelo rico convívio

durante a jornada, e de forma muito especial, à Marcela e à Mery, pela convivência, trocas de

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experiências e amizade. Espero que as raízes criadas nessa caminhada permaneçam em nossas

vidas.

Sou imensamente grato a todas as moradoras e moradores da comunidade quilombola

de Morrinhos, em Poconé -MT, pelo acolhimento e disponibilidade com que se dispuseram a

participar desta pesquisa. De forma especial, agradeço aos colaboradores diretos deste

trabalho de pesquisa: os senhores Gonçalo, Sebastião, Joanito, e as senhoras Leonilza e

Rosilda, a última (Presidente da Associação de Moradores), os alunos Dionízio, Patrícia,

Vitória e o professor José Ilário, sem os quais este trabalho de pesquisa não seria possível.

A todos, os meus mais sinceros agradecimentos.

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RESUMO

Esta pesquisa está vinculada ao Programa de Pós-Graduação, em nível de mestrado, da

Universidade Federal de Mato Grosso, e pertence à linha de pesquisa Movimentos Sociais,

Política e Educação Popular. O estudo buscou compreender as relações entre as narrativas e

memórias partilhadas na comunidade quilombola de Morrinhos/Poconé/MT com os saberes e

fazeres da Escola Municipal Professora Catarina Antônia da Silva. Nessa propositura, foi

realizada a caracterização histórica, identitária e cultural do universo quilombola de

Morrinhos; em seguida, procurou-se descrever as narrativas míticas que permeiam a

comunidade e, concomitantemente, compreender como os materiais didáticos, o Plano

Político Pedagógico e as práticas pedagógicas da escola contemplavam essas narrativas.

Nesse percurso, foi utilizado o método etnográfico proposto por Geertz (2008) e o gênero

história oral, de Holanda e Meihy (2014). Teoricamente, a pesquisa se apoiou nos aportes de

Bosi (2015), Benjamin (1986), Castilho (2011), Hampaté Bâ (2010), Halbwachs (1990),

Munanga (2005), Vansina (2010), dentre outros. Os principais instrumentos da coleta de

dados foram a entrevista, a observação participante e a análise documental. Nas entrevistas,

utilizou-se questionário semiestruturado. Os diálogos possibilitaram o resgate das memórias e

experiências do vivido dos anciãos e anciãs da comunidade. Nesse sentido, a observação

participante proporcionou ao pesquisador o acompanhamento, no cotidiano, dos fazeres e

saberes da comunidade e descrevê-los de forma minuciosa e densa, no que se refere à

religiosidade, à relação com o meio ambiente e às práticas pedagógicas. A análise de

conteúdo foi sustentada por Bardin (1995), no sentido de cotejar os dados coletados nas

narrativas, no Plano Político Pedagógico e no livro didático utilizado pela escola. Nesse

contexto, os participantes da pesquisa foram quatro anciões, um professor e quatro alunos. Os

resultados apontaram para a importância da função social desempenhada pelos anciãos e

anciãs da comunidade quilombola de Morrinhos, uma vez que são eles os detentores da

experiência do vivido e, por isso, configuram-se no esteio do grupo. Sobretudo, porque são os

guardiões das mensagens educativas espontâneas e/ou naturais que permeiam o universo

cultural da comunidade. Por esse viés, as lendas míticas enfatizam mensagens às crianças e

jovens, como o respeito à natureza e a obediência aos mais velhos, por isso, são valoradas e

constituem relevante capital cultural da comunidade. Dessa forma, são preciosas fontes

literárias a serem reconhecidas pela escola em seu currículo, ensejando efetivarem-se como

um contraponto necessário às narrativas eurocêntricas, que ainda predominam nos fazeres e

práticas escolares daquela comunidade.

Palavras-chave: Morrinhos. Narrativas míticas. Educação Quilombola.

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ABSTRACT

This investigation is linked to the Postgraduate Program at the Master’s level of the

Universidade Federal de Mato Grosso and the research line: Movimentos Sociais,

Política e Educação Popular. This study aimed to comprehend the relationships among

narratives and shared memories in the quilombola community of

Morrinhos/Poconé/MT with the knowing and doings of the Escola Municipal

Professora Catarina Antônia da Silva. In this proposal, it was made the historical,

identity and cultural characterizations, after that, were described the mythical

narratives that pervade the community and simultaneously to comprehend the

didactical materials, the Pedagogical Political Plan and pedagogical practices

considered in those narratives. In that route, it was used the ethnographic method

offered by Geertz (2008) and the oral historical genre of Holanda e Meihy (2014).

Theoretically, this investigation also was based on the contributions of Bosi (2015),

Benjamin (1990), Castilho (2011), Hampaté Bâ (2010), Halbwachs (1990), Munanga

(2005), Vansina (2010) and some others. The main collection instruments of findings

were: the interviews, participant observation and documentary analyses. In the

interviews, it was used the semi-structured questionnaire. The dialogues made possible

the memories and experiences recovery of old men and women of the community. In

this sense, the participant observation provided the researcher, the daily

accompaniment of the knowing and doings in the community and described it in a

meticulous and dense way relevant to religiosity, the relationship with the environment

and the pedagogical practices. The content analysis was supported by Bardin (1995),

in the sense of collating the data collected from the narratives, the Pedagogical

Political Plan and the didactic book used by the school. In this context, the participants

of the investigation were: four old men and women, one professor and four students.

The results pointed out the social function importance performed by the old men and

women in the quilombola community of Morrinhos, considering that they hold the

lived experience and are the support of the group. Over all, they are the guardians of

the spontaneous educative messages and/ or the natural ones that permeate in the

cultural universe of the community. Through that bias, the mythical legends

emphasize messages to the children and young people, such as the respect to the nature

and the obedience for the old ones, for that reason, they are valorized and constitute

the relevant cultural capital to the community. In that way, they are precious literary

sources to be recognized by the school in its curriculum giving origin to a

counterpoint, the Eurocentric narratives that still prevail in the actions and school

practices of that community.

Keywords: Morrinhos. Mytical Narratives. Quilombola Education.

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LISTA DE FIGURAS

Ilustração 01: Igreja Nossa Senhora do Rosário Centro de Poconé......................... 41

Ilustração 02: Portal de entrada de Poconé......................................... 44

Ilustração 03: Aves no caminho que conduzem a Morrinhos............ 45

Ilustração 04: Imagem de satélite Cangas rota de Morrinhos........... 46

Ilustração 05: Casa da antiga sede da fazenda cotia........................... 48

Ilustração 06: Animais na estrada caminho de Morrinhos................ 49

Ilustração 07: Trajeto no período de chuva........................................ 50

Ilustração 08: Rua principal de Morrinhos......................................... 60

Ilustração 09: A escola da comunidade............................................... 62

Ilustração 10: Salão comunitário da comunidade............................... 63

Ilustração 11: Garimpo vizinho a Morrinhos..................................... 69

Ilustração 12: Preparativos para celebração da festa......................... 70

Ilustração 13: Adolescentes na celebração ao padroeiro................... 71

Ilustração 14: Procissão de São Benedito............................................ 72

Ilustração 15: Interior da igreja em dia de celebração....................... 77

Ilustração 16: Roda de cururu festa de são Bento.............................. 78

Ilustração 17: Senhor Gonçalo: ancião mais idoso da comunidade.. 117

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Os participantes da pesquisa............................................ 33

Quadro 2: Síntese livro didático saberes e fazeres do campo............ 114

Quadro 3: Análises conteúdos livro: Saberes e Fazeres do Campo... 115

Quadro 4: Quantitativo de imagens encontradas no livro didático... 120

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LISTA DE SIGLAS

ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

APAE Associação de Pais e Mestres

CNE Conselho Nacional de Educação

CEE Conselho Estadual de Educação

CONAE Conferência Nacional de Educação

CONAQ Comissão Nacional de Articulação dos Quilombos

CONAPIR Conferência Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

EJA Educação de Jovens e Adultos

GPMSE Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

MT Mato Grosso

PPP Projeto Político Pedagógico

PPGE Programa de Pós-Graduação em Educação.

SCIELO Scientific Electronic Library Online.

SECADI Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e

Inclusão.

SEDUC Secretaria de Educação

SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

SEPPIR Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

UFMT Universidade Federal de Mato Grosso

UNEMAT Universidade Estadual de Mato Grosso

UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................

CAPÍTULO I – PASSOS METODOLÓGICOS..................................................

1.1 A RELAÇÃO DO SER HUMANO COM O CONHECIMENTO.........................

1.2 ASPECTOS METODOLÓGICOS.....................................................................

1.3 MÉTODO ETNOGRÁFICO..............................................................................

1.4 MÉTODO HISTÓRIA ORAL...........................................................................

1.5 TÉCNICAS E PROCEDIMENTOS DE COLETAS DE DADOS.........................

1.5.1 A entrevista............................................................................................

1.5.2 A observação participante.......................................................................

1.5.3 A análise documental...............................................................................

1.6 OS PARTICIPANTES DA PESQUISA...........................................................

CAPÍTULO II – MORRINHOS, SUA HISTÓRIA E SUA GENTE.....................

2.1 A CAVALHADA E A DANÇA DOS MASCARADOS.......................................

2.2 CAMINHOS QUE CONDUZEM A MORRINHOS..............................................

2.3 RELAÇÕES RACIAIS: ALGUNS CONCEITOS................................................

2.4 QUILOMBO MORRINHOS: A LUTA PELO RECONHECIMENTO...............

2.5 A COMUNIDADE DE MORRINHOS...............................................................

2.5.1 Os espaços coletivos...................................................................................

2.5.2 As residências e a comunicação...................................................................

2.5.3 O que produzem e criam............................................................................

2.6 MORRINHOS: A TERRA E O SENTIDO DE PERTENÇA...............................

2.7 A RELIGIOSIDADE E A FESTA DO PADROEIRO..........................................

CAPÍTULO III – O CARÁTER EDUCATIVO DAS NARRATIVAS

MÍTICAS.....................................................................................................................

3.1 AS MENSAGENS DAS NARRATIVAS MÍTICAS.............................................

3.2 PERSPECTIVAS DE MITOS E LENDAS..........................................................

3.3 AS LENDAS MÍTICAS DE MORRINHOS NAS VOZES DE SEUS

ANCIÃOS..............................................................................................................

A lenda do Padre................................................................................................

A lenda “O Lobisomem”.....................................................................................

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A lenda “Ave encantada”..........................................................................................

A lenda “O minhocão”........................................................................................

A lenda “O boi sem cabeça”...............................................................................

A lenda “O arco-íris”..........................................................................................

A lenda “O martelinho de ouro”.........................................................................

CAPÍTULO IV – O CURRÍCULO EM AÇÃO NA ESCOLA DE

MORRINHOS.....................................................................................................

4.1 O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO.........................................................

4.2 O LÍVRO DIDÁTICO UTILIZADO NA ESCOLA DE MORRINHOS...............

4.3 AS PRÁTICA PEDAGÓGICAS NA ESCOLA DE MORRINHOS......................

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................

REFERÊNCIAS..........................................................................................................

ANEXO A....................................................................................................................

ANEXO B....................................................................................................................

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INTRODUÇÃO

Este trabalho de pesquisa está vinculado ao curso de Mestrado do Programa de Pós-

Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso, na linha de pesquisa Movimentos

Sociais, Política e Educação Popular, e versa sobre as relações entre as narrativas e memórias

partilhadas na comunidade de Morrinhos com os saberes e fazeres de uma escola de Poconé-

Mato Grosso.

Começo apresentando-me. Sou professor lotado na Escola Estadual no/do campo Dom

Francisco de Aquino Corrêa, situada no Distrito de Cangas, em Poconé, no Estado de Mato

Grosso. A unidade escolar localiza-se nas proximidades de Morrinhos, onde já desempenhei

as funções de professor, coordenador e gestor escolar. Durante os anos em que lá estive, por

algumas vezes, tive a oportunidade de conhecer e visitar os moradores da comunidade de

Morrinhos para estreitar relações e, ao mesmo tempo, conhecer a realidade dos alunos e dos

moradores da comunidade atendida pela escola.

Nessas visitas, ao longo dos anos, senti despertar em mim a curiosidade e a

necessidade de compreender sobre a forma como uma comunidade quilombola, com saberes e

fazeres peculiares e de aspectos culturais tradicionais, era percebida no currículo escolar da

escola municipal de Morrinhos, tendo em vista que, supostamente, por ser uma escola local,

poderia apresentar experiências importantes no trato pedagógico da cultura quilombola.

Trilhando esse caminho, no segundo semestre de 2015, já oficialmente pesquisador

acadêmico, apresentei-me às lideranças locais do município de Poconé e comunidade de

Morrinhos como pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso, na linha de pesquisa

Movimentos Sociais, Política e Educação Popular. Na ocasião, explicitei à Secretária de

Educação de Poconé a propositura desta pesquisa e os possíveis benefícios para a comunidade

e o município. Nesse mesmo contexto, solicitei anuência para que pudesse transitar e

aproximar-me do campo de pesquisa, com o que as educadoras concordaram prontamente.

O passo seguinte foi, em agosto daquele mesmo ano, contatar a comunidade de

Morrinhos, especificamente, a senhora Rosilda, Presidente da comunidade, e o docente da

escola de Morrinhos, professor José Ilário. Ressalto que já os conhecia; a primeira, porque

frequentemente estava em Cangas, participando das reuniões dos pais e mestres daquela

escola, e o segundo, por trabalharmos juntos na escola “Dom Francisco de Aquino Corrêa”,

entre os anos de 2006 e 2012, em Cangas. Assim, houve tranquilidade na minha inserção no

referido campo de pesquisa. Para ambos, explicitei os propósitos e benefícios da pesquisa em

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relação à comunidade e à escola e, concomitantemente, solicitei a sua anuência para assistir às

aulas e partilhar das vivências na comunidade, o que prontamente acolheram.

Em setembro de 2015, retornei ao campo de pesquisa; dessa vez, para conversar com

as pessoas mais antigas do lugar com o intuito de recolher as primeiras informações sobre o

histórico da comunidade. Dessa forma, realizei algumas entrevistas com os senhores Gonçalo,

Joanito e Sebastião e com a presidente da associação, senhora Rosilda.

Nesse particular, destaco que os contatos foram os melhores possíveis. Os senhores

Gonçalo, Joanito, Sebastião, Dionízio e senhoras Leonilza e Rosilda sempre se mostraram

receptivos, com sorriso acolhedor, e facilitaram os diálogos que ocorreram nos meses

seguintes.

A partir de outubro de 2015, as visitas se tornaram mais frequentes, seja nos dias

letivos da escola ou mesmo nos finais de semana, proporcionando-me aproximação máxima

do cotidiano das pessoas de Morrinhos. Assim, pude verificar como vivem e moram, os

manejos do campo, o que plantam e como ocupam os espaços sociais, a escola, a igreja, o

centro comunitário, o campo de futebol, e como são estabelecidas as relações com as

comunidades circunvizinhas.

Naquele contexto, pude registrar uma coletânea do acervo oral da comunidade,

especificamente, as principais narrativas míticas partilhadas em Morrinhos: “O Martelinho de

Ouro”, “O Lobisomem”, “A ave encantada”, “O Boi sem Cabeça”, “A lenda do Padre”, “O

Minhocão do rio Bento Gomes” e “os mistérios do Arco Íris”, dentre tantas outras, que

povoam o universo cultural dos moradores daquela comunidade.

Cabe ressaltar que os anciãos e anciãs foram os protagonistas primeiros dessas

histórias, à medida que guardam em si mesmos a experiência do vivido. Detentores desse

saber, eles gostam de narrar as histórias que contam. Em Morrinhos, destacam-se como

contadores de história os senhores Gonçalo, Sebastião, Joanito e senhora Leonilza, dentre

outros, que exercem essa função no grupo. Nessa propositura, os tradicionalistas Hampaté Bâ

(2010) e Vansina (2010) ensinam-nos sobre a importância dos contadores de histórias nas

comunidades africanas como aqueles que abarcam a memória viva do grupo e ajudam a

preservar as tradições locais.

A exegese do trabalho de pesquisa continuou ao longo do primeiro semestre de 2016,

de maneira que era comum passar o dia na comunidade, conversando e ouvindo as narrativas

em rodas de conversas, principalmente nos dias que antecediam às festas. O rico cotidiano

oportunizou-me momentos preciosos de coleta de dados, seja na preparação para o palco dos

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bailes ou após o almoço nas casas dos senhores Joanito e Gonçalo, ou mesmo depois da roda

de Cururu e Siriri, nas festas de São Bento e São João. Esses momentos, algumas vezes,

estenderam-se aos intervalos das aulas da escola de Morrinhos com o professor e os alunos.

A comunidade é pequena, possui apenas 92 moradores, divididos em 24 residências.

Nela, não há hotéis, mas como localiza-se próximo a Cuiabá, onde resido (aproximadamente

120 km), deslocava-me com certa facilidade. Costumeiramente, a rotina de deslocamento era

a seguinte: partia de Cuiabá às 05h30min e chegava às 06h45min em Morrinhos; outras vezes,

pernoitava nas localidades próximas, como Cangas, Livramento ou Poconé, em casas de

amigos.

As perspectivas acerca das pesquisas em quilombos no Brasil mostraram que há

escassos trabalhos voltados à área de educação em comunidades quilombolas no país; os

poucos que existem foram realizados, especificamente, nas regiões Sudeste e Nordeste,

conforme delineado nas pesquisas de revisão sistemática integrativa, de Castilho e Ferreira

(2014) e, a posteriori, em Castilho e Carvalho (2015).

As pesquisadoras utilizaram como fonte as plataformas Sucupira, Biblioteca Digital

Brasileira de Teses e Dissertações, Biblioteca Nacional de Educação, entre outras. Nesse

percurso, foram localizadas 136 pesquisas, das quais 110 dissertações e 26 teses. No conjunto

de trabalhos, foram encontradas duas pesquisas que abordavam narrativas, sendo que quatro

tratavam sobre memória e cinco sobre saberes.

Destaco duas pesquisas que considerei importantes por discorrerem sobre narrativas

em quilombo: Moreira (2013) e Oliveira (2010). O primeiro autor narra os fazeres das festas

populares da comunidade de Kalunga II, em Goiás, onde se evidenciou a importância da

oralidade para os aspectos socioculturais partilhados na comunidade. Os resultados dos

estudos de Moreira (2013) apontaram a importância das festas de santo na comunidade como

momentos preciosos de trocas de experiências e vivências mútuas entre os quilombolas de

Kalunga II.

Na pesquisa de Oliveira (2010), intitulada: “Movimento de reconstrução da memória

da comunidade de Quenta Sol, Bahia”, o autor transitou pelas narrativas da comunidade negra

rural do sul da Bahia, evidenciando sua cultura e memória, bem como a influência delas no

fortalecimento das raízes e no sentimento de pertencimento dos sujeitos do quilombo. Para

esse propósito, centrou seu olhar na função social dos anciãos e anciãs de Quenta Sol,

utilizando a metodologia proposta pela História Oral. O trabalho com os idosos foi importante

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para que Oliveira (2010) pudesse reconstruir o Ethos da comunidade a partir do olhar dos seus

colaboradores.

Em Mato Grosso, encontrei um total de 12 pesquisas que versavam sobre

comunidades quilombolas, nas seguintes comunidades: Abolição, Campina de Pedra, Mata

Cavalo, Morrinhos, Vão Grande e Vila Bela da Santíssima Trindade. Dois desses trabalhos

foram realizados em Morrinhos, por Pereira (2013) e Santos (2016). A primeira pesquisa

dialoga com questões inerentes ao campo da saúde em comunidades quilombolas; na segunda,

Santos (2016) abordou a temática das políticas públicas voltadas para o público jovem, ao

refletir sobre: “O cotidiano dos jovens remanescentes de quilombo em face à implementação

de políticas públicas para a juventude”.

Os resultados das pesquisadoras apontaram, apesar dos avanços nas legislações das

últimas décadas para os quilombos, a ausência e/ou precariedade de efetivação dos serviços e

políticas públicas direcionadas à população quilombola. Essas mesmas agruras, situações de

desamparo por parte do Estado, pude constatar em minhas observações em seis audiências

públicas realizadas no Estado de Mato Grosso, nos anos de 2015 e 2016, sobre a modalidade

de Educação Quilombola.

No campo da oralidade, é importante destacar a dissertação de mestrado de Leite

(2002), que dialogou sobre a “Pedagogia da Oralidade”. Na sua pesquisa, o autor evidencia

os valores concernentes à tradição oral do povo de Vila Bela da Santíssima Trindade, em

Mato Grosso, e coteja o papel desempenhado pelos anciãos dessa cidade para a preservação

dos saberes e valores da população negra que ali reside, pela oralidade.

Os resultados apontaram para o importante papel da escola no sucesso (ou não) de se

trabalhar a oralidade em sala de aula, uma vez que a escola ainda opta por privilegiar a escrita,

em detrimento da oralidade. As observações do autor mostraram que a escola não tem dado a

devida relevância às questões concernentes ao diálogo, à linguagem e à tradição oral, ainda

que ela permeie os valores, fazeres e saberes sociais locais. Assim sendo, o papel e a função

dos anciãos, que representam a linguagem viva dos antepassados, são esquecidos pela prática

cotidiana escolar, levando à perda dos conhecimentos espontâneos, das vozes e dos saberes

empíricos da comunidade (LEITE, 2002).

Conforme ficou evidenciado pela revisão sistemática desenhada em linhas anteriores,

são escassos os trabalhos existentes que abordam a temática de estudos sobre quilombos

contemporâneos no país; da mesma forma, são escassos em Mato Grosso, sobretudo no que

diz respeito às narrativas orais e sua importância.

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Diante desse contexto, esta pesquisa procurou levantar e provocar reflexões; ao

mesmo tempo, empenhou-se em ampliar os debates sobre o ethos vivenciado em comunidades

quilombolas, enfatizando um currículo escolar capaz de contemplar as práticas culturais

tradicionais quilombolas, principalmente nas escolas que estão situadas no seio das

comunidades quilombolas. Nesse contexto, foi desenvolvida a pesquisa.

Ao voltar o olhar sobre as narrativas míticas de Morrinhos, busquei inspiração em

leituras que pudessem ampliar o arcabouço teórico sobre o tema, de maneira que o olhar de

Campbell (1990), voltado aos estudos dos mitos e seus significados, propiciou-me enxergar os

significados emanados pelas narrativas míticas e sua importância para os seres humanos. Para

o autor, os mitos carregam em seu bojo mensagens culturais que propiciam aos grupos

humanos entenderem o ambiente em que vivem e partilham socialmente. Por esse viés, sua

reflexão abarca a ideia de que há todo um universo invisível que sustenta o visível, cabendo às

narrativas míticas navegar num enredo que envolve o sobrenatural e o fantástico.

Outra importante fonte de apoio foram as concepções de Kruger (2011), ao enfatizar

que as lendas míticas são histórias que misturam o real e o fictício, criadas de forma

espontânea, mas que necessitam da figura de um narrador para lhes dar vida e forma.

Portanto, trata-se da figura dos contadores de histórias, que evidenciam nas narrativas versões

próprias e (re) interpreta-as a cada instante em que são repetidas às novas gerações no túnel da

cronologia.

Para o tradicionalista Hampaté Bâ (2010), que nos fala sobre a origem do vocábulo, a

palavra teria surgido a partir do momento em que Deus (Maa Ngala), ao fazer a natureza

incompleta, criou o homem (Maa) para dar continuidade à sua obra e aperfeiçoá-la. Para que

isso acontecesse, houve necessidade de criar entre ambos uma forma de comunicação. Então,

nesse contexto, surgiu o verbo, a palavra, a voz, a expressão mágica que ecoa no túnel do

tempo e do espaço, fruto da ponte dialógica e íntima entre os seres humanos e os deuses, que

se deu pelo sopro divino. A palavra, de divina, tornou-se, então, sagrada (HAMPATÉ BÂ,

2010).

A narrativa mítica que o autor relata é feita na perspectiva de uma das tribos africanas

e demarca que os seres humanos são autênticos narradores de sua própria existência; as

histórias que contam fazem parte de outras narrativas, o que os torna narradores de suas

próprias vidas. Theodore (2005, p. 85) infere: “A palavra negro-africana tem um sentido

abrangente, sendo elemento constitutivo da identidade profunda da comunidade, é uma arte.”

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Nas palavras de Thompson (1992, p.17): “A memória de um pode ser a memória de

muitos, possibilitando a evidência de fatos coletivos.” Os idosos são fontes preciosas de

experiências, e navegar nesses “baús de memórias” ajuda-nos a compreender o que e como

grupos de gerações passadas viviam e partilhavam seus aspectos socioculturais. Halbwachs

(1990) ensina-nos que há tantas memórias quanto o número de grupos existentes, perspectiva

corroborada por Nora (1993, p. 8): “a memória é a vida sempre carregada por grupos vivos.”

A atividade do lembrar é muito escassa numa sociedade capitalista que não valoriza e

respeita aqueles que já não possuem mais tanta energia e braços fortes para servir ao capital.

Bosi (2015) foi assertiva ao demarcar os alicerces da sociedade contemporânea, vincada no

papel do capital, no ter e possuir, portanto, essencialmente excludente com os despossuídos,

sobretudo, os idosos, posto que já não têm a vitalidade da juventude e, então, permanecem à

mercê das famílias e no esquecimento nas grandes e médias metrópoles.

Por esse caminho, quando as pessoas chegam à velhice e possuem algum lastro

financeiro ou bens materiais, mesmo que uma pífia aposentadoria, parte delas é explorada por

aqueles que as acompanham. Essa questão foi demonstrada pelos dados da recente pesquisa

do Governo Federal (2016), tendo como objeto o disque 100. Nesse instrumento de denúncia

de violação dos direitos dos idosos no Brasil, do Ministério da Justiça e Cidadania, consta que

77,66% dos idosos são vítimas de negligência, 51,7% de violência psicológica, 38,9% de

abuso financeiro e 26,46% de violência física ou maus tratos.

De posse desses dados e no eco das reflexões sobre a importância da memória para a

cultura das sociedades, o objetivo geral desta pesquisa foi o de pensar o fazer escolar para

além dos muros escolares; ao mesmo tempo, compreender as práticas pedagógicas

curriculares da Escola Municipal de Morrinhos nos seus aspectos documentais e pedagógicos,

com a finalidade de entender qual o lugar que a escola reserva aos saberes e fazeres da

comunidade, especialmente considerando as narrativas míticas partilhadas pelos anciãos e

pelas anciãs da localidade.

Nessa perspectiva, com o intuito de responder a tal desafio, foram propostos outros

objetivos de forma mais específica, como descrever o universo quilombola de Morrinhos em

seus aspectos históricos, identitários e culturais onde a escola está inserida; identificar e

descrever as histórias orais narradas, tais como as lendas míticas da comunidade de

Morrinhos; compreender como os materiais didáticos, o Plano Político Pedagógico e as

práticas pedagógicas da Escola Municipal de Morrinhos contemplam as narrativas míticas.

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Para tanto, foram escolhidas três categorias de sujeitos a serem entrevistados: quatro

anciões, quatro alunos e um professor, que tinham em comum a sua vivência no espaço

sociocultural da comunidade de Morrinhos. Cabe ressaltar que o trabalho de campo foi

realizado ao longo do segundo semestre de 2015 e durante o ano de 2016. Para ser

apresentada, a pesquisa foi desenhada em quatro capítulos, que didaticamente contribuem

para apontar os resultados encontrados e descritos nas considerações finais.

O escopo do primeiro capítulo refere-se aos aportes teóricos e metodológicos

utilizados na pesquisa, em que foram esboçadas as discussões acerca do processo histórico da

relação entre o ser humano e o conhecimento. Também desenho os contornos a respeito dos

aspectos metodológicos utilizados na presente pesquisa, quando recorri às perspectivas de

Alberti (2013), Holanda e Meihy (2014), Geertz (2008) e Elias (2000), que guiaram esse

trajeto.

No segundo capítulo, discorro sobre a descrição densa e histórica da comunidade de

Morrinhos, do seu surgimento aos dias atuais. Reflito ainda sobre o conceito de quilombo e

relações raciais. No intuito de dialogar com essas temáticas inspirei-me nas contribuições de

Castilho (2011), Moura (1988), Seyferth (1995), dentre outros. As leituras foram importantes

para interpretar os fatos acontecidos no período escravocrata e posteriormente, bem como

cotejar os fatos à luz dos acontecimentos históricos pontuados pelos autores. Para eles, as

raízes onde se assentaram os pilares de injustiças e discriminações perpetrados à população

negra se alicerçaram no passado.

No terceiro capítulo, apresento as narrativas míticas do universo sociocultural de

Morrinhos, especialmente as lendas que circulam naquela comunidade quilombola, dentre

elas: “A Lenda do Padre”, “O Minhocão”, “O Boi Sem Cabeça”, “Ave Encantada”, “O

Martelinho de Ouro”, “O Arco Íris” e “O Lobisomen”, que, de alguma forma, retratam

aspectos culturais e míticos do grupo pesquisado; ao mesmo tempo, vislumbro a função social

desempenhada pelos contadores de histórias da comunidade, anciãos e anciãs. Para dialogar

com essa perspectiva, recorri aos aportes teóricos de Bosi (2015), Campbell (1992) Hampaté

Bâ (2010), Vansina (2010), Thompson (1992), Benjamim (1986), Halbwachs (1990), dentre

outros.

No último capítulo, faço o registro e as análises do Projeto Político Pedagógico da

escola da Comunidade de Morrinhos e do livro didático do 4° ano ali utilizado: “Saberes e

Fazeres do Campo” (2014), incluindo as práticas pedagógicas escolares. Para tanto, utilizei as

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contribuições de Castilho (2011), Pacheco (2003), Sacristán (1999), Silva (2011, 2014),

dentre outros.

Após as reflexões realizadas nos capítulos, sigo pontuando considerações no intuito de

contribuir com as reflexões sobre a modalidade de educação quilombola do Estado de Mato

Grosso; sobretudo, tento instigar nos profissionais da educação e gestores a importância da

valoração de práticas pedagógicas alicerçadas em saberes e fazeres locais, tema que por si só

suscita novos e mais profundos estudos nessa perspectiva.

Em tempo, registro que o projeto de pesquisa intitulado: “As narrativas míticas da

comunidade de Morrinhos / Poconé /MT e os fazeres escolares” foi submetido ao Conselho de

Ética da Universidade Federal de Mato Grosso, na Plataforma Brasil, em 2015, e foi

aprovado. Ao mesmo tempo, ressalto que esta pesquisa possui todos os termos de

assentimento assinados pelos participantes e colaboradores da pesquisa: moradores, professor

e alunos.

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CAPÍTULO I – PASSOS METODOLÓGICOS

Este capítulo tem por finalidade esclarecer os procedimentos utilizados no passo a

passo da pesquisa, quando busquei ouvir as vozes dos colaboradores de Morrinhos

concernentes aos saberes e fazeres naquela comunidade. Assim, foram realizadas diversas

visitas ao campo de pesquisa durante os anos de 2015 e 2016, perfazendo um total de 15

inserções na comunidade.

1.1 A RELAÇÃO DO SER HUMANO COM O CONHECIMENTO

No longo percurso da história, os seres humanos foram questionadores do ambiente

em que viviam, procurando elucidar e explicar as diversas dimensões vivenciadas em seus

caminhos. As respostas aos movimentos de causas e efeitos, vinculadas ao cotidiano das

pessoas e seu universo, eram obtidas pelo oráculo dos deuses, os únicos responsáveis por

proporcionar as respostas necessárias às indagações frequentes desse ser humano cada vez

mais questionador (GEERTZ, 2008).

Séculos depois, as pesquisas de campo e conjecturas das ciências sociais,

especificamente voltadas ao campo sociológico e antropológico, apostaram em novos

parâmetros para direcionar os questionamentos do objeto de pesquisa. Nesse seguimento,

Denzin e Lincon (2006) mencionam que a pesquisa qualitativa é uma atividade situada que

localiza o sujeito observador no mundo e, ao mesmo tempo, é um conjunto de conhecimentos

aplicados à investigação antropológica e social consolidada em momentos de transições

paradigmáticas.

Ainda com base nas afirmações dos autores, a pesquisa qualitativa teve o seu início no

final do século XIX, aprofundando suas raízes na segunda metade do século XX, na década de

setenta. Esse modelo epistemológico contrariava o modelo de Comte, em evidência na época,

e sofreu, a princípio, muita resistência e crítica por parte do meio acadêmico, defensor do

método científico racional, apoiado no modelo positivista.

Nesse período, foram intensas as reflexões sobre os dois paradigmas de investigação,

na medida em que, para André (2012, p. 16), os “cientistas sociais defendem a perspectiva

idealista-subjetivista de conhecimento e estabelece-se um amplo debate entre o quantitativo e

o qualitativo.” Mas o fato é que a pesquisa qualitativa se consolidou no século XX como

sendo uma ferramenta teórica das mais importantes e necessárias aos pesquisadores das

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ciências sociais, que apontaram três principais caminhos: o interpretativismo, a hermenêutica

e o construcionismo.1 Cada um deles reunia posturas, perspectivas, métodos e objetivos

peculiares, mas, na essência, desenhavam e manifestavam um desejo e postura relacionados à

crítica social.

No meio efervescente e difuso de muitas teorias produzidas pelos seres humanos,

Geertz (1997) trabalha a noção de irregularidades de proposituras científicas. Para ele, a

antropologia, no esforço de explicar tudo que nos rodeia, tem na etnografia a sua maior aliada.

Nesse mesmo sentido, afirma que aquilo que se observa está intimamente ligado à posição do

sujeito. Argumenta Geertz (1997, p. 11): “a antropologia sempre teve um sentido muito

aguçado de que aquilo que se vê depende do lugar que foi visto.” O que se percebe nas

palavras do autor é que o discurso do sujeito depende muito da perspectiva em que se

encontra no seio social.

1.2 ASPECTOS METODOLÓGICOS

Na pesquisa de campo, trabalhei concomitantemente com dois métodos: o etnográfico,

proposto por Geertz (1989, 2008), e a história oral, gênero da tradição oral amparado em

Holanda e Meihy (2014), por entender que as técnicas conjugadas melhor cotejariam o objeto

pesquisado. A entrevista semiestruturada foi a principal ferramenta utilizada para coletar os

dados, somada à observação participante.

Nesse sentido, além do professor e alunos, foram entrevistados quatro anciões,

residentes na comunidade de Morrinhos e considerados pela coletividade os guardiões da

história do grupo. A escolha dos anciões faz referência às considerações de Hampaté Bâ

(2010) e Vansina (2010), por destacarem o importante papel dos idosos em comunidades

tradicionais africanas ou afro-brasileiras, na qualidade de guardiões das histórias e esteio

histórico e cultural que sustenta o grupo a que pertencem.

A história oral tem se mostrado uma ferramenta metodológica e social importante nos

meios acadêmicos, uma vez que proporciona visibilidade aos grupos oprimidos,

1 Dadas as profundas diferenças entre as ciências humanas e naturais, quanto à natureza e à finalidade, Denzin e

Lincoln (2006) argumentam que o interpretativismo e a hermenêutica possibilitaram às ciências humanas

elementos analíticos subjetivos para compreender a ação humana, e por sequência contrapunha-se ao modelo

vigente e dominante à época (positivismo, no início século XX). Os mesmos autores delineiam que o

construcionismo operava no sentido de desvelar a dimensão ideológica, histórica e sociocultural da construção

do conhecimento, por entender que o conhecimento é político, ideológico e permeado por valores.

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marginalizados e silenciados pela história oficializada. Ademais, tais narrativas têm se

mostrado eficazes e pertinentes para o debate social no tocante às concepções de memória e

história. Elas reforçam os reflexos dessa relação na vida das pessoas para além da simples

preservação da informação e, de igual forma, representam um significado de resistência.

Nesse sentido, há muito a conhecer, compreender e aprender sobre os quilombos

contemporâneos, assim como sobre os saberes e fazeres culturais de seus habitantes.

As entrevistas foram feitas nas residências dos colaboradores, conforme o tempo e a

disponibilidade de cada entrevistado. O roteiro de entrevista semiestruturada buscou conhecer

e registrar as narrativas mais ouvidas/contadas na comunidade e, sobretudo, os sentidos

subjacentes a elas. Ou seja, procurou-se explorar o aprendizado/ensinamento que se pode

extrair das mensagens das narrativas míticas contadas.

A análise das narrativas está calcada na técnica da análise de conteúdo, proposta por

Bardin (1995), em observância à postura interpretativa encampada por Geertz (1989, 2008).

Para a primeira autora, a análise de conteúdo busca o recorte e a organização de temas em

torno de enunciados prenhes de significado. Para o segundo autor, o ser humano emana

significados adquiridos culturalmente e os reproduz.

Embrenhar-se na aventura dessa proposta de leitura requer ir além do que os olhos

veem. Ou, melhor dizendo, é preciso perceber os aspectos mais sutis que perfazem o discurso

sociopolítico e cultural de um povo, de uma comunidade. Deve-se, portanto, em respeito à

história que lhes é própria, guardar a sensibilidade de ler com os sentidos, percebendo nas

narrativas os saberes e fazeres socioculturais dos sujeitos, por meio dos significados que eles

mesmos atribuem ao vivido.

1.3 O MÉTODO ETNOGRÁFICO

O método etnográfico trabalhado nesta pesquisa é o proposto por Geertz (1989, 2008,

1997, 2001), cujo propósito essencial é o de aproximar o pesquisador do ambiente a ser

pesquisado, nesse caso, a comunidade de Morrinhos. Nesse mesmo sentido, André (2012) nos

ensina que tal método possibilita ao pesquisador ter um olhar holístico com os sujeitos

colaboradores da pesquisa, na medida em que estuda os fenômenos em seu estado natural.

André (2012, p. 17) postula “uma visão holística dos fenômenos, isto é, que leve em conta

todos os componentes de uma situação em suas interações e influências recíprocas.”

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Assim, em um trabalho cuja dimensão a ser pesquisada tem na etnografia a sua

essência, o pesquisador deverá descrever minuciosamente a percepção e visão de mundo dos

colaboradores da pesquisa. É interessante ressaltar, nessa direção, as análises de Geertz

(2001):

No trabalho etnográfico de campo, o que fazemos que os outros não fazem, ou só

fazem ocasionalmente, e não tão bem feito, é (segundo essa visão) conversar com o

homem do arrozal ou a mulher do bazar, quase sempre em termos não

convencionais, no estilo “uma coisa leva a outra e tudo leva a tudo o mais”.

(GEERTZ, 2001, pp. 89-90).

Portanto, com Geertz (2001) aprendemos que o trabalho etnográfico ressalta a

importância de estar lado a lado, ombro a ombro, com os protagonistas da pesquisa, para que

nesse processo dialogal seja criada uma atmosfera amena e próspera de relações que permitam

maior proximidade entre pesquisador e sujeitos.

Por esse viés, Geertz (2001, p. 171) enfatiza: “[...] vivemos um mar de história,

aprender a nadar nesse mar, a construir histórias, perceber o verdadeiro sentido das histórias e

usar as histórias para descobrir como funcionam as coisas e o que elas são.” Esse é o desafio

colocado pelo autor ao pesquisador diante de um trabalho de pesquisa etnográfica: procurar

registrar as vozes do que os outros disseram sempre na perspectiva do olhar dos sujeitos.

Portanto, o viés da etnografia propiciou-me realizar a descrição densa e precisa de

Morrinhos e, concomitantemente, buscar os elementos e subsídios para delinear, de forma

criteriosa, as mensagens contidas nas narrativas proferidas pelos contadores de história.

Aprende-se com Geertz (1989, 2008) que, para andar nos meandros etnográficos, é necessário

fazer uma descrição peculiar e profunda da comunidade, no sentido de não falar pelos

sujeitos, mas registrar minuciosamente as vozes emanadas pelos colaboradores.

Nesse mesmo sentido, busquei observar o cotidiano da comunidade; na escola, desde a

estrutura física às práticas pedagógicas; nas festividades, momentos em que foi possível notar

os laços de amizade, união e respeito partilhados mutuamente e que unem os moradores,

mesmo aqueles que já deixaram Morrinhos e foram morar em Várzea Grande, Cuiabá e

Poconé, mas nos períodos em que retornam são recebidos com alegria e acolhimento.

Os momentos de partilha na comunidade revelam que a maioria das ações é coletiva,

não somente nos dias festivos, mas na colheita, no mutirão, na maneira com que os vizinhos

se mostram parceiros. Observei os fazeres socioculturais da comunidade de Morrinhos nos

eventos principais, como as festas de São Benedito, São João, São Bento e São Lázaro.

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Outro foco de observação do cotidiano da comunidade foi a escola em Morrinhos.

Naquele contexto, perseguimos as orientações de Bogdan e Biklen (1994), para quem a

observação do ethos do grupo pesquisado deve ser pormenorizada. Essa abordagem propicia

entender os diversos significados emitidos pelos sujeitos na conjuntura sociocultural, uma vez

que no grupo há partilha de valores, fazeres e saberes muito densos vivenciados pelos sujeitos

de Morrinhos.

Ao mesmo tempo, permaneci consciente de que o levantamento de dados, bem como a

sua análise, se tornariam atividades permanentes, posto que, pelo olhar de Minayo (1996), tais

procedimentos demandam grande esforço por parte do pesquisador. Tal dedicação pode ser

vista nas relações que devem ser estabelecidas entre práxis e teoria, uma vez que a pesquisa

etnográfica qualitativa é um processo inacabado, que, portanto, exige do pesquisador uma

exegese frequente na combinação da teoria com os dados coletados (MINAYO, 1996).

Diante disso, o modelo etnográfico de pesquisa qualitativa, tendo como marcas

peculiares a observação descritiva, minuciosa e densa, possibilitou ao pesquisador ir in loco e

aprofundar-se nas mais diversas dimensões do contexto sociocultural de Morrinhos,

vivenciando o dia a dia das pessoas, professores, alunos e comunidade.

Então, a partir desse movimento, foi possível realizar um recorte preciso do contexto

pesquisado, evidenciando as vozes expressadas pelos anciãos e anciãs, jovens e adultos

daquela comunidade e, ao mesmo tempo, sublinhá-las nos modelos de configurações sociais

presentes no corpus da pesquisa.

Posto dessa forma, como se sabe, as questões inerentes à identidade, pertencimento e

territorialidade são marcas importantes vivenciadas pelas comunidades negras e

afrodescendentes. Em Morrinhos não foi diferente no que se refere às dimensões espaciais,

experiências tensionadas por conflitos e litígios pelo direito à terra, envolvendo regularização

fundiária, fazendeiros e garimpeiros que fazem divisa com a comunidade.

As histórias aqui contadas pelos sujeitos de Morrinhos foram analisadas à luz do olhar

colocado pelo grupo, sujeitos que continuam sendo protagonistas do contexto descrito e

narrado neste estudo. Nesse mesmo sentido, Geertz (1989, p. 16) ressalta que: “ver as coisas

do ponto de vista de ator, [...], deve ser executada com o máximo de cuidado. Nada mais

necessário para compreender o que é a interpretação antropológica, e em que grau ela é uma

interpretação.”

O olhar holístico sobre os ombros dos sujeitos de Morrinhos, proporcionado pelo viés

interpretativo etnográfico, subsidiou-me a percepção das diversas e diferentes dimensões

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socioculturais de Morrinhos. Nessa perspectiva, pude descrever os significados e

considerações gerais a respeito de como a comunidade percebe o simbólico e os rituais do

cotidiano social, bem como o seu modo de atribuir valor ao ser e ao ter, à amizade, à dádiva, à

religiosidade, ao pertencimento, à práxis escolar, às festas, aos saberes e fazeres partilhados

no dia a dia.

Bogdan e Biklen (1994) referem-se ao olhar holístico como sendo um dos principais

objetivos a serem perseguidos por aqueles que trabalham e lidam com o método etnográfico

qualitativo. Portanto, é preciso focar as energias no campo da compreensão e interpretação

holística do seio social, uma vez que os sentidos emitidos pelos colaboradores no grupo dão

uma dimensão exata do desafio encontrado pelo pesquisador.

Acrescenta Elias (2000) que a pesquisa etnográfica antropológica social é um

ambiente rico de possibilidades interpretativas, e que cabe aos pesquisadores permanecerem

atentos às diversas dimensões dos fenômenos sociais existentes, dada a dinamicidade e a

complexidade do corpus social, o que exige um permanente estado de vigilância diante do

objeto que eles propõem pesquisar.

Na perspectiva de Denzin e Lincon (2006), usando-a como uma metáfora, os autores

se referem à bricolagem complexa do contexto sociocultural, ou seja, durante o processo de

coleta e interpretação dos dados, o pesquisador acaba por se tornar uma pessoa que

confecciona e costura o texto/tecido social, em “colchas”. Em outras palavras, são

interpretadores de discursos textuais,

Nesse sentido ao escolher e realizar o recorte de determinado aspecto do grupo a ser

pesquisado, têm na observação o seu maior aliado, para que, dessa forma, possa compreender

e interpretar os significados emanados pelos tecidos/textos dos sujeitos, e, assim, confeccionar

e bordar a “peça de roupa ideal planejada” no projeto, qual seja, o resultado da explicação

analítica interpretativa pormenorizada dos sujeitos da pesquisa.

Os aportes teórico-metodológicos de Denzin e Lincon (2006), Elias (2000) e Geertz

(1989, 2008) propiciaram a compreensão do percurso social pesquisado, uma vez que esta

pesquisa foi trabalhada a partir da abordagem qualitativa.

No que tange à abordagem, Elias (2000) realizou uma comparação entre os dois

modelos de configuração sociológica de pesquisa, o quantitativo e o qualitativo. No primeiro

caso, os dados são obtidos isoladamente, sem preocupação com o contexto social; por outro

lado, no modelo qualitativo, tal perspectiva demanda exegese do pesquisador, pois deve ater-

se à complexidade do corpus do tecido social, principalmente no que se refere ao lugar em

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que se encontra o sujeito, no momento em que se apropria e reproduz determinado discurso

do grupo, dado o alto grau de subjetividade das relações sociais.

Na perspectiva esculpida por Geertz (1989), ao pesquisar determinada comunidade,

aldeia ou cidade, o etnógrafo deverá ter em mente que a sua pesquisa é somente um recorte

representativo de um momento histórico e de uma comunidade. Há de observar, por sua vez,

que a cultura é dinâmica e incompleta. Geertz (1989, p. 39) ainda acrescenta: “A análise

cultural é intrinsecamente incompleta, e o que é pior, quanto mais profunda, menos

completa.”

Nesse sentido, o pesquisador, ao analisar um determinado recorte de pesquisa em um

grupo social específico, deverá entender que o seu caminhar dentro do campo de pesquisa é

apenas uma síntese, que não tem início nem fim, posto que o movimento nas configurações

sociais é dinâmico e complexo e sempre demandará novos estudos e análises futuras, haja

vista não existirem respostas definitivas. Conforme Elias (2000):

Tal como as hipóteses, as teorias em geral, eles representam ampliações, progressos

ou aperfeiçoamentos do reservatório de conhecimentos existentes, mas não pode ter

a pretensão de ser um marco final, absoluta na busca do saber, marco este que, como

a pedra filosofal, não existe. Os modelos e os resultados das pesquisas de

configurações fazem parte de um processo, de um campo crescente de investigação,

à luz de cujo desenvolvimento estão eles mesmos sujeitos a revisões, críticas e

aperfeiçoamentos, fruto de novas investigações. (ELIAS, 2000, p. 57).

Os autores Bogdan e Biklen (1994) argumentam que o pesquisador, ao realizar uma

observação etnográfica dentro de uma configuração social, deve revelar em seu recorte aquele

instante pesquisado, na medida em que as múltiplas dimensões são variáveis e instáveis. Tais

interpretações devem ater-se ao proposto, pois a análise da pesquisa sociológica procura

“fotografar” os discursos dos sujeitos dentro de um determinado recorte sociocultural.

Os desafios apontados pelos autores no processo de desvelamento dos elementos

sociais, que explicam o cenário pesquisado e, consequentemente, o recorte na ambiência

delimitada pelo pesquisador, torna-o consciente de que se trata apenas de uma fração de

material que ele dispõe para fundamentar as suas inferências relacionadas ao tema pesquisado.

Diante dessa perspectiva, praticar etnografia é estabelecer uma leitura e releitura do corpus

pesquisado. Conforme reporta Geertz (1989):

Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”)

um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas

suspeitas e comentário tendencioso, escrito não com os sinais convencionais

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do som, mas com exemplos transitórios de comportamentos modelados.

(GEERTZ, 1989, p. 7).

Em Morrinhos, pude experienciar o que seja etnografia, pois consegui reconhecer nos

discursos dos anciãos e anciãs, alunos e professor o que e como eles percebem as situações

que permeiam o cotidiano da comunidade. Neles, percebia-se a reprodução de seus fazeres

como comportamentos modelados pela trajetória do grupo. Por exemplo, a roça que os

senhores Gonçalo, Joanito e Sebastião cultivam, fruto de mais de meio século de reprodução

do modus vivendi de subsistência familiar.

Nesse sentido, percebi que os gestos de união, respeito e solidariedade são fortalecidos

no grupo; conforme reforçam Hampaté Bâ (2010) e Vansina (2010), pois para os autores são

valores tradicionais arraigados e “tatuados na pele” das comunidades negras e

afrodescendentes.

As proposituras de Geertz (1989, 1997) auxiliaram em todos os processos de

observação e descrição in loco da pesquisa, principalmente nas interações sociais com os

moradores de Morrinhos. O método etnográfico proposto por Geertz (1989, p. 32) sugere que:

“Os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças), eles estudam nas

aldeias.”

Portanto, houve a necessidade, ao pesquisar, de observar com sensibilidade, respeito e

ética, as dimensões socioculturais de Morrinhos, seja na escola, ao observar as aulas do

professor, seja nas entrevistas realizadas com os moradores anciãos e anciãs. Além das falas

dos sujeitos, daquilo que era dito, valorizou-se também o não dito, exposto nos gestos,

expressões, olhares, intensidade da voz. A cada gesto, a necessidade de compreender, sob o

olhar do outro, aquilo que a descrição densa e minuciosa dos relatos e observações

proporcionou-me.

1.4 O MÉTODO HISTÓRIA ORAL

Outro aporte teórico-metodológico muito importante, utilizado para a realização desta

pesquisa foi o método de história oral, referendado por Holanda e Meihy (2014) e Alberti

(2013). Esses autores auxiliaram a pensar na perspectiva da história oral e, assim, ouvir e

anotar as narrativas míticas mais comuns que são reproduzidas no imaginário coletivo da

comunidade de Morrinhos e cotejá-las à luz da práxis pedagógica escolar.

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O método da história oral nasce na fonte das histórias contadas pelo homem no curso

da sua vida. O que podemos observar é que grande parte de nossa história foi produzida e

reproduzida pelo viés de sociedades ágrafas, que tinham na oralidade a forma de reprodução

de fazeres e saberes socioculturais, conforme podemos ler em Holanda e Meihy (2014):

A afirmação corrente diz que a história oral é tão antiga como a própria História,

mas isso é vago. Fala-se mesmo que toda a história antes de ser escrita passou por

etapas narrativas ou manifestações da oralidade aferidas há séculos. O pilar dessa

afirmação é a certeza de que tanto a Bíblia como outros livros sagrados, bem como

as mitologias fundamentais da cultura ocidental e mesmo os poemas seminais da

aventura humana - como a Ilíada e a Odisseia – têm origem na oralidade.

(HOLANDA; MEIHY, 2014, p. 92).

No método da história oral proposto por Holanda e Meihy (2014) temos: a) história

oral de vida; b) história oral temática; c) tradição oral.

Na história oral de vida, os autores enfatizam o sujeito em detrimento da estrutura

social. A história oral temática define-se no sentido de discutir determinado tema que o

entrevistador tenha um aprofundamento antecipado. Por último, a categoria com a qual

trabalhei nesta pesquisa: tradição oral, que para os autores referidos é assim concebida:

É parente da etnografia, a boa resolução da pesquisa em tradição oral, implica

minuciosa descrição do cotidiano e de suas inversões. A complexidade da tradição

oral reside no reconhecimento do outro nos detalhes autoexplicativos da sua cultura,

noções de tempo, lógica da estrutura de parentesco. (HOLANDA; MEIHY, 2014, p.

40).

Portanto, para os autores, há uma relação entre a história oral e a etnografia, posto que

ambas são minuciosas, detalhistas, descritivas e requerem um esforço do pesquisador em

ouvir o tempo do colaborador, compreendê-lo nas suas mais diversas dimensões, dentre elas a

temporal e a existencial, para que possa entender os significados inerentes aos símbolos

pertinentes à sua identidade e à sua cultura.

Posto dessa forma, o gênero de tradição oral propiciou-me a observação cuidadosa do

cotidiano relacionado aos fazeres das pessoas na comunidade de Morrinhos, principalmente,

quanto ao significado que dão às crenças, às histórias e aos rituais que contam, bem como às

visões de mundo que partilham.

As preocupações inerentes ao campo das tradições orais estão em:

Explicações sobre a origem dos povos; crenças referentes às razões vitais do grupo e

ao sentido da existência humana, enquanto experiência que imita a vida; e o

comportamento, bem como o destino dos deuses, semideuses, heróis e personagens

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malditos, fantásticos e históricos são aspectos caros aos estudos das tradições orais.

(HOLANDA; MEIHY, 2014, p. 41).

Nessa mesma propositura, as narrativas míticas dos moradores de Morrinhos refletem,

em sua essência, o resultado da voz dos antepassados, que se manifesta nas falas dos avós,

pais, filhos, netos, parentes e amigos. Ao expressarem esses saberes socioculturais para as

gerações seguintes, eles procuraram dar sentido e explicações ao meio em que vivem.

A título de exemplificação, relatarei a conversa com o Senhor Gonçalo sobre a

importância que tem a religiosidade para o grupo. Na conversa, ele reportou-se à fé em Deus,

ao respeito, à dignidade entre as pessoas, que precisam caminhar juntas, unidas, para

enfrentarem coletivamente os problemas do cotidiano da comunidade. Reforçou sua posição

ao dizer: “Seu Manu, que nós temos que ter amizade com todo mundo, primeiro nós temos

que amar a ele, Deus, e depois os próximos.”

Na cultura africana, de acordo com Hampaté Bâ (2010) e Vansina (2010), a maior

riqueza são as relações travadas no cotidiano com outros sujeitos da comunidade, onde a

amizade, a solidariedade e o respeito mútuos são marcas presentes e fortes.

Há uma ligação forte entre o passado e o presente que a história oral procura contar.

Nas comunidades negras e afrodescendentes, ela tem um apelo bastante considerável, por

cultivar valores, saberes e fazeres, além de formas de organizações comuns e próximas no dia

a dia, como, por exemplo, no respeito aos mais velhos, que são considerados esteio da

comunidade. Hampaté Bâ (2010) menciona que o ancião tem o poder da palavra, por ser

considerado uma enciclopédia viva, portanto, detentor da memória viva da comunidade.

Em Morrinhos, o método da história oral, pelo gênero da tradição oral, possibilitou-me

um mergulho nos aspectos históricos e sociais partilhados na comunidade, principalmente,

quando ouvi as narrativas míticas que permeiam o cotidiano da comunidade. Assim, procurei

realizar um levantamento histórico das principais narrações vivenciadas pelo grupo.

Por essa perspectiva utilizei o método da história oral como suporte teórico decisivo, o

que trouxe elementos e técnicas necessárias para a melhor compreensão das histórias ouvidas

na comunidade, tanto nas entrevistas agendadas como nas conversas informais e espontâneas

no campo de futebol, no bar, na pescaria, na escola, nas casas, etc. Dessa maneira, Alberti

(2013) ensina:

O ideal, numa situação de entrevista, é que se caminhe em direção a um diálogo

informal e sincero, que permita a cumplicidade entre entrevistado e

entrevistadores, à medida que ambos se engajam na reconstrução, na reflexão e na

interpretação do passado [...] respeitar o entrevistado como um produtor de

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significados diferentes dos seus e de forma nenhuma tentar dissuadi-lo de suas

convicções e opiniões. (ALBERTI, 2013, p. 190).

Visto por esse viés, o respeito ao entrevistado concretiza-se no ato de entender suas

histórias e narrativas, uma vez que a ancestralidade da sociedade negra e afrodescendente

sempre foi permeada por histórias, contos, lendas, mitos e rituais narrados e compartilhados

por avós, pais, filhos e todos da coletividade social. Estiveram sempre ali, retiradas dos

“baús de memórias” posto que, no princípio, viviam em uma sociedade eminentemente da

palavra falada – ágrafa. Nesse sentido, a expressão dos anciãos teve e tem o poder de

preservar a essência da sabedoria do povo, como riqueza cultural dos antepassados.

A importância dada pela sociedade africana e afrodescendente ao vocábulo está no

reconhecimento de que o ser humano é a sua palavra, portanto, é a voz que o seguirá por

gerações. Uma vez pronunciada, não retorna, como se fosse a água de um córrego que, ao

passar por um determinado ponto, não retroage, mas segue em frente.

De modo similar, para a cultura africana, a palavra dita ecoa em vozes refletidas nos

filhos, netos, amigos, companheiros e parentes que partilham das mesmas tradições

sociopolíticas e culturais da comunidade. Um pouco aquilo que Márquez (2003, p. 5) disse:

“A vida não é o que a gente viveu, e sim o que a gente recorda e como recorda para contá-la.”

Navegar por esse caminho fez-me compreender o papel da história oral na vida das

pessoas e da comunidade. Da tradição da oralidade emanam as vozes dos guardiões da palavra

– anciãos e anciãs – que carregam a experiência do vivido. São eles os contadores de histórias

que alimentam os sonhos e as fantasias de Morrinhos, pois lidam com dimensões de tempo e

espaço diferentes das trilhadas pelo mundo real.

Para Céspede (2015) uma boa narrativa nunca morre, pelo contrário, se renova a cada

instante que é repassada de geração a geração. Segundo a autora essa é a função social dos

anciãos e das anciãs no seio das comunidades tradicionais, que ajudam a manter vivas essas

histórias.

Aprendemos com Hampaté Bâ (2010) que os contadores de histórias – Griots – são

personagens importantes nas sociedades africanas e afrodescendentes. Embora a origem da

palavra Griot seja francesa, ela obteve destaque nas comunidades africanas, sobretudo, as

ágrafas, em que é dada mais importância à fala, pela ausência da escrita. Nessas localidades, a

força da palavra, bem como o que se dizia, tinha o peso da assinatura das pessoas; mentir

era/é considerado um mal. Portanto, os Griots eram legitimados socialmente como os

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guardiões da memória do lugar, por isso exerciam a função de contar as histórias dos

antepassados, as lendas, os contos e todas as narrativas às gerações seguintes.

Parafraseando Busatto (2006), aquele que conta ou narra uma história faz-nos sonhar

porque leva-nos para outros espaços/tempos e consegue, pelo enredo peculiar, parar o tempo e

apresentar a magia e o encantamento das narrativas e histórias que se passaram em outros

momentos. Por esse ângulo, os Griots são exímios contadores de histórias, do mesmo modo,

segundo Melo (2009), o significado da palavra Griot é:

[...] O guardião da memória. Originado da expressão francesa, o termo Griot, na

cultura africana, significa contador de histórias, função designada ao ancião de uma

tribo, conhecido por sua sabedoria e transmissão de conhecimento; figura presente

na África tribal que percorre a savana para transmitir, oralmente, ao povo fatos de

sua história; é o agente responsável pela manutenção da tradição oral dos povos

africanos, cantada, dançada e contada através dos mitos, das lendas, das cantigas,

das danças e das canções épicas; é aquele que mantém a continuidade da tradição

oral, a fonte dos saberes e ensinamentos e que possibilita a integração de homens e

mulheres, adultos e crianças no espaço e no tempo e nas tradições; é o poeta, o

mestre, o estudioso, o músico, o dançarino, o conselheiro, o preservador da palavra.

(MELO, 2009, p.149).

Hampaté Bâ (2010) demarca que os Griots conseguem antecipar os acontecimentos

porque têm a experiência do vivido e enxergam as histórias que contam “pela janela certa”.

Enveredadas por esse caminho, as reminiscências dos antepassados alimentam as narrativas

das comunidades, “árvores falantes, animais eloquentes e outros elementos de um mundo que

mescla magia e realidade.” (GRIOTS, 2009, p. 7). Portanto, os Griots têm a função de unir o

passado e o presente, colaborando para a preservação das narrativas e histórias, para que

permaneçam vivas nas memórias e lembranças da cultura local.

1.5 TÉCNICAS E PROCEDIMENTOS DE COLETAS DE DADOS

Para o procedimento de coleta de dados da pesquisa, utilizamos três técnicas: a

entrevista, a observação participante e a análise documental.

1.5.1 A entrevista

A entrevista foi uma importante ferramenta técnica utilizada para este trabalho, o que

possibilitou ao pesquisador a coleta de dados na comunidade de Morrinhos. Essa abordagem

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propiciou realizar entrevistas com todos os sujeitos participantes do projeto: alunos, professor,

anciãos e anciãs.

Sendo assim, para esta pesquisa utilizei a técnica de entrevista semiestruturada, por

entender que propiciaria a melhor forma para a coleta de dados subjetivos, concernentes aos

saberes e fazeres socioculturais presentes em Morrinhos. Com isso, pude realizar

questionamentos abertos e fechados, deixando os colaboradores mais livres para expressassem

suas respostas aos temas levantados no percurso do diálogo. Nessa perspectiva, nos ensina

Alberti (2013, p.190): “[...] cumplicidade pressupõe necessariamente que ambos reconheçam

suas diferenças e respeitem o outro enquanto portador de uma visão de mundo diferente, dada

por sua experiência de vida, sua formação e sua cultura específica.”

As entrevistas com os sujeitos aconteceram no segundo semestre de 2015 e primeiro

semestre de 2016. Foram realizadas mais de uma entrevista com os colaboradores, em

ambientes e situações definidas por eles mesmos. Tomando por base o que infere Thompson

(1992, p.15), “a riqueza e a importância da memória dos sujeitos anônimos, e o como o jeito

do entrevistado contar “estórias” sobre o passado é uma alternativa perfeita para a história

social.” Tais pressupostos também estão ancorados no que defendem Vansina (2010) e

Hampaté Bâ (2010), na medida em que abordam o papel dos anciãos em comunidades

africanas e afrodescendentes.

Nessa perspectiva, a análise das narrativas está alicerçada na técnica da análise de

conteúdo proposta por Bardin (1995), que coteja o recorte e a organização das temáticas

levantadas. Fundamentado pelo viés interpretativo de Geertz (2008), para o autor, o ser

humano emana significados adquiridos culturalmente e os reproduz.

1.5.2 A observação participante

A observação propiciou a observação do cotidiano da comunidade, os conhecimentos

construídos pelo grupo, como moram, plantam, estudam, sua relação com as narrativas

míticas que permeiam o universo na comunidade, bem como a função social desempenhada

pelos anciãos e anciãs na comunidade. Nesse mesmo sentido, as celebrações religiosas

partilhadas no cotidiano da comunidade foram analisadas a partir das contribuições de

Hampaté Bâ (2010), Vansina (2010), Geertz (2008) e Munanga (2005). Nessa perspectiva,

foram observadas as rezas e as festas de São Benedito, realizadas em dezembro de 2015, e

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São Bento e São Lázaro, festejadas em abril de 2016. Também foi observado o cotidiano das

práticas pedagógicas de professor com seus alunos.

Outrossim, nos meses de março e maio de 2016, foi observada a ampliação da

residência do senhor Sebastião, um dos anciões entrevistados, feita por ele e alguns dos

parentes que o ajudaram no sistema de mutirão. A mesma atividade de mutirão também

acontece em épocas de limpeza da roça e colheita, sob a forma de “troca de dia de trabalho”;

em outras palavras, trata-se de um sistema de rodízio de ajuda mútua. Concomitantemente,

também observei o trabalho de um grupo das mulheres da comunidade na produção de

farinha.

1.5.3 A análise documental

A análise documental permitiu realizar ações no sentido de interpretar as intenções do

Plano Político Pedagógico e do livro didático Girassol: “Saberes e fazeres do campo (2014)”,

utilizado pela escola para atendimento até o 5º ano multisseriado. Por meio da análise também

foi possível confrontá-los com as legislações que versam sobre a educação quilombola

contidas nas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, que versam sobre a obrigatoriedade do

ensino da História e Cultura Africana e Indígena, e, assim, verificar qual o lugar que a escola

reserva em seu currículo aos saberes e fazeres da comunidade quilombola a que pertence.

1.6 OS PARTICIPANTES DA PESQUISA

Quadro 1 – Relação dos participantes da pesquisa

Nome Categoria / Idade Local da entrevista Local da residência Ano e mês entrevista

Gonçalo Ancião 79 Casa Morrinhos 2015/2016

Leonilza Anciã 60 Casa Morrinhos Maio/2016

Sebastião Ancião 60 Casa Morrinhos Junho/2016

Joanito Ancião 60 Casa Morrinhos Abril/2016

Dionizio Aluno / Eja 49 Casa Morrinhos Maio/2016

Patrícia Aluna 10 Escola Morrinhos Março/2016

Vitória Aluna 9 Escola Morrinhos Maio/2016

José Professor 44 Escola Cangas Março/2016

Rosilda Aluna / Eja 33 Casa Morrinhos Abril /2016

Fonte: autor, 2016

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Apresento, no Quadro 1, os sujeitos que foram entrevistados, sendo eles: quatro

moradores anciãos; quatro alunos da Escola Municipal de Morrinhos; e o professor da referida

unidade escolar. Sobre os colaboradores da pesquisa, passo a apresentá-los em suas próprias

vozes. Solicitei ao ancião Gonçalo que falasse sobre sua história, de modo que ele narrou a

seguinte passagem:

Nasci numa comunidade chamada Pirizal, que é vizinha de Morrinhos, há 79 anos

atrás. Bem, meu pai era Valeriano Antônio da Silva, que era filho do Cândido, que

era dono daqui. Meus pais eram lavradores, lidavam com a terra, plantavam,

colhiam, e criavam os filhos com muito esforço e dedicação. Nós vivíamos

tranquilos lá em Pirizal, pois tínhamos terra à vontade. Quem quisesse morar e pôr

roça lá, era à vontade. A nossa roça era enorme, tinha de tudo, tudo tinha bananal,

canavial, abóbora, mandioca, arroz, feijão, milho, também criávamos animais,

porco, vaca, cavalo. A vida era muito boa. (GONÇALO, 79).

Continua o senhor Gonçalo dizendo que, após esse período, chegou lá em Pirizal “um

certo fazendeiro e nos expulsou da terra, e meus pais, como não eram de confusão, tivemos

que mudar às pressas para Morrinhos, o que de certa forma ocasionou muitos prejuízos para

nossa família”, porque tiveram que de uma hora para outra carregar somente aquilo que

conseguiam. Ele ainda enfatiza: “deu dó de ver, porque deixamos para trás criação, roça

feita e muita plantação, tudo, tudo [...] e chegamos a Morrinhos, que fica uns 12 quilômetros

de Pirizal, e fomos acolhidos com muito respeito e afeto por nossos parentes.” Nessa época, o

senhor Gonçalo estava com 10 anos.

O senhor Gonçalo Antônio da Silva, 79 anos, é viúvo, pai de cinco filhos, sendo três

mulheres e dois homens, um deles já falecido. O ancião é o morador mais antigo da

comunidade; dos 79 anos de vida, há 69 mora em Morrinhos. O sítio do senhor Gonçalo

localiza-se no segundo grupo de moradia, no final da rua principal da comunidade.

A participante da pesquisa, senhora Leonilza Silva, 60 anos, nasceu em Poconé-Mato

Grosso. É casada e reside na comunidade há bastante tempo. Não é quilombola, mas se

considera do lugar; tem filhos e netos e disse que foi muito bem acolhida pela comunidade.

Participa ativamente na organização das festas; inclusive, na ocasião dessa entrevista, estava

enfeitando o mastro para a festa de São Bento. Foi quando disse: “este ano de 2016 eu fiquei

com a tarefa de arrumar e enfeitar o mastro para a festa de São Bento e São Lázaro.”

Leonilza foi apontada pelo professor da comunidade como conhecedora de muitas histórias

míticas sobre Morrinhos.

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Outro importante colaborador da pesquisa foi o senhor Sebastião de Arruda, 60 anos,

casado, não alfabetizado, é pai de quatro filhos, sendo três homens e uma mulher. Como ele

mesmo diz: “nasci e me criei aqui em Morrinhos, aqui é um lugar bom para se viver.” O

senhor Sebastião e a esposa sempre moraram em Morrinhos. São lavradores e trabalham na

agricultura de subsistência e, vez ou outra, realizam trabalhos nas fazendas que fazem divisa

com a comunidade. Também foi apontado pelos moradores como um dos que tem profundo

conhecimento das narrativas míticas da comunidade, o que pude constatar durante a pesquisa.

O senhor Joanito Gomes da Silva, 60 anos, também colaborador desta pesquisa, é

casado. Ele e a esposa sempre moraram na comunidade. Como lavrador, trabalha na roça e

também realizava serviços esporádicos nas fazendas da região de Morrinhos. Não foi

alfabetizado, mas é um profundo conhecedor da cultura local e um dos mais tradicionais

festeiros da comunidade. Em sua casa, todos os anos realizam-se as festividades de São Bento

e Lázaro.

O senhor Dionizio Francisco da Silva, 49 anos, é casado e pai de quatro filhos, sendo

três homens e uma menina. Seus pais são de Morrinhos e ele mesmo sempre residiu na

comunidade. Conhecedor de muitas narrativas míticas sobre a comunidade, em 2015 foi aluno

da Educação de Jovens e Adultos, na escola municipal da comunidade.

A senhora Rosilda M. G. da Silva tem 33 anos, nasceu e sempre morou em Morrinhos.

É casada e mãe de cinco filhos. Em 2015, foi aluna da EJA e, atualmente, preside a

Associação de Moradores da Comunidade. Conhecedora do patrimônio cultural da

comunidade é neta daquela que foi a primeira professora da comunidade, professora Catarina.

Rosilda é bastante atuante na comunidade, principalmente nas organizações dos principais

eventos, como as festas dos santos e nas negociações das demandas sociais com os órgãos

governamentais.

As alunas da Escola Municipal Catarina Antônia da Silva de Morrinhos, que

participaram da pesquisa, foram Patrícia Moraes, 10 anos, e Vitória de Arruda, 9 anos, ambas

nascidas em Poconé-MT. As alunas estudam no período matutino, sabem ler e escrever e

estão no 4º e 5º anos, respectivamente. Cabe ressaltar que a sala de aula que frequentam é

organizada no sistema multisseriado e atende alunos do 1º ao 5º ano.

O professor José Ilário tem 44 anos, é casado e pai de dois filhos. Ele mora em

Cangas, comunidade que fica a 40 quilômetros de Morrinhos. Trabalha há seis anos na Escola

Municipal Catarina Antônia da Silva de Morrinhos e realiza o trajeto todos os dias pela manhã

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para as aulas que acontecem no período matutino. Considera-se negro e é formado pela

Universidade Estadual de Mato Grosso, no curso de Geografia, realizado em Poconé.

Nesse mesmo sentido, destaco que, concomitante às visitas à comunidade de

Morrinhos para entrevistar os colaboradores supracitados, pude completar as buscas por

informações necessárias ao desenvolvimento desta pesquisa. Assim, visitei outros lugares,

como a Igreja Nossa Senhora do Rosário, Paróquia central do município de Poconé.

Considerando que o padroeiro de Morrinhos é São Benedito, fui ao encontro de pistas para

reconstruir a memória histórica do lugar. Significante ponto de apoio para a pesquisa, a

biblioteca do SESC de Poconé possui um acervo considerável sobre a história de Mato Grosso

e do Município. Outra importante fonte de informações foi acessada graças ao antropólogo

Ivo Shroeder, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em Mato

Grosso, que autorizou o acesso ao processo de regularização histórico e antropológico da

comunidade de Morrinhos.

Nesse mesmo contexto, a Secretaria Municipal de Educação do município de Poconé

permitiu o acesso aos livros e ao Plano Político Pedagógico que norteia as ações na escola de

Morrinhos. A Secretaria é o órgão que coordena e articula as orientações pedagógicas das

escolas municipais quilombolas em Poconé; no caso de Morrinhos, é também a gestora.

Muito importante para a pesquisa foi a minha participação nas audiências públicas2 no

Estado de Mato Grosso, em 2015, sobre a Educação Quilombola, na medida em que a

educação é um direito fundamental inalienável ao ser humano e a Constituição Federal de

1988 assegura esse aspecto, ao afirmar, em seu Artigo 205 que: “A educação, direito de todos

e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,

visando ao pleno desenvolvimento da pessoa.”

As discussões nas audiências propiciaram ampliar as reflexões sobre a modalidade de

educação quilombola e as diversidades. A partir delas, pude averiguar o que de fato acontece

no chão das comunidades quilombolas na contemporaneidade, sobretudo, no que se refere à

organicidade dos avanços legislativos contidos na Lei nº. 10. 639/2003, na Lei nº.

11.645/2008 e na Resolução nº. 08/CNE/CEB/2012.

2Audiência pública sobre educação escolar Quilombola, realizada pelo Conselho Estadual de Educação-MT e

pela Executiva das Comunidades Negras Rurais e Quilombolas. Teve início no município de Poconé em 23 de

julho de 2015, quando aconteceram denúncias por parte das comunidades quilombolas sobre temas relacionados

à educação.

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Nas audiências houve a participação de pais, alunos, profissionais da educação,

autoridades e comunidades quilombolas, que refletiram sobre as principais agruras que afetam

as comunidades; vozes que ecoaram preocupações e são representativas do que acontece no

Estado de Mato Grosso, refletindo sobre políticas públicas locais ou federais.

Os relatos dos participantes narraram preocupações silenciadas há décadas,

principalmente, no que se refere aos seguintes pontos: 1. Precariedade nas estruturas das

escolas; 2. Ausência e ou transporte escolar precário ou inadequado; 3. Falta de valoração do

patrimônio cultural dos quilombolas no currículo escolar; 4. Preconceito racial; 5. Pouco ou

nenhum interesse dos governantes de todos os níveis (municipal, estadual e federal) para

equacionar as demandas solicitadas pelos quilombolas, no que se refere à educação, saúde,

transporte, titulação definitiva, crédito fundiário, formação adequada aos educadores e

concurso público específico para a modalidade.3

Nesse contexto, os desafios apontados pela expansão e atendimento da população

quilombola, no que converge ao campo educacional, são enormes, pois são demandas

reprimidas por séculos de exclusão por parte do Estado. As vozes dos participantes das cinco

audiências no Estado apontaram carências comuns às comunidades quilombolas, por ausência

de efetivação de políticas públicas necessárias à prática dos direitos garantidos em leis, como

a Lei nº 9.394/1996, nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, e demais resoluções e decretos que

versam sobre a temática, mas que ainda não foram organicamente implementadas nas

comunidades.

Todavia, as demandas denunciadas nas audiências são pautas que se repetem,

similares àquelas apontadas por Castilho (2011) e Moura (2001), cujas raízes se fincam no

pretérito, na então Colônia, mas que ainda no século XXI são percebidas nas redes municipal

e estadual de ensino do Estado de Mato Grosso, conforme enfatizaram as vozes dos

participantes das audiências públicas.

3 As audiências por mim presenciadas deram origem ao artigo: Educação Escolar: Vozes Quilombolas,

apresentado no Seminário de Educação 2016: Saberes e Identidades: Povos, Culturas e Educação, realizado entre

os dias 03 a 05 de outubro de 2016, na Universidade Federal de Mato Grosso. (Cuiabá). Disponível em:

<http://www.ufmt.br/semiedu2016/index.php/anais-do-semiedu/>. Acesso em: 20.01.2017.

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CAPÍTULO II - MORRINHOS, SUA HISTÓRIA E SUA GENTE

Neste capítulo, realizo a descrição densa e minuciosa da comunidade de Morrinhos e,

concomitante, são abordos os principais aspectos históricos, políticos e socioculturais da

localidade.

A cidade de Poconé localiza-se no Pantanal mato-grossense; distante a 100

quilômetros de Cuiabá, capital de Mato Grosso. O município pantaneiro possui uma

população total de 31.779 habitantes, sendo na zona urbana 23.062 e na zona rural 8.717

pessoas, segundo dados do censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,

(IBGE, 2010).

A população urbana da cidade de Poconé está distribuída nos 14 bairros e a rural em

72 comunidades e nos dois distritos: Cangas e Chumbo; acrescente-se 11 assentamentos

desenvolvidos pelo programa de reforma agrária no município.

Segundo o IBGE (2010), no Brasil 50,74 por cento da população se considera parda e

ou negra, enquanto que em Mato Grosso esse número se eleva para 59,98 por cento das

pessoas. Em Poconé, 80,74 dos indivíduos se declararam, no último censo, pardas ou negras,

situação que evidencia a maioria de presença da população negra e/ou quilombola no

município, uma vez que, das setenta e nove comunidades negras quilombolas do Estado4,

vinte e sete estão no município de Poconé.

A história desse município da Baixada Cuiabana teve o seu início com a expansão da

exploração da lavra aurífera na região de Cuiabá, que culminou com a fundação da Vila de

São Pedro D’El Rey, nome dado em homenagem a Dom Pedro III, e foi lentamente se

desenvolvendo. No princípio, a região era habitada pelos indígenas da etnia Beripoconé, e,

posteriormente, sua população passou a ser formada também por negros escravizados que

trabalhavam nas minas de ouro e sesmarias da região pantaneira. Conforme descreve Campos

(2010):

Poconé se originou de rancharia de mineradoras localizadas em torno das minas de

ouro de Beripoconé, descobertas em 1777, delineando-se em 1781, o Arraial de São

Pedro Del Rei. Rondon (1982) data a elevação das minas em arraial em 18 de

dezembro de 1780, sendo sua população, em 1781, de 2.118 habitantes. (CAMPOS,

2010, p. 59).

4Fonte: MAPA dos grupos sociais do Estado de Mato Grosso – GPEA – Grupo de Pesquisa da Universidade

Federal de Mato Grosso.

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Segundo os historiadores Priori (2010) e Siqueira (2002), no período do século XVIII

vieram para Mato Grosso mais de 16 mil escravos que, certamente, foram às sementes dos

quilombos que se apresentam nos dias atuais. Nesse período, houve um crescimento da região

ligado à corrida pelo ouro e ao trabalho realizado nas fazendas locais. As atividades da época

visavam à exploração de pecuária e cana-de-açúcar e empregavam grande número de mão de

obra escrava. Em 1840, a Vila já tinha considerável prestígio com os representantes das elites

da Capitania de Mato Grosso.

Narrativa importante a ser registrada no processo histórico de Poconé é a feita por

Doninha. Segundo os historiadores Siqueira (2002) e Mendes (2015), a narrativa se baseia em

fatos que aconteceram na primeira metade do século XX, quando o município de Poconé era

um dos mais influentes do Estado. Próximo à cidade, na localidade de Tanque Novo, em

Poconé, um vilarejo que à época crescia motivado pela liderança da filha do casal Lacerda,

chamada Laurinda Lacerda Cintra. Ela era analfabeta e, segundo os autores, aos 27 anos

passou a ter visões de uma santa, que lhe dava conselhos, e, segundo relatos de moradores da

época, fazia milagres. As supostas visões eram atribuídas à “Maria da Verdade”, mas,

posteriormente, Laurinda acreditava ser de “Jesus Maria José”, conforme descrito por Mendes

(2015).

Em fevereiro de 1931, aos 27 anos no momento em que trabalhava sozinha num

mandiocal, Doninha foi surpreendida pela aparição de uma “santa” inicialmente

chamada por Maria da Verdade, posteriormente denominada Jesus Maria José [...] o

fascínio exercido por Doninha extrapolou em muito os limites da região mato-

grossense, pois atraiu romeiros de outros Estados como Goiás e Bahia. A pacata

localidade chegou a receber um fluxo diário de mais de mil pessoas, transformando-

se em um pequeno arraial com algumas casas de comércio, vários casebres de

palhas, ruas largas e uma igreja. (MENDES, 2015, p. 82).

As pessoas procuravam no arraial de Doninha, denominado de “Tanque Novo”, curas

para suas agruras. Após serem atendidas pela “santa”, via intersecção de Doninha, acabavam

por acompanhá-la, reforçando a romaria na região. Na localidade não era permitido jogos de

azar, nem vestidos curtos, o dia a dia da comunidade era praticamente de cunho religioso.

Embora os párocos de Cuiabá e Poconé não dessem crédito a ela, dizendo tratar-se de uma

pessoa “alucinada”, mas as pessoas acreditavam nas mensagens da beata. Nesse propósito, o

senhor Gonçalo, 79 anos, de Morrinhos, narrou os seguintes fatos, sobre esse período.

Doninha eu lembro demais dela, porque eu ia daqui lá [Morrinhos até o Arraial de

Doninha], porque ela dava consulta, remédio, olha seu mano vinha gente de longe,

para consultar com ela. Uma vez, eu fui nós estávamos com uma irmã adoentada,

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muito mal, daí eu fui lá à comunidade de Tanque Novo, participei da reza na igreja,

fiz a consulta com ela, dizendo da situação da minha irmã. Ela disse que na hora

que chegasse a Morrinhos era para falar para minha mãe colocar ela, diante do

altar para ela rezar, aí ela acabaria ficando boa. Parece que estava por dentro, seu

mano, na hora que minha irmã ajoelhou e, principiou a rezar, ela colocou tudo para

fora, aquela aguaceira [...] e depois sarou. O nome da minha irmã era Joana, daí

sarou na hora. (GONÇALO, 79).

Os relatos do senhor Gonçalo refletem o que acontecia no cotidiano da comunidade de

Morrinhos e Poconé. Naquele tempo, na ausência de políticas públicas voltadas à saúde, a

esperança que restava aos moradores das comunidades tradicionais, principalmente as mais

distantes, era o de buscar na religiosidade, a cura para os seus males; Doninha encarnava tal

processo. Para Siqueira (2002), as atuações de Doninha contemplavam mais aspectos

religiosos do que políticos, embora os políticos da região se aproximassem do arraial de

Tanque Novo em Poconé, para fazer dele um “curral eleitoral”.

Os anos se passaram e Poconé, cidade portal do Pantanal mato-grossense, continua

sendo uma das cidades mais pobres do Estado, com índices de Desenvolvimento Humano

ainda abaixo do ideal; todavia, nas últimas três décadas foram registradas melhoria nas

condições de vida dos munícipes.

Ao refletir a respeito dos principais motivos pelos quais os dados apontaram melhoria

dos índices do IDH no município, constatei que a Organização das Nações Unidas para

Agricultura e Alimentação - FAO (2013) 5 indicou que o Brasil investiu aproximadamente 35

bilhões de dólares, em 2013, para erradicação da pobreza extrema, o que reduziu a extrema

pobreza em 75 por cento. Ao cotejar esses dados, percebi que a explicação, em parte, se

evidencia devido aos programas governamentais de distribuição de renda e de combate à fome

e a miséria no país nas últimas décadas; bolsa escola, bolsa família e o acesso à escolarização

foram ampliados, principalmente, a partir do governo Lula.

Em outra ponta, a relativa estabilidade econômica vivenciada no Brasil, a partir da

década 1990, com o plano real e o controle da inflação, deu condições que possibilitaram ao

país a retirada de mais de 35 milhões de brasileiros da linha da extrema pobreza; essas

medidas refletiram de forma positiva nos resultados gerais do município de Poconé, conforme

as estatísticas do Atlas Brasil (2013): 0,652 em 20106.

5 http://www.fao.org.br/download/SOFI_p.pdf> acesso: outubro 2016.

6 Segundo o programa das Nações Unidas, quanto mais próximos a 1, melhores são os índices ligados à saúde,

educação, moradia, refletindo diretamente na qualidade de vida dos munícipes.

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Em relação à vocação turística, o povo tem apostado num outro aliado que representa

a identidade poconeana: seus aspectos socioculturais. A miscigenação de seu povo e da sua

gente, formada inicialmente por indígenas da nação Beripoconé, e, posteriormente, a partir do

século XVIII, por negros originários das nações africanas dos grupos étnicos Cassange e

Caconda. Também fazem parte dessa mistura étnica, ribeirinhos, pantaneiros e pessoas de

diversas regiões do país que vieram a Poconé para trabalhar nas fazendas, garimpos e nos

serviços públicos. Esse arranjo tornou os aspectos culturais do local bastante rico e

representativo do mosaico sociocultural do Estado.

Todos esses aspectos culturais propiciaram ao município ter uma matriz sociocultural

com fortes elementos identitários, formada com base em raízes afrodescendentes, indígena e

hispano-portuguesa, evidenciando a diversidade cultural do povo, o que se expressa

principalmente nas festas do Divino Espírito Santo, São Benedito, nas danças do siriri, cururu,

mascarado e a cavalhada, dentre outras. Nas palavras de Wiel (1979) as raízes estão vincadas

na participação e identidade do coletivo, preservando os tesouros das gerações passadas; nessa

mesma perspectiva, Bosi (2015) interfere, afirmando que enraizar-se deveria ser um direito

fundamental e inalienável aos seres humanos.

Figura 1: Igreja matriz – Poconé

Fonte: acervo do autor, 2016.

Nesse contexto, as principais expressões socioculturais e religiosas do município estão

presentes na festa da Padroeira da cidade, Nossa Senhora do Rosário, destacada na imagem da

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igreja na Figura 1. Todos os anos, na praça matriz da cidade, a padroeira é festejada com

quermesse, comidas e bebidas típicas, shows e apresentações das danças siriri, cururu e

mascarado. Também, todo o ano acontece à cavalhada, quando a cidade se veste de Mouro ou

Cristão, vermelha ou azul, respectivamente.

2.1 A CAVALHADA E A DANÇA DOS MASCARADOS

A Cavalhada, de origem portuguesa, chegou a Mato Grosso no século XVIII. Trazida

para homenagear o terceiro governador da Capitania de Mato Grosso, Luiz Pinto, o evento faz

parte das comemorações das festas do Divino Espírito Santo e São Benedito da cidade de

Poconé. Milhares de pessoas assistem às apresentações e às lutas que são travadas entre as

duas nações - Moura e Cristã - inspiradas em modelos eurocêntricos de histórias da literatura

universal.

A tradição da cavalhada é marcante para os poconeanos que, a cidade se divide em

azul (Cristão) e vermelho (Mouro). Nesse sentido, quando chega o mês de junho, período em

que os preparativos se intensificam e o evento acontece, é montado um grande teatro ao ar

livre, no parque de exposição da cidade, onde as pessoas de todas as idades são representadas

no palco principal por doze cavaleiros azuis e doze vermelhos. Esses soldados defendem suas

respectivas nações, caracterizados com trajes coloridos e típicos do século XVIII.

Os cavaleiros se confrontam em várias provas: prova do limão, da cabeça da rainha,

cabeça do Judas etc. Na história contada no evento, a rainha Moura foi roubada pelo exército

Cristão e aprisionada em uma torre do castelo, que arde em chamas pelo fogo ateado. A

duração do evento é de, aproximadamente, seis horas, e assistido por cerca de 10 mil

espectadores de diversas cidades da região que lotam o recinto; se acomodam em

arquibancadas ou debaixo de árvores para assistirem ao espetáculo.

O desfecho se dá com o salvamento da rainha e o hasteamento da bandeira branca pelo

exército Mouro no centro da arena. Essa manifestação cultural é uma das principais do Estado

de Mato Grosso nesse sentido, vejamos o que Geertz (1989) fala sobre a importância dos ritos

e atos simbólicos:

A fusão do rito, da perícia e da cortesia, leva a um reconhecimento da qualidade

mais fundamental e mais distinta da espécie particular da sua sociabilidade: seu

esteticismo radical. Os atos sociais, todos os atos sociais, são destinados a agradar,

em primeiro lugar agradar aos deuses, agradar à audiência, agradar ao outro, agradar

a si mesmo; mas agradar como a beleza agrada não como a virtude. (GEERTZ,

1989, p. 176).

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Os ritos são importantes porque a vida está repleta de rituais. Assim, o modo como

agimos e fazemos as coisas no cotidiano alimentam o ritualismo, que se configuram como

procedimentos que dão sentido à vida das pessoas. Conforme Cyrunik (1995), os ritos estão

presentes em vários momentos de nossa existência, nas mais diferentes cerimônias: no

batismo, no casamento, na celebração dos cultos religiosos, nas festas, nas procissões e nos

funerais. Portanto, do nascimento até a passagem para a outra margem, a vida é permeada de

rituais.

Há ainda outras manifestações culturais importantes na comunidade de Poconé, entre

elas, a dança dos mascarados, uma manifestação de estética bastante peculiar, onde somente

homens participam da dança realizada em pares de oito a quatorze indivíduos.

Todos os participantes são rapazes que fazem os papéis de cavalheiros e de damas. A

dança dos mascarados teve origem na contradança europeia e, as apresentações duram cerca

de uma hora. Nesse tempo, ao som de uma banda de instrumentos de metais e sopro, os pares

executam diversos movimentos rítmicos que exigem dos participantes esforços físicos. O

grupo costuma se apresentar nas muitas festas da região, em especial nas de santo.

Os participantes da dança dos mascarados vestem roupas coloridas e vivas, de tal

forma que, a indumentária, por si só, já é uma obra artística, que destaca e eleva os

movimentos e as expressões de cada dançarino. Nesse contexto, as pessoas que assistem

permanecem durante todo o tempo, com os olhos e os ouvidos atentos a cada novo

movimento do grupo. A atmosfera da exibição artística é sempre próxima ao público, que

abre um espaço circular para que sejam realizadas as apresentações.

O grupo de dança “Os Mascarados” sempre se apresenta nas principais festas de santo

das comunidades: Nossa Senhora Rosário, São Benedito (Poconé), Nossa Senhora do Carmo

(Distrito de Cangas), Nossa Senhora Aparecida (Distrito do Chumbo), Nossa Senhora da

Abadia (Cotia), São Benedito, (Morrinhos), dentre outras.

3.2 CAMINHOS QUE CONDUZEM A MORRINHOS

Na figura 2, logo abaixo, registra o portal da entrada do município pantaneiro.

Podemos observar na imagem os mais variados tons e traços que enfatizam a riqueza dos

aspectos socioculturais e do município. Imediatamente à esquerda, nota-se o ribeirinho, o

cavalo pantaneiro e as aves, presença constante na bacia pantaneira. Do lado direito do pilar, a

pintura destaca elementos representativos das manifestações típicas das festas que acontecem

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na cidade: os trajes da dança os Mascarados, e o cavalheiro e suas indumentárias,

representando a tradicional festa da Cavalhada. Ressalte-se que a entrada do município é

denominada pelos poconeanos de Castelinho.

Figura 2: Portal de entrada da cidade de Poconé/MT

Fonte: Acervo do autor maio, 2016.

Ao deixar a entrada de Poconé, em direção a Morrinhos, logo se observa a mudança da

paisagem. Morrinhos localiza-se na zona rural do município, a 65 quilômetros do centro da

cidade, às margens da rodovia MT-060. Na primeira curva à direita há um pequeno lago

chamado Piranema, onde pássaros como biguás, tuiuiús, garças e também animais como as

capivaras se aliviam e se refrescam do calor escaldante dos dias de verão; destaque-se que a

temperatura média anual em Poconé chega aos 26 graus. Porém, em Mato Grosso as estações

praticamente se dividem em duas: a das águas, de outubro a abril, e a da estiagem, de maio a

setembro. A maior temperatura já registrada no Estado foi a de 42 graus, sendo a de 0 grau

(no inverno) a menor. (INPE/2016).

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Figura 3: Aves caminhos que conduzem a Morrinhos

Fonte: Acervo do autor, 2015.

O que podemos observar na figura 3 é a planície do pantanal e os seus tuiuiús e garças

numa manhã; nos caminhos que conduzem a Morrinhos, os pássaros procuram lambaris,

minhocas e carás, ao sabor do ritmo das correntezas do rio Bento Gomes. Ao prosseguir a

rota, em contraponto à exuberância da natureza descrita e visualizada, já é possível avistar

montanhas artificiais de rejeitos e entulhos deixados pela extração garimpeira, fruto do

material retirado da escavação do “Filão”.

A montanha pode chegar a mais de 100 metros de altura e a profundidade do filão

chega a 80 metros. O descarte desse entulho depositado localiza-se de 500 a 2000 metros da

rodovia MT-060, às margens direita e esquerda.

Ao seguir viagem por uns 15 quilômetros do ponto de partida de Poconé, verifica-se

uma plantação de soja do lado esquerdo, próximo ao trevo entre a MT-060 e a rodovia MT-

251; acesso que conduz à comunidade Quilombola do Distrito do Chumbo e à BR-070.

Observe-se que alguns pecuaristas estão substituindo paulatinamente a criação de gado pelo

plantio da soja no município.

As empresas de extração mineral estão localizadas praticamente às margens da

rodovia, aproximadamente mil metros entre os rejeitos de garimpo e a rodovia MT-060.

Seguindo adiante, sentido Cuiabá, antes de chegar ao Distrito de Cangas é possível ver pelo

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menos dois garimpos de grande porte e que funcionam 24 horas por dia. Montanhas de terra

ainda mais altas continuam a margear a rodovia numa verdadeira poluição visual e ambiental,

no portal de entrada da maior planície alagada do mundo.

Figura 4: imagem satélite – Cangas -Poconé

Fonte: http://ppegeo.igc.usp.br/

A imagem de satélite da figura 4 mostra a região aurífera de Cangas – Poconé que está

em destaque porque é rota para Morrinhos. Quando se observam as imagens do satélite numa

perspectiva ampliada, é possível ver as verdadeiras deformações na paisagem, danos

irreversíveis que causam tragédias ao meio ambiente e às pessoas que ali vivem.

Nesse sentido, as cicatrizes abertas na terra são uma espécie de grito de socorro. Nas

palavras de uma liderança indígena: “tudo que acontece a terra, acontece aos filhos da terra”,

portanto a todos nós. A imagem nos mostra a imensa falta de cuidado do ser humano para

com a casa em que vivemos Gaia7, mãe e pai de todos nós. O exposto acontece tanto na

7 Palavra utilizada pelo Teólogo, escritor e professor, Leonardo Boff, para enfatizar a casa comum de todos: a

Terra. https://leonardoboff.wordpress.com/2011/09/07/gaia-se-defende-faz-diminuir-o-crescimento> acessado

em outubro de 2016.

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cidade de Poconé, quanto no Distrito de Cangas e também na localidade de Morrinhos, onde

funciona uma mineradora com o mesmo nome, vizinha da comunidade.

Nesse contexto de devastação ambiental, a década de 1980 foi o ápice da degradação,

o que demandou atenção e denúncias de pesquisadores como Veiga e Fernandes (1991), Pasca

(1994), bem como em estudos por parte de universidades brasileiras e organizações não

governamentais, na tentativa de alertar a sociedade sobre a gravidade da situação ambiental

para com a flora, a fauna e homens e mulheres pantaneiros.

O que a imagem de satélite destaca são os resultados de séculos de exploração e

extração mineral realizada de forma pouco organizada por “empresas” que, na maioria das

vezes, não realizam revitalização dos espaços explorados; essas atitudes podem até mesmo ter

certa anuência dos órgãos ambientais quando parecem fazer “vistas grossas” à situação, e com

isso, os resultados são desastrosos. É evidente nas imagens de satélite, a poluição e

degradação ambiental; até o momento, março de 2017, nada foi realizado para reverter a

grave situação causada pela extração mineral, considerando que, em Poconé, 14 mineradoras

continuam ainda em plena atividade, conforme dados fornecidos pelo município.

Segundo os pesquisadores Câmara e Novais (2009), em artigo intitulado “Percepção

da contaminação por mercúrio entre adolescentes de uma comunidade em área de garimpo de

ouro: uma abordagem etnográfica”, os dados demonstraram que a atividade aurífera

representa riscos consideráveis à saúde das pessoas, causando danos irreversíveis à fauna e à

flora, bem como à vida das pessoas, tanto do campo quanto da cidade, que moram no

Pantanal.

Realizado o registro supracitado, deixamos Cangas e prosseguimos pela mesma

rodovia, a MT-060, sentido Cuiabá e rumo a Morrinhos, a 35 quilômetros. No percurso, tanto

do lado direito como do lado esquerdo da rodovia, é possível ver os garimpos e os seus

entulhos, verdadeiras montanhas que os moradores chamam de depósito de piçarra.

Antes de continuarmos a nossa caminhada rumo a Morrinhos, via estrada não

pavimentada, consideramos interessante fazer registro da Fazenda Cotia, próxima a Cangas e

à ponte do rio Bento Gomes. A fazenda está situada na MT-060, a 12 quilômetros de Cangas,

sendo possível, mesmo da estrada, avistar o casarão da Cotia, prédio histórico que o primeiro

proprietário denominava “Fábrica de Engenho”.

O senhor Gregório Paes Falcão, proprietário da fazenda Cotia, era casado com Dona

Maria Carmina das Dores; ele morreu com mais de 90 anos e não teve filhos. Sua esposa,

única herdeira, conduziu a fazenda com “mãos de ferro” até sua morte. O casal era

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proprietário de sete sesmarias, 2 mil cabeças de gado, 400 cavalos; eram, ainda, senhores de

centenas de escravos.

Na fazenda, eles criavam gado, produziam leite e carne, e tinham relações próximas

com as elites que governavam a província de Mato Grosso, que, inclusive, frequentavam a

fazenda; pois, por estar localizada à beira da rodovia, era ponto de parada em direção à capital

da época, Vila Bela da Santíssima Trindade (CAMPOS, 2010).

Figura 5: A casa da fazenda cotia rodovia Poconé Cuiabá

Fonte: Acervo do autor, 2016.

O registro da imagem, focalizando a sede da “fazenda Cotia”, com tons e cores

vibrantes, emoldurada ao fundo, pela mata nativa, faz dela um cenário perfeito para lazer,

descanso e muitos “causos” que fluíam em noites de lua cheia. Narrativas contadas pelos mais

velhos que ali moram, relatam que moradores idosos da região ouviam uivos, vozes, passos, e

viam no grande “Casarão da Cotia” certos vultos, que os mesmos denominavam de

“assombração”. Muitos ligavam o acontecimento ao passado de dor e sofrimento que

impingidos aos escravos dessa fazenda no período escravocrata.

Nos dias atuais, no “Casarão da Cotia” funciona o Lar Abadia, um orfanato feminino

que atende menores em situação de risco encaminhados pela justiça e conselho tutelar do

município de Poconé. O educandário acolhe crianças e adolescentes de diversas cidades do

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Estado. As crianças e jovens estudam na Escola Estadual Dom Francisco, em Cangas, distante

a doze quilômetros e são levadas todos os dias pelo transporte escolar do município.

As despesas do orfanato são, em parte, custeadas pela prefeitura municipal de Poconé,

organizações não governamentais e igreja católica que anualmente realizam atividades para

angariar fundos para ser revertido em atenção aos menores que ali se encontram.

O registro da Fazenda Cotia foi necessário para entendermos as origens de Morrinhos,

à medida que se encontra na rota da comunidade quilombola e os fundadores de Morrinhos,

bem como os seus descendentes, estavam vinculados à “Fazenda Cotia”.

Figura 6: Animais na via não pavimentada

Fonte: acervo do autor, 2015.

Ao continuarmos em direção a Morrinhos, é necessário virar à esquerda, na estrada

não pavimentada que conduz à Fazenda Boa Esperança. O que nos aguarda são paisagens

cada vez mais próximas daquilo que marca a essência do Pantanal mato-grossense: animais,

vegetação rasteira e árvores de variedades diversas, sendo o ipê e a “lixeira” uma das mais

comuns. A primeira, de uma beleza sem igual, emoldura o período de estiagem no Pantanal –

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abril a setembro -, enquanto que a última, por ter a superfície da folha áspera, às vezes, é

utilizada como palha de aço nas comunidades rurais.

Figura 7: Trajeto em período das águas

F

Fonte: acervo do autor, 2015

Nesse sentido, são 35 quilômetros de estrada não pavimentada, sinuosa e estreita, e,

em muitos trechos, perigosa. Nas divisas existentes, temos que atravessar fazendas com suas

cancelas e “mata-burros” espécie de estrado de tábua cujo objetivo é de evitar que animais

passem de uma fazenda à outra, dividindo os limites.

Nesse percurso há muitos pássaros, predominando os tuiuiús, garças, tucanos, bem te

vis, joão de barro, japuíras, dentre tantos outros animais como cotias, sucuris e jacarés; são tão

comuns que, às vezes, os transeuntes dividem o espaço com os bois e bichos na estrada.

Cabe ressaltar que durante o percurso, em alguns pontos da estrada, apenas um veiculo

por vez consegue transitar, e, em época das águas, vários trechos ficam inundados e

dificultam ainda mais a mobilidade dos moradores que utilizam a rodovia.

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Ao aproximar de Morrinhos, percebo um maior contato com a natureza: silêncio, paz e

tranquilidade que por vezes são quebradas pelo canto do japuíra, ou pelo uivo de um lobo-

guará, ou mesmo pelo som discreto do atravessar de uma sucuri, mudando de um corixo8 para

o outro. Enfim, natureza, poesia, encanto e beleza que unem o homem e a natureza, frutos da

fertilidade de Gaia, mãe de todos nós, e de todas as espécies. (BOFF, 1999).

2.3 RELAÇÕES RACIAIS: ALGUNS CONCEITOS

Para Munanga (2005) o racismo tem suas raízes fincadas na ideologia eurocêntrica

para justificar o domínio sobre outros povos e, acrescenta que foi na África, América e Ásia

que o processo se intensificou no período pós-revolução industrial. Assim, os discursos que

pesam sobre a origem e a proliferação do racismo estão arraigados na cultura ocidental,

provocando profundas marcas sociais nas populações negras. Para Arendt (1976) trata-se de

uma concepção orgânica da história. Especificamente, no caso brasileiro, o racismo prosperou

como política de Estado, na medida em que o país, com o intuito de “branquear a população

brasileira”, adotou e incentivou à imigração europeia.

Na reflexão sobre o termo racismo, Seyferth (1995) destaca que:

Conceitos sobre raça e racismo são, pois coisas distintas, embora este último tenha

sido inventado no século XIX no âmbito de uma “ciência das raças” produzida por

antropólogos, sociólogos, ensaísta, filósofos etc., cujo dogma afirmava a

desigualdade das raças humanas e a superioridade absoluta da raça branca sobre as

outras. Racismo é palavra surgida na década de 1930, segundo Bonton (1977), para

identificar um tipo de doutrina que, em essência, afirma que a raça determina a

cultura. (SEYFERTH, 1995, p.178).

Diante das reflexões expostas, os pesquisadores supracitados dizem que o racismo

científico brasileiro carregava em seu âmago, as teorias do Darwinismo social – que propunha

a sobrevivência dos mais aptos, a antropologia de Lombroso e Ferri, propiciando respaldo e

subsídio às ideias defendidas pelo Estado Brasileiro, por esse ponto de vista, o modelo

implantado país afora acreditava na superioridade ariana, portanto, na hierarquização das

raças. Nesse processo, segundo Seyferth (1995) pode-se destacar as presenças de: Silvio

8 Corixo: s. m (regionalismo, Mato Grosso e Goiás). Dicionário eletrônico Houaiss (2015).

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Romero, Lacerda e Oliveira Vianna, principalmente, a partir da primeira metade do século

XX. Incentivando a importação de europeus, que nas palavras de Carmo (1992).

A importação dessa força de trabalho abundante e barata atingiu, até 1920, a cifra de

1 milhão de estrangeiros. Influentes no poder, os agricultores obtiveram do Estado

subsídios para o transporte dos estrangeiros [...] a ponto de o número de estrangeiros

em atividade chegar a 92% do efetivo de trabalhadores (CARMO, 1992, p.68).

De maneira que a ideia central da teoria defendida era a de que, para o Brasil

progredir, haveria necessidade de intensa competição entre as raças e classes sociais; por essa

perspectiva, somente os mais aptos sobreviriam e, consequentemente, os mais preparados - a

raça ariana. Assim, seriam excluídas do meio social todas as outras etnias, bem como:

Seyferth (1995, p.180). “os brancos inferiores”.

Havia uma política marcadamente definida pelo Estado brasileiro que se concretizava

a partir da aplicação de conceitos biológicos às ciências sociais. Munanga (2005, p. 46)

incrementa a reflexão dizendo: “Lapouge, um dos expoentes teóricos dos racistas franceses,

apresentava a história da humanidade como uma luta de raças, na qual ficava evidente a

superioridade da “raça branca” sobre a “raça negra” e a “raça indígena.”

A proposta de Lapouge era agressiva e radical, pois considerava importante que

também houvesse um criterioso acompanhamento da concepção das populações “inferiores”

para que a “limpeza étnica” fosse mais assertiva em suas metas e intenções e, conseguisse o

branqueamento da população. Do mesmo modo, foi essa a maneira utilizada pelos nazistas na

Segunda Guerra Mundial para exterminarem os judeus, na chamada Eugenia9.

Alguns autores argumentam que os mestiços ajudaram a difundir a ideia do mito da

democracia racial no Brasil, uma vez que, tendo a cor da pele mais clara lhes propiciava

melhores oportunidades e condições de ascenderem socialmente. Por essa acepção, Seyferth

(1995) enfatiza que após a década de 1930, o mito da democracia racial difundiu a ideia de

que: Seyferth (1995, p. 190) “a ausência do preconceito serve como explicação para a

mestiçagem, a suavidade do regime escravista brasileiro, a aceitação de elementos das

culturas negras e indígenas como parte integrante da cultura nacional.”.

9 A autora Seyferth (1995), argumenta que a Eugenia se fundamentava na seleção social; na medida em que

propunha o controle absoluto da fertilidade da população, para evitar que se proliferassem

“os indivíduos inferiores”; em classe social ou em raça; foi a política de Estado nascida e fomentada nos Estados

Unidos e amplamente aplicada na Alemanha nazista, na Segunda Guerra Mundial.·.

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Na sociedade brasileira e no mundo contemporâneo têm-se debatido com frequência a

questão do racismo e discriminação que atingem o negro e o não branco. Dessa maneira, as

discussões tornam visíveis as recorrentes situações sociais depreciativas relacionadas à

discriminação que atinge a população negra, alimentado pelo discurso desprovido de verdade

relacionando raça e miséria. As pesquisas demonstram que quando um não branco ascende à

outra classe social, ele é estigmatizado da mesma forma; Seyferth (1995, p. 194) diz:

“Nenhum indicador da posição social de classe é capaz de suprimir o estigma da raça numa

sociedade onde os lugares atribuídos aos não brancos são o elevador de serviço, a cozinha, de

forma simbólica, a senzala.”.

Diante das reflexões dos autores supracitados, o que permeia o caso brasileiro é o

chamado “preconceito de marca”, centrado na manifestação visível da negritude que é a pele,

portanto, no fenótipo. Alia-se a esse processo, o de origem, o que subjaz nas entrelinhas dos

discursos proferidos socialmente que ajudam a arraigar e proliferar o racismo no seio social.

Nesse mesmo sentido, Seyferth (1995) enfatiza que as piadas burlescas que as pessoas contam

nas rodas de conversas, como por exemplo, afirmando que todos tem um “pé na senzala”,

circunscreve o caráter jocoso das piadas; ao mesmo tempo, não tira delas a índole racial

construída socialmente, mesmo porque, as identidades, nas palavras de Hall (2006) e Silva

(2014), são construídas nas relações que os sujeitos mantém entre si e, concomitante, a partir

das inferências que lhes são atribuídas no cotidiano do coletivo.

2.4 QUILOMBO MORRINHOS: AS LUTAS PELO RECONHECIMENTO

Ao abordar a territorialidade em comunidades quilombolas, se faz necessário

contextualizar as lutas históricas vivenciadas por essas populações ao longo dos tempos, na

medida em que, para os negros e quilombolas, o território é um espaço que se dá “[...] como

espaço de práticas culturais nas quais se criam mecanismo identitários de representação a

partir da memória coletiva, das singularidades culturais e das paisagens.” (BRASIL, 2006, p.

223).

O processo histórico da diáspora africana, segundo Munanga (2012) 10

, deu-se em três

fases distintas. A primeira espontânea, pois a ciência já comprovou que o primeiro ser

10 Ver in: http://www.ebc.com.br/educacao/2012/10/kabengele-munanga-fala-sobre-historia-da-diaspora-

africana. Acessado em 19 de dezembro 2015.

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humano teve sua origem no continente africano e, desde então, espalhou-se para o globo

terrestre. A segunda dispersão foi arbitrária, pois os africanos foram retirados à força do seu

território para construírem as riquezas das Américas e da Europa. A terceira forma, período

que se estende até os dias atuais, a população africana é afetada por guerras, fome e

terrorismo, fruto da desorganização político e social deixadas pelos “colonizadores” europeus;

diante desse cenário, foram obrigados a migrarem para outros continentes.

A historiadora Priore (2010) registra que milhões de africanos foram forçados a

deslocarem-se para o Brasil e, os principais grupos étnicos que para cá vieram foram os

Bantos Angolanos, Moçambicanos, Congoleses, Guineenses e os Sudaneses, da Nigéria e da

Costa do Marfim, com objetivos de serem explorados nas sesmarias 11

e outras cidades das

diversas regiões do país.

O sistema escravocrata sobreviveu no período de 1500 a 1850, período em que a

Colônia de Portugal foi erguida com o trabalho forçado de braços de homens, mulheres e

crianças negras, por mais de 350 anos de exploração de mão de obra escrava. Nesse mesmo

sentido, a população escravizada trabalhava em diferentes setores da economia da Colônia,

sendo diferenciados de acordo com a origem e cor da pele.

Conforme contribui Priore (2010):

Os escravos distinguiam-se em boçais – como eram chamados os recém-chegados da

África – e ladinos, os já aculturados e que entendiam o português. Ambos os grupos

de estrangeiros opunham-se aos crioulos, aqueles nascidos no Brasil. Havia

distinções entre as nações africanas e, dada a miscigenação, a cor mais clara da pele

era também fator de diferenciação. Aos crioulos e mulatos reservavam-se as tarefas

domésticas, artesanais e de supervisão. Aos africanos, dava-se o trabalho mais

árduo. Em contrapartida, muitos recebiam em usufruto parcelas de terra onde

podiam cultivar, nos fins de semana e feriados, produtos agrícolas mais tarde

revendidos. (PRIORE, 2010, p. 37)

Quanto mais escura era a pele, maior intensidade de esforço físico era exigida nos

trabalhos realizados. Estudiosos do tema, como Moura (1983), apontam que os escravos eram

negociados como mercadoria, prática frequente em todos os setores da sociedade da época.

Nesse período, o Brasil, colônia de Portugal, necessitava de mão de obra escrava para dar

conta das demandas do comércio internacional. Por isso, a maior parte das divisas advindas

desse processo de exploração era destinada às metrópoles europeias, sobretudo, Portugal e

Inglaterra. O que sobrava servia para aquisição de mais escravos.

11 Terras doadas pela coroa portuguesa a benificiários da Corte.

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Estudos de Moura (2001) apontam que havia nas cidades e regiões do país grande

número de escravos trazidos da África que, por vezes, chegavam a ultrapassar o número de

habitantes livres desses lugares. Diante desse contexto, surgem as primeiras revoltas e

rebeliões que culminavam com a formação de resistências em quilombos rurais. Mesmo com

tantos levantes, a sociedade brasileira posicionava-se de modo intransigente, reafirmando ser

imperativa a permanência e a continuidade do processo escravocrata e, assim, manter as

benesses do governo Português no sistema vigente.

Nesse contexto, os mais de 350 anos de trabalho escravocrata pleno começaram a

declinar. A partir do século XVIII, para as principais potências europeias, Inglaterra e França,

o sistema escravagista não era mais vantajoso, pois o capitalismo se expandia nos países

europeus levando à substituição da mão de obra escrava, por máquinas. Paulatinamente, a

sociedade brasileira foi obrigada a criar um ambiente propício para a extinção do processo

escravista. Essa demanda se torna evidente nos movimentos abolicionistas e, a posteriori,

com as aprovações das leis do Ventre Livre (1871) e do Sexagenário (1885), para finalmente,

em 1888, o Brasil ser o último país das Américas, pelo menos na legislação oficial, a eliminar

o trabalho escravagista.

No transcorrer desse processo, muitos negros escravizados realizavam tentativas de

resistências às opressões severas que sofriam; formavam espaços de liberdade, para plantar,

colher e viver. O quilombo de Palmares, localizado na Serra da Barriga, no atual Estado do

Alagoas, liderado por Zumbi dos Palmares, foi o símbolo maior de resistência e organização

política e democrática desse período; lá se abrigavam negros, brancos, índios e pessoas

perseguidas pelo governo colonial da época. Esses espaços de resistências, de certa forma,

causavam deserções em mais fazendas e propriedades, nos campos e nas cidades, e,

consequentemente, obrigavam o governo Português a tomar decisões mais efetivas para

coibirem tais “desordens” no campo político organizacional, uma vez que traziam

instabilidade social à Colônia. (MOURA, 2001).

No Estado de Mato Grosso, os historiadores Siqueira (2002) e Mendes (2015)

destacam nos séculos XVIII e XIX os quilombos de Piolho, em Vila Bela da Santíssima

Trindade, e Rio Manso, em Chapada dos Guimarães, como espaços de resistências das

populações negras. O primeiro foi administrado por Teresa de Benguela; lá as pessoas eram

livres, plantavam, colhiam e possuíam maneiras democráticas de convivência política, social e

administrativa. Os habitantes eram negros, índios e demais perseguidos pela Capitania de

Mato Grosso. O quilombo do Rio Manso era composto por populações negras, índios e

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desertores da guerra do Paraguai, o que causou bastante incômodo ao governo provincial da

época, uma vez que não dispunha de estrutura para combatê-los, o que foi possível somente

após o término da guerra do Paraguai.

Nesse cenário, e, principalmente, com o objetivo de combater o caos advindo da

resistência imposta pelos muitos quilombos no Brasil, a Coroa Portuguesa pressionada pelo

Conselho Ultramarino12

, estabelece o conceito de quilombo, a fim de nortear as ações de

punições aos dissidentes e, concomitantemente, tentar frear a expansão do movimento por

outras Capitanias comandadas pelo Império Português.

Em resposta ao Conselho Ultramarino, no ano de 1740, a Coroa publica a seguinte

definição sobre Quilombo: “habitação de negros fugidos que passassem de cinco, em parte

despovoada”. No entanto, para alguns estudiosos como Priore (2010) e Moura (1983), os

primeiros quilombos datam muito antes desse conceito estabelecido pela Coroa Portuguesa.

Ao nos aprofundamos na origem do vocábulo “quilombo”, Reis (1996) infere que a

palavra advém de Kilombo, uma comunidade sociocultural de jovens guerreiros mbundu,

pertencente e adotada pelos invasores jaga ou imbagada, tendo em sua formação traços

étnicos culturais de diversos povos sem enraizamento, ou mesmo sem comunidades. (REIS,

1996).

Para Munanga (2005), a expressão quilombo carrega em seu cerne, toda uma trajetória

de vida de sociedades africanas de origem banta, que tiveram o nascedouro por volta do

século XVI, nas regiões do atual Zaire e Angola. Tratava-se da formação de uma sociedade

acolhedora de todos aqueles que, de alguma forma, se viam perseguidos e injustiçados e

tinham nessas comunidades apoio e abrigo para se protegerem de guerras e conflitos.

Nesse viés, Castilho (2011) descreve o amadurecimento do termo quilombo, pois ao

acolher negros, índios, brancos e pessoas que de alguma forma eram agredidos e ou

injustiçados em suas comunidades, essas comunidades tornaram-se espaços de resistência

pluriétnica, conforme reflete Castilho (2011):

O quilombo africano em seu amadurecimento – que se deu no século XIX – se

tornou uma instituição política e militar transétnica. Era aberta a todos, sem

distinção de filiação a qualquer linhagem [...] Imitando o modelo africano, eles

transformaram esses territórios em espécie de campos de iniciação e resistência,

12 O Conselho Ultramarino criado em 1642, em Lisboa, instalado em 2 de dezembro de 1643. Presidia, à época,

D. Jorge de Mascarenhas, vice-rei do Brasil.

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abertos a todos os oprimidos da sociedade: negros, índios e brancos, prefigurando

um modelo de democracia plurirracial que o Brasil ainda está a buscar.

(CASTILHO, 2011, p, 82).

Em face desse contexto, foi acontecendo o amadurecimento apontado pela autora,

sendo os quilombos exemplos de espaços de democracia pluriétnica. Na direção de tal

reflexão caminham os estudos contemporâneos no sentido de abarcar o conceito de quilombo

vislumbrado por Castilho (2011), à medida que as ideias reflitam as premissas apontadas pela

Sociedade Brasileira de Antropologia, ancorados nos pressupostos de Barth (1998) e Hall

(2006). Acrescente-se que, na contemporaneidade, as fronteiras trilhadas pelos sujeitos estão

cada vez mais tênues, em que os movimentos identitários não se fortalecem no isolamento,

mas no confronto com as outras etnias e grupos socioculturais.

Nessa propositura, O`Dwyer (2002) foi assertivo ao afirmar que, na

contemporaneidade, o conceito de quilombo deve ser visto a partir da perspectiva do sujeito

em sincronia com o sentido de pertença, ligados às questões da terra, da identidade com o

lugar onde moram e partilham o cotidiano, uma vez que, nesses espaços procuram manter

vivas as suas tradições, costumes, narrativas e valores das gerações anteriores. Nesse mesmo

sentido, constroem riquezas importantes para o fortalecimento e manutenção do grupo.

Os espaços dos quilombos foram fortalecidos no Brasil com o surgimento dos

movimentos sociais negros e quilombolas que resultaram de um longo processo desencadeado

pelas relações raciais e sociais desiguais que já imperavam no Estado Brasileiro à época do

império. Tais injustiças ainda permeiam a sociedade nos dias atuais; tanto que, para Moura

(1983), os avanços significativos no arcabouço jurídico do país, principalmente, a partir da

Constituição Federal de 1988, foram frutos de lutas de homens, mulheres, negros, indígenas e

brancos, ligados aos movimentos sociais.

Nessa perspectiva, as lutas e a junção de forças desses movimentos sociais

desencadearam políticas públicas de Estado, que possibilitaram garantias de direitos humanos

fundamentais à vida, como: educação, moradia, saúde e o acesso a terra; com o intuito de

extirpar o histórico alijamento de direitos vivido por séculos pelas populações negras.

Desse modo, o Estado Brasileiro começou a reparar as injustiças perpetradas contra as

populações negras e quilombolas, principalmente, em seus artigos 215 e 216 da CF/1988, bem

como o artigo 68 dos Atos das Disposições Transitórias Constitucionais. Destaque-se o

decreto 4.887/2003 que trata sobre o reconhecimento, regularização, delimitação das áreas

remanescentes de quilombos, que determina ao Instituto INCRA / MT, como órgão

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responsável, dar celeridade e encaminhamentos às questões de regularização das terras dos

remanescentes de quilombos.

Na perspectiva das políticas afirmativas13

para a população quilombola, foi criada a

Fundação Cultural Palmares14

, responsável pelo reconhecimento e certificação das áreas de

quilombos. Ao vislumbrar a nova acepção contemporânea sobre a definição de quilombos, o

disposto no artigo 2º do Decreto nº. 4.887/2003 determina que as próprias comunidades se

autoatribuam o grau de pertencimento, ancorados na ancestralidade negra, em trajetória

própria, em suas identidades.

Art. 2º – Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os

fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição,

com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com

presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica

sofrida. (BRASIL, 2003).

Assim, as populações pertencentes às comunidades e territórios dos quilombos,

finalmente tiveram suporte jurídico importante para contrapor-se àqueles grupos contrários ao

reconhecimento de áreas de terras quilombolas e que defendiam a utilização da definição de

quilombo estabelecida nos parâmetros da Coroa Portuguesa, datados do ano de 1740. Nesse

sentido, até pouco tempo, antes da Constituição Federal de 1988, esse era o parâmetro

utilizado pelo sistema jurídico brasileiro para nortear as decisões advindas dos conflitos

envolvendo as questões agrárias no país, principalmente, nas áreas remanescentes de

quilombo.

Em Morrinhos, o processo de reconhecimento da área como remanescente de

quilombo iniciou a partir da primeira solicitação, conforme o ofício nº 68/2005 protocolado

no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária / Mato Grosso, no dia 5 de maio de

2005. Tal ação visava à regularização da comunidade remanescente de quilombo e foi

13 Ações afirmativas são políticas públicas feitas pelo governo ou pela iniciativa privada com o objetivo de

corrigir desigualdades raciais presentes na sociedade, acumuladas ao longo de anos. Uma ação afirmativa busca

oferecer igualdade de oportunidades a todos. As ações afirmativas podem ser de três tipos: com o objetivo de

reverter à representação negativa dos negros; para promover igualdade de oportunidades; e para combater o

preconceito e o racismo. http://www.seppir.gov.br/assuntos/o-que-sao-acoes-afirmativas >acessado em outubro

2016.

14 No dia 22 de agosto de 1988, o Governo Federal fundou a primeira instituição pública voltada para promoção

e preservação da arte e da cultura afro-brasileira: a Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao

Ministério da Cultura (MinC). A FCP trabalha por uma política cultural igualitária e inclusiva, que busca

contribuir para a valorização das manifestações culturais e artísticas negras brasileiras como patrimônios

nacionais. Tem a sede em Brasília e representações regionais em mais cinco estados: Alagoas, Bahia, Maranhão,

Rio de Janeiro e São Paulo. http://www.palmares.gov.br/ > acessado em: outubro 2016.

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realizado pelo senhor Francisco Assis de Oliveira, Presidente do Conselho Estadual dos

Direitos dos Negros de Mato Grosso e deferido pela Fundação Cultural Palmares.

Todavia, consta no processo que, no ano de 2009, o presidente da Comunidade de

Morrinhos, apresentou solicitação ao INCRA / MT solicitando exclusão da comunidade, pois

argumentava, no documento, que tal procedimento não tinha sido discutido no vilarejo.

Contudo, ao ler todo o processo, deparei-me com uma ata e nela o devido registro de falas de

autoridades políticas do município de Poconé, interferindo explicitamente numa questão que

era de foro e decisão dos quilombolas de Morrinhos.

Diante do exposto, o INCRA / MT reuniu-se com a comunidade de Morrinhos, em

2012, para saber se de fato poderia dar continuidade à regularização do processo de

certificação da área. Na reunião, após as falas dos moradores, ficou acordado e registrado em

ata que a comunidade se autoatribuía a identidade quilombola, e que, portanto, o órgão

poderia dar prosseguimento à regularização e certificação da área.

Assim, foi expedida uma nova certidão, em 17 de dezembro de 2012, possibilitando a

contratação de uma empresa para a realização do Relatório Antropológico de Caracterização

Histórica, Econômica e Ambiental de Morrinhos, concluído em outubro de 2014.

Após leitura minuciosa dos dois volumes processuais, datados de 2005 e 2014, faço

aqui uma exposição informal dos dados apresentados no relatório antropológico, tendo em

vista que, por se tratar de uma demanda litigiosa, em processo de redefinição de suas

fronteiras, os dados em seu inteiro teor, embora já disponíveis internamente no INCRA /MT,

desde outubro de 2014, ainda não são públicos. Mesmo assim, exponho em linhas gerais as

principais ideias, pois as considero importantes contrapontos às observações que fiz in loco,

em Morrinhos.

2.5 A COMUNIDADE DE MORRINHOS

Depois de realizada a contextualização sobre o conceito de quilombo, adentramos a

comunidade de Morrinhos, localizada na zona rural, às margens do Rio Bento Gomes, em

Poconé – Mato Grosso. Certificada pela FCP, conforme a portaria publicada no diário oficial

da união de nº 84 de 8 de junho de 2015. Morrinhos é uma área que se caracteriza de forma

muito simples; é, praticamente, uma rua principal com extensão máxima de quatro

quilômetros, onde está localizada a maioria das 24 residências, com uma média de quatro

moradores por casa.

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Figura 8 - Rua principal de Morrinhos

Fonte: Acervo do autor, 2016

A grande maioria dos moradores possui laços de parentescos e, segundo relatos orais

de moradores mais antigos, a comunidade foi fundada há aproximadamente 150 anos. Nesse

mesmo sentido, e de acordo com narrativas de membros da comunidade, foi fundada por um

casal de descendentes de negros escravizados que habitavam a região e que uniram duas

famílias: Velho e Correa.

De acordo com relatos dos senhores Gonçalo e Sebastião essa é a versão histórica da

comunidade e foi confirmada em minhas pesquisas em documentos de batismo da igreja

Nossa Senhora do Rosário Poconé e em trabalhos realizados pelo Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária, através do relatório histórico e antropológico de Morrinhos

(2014), referente à certificação e regularização da área, bem como em trabalhos de Crivente

(2001) e Pereira (2013).

O primeiro infere que os descendentes da fazenda Cotia são: Sebastião Armando

Rodrigues, Maria Teotônia da Silva, Amâncio Rodrigues, Domingos Santana, Luiz Correia e

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José Maria; e, de acordo com Pereira (2013), este vincula a origem da comunidade de

Morrinhos como resultado da união de duas famílias: Joaquim Velho e de Luís Correia, o que

vai ao encontro do que pude constatar em minha pesquisa.

O relatório antropológico do INCRA (2014) aponta que 53% dos 92 moradores são

homens, enquanto que 47% são mulheres e vivem da agricultura de subsistência, plantando

banana, milho, mandioca, abóbora, batata, abacaxi, melancia, e criam animais de pequeno

porte, galinhas e suínos, dentre outros.

Pude observar no cotidiano da comunidade, que alguns dos moradores também

trabalham na Mineradora Morrinho e fazendas próximas da região que faz divisa com as

terras da comunidade. Nesse sentido, a comunidade de Morrinhos é uma comunidade secular,

com laços de consanguinidade e tradições afrodescendentes advindas do processo histórico da

região, desde a fundação da Vila pelo senhor Joaquim Velho há 150 anos.

Ao procurar entender a ambiência de Morrinhos e seus moradores apoiei nas

perspectivas apontadas por Barth (1998) sobre os traços diacríticos. Para o autor, essas linhas

ajudam a compreender a dimensão sociocultural e identitária de uma comunidade, pois para

Barth (1998, p. 194): “O conteúdo cultural [...] sinais ou signos diacríticos manifestos [são] os

traços diacríticos que as pessoas exibem para demonstrar sua identidade, tais como vestuário,

a língua, a moradia, ou estilo geral de vida.”.

Diante desse contexto, descrevemos os espaços coletivos em Morrinhos.

2.5.1 Os espaços coletivos: o campo, a escola e a igreja

Logo na entrada de Morrinhos, do lado esquerdo, pode ser observado o campo de

futebol, espaço importante de recreação para as crianças e jovens da comunidade,

principalmente, à tarde e aos finais de semana.

Outro ponto bastante frequentado é a centenária Igreja de São Benedito fundada há

150 anos, foi levantada pelos primeiros moradores da comunidade, localiza-se no centro da

rua principal, em frente ao centro comunitário e próximo à Escola Municipal Professora

Catarina Antônia da Silva.

Nessa propositura, a escola municipal de Morrinhos, segundo relatos da senhora

Rosilda e dos Senhores Gonçalo e Sebastião, no início funcionava na casa das famílias da

comunidade. Nesse sentido há uma narrativa do ancião mais idoso da comunidade, senhor

Gonçalo de 79 anos, que ilustra tal fato histórico, ainda na década de 50 do século XX.

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Lá embaixo, na casa da professora tinha a escola de Morrinho, aí, eu fui o primeiro

dia, o segundo dia, o terceiro dia._ Como que tá aí na escola, tá bem? Pergunta o

meu pai. _Não! Respondi. Então, pode sair da escola! E, então fui para roça tirar

palhada de mandioca, assim, plantava o arroz e a mandioca, quando cortava o

arroz ficava, assim, e aí, tinha eu que tirar a palhada. Para eu aprender alguma

coisa, como diz o outro, com o perdão da palavra, para não carregar a morte por

cristo, minha irmandade reunia na frente de casa, embaixo de uma árvore, aí, eu ia

lá, aí ele ia me ensinar, e eu já tinha meus onze pra doze anos. (SENHOR,

GONÇALO).

A escola de Morrinhos funcionava na casa da família da senhora Catarina Antônia da

Silva, descendente do fundador da localidade. Relatos orais dos moradores dizem que ela foi a

primeira a desempenhar a função de professora da comunidade. Dentre estes, o da Presidente

da Associação dos Moradores, que foi sua aluna. Conforme Rosilda “Minha vó Catarina, [...]

quando começou dar aulas para nós era na cozinha dela [...] por livre e espontânea vontade,

para todos da comunidade [...] e não recebia nada por isso.”.

Figura 9 - Escola de Morrinhos

Fonte: Acervo do autor, 2016

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Esse contexto se assemelha ao que foi abordado por Castilho (2011), e nos remete ao

modelo de escolarização da “casa escola”, comum no Governo Imperial do século XVIII no

Brasil, mas ainda em vigor até os dias atuais em muitas comunidades rurais.

Décadas depois, Dona Catarina foi homenageada, e a escola municipal de Morrinhos

passou a denominar-se: Escola Municipal Professora Catarina Antônia da Silva; nela funciona

em nível Ensino Fundamental, I à IV, conforme Ato de Autorização 3271 / 92, publicado no

Diário Oficial em 14.04.2010.

A escola possui uma sala de aula, uma despensa pequena, um banheiro, água encanada

e, localiza-se no centro da comunidade, próxima à Igreja de São Benedito e ao lado do salão

comunitário. A escola é a única da localidade e no ano de 2016 atendeu dez alunos, com

idades que variam entre 7 a 10 anos.

Em 2016 estudava na escola: um aluno no segundo ano, em processo de alfabetização,

três estavam no terceiro ano e seis no quinto ano. Oito alunos moravam em Morrinhos, dois

residiam na Fazenda Campo Belo, que fica a cinco quilômetros da comunidade. Os pais dos

mesmos realizavam o trajeto de moto todos os dias para levá-los à escola.

O professor não é quilombola e reside em Cangas, Distrito de Poconé, que fica a 35

quilômetros de Morrinhos. Ele faz o percurso todos os dias pela manhã até Morrinhos por

uma estrada não pavimentada e em estado precário. A partir do 6º ano, os alunos estudam na

Escola Estadual Dom Francisco de Aquino Corrêa em Cangas – Poconé, utilizando o

transporte escolar que os conduz até a unidade de ensino.

Figura 10 - Salão comunitário

Fonte: Acervo do autor, 2016

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A figura 10, em destaque, apresenta o salão comunitário da comunidade, como um dos

principais destinados aos encontros coletivos e, ao mesmo tempo, para tomadas de decisões

importantes sobre o destino da comunidade; por exemplo, no encontro com o INCRA/MT

para decidirem sobre a autoatribuição quilombola da comunidade.

2.5.2 As residências e à comunicação

Em Morrinhos, as residências se distribuem em sua maioria, ao longo da rua principal.

Há casas de madeira, cobertas com palhas, e outras de adobe. Poucas são feitas de alvenaria;

todas bastante simples.

No segundo semestre de 2015 e, principalmente, em 2016, em que as visitas tornaram-

se frequentes a comunidade, pude visitar as residências dos senhores Gonçalo, Sebastião,

Joanito, Dionizio, e das Donas Leonilda e Rosilda, dentre outras. O aconchego e a

simplicidade das moradias integram o ambiente da ruralidade em Morrinhos. Nos quintais há

cajueiros, jequitibás, goiabeiras, mangueiras, bananeiras; por ali, de forma despreocupada,

passeavam os galos índios, garnisés, galinhas carijós, angola, além dos patos, que pastavam

nas gramíneas próximas às residências.

Nesse cenário, a casa do senhor Joanito tem um jardim todo florido e ornamentando

com flores, rosas vermelhas, azuis e brancas, propiciando aos transeuntes aromas inigualáveis.

No tempo da visita, estava próximo o dia da festa de São Bento e Lázaro, por isso, o quintal

estava enfeitado com muitas bandeirolas, alegrando ainda mais o ambiente festivo, com cores

fortes e brilhantes.

A maioria dos moradores possui acesso às notícias por meio da televisão e do rádio.

Não há torre próxima de celular nas redondezas da Vila, mas alguns dos moradores têm

antena externa que possibilitam a utilização do celular, o que tem ajudado, principalmente,

nas emergências relacionadas à questão de saúde.

Adentrando as residências, pude perceber quão simples, acolhedoras e aconchegantes

eram as moradias de alguns dos moradores, com quadros de fotografias dos provedores

expostos nas paredes da sala e atrás da porta alguns apetrechos dependurados, para a lida do

cotidiano. Sempre, no cômodo principal há um lugar especial reservado para um pequeno

altar, uma espécie de nicho, para os santos devotos, da família e da comunidade - Santo

Antônio, São Bento, São Lázaro e São Benedito, o padroeiro da comunidade.

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A casa do senhor Joanito é um exemplo característico das demais residências da

comunidade. Ressalto, porém, que algumas casas são feitas de adobe, um tipo de tijolo grande

de argila, seco ou cozido ao sol. A essa massa de argila, às vezes são acrescidos palha ou

capim, para torná-lo mais resistente, mas não se adiciona cimento, tornando a feitura das

residências o mais barato possível. Do mesmo modo, percebi que a cobertura de algumas

casas era de palha de Acuri, outras de telha de amianto, tipo Eternit, mas também existem

casas de tábua e outras que foram construídas há menos tempo são de alvenaria com telhas de

barro.

Durante a percepção e o registro da observação, recordei a música de Geraldo

Azevedo e Renato Rocha15

que diz: “A casa era uma casa brasileira, sim [...] o jeito, a

maneira, a identidade enfim”. Nesse contexto, sob a varanda, observei de forma atenta os

ricos detalhes do entorno: um casal de araras azuis, em uma goiabeira, “conversava” com

duas senhoras que faziam farinha em dois imensos tachos de cobre, num dia de mutirão das

mulheres da comunidade.

2.5.3 O que produzem e criam

Ao observar o cotidiano da comunidade de Morrinhos, notei que a maioria dos

moradores tem sua área de terra e nela trabalham no manejo da roça, no plantio de mamão,

banana, mandioca, quiabo, abóbora, abacaxi, melancia; e algumas famílias, às vezes, também

plantavam arroz, mas somente o suficiente para o sustento da família, atividades que se

enquadram na agricultura de subsistência. No quintal, há sempre o fogão a lenha e fornos

aquecendo as panelas para o cozimento de doces de abóbora, caju, goiaba, ou mesmo de

mamão, como pude presenciar, no dia em que visitei a casa do senhor Sebastião.

Nesse contexto, recordei da época de infância, próximo ao fogão à lenha,

principalmente, nos meses de frio, em que nos reuníamos para saborear mandioca e milho

assados e ouvir narrativas dos mais velhos, sobretudo dos avós, que tinham muitas lembranças

e histórias do vivido. Mas em Morrinhos, o fogão além de propiciar a aproximação das

pessoas, tem a função de ajudar, sobretudo, na economia das famílias. O combustível para o

15 A Casa Brasileira, composição: Geraldo Azevedo- Renato Rocha. Bossa Tropical (1989) RCA ― LP/CD >

http://geraldoazevedo.com.br/musicas/bossa-tropical > acesso em: outubro 2016.

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fogão há sempre por perto, por isso, a maioria das residências possui fogão a lenha e forno de

barro utilizado no cotidiano para o preparo dos mais diferentes pratos, quitutes e assados.

Cabe destacar que o mutirão ainda permanece como um aspecto cultural importante no

grupo quilombola de Morrinhos, conforme observei e foi relatado nas entrevistas dos senhores

Gonçalo, Sebastião e Joanito, os mesmos, às vezes realizam o mutirão em diversas situações,

seja na reforma da moradia, na limpeza da roça ou no plantio e na colheita.

As políticas públicas têm o objetivo de minorar as desigualdades e injustiças sociais,

entre as quais, garantir o acesso ao direito fundamental à alimentação. Dados do próprio

Governo Federal (BRASIL, 2006) demonstram a realidade que atinge 57% da população

negra brasileira, que vive abaixo da linha da pobreza, com menos de R$2,00 por dia. Nessas

circunstancias, diz Portelli (2010, p. 104) “sobreviver é, em si, resistir, a luta de classe não se

faz mais nas greves e nos sindicatos, mas na luta diária contra a morte”.

Ao cotejar o cerne das questões advindas das políticas neoliberais assistencialistas em

diversas regiões do globo, voltadas às populações em situações vulneráveis economicamente,

principalmente, a partir do século XX, Gentilli, (2000, p. 38) enfatiza: “Programas com um

alvo específico, não importa quão bem projetados e cheios de vitalidade, têm pouca

perspectiva de obter maiores efeitos, a menos que sejam parte de uma agenda mais ampla

visando a justiça social na educação.”.

Por esse ponto de vista, as possibilidades de apoio e sustentação política teriam que

arregimentar o apoio da sociedade, em favor de mudanças institucionais, somente assim,

medidas compensatórias de distribuição de renda surtiriam efeitos; em outras palavras, teria

que ser uma política de Estado e não produzidas e implementadas ao sabor deste ou daquele

governo.

2.6 MORRINHOS: A TERRA E O SENTIDO DE PERTENÇA

Apesar das dificuldades do cotidiano, a população quilombola de Morrinhos tem

resistido às mais diversas pressões provocadas pelas omissões dos governos, principalmente

no que se refere à morosidade das políticas sociais, principalmente no que se refere a

regularização da terra, do acesso à saúde e ao crédito fundiário.

A título de exemplificação, podemos mencionar o encolhimento das áreas de terras em

Morrinhos, uma vez que à época de sua fundação, a comunidade contava com 650 hectares e

hoje são menos de 200 hectares. Nas palavras do ancião Gonçalo:

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[...]Mas houve um determinado momento tudo ficou muito diferente, porque chegou

lá, em Pirizal, certo “fazendeiro”, e, nos expulsou da terra, e meus pais, como não

eram de confusão, tivemos que mudar às pressas para Morrinhos, o que de certa

forma, ocasionou muitos prejuízos para nossa família, porque tivemos que de uma

ora para outra, carregarmos somente aquilo que conseguíamos levar, e assim foi,

deu dó de ver, porque deixamos para trás, criação, roça feita, e muita plantação,

tuto, tudo e, seguimos para Morrinhos, que ficam uns 12 quilômetros de Pirizal, e

fomos acolhidos com muito respeito e afeto por nossos parentes. (SENHOR

GONÇALO, 79).

De tal forma que, a memória do senhor Gonçalo carrega elementos importantes para

compreendermos os enfrentamentos por que passam os quilombolas de Morrinhos.

Atualmente, sua luta está relacionada ao direito de reconhecimento da titulação da terra, uma

vez que há décadas os povos quilombolas sofrem as consequências desse não reconhecimento

por parte das instituições.

Conforme mencionado em páginas precedentes, o cenário começou a mudar somente a

partir da década de 1980, quando os movimentos negros conseguiram avançar no processo do

direito de posse de suas terras com a implantação do Artigo 68 dos Atos das Disposições

Constitucionais Transitórias na Constituição Federal de 1988. Com isso o sentido de pertença

e o autorreconhecimento possibilitaram às populações tradicionais darem início ao processo

de titulação e reconhecimento, delimitação e titulação de suas terras, conforme o decreto

4.887 /2003.

Embora seja considerado um avanço, o processo ainda é longo, moroso e complexo,

pois, das mais 4.500 comunidades quilombolas, pouco menos de 2000 foram certificadas pela

Fundação Cultural Palmares.

Em decorrência dessa situação, os moradores afirmam que no trabalho com a terra não

recebem nenhuma assistência técnica por parte dos governos, muito menos crédito agrário.

Mas, mesmo diante dessas limitações, conseguem com apoio mútuo, plantar e colher para o

sustento da família e, ressalte-se: têm mantido a preservação do ambiente. Às vezes, realizam

mutirões de limpeza nas roças, principalmente, em épocas de colheitas. Em Morrinhos, a

titulação da terra é coletiva e, conforme dito em páginas anteriores está em processo de

regularização definitiva junto ao INCRA-MT, entre idas e vindas, desde o ano de 2005.

Nas palavras de Sodré (1988):

O território como patrimônio simbólico não dá lugar à abstração fetichista da

mercadoria nem à imposição poderosa de um valor humano universal, porque aponta

o tempo inteiro [...] para a simplicidade das condutas do estilo de vida e para a

alegria concreta do tempo presente (SODRE, 1988, p. 165).

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Nessa perspectiva, a dignidade e o respeito do povo de Morrinhos se evidenciam no

trabalho com a terra, e, segundo os relatos orais dos Senhores Gonçalo e Sebastião, dois

moradores mais antigos do vilarejo, o povo de Morrinhos valoriza a terra, no plantar, no

colher os frutos que saem dela. Nesse particular, a relação estabelecida entre o homem e a

terra se intensifica; para os moradores de Morrinhos, a terra é humos, propulsora de vida, pois

eles fazem o trabalho cotidiano com a terra misturando-se a ela, e assim, reconhecem e

preservam a sua fertilidade, pois a Terra (Gaia) é mãe de todos. Nesse sentido, Arroyo (2004)

ao referir-se à pedagogia da terra afirma:

Ela brota da mistura do ser humano com a terra: ela é mãe e, somos filhos e filhas da

terra, nós também somos terra. Por isso, precisamos aprender a sabedoria de

trabalhar a terra, cuidar da vida: a vida da Terra (Gaia), nossa grande mãe, a nossa

vida. A terra é ao mesmo tempo o lugar de morar, trabalhar, de produzir, de viver, de

morrer e cultuar os mortos, especialmente os que a regaram com o seu sangue, para

que ela retornasse aos que nela se reconhecem. (ARROYO, 2004.p.100).

Percebe-se, nessa perspectiva, que há mais de um século trabalhando com a terra, os

moradores de Morrinhos deixam evidente seu respeito à natureza e a consciência de que

fazem parte dela; sobretudo, porque é ela é aquela que dá o pão de cada dia e o sustento à

comunidade. A preservação é fruto da alegria e solidariedade presente no povo de Morrinhos,

pois o olhar dos sujeitos da comunidade para a terra é diferenciado, à medida que a percebem

como geradora de mais vida.

Figura 11- Garimpo vizinho a Morrinhos

Fonte: Acervo do autor, 2016

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O ponto contrastante com as práticas de preservação percebidos na comunidade é a

existência do garimpo vizinho que retira do solo a riqueza e deixa as cicatrizes e a poluição no

solo e no rio Bento Gomes. Apesar dos muitos descasos apontados pelas vozes dos

moradores, seja pela ausência de políticas públicas mais eficazes no campo da saúde,

educação, transporte, acesso ao crédito agrário, em nenhum momento eles fizeram desses

aspectos um drama capaz de levá-los, por ganância, à exploração do ouro. Da forma como é

realizada, ela degrada o ambiente pantaneiro; mas o pior aspecto é justamente aquele que

percebe a anuência, ou omissão intencional, das instituições governamentais.

2.7 A RELIGIOSIDADE E A FESTA DO PADROEIRO: SÃO BENEDITO

Uma das características que aponta para quem é ou não um quilombola, segundo

Machado (2006), está diretamente associada ao sentimento de pertencimento, com ligações de

consanguinidade, parentesco e práticas agrícolas de subsistência desenvolvidas no cotidiano,

em que estão presentes os vieses da solidariedade, respeito, amizade e religiosidade.

A religiosidade em Morrinhos é bastante aflorada e expressiva, e nesse ponto, talvez a

capela mais antiga de Poconé seja a de São Benedito, localizada em Morrinhos, com

aproximadamente 150 anos. Os relatos orais dos participantes dos senhores Gonçalo,

Sebastião, Joanito e de donas Leonilza e Rosilda corroboram os registros encontrados por

mim na Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário, em Poconé, e no livro “Findando Milênio

Nossas Comunidades” (s.d):

Morrinhos – Comunidade São Benedito – 44 km – Estrada Cuiabá Poconé – 15

famílias aproximadamente. É talvez, a mais antiga de todas as capelas. Todos os

meses, enquanto à frente era o Padre Joaquim, nunca desanimamos em visitá-la.

Lembramo-nos que antes do “aterro Dito Pinto” ia de carro até certo ponto, e,

depois, seguíamos de carroça. D. Catarina, a professora, é quem nos dava o almoço,

quase sempre, um peixinho pego na lagoa. A festa de São Benedito era das mais

fartas e mais concorridas com pessoas vindas até de Cuiabá e Cáceres. (FINDANDO

O MILÊNIO NOSSAS COMUNIDADES, [s.d] p, 42).

A maioria da população de Morrinhos é católica; todavia, dois dos participantes desta

pesquisa são evangélicos: professor Ilário e o senhor Gonçalo; os demais são devotos de São

Benedito, tendo-o como santo protetor das famílias e da comunidade, por identificação e por

raízes advindas da tradição dos fundadores da Vila, Senhor Joaquim Velho e Severina Arruda,

há 150 anos.

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Figura 12 - Preparativos para celebração da festa do padroeiro

Fonte: Acervo do autor, 2015

Nesse sentido a missa é celebrada uma vez ao mês por um pároco da Matriz Nossa

Senhora do Rosário, de Poconé. A fala de Dona Rosilda, Presidente da Associação de

Moradores de Morrinhos, menciona o porquê de São Benedito ser o padroeiro da comunidade.

Porque São Benedito era protetor dos negros, dos escravos, ele era o que fazia a

comida na fazenda [...], e ele ficava com dó das pessoas que trabalhavam na

fazenda, e ficava agoniado com a situação que as pessoas eram tratadas, os

escravos que trabalhavam na fazenda, que passava necessidade, maltratado,

passavam fome todos os dias. Então, o patrão deixava levar somente uma concha da

sobra do almoço [para os escravos] e então, ele levava para eles, porque o patrão

mandava colocar uma concha da comida que sobrava numa panela e para todo

aquele povo, mas claro que num iria dar. Então, o que ele fazia? Destampava a

panela e ia colocando dentro da panela, todas as flores que encontrava pelo

caminho, quando chegava no lugar em que os escravos estavam trabalhando, então,

ele destampava a panela, e, estava aquela comida mais gostosa do mundo. Assim

que ele fazia para as pessoas não morrer de fome, né! (SENHORA ROSILDA,

2016).

A ligação dos quilombolas de Morrinhos com a religiosidade e a devoção a São

Benedito pode ser verificada, principalmente, nas festividades em homenagem ao padroeiro.

Evento que se tornou tradicional na comunidade e no município, a festa se estende para além

da comunidade quilombolas de Morrinhos, posto que nos dias festivos, a comunidade recebe

pessoas de diversas cidades.

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Em Morrinhos, as festas de santo têm significados importantes para os moradores

porque traduzem a essência do que eles pensam a respeito dos aspectos relacionados aos

benefícios dos rituais de fé e religiosidade na vida das pessoas em comunidade. A

religiosidade representa a raiz da raiz, o broto do broto, de onde provém a força para enfrentar

as situações difíceis do cotidiano.

Por essa atmosfera religiosa perpassam os principais rituais simbólico-religiosos –

cultos, novenas, procissões, ladainhas, levantamento/descida do mastro, dentre outros. Esses

rituais configuram-se como momentos de agradecimento aos santos e a Deus; funcionam

também como formas de aproximar as pessoas da comunidade, bem como criar sinergia e

forças positivas para o grupo.

Nas cenas de devoção, podemos observar a participação de crianças, jovens e adultos

e, nos momentos do ritual de agradecimento, devotos acendem velas em frente à capela e ao

lado do mastro do santo padroeiro. Nesse processo, a festa de São Benedito, é tida como o

ápice de agradecimento dos devotos pelas benções recebidas durante o ano e, traz consigo, a

renovação da esperança para um novo período que se inicia, ancorada no respeito ao próximo,

solidariedade e alegria.

Figura 13 - Adolescentes participando da celebração ao padroeiro

Fonte: Acervo do autor, 2016

Desse modo, as festas em Morrinhos são espaços de celebração à vida, solidariedade,

amizade, momento de reunião dos amigos e parentes; sobretudo, de acolhimento e sinergia

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entre os participantes e devotos que para lá se dirigem nos dias de festa. Desse modo peculiar,

agradecem a fartura propiciada pela mãe terra. Nesse mesmo sentido, os mistérios da fé e os

rituais religiosos permeiam todo processo de condução das festividades, em que praticamente

todos da comunidade participam das celebrações. Segundo, Moura (1998):

Do parentesco ao meio ambiente, do calendário agrícola ao respeito aos mais velhos,

da produção artesanal à história dos ancestrais, da liderança feminina ao

conhecimento das plantas, das relações de afetividade aos valores humanos

considerados fundamentais. Por esta razão, a festa, com seus ritos e símbolos, revela

os costumes, os comportamentos, os gestos herdados e aponta ao mesmo tempo para

as negociações simbólicas entre essas comunidades negras e os grupos com os quais

interagem. (MOURA, 1998, p, 14).

Na acepção de que o homem é um ser simbólico e que a religião é o elo entre o

humano e o transcendente, os moradores da comunidade acreditam que as celebrações os

tornam mais resistentes às agruras que os afetam. Enfatiza Campbell (1990, p. 85): “existe um

plano invisível sustentando o visível”, na medida em que, o caos desestabiliza o homem, ele

busca sustentação, apoio e explicações no campo mítico-religioso, na tentativa de

compreender aquilo que não domina. Enlevados por essa crença, crianças, jovens, mulheres e

homens de todas as idades participam dos rituais ao santo padroeiro.

Figura 14 - Procissão de São Benedito

Fonte: Acervo do autor, 2016

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A figura 14 é bem representativa da fé presente no simbolismo e nos ritos da

religiosidade da população de Morrinhos. A procissão provoca os pedidos e as intenções dos

devotos e, dessa forma, eles creem que serão protegidos pelo plano invisível amparado pela fé

em Deus por interseção dos santos que são conclamados durante a procissão.

No momento da procissão, realizada em 10 de dezembro de 2016, estiveram presentes

os devotos do santo padroeiro da comunidade São Benedito. Nela podemos observar a

participação de jovens, adultos e crianças. Esse ato é uma forma de manifestação da

importância da fé na vida do grupo, permeada pelo ritual simbólico religioso que mantém a

tradição da religiosidade na comunidade quilombola.

Nas palavras de Geertz:

Os símbolos religiosos oferecem uma garantia cósmica não apenas para sua

capacidade de compreender o mundo, mas também para que, compreendendo-o,

deem precisão a seu sentimento, uma definição às suas emoções que lhes permita

suportá-lo, soturna ou alegremente, implacável ou cavalheirescamente. (GEERTZ,

2008, p.77).

Em Morrinhos, a principal festa religiosa tradicional é a do padroeiro: São Benedito,

que acontece a mais de 100 anos e cuja igreja é a mais antiga de Poconé, pois tem

aproximadamente 150 anos. Frequento a referida festa há pelos menos uns 10 anos, mas nos

últimos anos tive a oportunidade de acompanhá-la mais de perto e observar todos os

procedimentos que antecedem ao evento nos dias festivos. Em 2015, a festa aconteceu em 5

de dezembro, já em 2016, ela ocorreu no dia 10 do mesmo mês, sábado e domingo,

respectivamente.

Há um longo período de preparo para a realização da celebração festiva, com meses de

antecedência, e que exige a participação de todos da comunidade. As tarefas assumidas são

muitas, desde a divulgação da festa, na cidade de Poconé e região, até a organização do salão

comunitário, da igreja, dos enfeites do mastro, do andor, os espaços de oferendas ao santo em

frente à igreja, ou mesmo no preparo das refeições e quitutes a serem servidos, durante o

jantar e o almoço no dia seguinte.

Cabe ressaltar, que o jantar e o almoço são gratuitos, apenas as bebidas, refrigerantes e

cervejas são vendidas. O baile inicia após o término da procissão e do culto religioso, por

volta das 23 horas e segue até o raiar do dia, animado por uma banda contratada da cidade de

Poconé. A entrada custou R$10,00 reais e foi cobrada aos homens.

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Outro fato a ser registrado no dia da festa foram os rituais presentes no preparo do

andor, quando se fizeram presentes diversas ladainhas cantadas, como se fossem um mantra

em que se entoavam preces em intenção ao padroeiro, São Benedito e aos santos. As súplicas

eram de proteção aos moradores, lhes mostrando o caminho da paz, da união, e para que

fossem protegidos e livrados das aflições e dificuldades do cotidiano. Também eram entoados

para agradecer por estarem vivos e com saúde, conforme podemos verificar nas ladainhas

cantadas:

São Benedito é nosso senhor, É São Benedito o nosso protetor, É são Benedito para

sempre amém. São Benedito, louvado seja Nossa Senhora da Guia mostra o

caminho, pois neste mundo ninguém caminha sozinho. Nossa Senhora da Guia me

mostra o caminho por onde eu passar [...] com tanta alegria, eu vou lhe dizer,

senhora da Guia, eu vou com você senhora da Guia. . (LADAINHA, FESTA SÃO

BENEDITO, 2016).

Importante mencionar que a cada verso, as pessoas presentes repetiam a mesma frase.

A celebração do culto aconteceu logo após o jantar servido no centro comunitário, localizado

em frente à capela de São Benedito. Então, o locutor da festa, anunciou que todos se

dirigissem à igreja para participarem do culto. As rezas foram conduzidas pelas três irmãs

descendentes do fundador da comunidade, Joaquim Velho.

Rezaram as orações do Pai Nosso e Ave Maria, e então, entoaram as cantigas e as

ladainhas durante toda caminhada da procissão; o andor foi enfeitado com a imagem do santo

padroeiro, São Benedito. Assim que deixou a igreja, centenas de pessoas acompanharam a

procissão e repetiam as cantigas, que sempre eram narradas pelas três irmãs.

Já passavam das 21 horas, quando a procissão saiu da igreja e percorreu a rua principal

de Morrinhos; as luzes das velas e da lua iluminavam o caminho dos fiéis e devotos, que

caminhavam lentamente ao som das cantigas entoadas, em alusão aos diversos santos.

Senhora aparecida é a mãe de Deus, há tanto pecador no mundo que está se

perdendo, Jesus Cristo, nosso primeiro Pai, São Benedito interceda por nós, nossa

Senhora das Dores interceda por todos os pecadores [...] Venha ver na capela,

venha ver a Senhora Aparecida é a nossa mãe de Deus. (LADAINHA, FESTA SÃO

BENEDITO, 2016).

Cada verso pronunciado pelas três irmãs era reproduzido de igual forma por todos da

procissão, - mulheres, crianças, jovens e homens -, devotos e visitantes da comunidade, que

acompanhavam o trajeto; para cada santo, se ouvia uma determinada prece: São Benedito,

Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Carmo “não quero

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soldado, nem quero dinheiro, só quero vossa benção do Deus verdadeiro”. À Senhora

Santana, madrinha de São João, cantavam que “com o seu jardim de flores enfeitem o senhor

dos anjos, no domingo para louvar o senhor.”.

Ao Senhor Jesus Cristo era entoada a ladainha: “Por aqui passaste um homem com

uma cruz muito pesada, para cada passo que ele dava, ele fazia um joelhado”, e todos

repetiam na mesma voz, “a cada passo que ele dava, ele fazia um joelhado” e prosseguiam

cantando: “Meu Jesus sacrificava, eu aqui, vim lhe pedir, salvação para minha alma” e o

povo entoava: “salvação para a minha alma”. As irmãs continuavam as cantigas, momento

em que retornaram com o andor para a igreja: “Pedir perdão a Deus, mas lá no céu cada um,

tem o seu lugar” e que novamente repetiam: “mas lá no céu, cada um tem seu lugar”.

A procissão retornou em direção à igreja e, adentrando a capela de São Benedito,

novamente ecoou o canto: “São Benedito, vossa casa cheira, cravo e rosa, flor de laranjeira”

e o público repetia o refrão, verso que faz alusão à história do santo negro, conforme contado

pela Senhora Rosilda, presidente da comunidade de Morrinhos:

Trata-se da história de São Benedito que era cozinheiro e realizava milagre com o

que sobrava do almoço para servir aos escravos, colocando flor de laranjeira, na

panela, e assim, a comida era suficiente para alimentar todos os escravos que

trabalhavam na fazenda. (SENHORA, ROSILDA).

Diante desse contexto, a celebração, agora dentro da igreja, foi se encaminhando para

o final; algumas pessoas sentaram-se nos bancos, outras permaneceram em pé, mas as três

irmãs que conduziam a celebração ficaram ajoelhadas em frente ao altar de São Benedito e

Nossa Senhora Aparecida e continuaram cantando e rezando com o público acompanhando as

orações, conforme os versos:

Todo aquele que vem lá de fora, é São Benedito e Nossa Senhora. Todo aquele que

vem lá de dentro é São Benedito que vai para o convento. Todo aquele que carrega

o andor é São Benedito e Nosso Senhor. Todo aquele coberto de manto é São

Benedito e o Espírito Santo. Todo aquele que nos conduz, é São Benedito e São Bom

Jesus. Encontrei inimigos, chamei Santa Catarina para livrai-nos dos perigos.

Chamei Santa Catarina para fazer minha defesa. Chamei Santa Catarina e Maria

José que me livrassem dos pecados. Santa Catarina e São Francisco levem-nos para

toda a glória, amém. Senhora Amarante, que a senhora nunca esqueça, do

novembro sagrado tire a dor da minha cabeça. Senhora Amarante, não se esqueça

do seu manto sagrado e tire a dor do meu pescoço. São Gonçalo com seu manto

sagrado tire a dor dos meus braços. Senhora Amarante, em Novembro sagrado, tire

a dor de minhas cadeiras. Senhora Amarante de novembro sagrado, tire a dor dos

meus joelhos. Senhor Gonçalo, em novembro sagrado, tire a dor de minhas pernas.

(LADAINHA, FESTA SÃO BENEDITO, 2016).

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Na sequência da liturgia foi realizado o terço e mais uma vez a intercessão dos

diversos santos. A invocação dos mesmos era para agradecer a vida e o ano que se encerrava,

mas, sobretudo, que continuassem protegendo a comunidade, os parentes e amigos e os

devotos acometidos de doenças e sofrimentos. Aprendemos com Geertz (2008, p.77) “o

simbolismo do cântico focaliza o problema do sofrimento humano, e tenta enfrentá-lo

colocando-o num contexto significativo, fornecendo um modo de ação através do qual ele

possa ser expresso, possa ser entendido [...], possa ser suportado.” A celebração procurou

sintetizar axé, força e energia para todos enfrentarem as agruras do cotidiano, sendo encerrado

com o seguinte verso, cantado por todos:

Aquele que canta sempre na terra é São Benedito, um santo guerreiro. O que passa

sempre na terra é São Benedito um santo divino. Ganhará uma estrela no céu, São

Benedito um Santo divino. Ganharás a eternidade no céu, louvado seja o senhor

Divino. A Santíssima Trindade. Viva São Benedito. Viva Nossa Senhora. Viva todos

os santos no altar. Viva! (LADAINHA, FESTA SÃO BENEDITO, 2016).

As festas de santo, relacionadas ao modo de vida dos quilombolas, têm uma

importância especial para as comunidades, uma vez que os saberes e os fazeres são

partilhados espontaneamente entre os participantes, momento de transmissões de um saber

cultural local, advindo de gerações anteriores e repassados às seguintes; portanto, fica

evidente, no festejo relatado, que as festividades estão carregadas das teias de significados que

representam o ethos do grupo.

As festas são momentos únicos para as comunidades negras e quilombolas, de maneira

que, para Moura (2005, p.73) “Aprender a importância do período de preparação e realização

das festas permite desvendar a lógica desse modo de vida quilombola [...] permitem adequar o

passado e o presente, ao reelaborar a herança cultural dos ancestrais.” A autora argumenta

que, principalmente nesses períodos festivos, existe toda uma negociação e reelaboração dos

referenciais simbólicos partilhados coletivamente; há uma ressemantização nas celebrações,

quando são trazidos novos elementos e significados aos aspectos religiosos. Esse movimento

pode propiciar maior aproximação da comunidade quilombola com outras adjacentes.

Em 2016, a festa de São Bento e São Lázaro foi realizada nos dias 7 e 8 de maio. As

pessoas estavam bastante animadas; logo pela manhã, as mulheres começavam a finalizar a

arrumação das bandeirolas e quitutes. Enquanto Dona Leonilza enfeitava o mastro, ajudada

pelas crianças e jovens da comunidade, os rapazes preparavam as barracas e as luzes nos

postes. Tal movimentação marca que se trata de uma comunidade que tem na solidariedade,

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união e amizade, valores que alimentam e fortalecem o grupo. Nas palavras de Geertz (1997,

p. 145): “Nenhum homem é uma ilha e sim parte de um todo, [...] surge em vários outros

segmentos da cultura deste povo: na religião, na moralidade, na ciência, no comércio, [...] nas

formas de lazer, no direito e até na forma em que organizam sua vida prática e cotidiana.”

Figura 15- Interior da igreja em dia de celebração

Fonte: Acervo do autor, 2016

Em Morrinhos, a organização cotidiana se faz pela partilha das tarefas,

encaminhamento perceptível no que se refere à organização do grupo, que se reforçam pelos

laços de parentesco. Nessa acepção, a realização da festa do padroeiro da comunidade é um

motivo a mais para celebrarem juntos a união, a solidariedade e a amizade, aguardando que à

noite, cheguem os parentes de Poconé, Cuiabá, Cangas, Várzea Grande e Cáceres.

Em Morrinhos, também observei que além da festa do padroeiro da comunidade, há

várias outras festas de santo que acontecem nas casas da vila: em outubro, a festa de São

Francisco, organizada por Dona Francisca; em 21 de maio, a festa de São Bento e São Lázaro,

tendo como festeira a Dona Benedita; e, em abril, Dona Leonilza é a responsável por realizar

a festa de Nossa Senhora da Guia.

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Figura 16 - Roda de cururu festa de São Bento

Fonte: Acervo do autor, 2016

Cabe ressaltar que em todas as festas houve grande participação dos parentes, que

ajudaram uns aos outros, o que favoreceu a organização das festividades. Nessa perspectiva,

Theodoro (2005, p.96) ressalta: “Buscar celebrar a vida em toda a sua plenitude é uma

ideologia, uma maneira de ver o mundo [...]. Nesta cultura se busca acumular pessoas, criar

laços e alicerçar amizades”. Nesse mesmo sentido, Hampeté Bâ (2010), reflete que as

tradições são tão fortes e arraigadas nos sujeitos de matriz africana, que o respeito ao outro e

aos símbolos fazem parte do seu cotidiano, o que propicia o fortalecimento dos laços de

pertencimento no grupo.

O próximo capítulo procura registrar as principais narrativas míticas do universo

cultural de Morrinhos, na tentativa de vislumbrar qual lugar as práticas pedagógicas, o Plano

Político Pedagógico e o Livro didático utilizado pela escola reservam aos saberes e fazeres da

comunidade.

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CAPÍTULO III – O CARÁTER EDUCATIVO DAS NARRATIVAS

MÍTICAS

“O mito é o nada que é tudo”

Fernando Pessoa

Este capítulo registra as lendas míticas do universo cultural da comunidade

quilombola de Morrinhos. Para tanto, conceituamos narrativas a partir das concepções de

Zumthor (1993) para quem as narrativas se estabelecem de três formas: na primeira, marcada

essencialmente em sociedades ágrafas, onde não existe nenhuma forma de escrita; na segunda

categoria de narrativa, os espaços são permeados pela cultura da tradição oral e formas

incipientes da escrita; e, um terceiro viés, navega em um ambiente totalmente marcado pela

cultura letrada.

Notadamente, as populações negras e quilombolas privilegiam a cultura da tradição

oral, na medida em que, para essas populações, não existe arte sem voz. A voz representativa

dessas comunidades está na figura dos anciãos e anciãs; personagens de tamanha importância

que, segundo Hampaté Bâ (2010) quando um deles falta é uma luz que se apaga.

Em face de tal constatação e, sobretudo, pelo fato de que os seres humanos sempre

narraram suas histórias e lembranças, registrando as memórias e reminiscências mais

profundas de cada geração, ainda me recordo das histórias de minha infância, contadas pelos

avós, entre as quais, a ida do primeiro ser humano ao espaço, cujo privilégio coube ao

cosmonauta russo Yuri Gagarin, fato ocorrido em 12 de abril de 1961.

Então, o astronauta observou do silêncio do espaço que a terra era toda azul, com

cores vibrantes e belas; sem fronteiras demarcadas, de maneira que o planeta emanava força e

energia. Nesse mesmo sentido, Campbell (1990) enfatizava que a mitologia do futuro estaria

centrada naquilo que mais nos unia: o planeta, a solidariedade e a união entre os povos. Nessa

propositura, a narrativa do cosmonauta foi um marco importante para a humanidade registrar

o que os seres humanos são capazes de realizar.

Por outro lado, embora seja assertiva a declaração sobre a beleza do pequeno ponto no

universo - o planeta terra -, o distanciamento pode, às vezes, esconder outras perspectivas, à

medida que, visto de perto, podemos observar o verde e as vozes das matas, os animais, o

cheiro da terra molhada, o rio que carrega vida e segue o seu curso rumo ao mar, o sopro do

vento que faz um redemoinho e anima as asas do joão de barro a procurar abrigo. Assim,

lembro-me e parodiando as palavras assertivas de Boff (1999) tudo que acontece à Gaia

reflete em todos nós. Do mesmo modo, como bem registrou o indígena Chefe Seatle, numa

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carta ao presidente americano que queria comprar as terras dos indígenas daquele país.

Conforme Campbell (1990).

Cada parte desta terra é sagrada para meu povo. Cada arbusto brilhante do pinheiro,

cada porção de praia, cada bruma na floresta escura, cada campina, cada inseto que

zune. Todos são sagrados na memória e experiência do meu povo. Conhecemos a

seiva que circula nas árvores, como conhecemos o sangue que circula em nossas

veias. Somos parte da terra e ela é parte de nós. [...] a água brilhante que se move

nos rios e riachos não é apenas água, mas o sangue de nossos ancestrais. [...] o

murmúrio da água é a voz do pai do meu pai. [...] o que acontece à terra acontece a

todos os filhos da terra. [...] o homem não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios

dela. [...] amamos esta terra como o recém-nascido ama as batidas do coração da

mãe. (CAMPBELL, 1990, p.47-48).

Nesse sentido, Campell (1990) infere que quando não respeitamos a ambiência

descrita na narrativa, ficamos perdidos e sem rumo, posto que o ser humano, e por sequência

toda sociedade que não integra o sujeito à natureza e seus rituais, é uma sociedade morta.

Nessa perspectiva, podem ser verificadas as tragédias pelo mundo: guerras, fome, misérias,

esgoto que corre a céu aberto e contaminam rios e lagos, injustiças sociais, crueldade para

com os desvalidos e despossuídos do mundo, situação amplamente denunciada por Freire

(1987), terrorismos, racismos e preconceitos. Mas o novo mito pode apontar numa direção

também nova, pondera Campbell (1990, p.46): “(...) quando a Terra é vista da Lua, não são

visíveis, nela, as divisões em nações e estados. Isso pode ser de fato, o símbolo da mitologia

futura. Essa é a nação que iremos celebrar.”.

Diante de tantas coisas que o homem é capaz, um personagem de Veríssimo (2003, p.

24) indaga perplexo: “será por olhar o mundo dum ângulo tão remoto que o velho Deus

perdeu por completo o senso de proporção e de justiça?”. Em que pese à indagação do

personagem Eduardo da saga “O Tempo e o Vento”, o fato é que o homem recebeu a

imaginação e a criatividade dos deuses para dizer –Era uma vez -, para contar e registrar as

gerações seguintes os “baús de memórias” tais narrativas segundo Campbell (1990) e Geertz

(2008), ajudam as pessoas refletirem um pouco mais sobre as suas histórias e, principalmente,

entenderem o universo e o ambiente que partilham.

Entender os aspectos socioculturais de uma comunidade tradicional quilombola,

ensina-nos Hampaté Bâ (2010) passa necessariamente pelo olhar acurado de seus anciãos e

anciãs, pois eles possuem a legitimidade das raízes e lembranças profundas do grupo,

advindas dos anos vividos e da memória que carregam. Thompson (1992, p. 40) enfatiza que:

“(...) cada vez mais os especialistas em envelhecimento têm reconhecido que entregarem-se às

reminiscências pode ser uma maneira interessante de os idosos manterem o sentimento de sua

identidade em um mundo de mudança.” Desse modo, ao proferirem a palavra, os anciãos

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semeiam conselhos que, se frutificam pela seiva da experiência e da sabedoria e, para Vansina

(2010) anciãos e anciãs enxergam o mundo com os olhos da experiência.

Nessa perspectiva, há pelo menos 2.900 anos, já com os cabelos brancos e inspirado

pelo tempo, disse o ancião Rei Salomão, como narrado em Eclesiastes 3,15: “O que é já foi, e

o que há de ser também já foi, Deus fará renovar-se o que já passou”. Dessa forma, o tempo

traz o frescor da sabedoria e a fase humana em que mais aflora tal virtude está vincado na

ancianidade, do mesmo modo, para Hampaté Bâ (2010) e Vansina (2010) a relação das

culturas negras e afrodescendentes com a valoração da palavra é muito intensa e carregada de

simbolismo, pois para essas comunidades, Ela é sagrada e deve ser proferida com muito

cuidado e sensatez. Diz Hampaté Bâ (2010)

E, pois, nas sociedades orais que não apenas a função da memória é mais

desenvolvida, mas também a ligação entre o homem e a Palavra é mais forte. Lá

onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está

comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo

que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra.

(HAMPATÉ BÂ, 2010, p.168).

Em face de tal perspectiva, repousa sobre as comunidades negras tradicionais não

somente a importância dada aos guardiões como memória do grupo, mas o que e como eles

dizem os fatos vivenciados, por se tratar de uma sociedade que privilegia a cultura da tradição

oral e dos rituais. Para Hampaté Bâ (2010), a palavra carrega o sopro das vozes dos deuses,

que de divina se encantou sagrada ao serem repassada aos seres humanos.

Visto por esse ângulo há uma íntima relação entre anciãos, memórias, tempo e rituais

que se dá concomitantemente às funções que estes desempenham em suas comunidades.

Segundo Vansina (2010) os anciãos e anciãs conseguem observar a vida pela perspectiva

correta, corroborando com a assertiva de Hampaté Bâ (2010, p. 249), na medida em que, o

autor infere que os anciãos tem um olhar acurado para os fatos vividos, pois sabem: “olhar as

coisas pela janela certa”.

Nesse mesmo sentido, idosos desempenham funções importantes nas comunidades

tradicionais, principalmente, as de aconselhar e lembrar, e conforme Hampaté Bâ (2010), os

sons emitidos pela boca inscrevem as experiências que o tempo lhes propiciou, em outras

palavras, são os anciãos das comunidades afrodescendentes que transmitem às gerações

presentes e futuras, as vozes das narrativas dos antepassados, contribuindo para que a

memória e a identidade do grupo se fortaleçam.

Ao abordar sobre a cronologia da história oral, Thompson (1992, p.45) infere que: “a

história oral é tão antiga quanto à própria história”, e na guisa do autor, Campbell (1990)

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trabalha a ideia de que as narrativas míticas são importantes por expressarem culturas, ritos e

tradições próprias de um povo.

Ao cotejar a seguinte questão: por que as cerimônias e rituais são tão importantes para

os seres humanos? Em resposta a essa indagação, Campbell (1990) argumenta que todos

necessitamos de rituais para dar sentido as nossas vidas; do mesmo modo Cyrulnik (1995)

enfatiza dizendo que é praticamente impossível vivermos em um mundo sem ritos, se isso

fosse possível, estaríamos reduzidos à matéria, um mero objeto; seríamos apenas um animal

feroz, sem alma e voz, sem histórias para contar.

Por outro lado, um mundo de narrativas míticas e ritualizado possibilita-nos dar vida e

alma à existência, instila cor e histórias nas coisas e na vida das pessoas. Portanto, reafirma

Campbell (1990) que os ritos são importantes porque propiciam aos sujeitos buscarem sua

bem aventurança.

A concepção de ritual carrega a ideia da observação de normas e condutas socialmente

estabelecidas e que devem ser observadas pelo grupo. Por essa perspectiva, quando não há

rituais para ser vivenciado profundamente pelos povos e comunidades, em seus espaços /

tempos culturais, o ambiente se desorganiza. Da mesma forma, quando existe uma

sobreposição de um ritual sobre outro, fato preponderante para ocasionar o enfraquecimento

do menos robusto. Para Cyrulnik (1995) o reconhecimento mútuo dos rituais são formas mais

consistentes, para a manutenção e o respeito das manifestações culturais de uma maneira mais

equânime.

Porém, na contemporaneidade vivemos em um mundo repleto de informações

instantâneas, em que nada favorece os rituais, as narrativas, às tradições, os costumes, e

principalmente, o exercício de ouvir o Outro, sem a preocupação com o tempo, que urge e é

escasso na sociedade pós-moderna. Nessa perspectiva, Benjamin (1983) aponta para a perda

da força da narrativa, em detrimento da informação.

Cada manhã, recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em

histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de

explicações. Em outras palavras, quase nada do que acontece está a serviço da

narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. (BENJAMIN, 1983 p. 203).

O fenômeno social apontado por Benjamin (1983) revela a preocupação com a

desvalorização das narrativas pela sociedade pós-industrial. Na medida em que a figura do

narrador e as histórias que conta está cada vez mais escassa, para Benjamin (1983, p.205)

“Contar história sempre foi à arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não

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são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a

história.”.

Diante dessa constatação, nas grandes e médias cidades do mundo contemporâneo, o

que se observa, segundo Bosi (2015), é exatamente a ausência de rituais, do tempo para sentar

e ouvir o Outro, principalmente, quando esse Outro é um idoso, que tem a função de lembrar

e contar as lembranças e as experiências do passado. A sociedade capitalista isola seus idosos

e os exclui, reservando-lhes um canto qualquer, levando a um esvaziamento das memórias,

raízes e histórias das famílias, comunidades e da sociedade como um todo.

No entanto, a figura do narrador ancião em comunidades ribeirinhas e tradicionais,

caso de Morrinhos, se destaca à medida que, o ato de contar história ainda transita nesses

espaços, no respeito ao Outro refletindo nas tradições socioculturais, nos rituais e se

concatenam no Eu, no Outro e no Mundo. De maneira que, os narradores anciãos e anciãs são

os protagonistas e as suas vozes mantém vivas as narrativas míticas contidas nos contos,

lendas e mitos, que são partilhadas no grupo.

Em tempos passados, ainda na longínqua infância, recordo que era frequente o

costume dos mais velhos contarem histórias e, quem exercia esses papéis nas famílias eram os

avôs e avós, tios e tias, de forma que sempre na comunidade havia um contador de histórias.

Tais momentos lúdicos aconteciam na ambiência dos quintais, onde crianças, jovens e adultos

sentavam-se em círculos, embaixo de frondosas árvores frutíferas, como a mangueira, o

cajueiro, a goiabeira. Em épocas de frio, as rodas davam-se na varanda ou em volta do velho

fogão à lenha, saboreando milho, mandioca, e batata assados, aos sons de pássaros, sapos,

cigarras, grilos e tantos outros ruídos emitidos pela flora e fauna da ambiência.

Nesse cenário sensorial imagético, as narrativas fluíam e eram partilhadas nas

comunidades de forma espontânea e prazerosa “na boca da noite”, como diziam os anciões, e,

principalmente, com o chegar do crepúsculo, ou mesmo, logo cedinho, no “quebra torto” 16

quando o frescor do orvalho, sendo aquecido pelos primeiros raios de sol, molhava a relva e, a

seiva da sabedoria dos anciões aflorava. Era nesses espaços que os deuses inspiravam as mais

fascinantes e fantásticas narrativas: do Homem Lobo, Pé de Garrafa, Curupira, Martelinho de

Ouro, Minhocão, entre outras tantas histórias fascinantes na essência e que tinham na figura

dos contadores de histórias os guardiões da memória do grupo.

16 Café da manhã reforçado do pantaneiro os ingredientes são: arroz carreteiro, ovos fritos, revirado e linguiça, às

vezes incrementado com bolo de fubá e peixe frito.

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Por essa perspectiva, o contador de história assumia uma função social de moldar as

histórias que contava feito um artesão que livremente inspira-se. No dizer de Rousseau

(1995), tal profissão é das mais livres que existe, na medida em que, o mesmo pode com as

mãos, moldar o barro criador e inventar as formas que deseja para a sua escultura. Do mesmo

modo, o narrador/ancião/anciã, livre na essência e enraizado no seio da comunidade,

legitimada como a voz do povo, do seu povo, sendo a raiz e o broto dos ancestrais. Nessa

acepção, Benjamin (1983, p.69) enfatiza: “O grande narrador se enraizará sempre no povo,

antes de mais nada nas suas camadas artesanais.”.

Nesse contexto, para as comunidades tradicionais negras e afrodescendentes, o

narrador leva consigo uma carga semântica importante, no instante em que, ganha uma

dimensão de reconhecimento pelo grupo. Os anciões da comunidade trazem em sua essência o

significado daqueles que conhecem profundamente os valores, as tradições, os rituais e a

memória coletiva da comunidade, sendo, portanto guardião da memória desta.

Conhece, mesmo se nem todos os seus cabelos estivessem brancos. Podiam ter

conhecimentos profundos sobre religião ou história [...] era um conhecimento global

segundo a competência de cada um, uma espécie de ciência da vida [...] e o

ensinamento nunca é sistemático, mas deixado ao sabor das circunstâncias, segundo

os momentos favoráveis ou a atenção do auditório. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p. 174).

Na esteira de Hampeté Bâ (2003), Munanga (2005) e Bosi (2015) argumentam que os

contadores de histórias têm um papel fundamental nas sociedades negras afrodescendentes,

pois suas lembranças e recordações possibilitam compartilhar memórias e experiências do

vivido para a coletividade. Suas narrativas transitam num meio que propicia a troca de

experiências, valores, ritos e tradições, elementos que são essenciais para o fortalecimento do

sentido de pertença e de identidade de grupo.

3.1 AS MENSAGENS DAS NARRATIVAS MÍTICAS

Ao observar o cotidiano da comunidade pude perceber que os anciãos e anciãs ao

narrarem suas narrativas míticas para as crianças e os jovens, sempre acabam por ensejar uma

função educativa espontânea, por exemplo, de obediência aos mais velhos e o respeito à

natureza etc. Nesse particular, importante destacar que, durante as rodas de conversas foi

possível captar olhos brilhantes, ouvidos atentos, até certo clima de medo nos ouvintes,

quando a narrativa se travava , por exemplo, do “Lobisomem”, ou do “Boi Sem Cabeça”.

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Nesse cenário parecia que tal relato os levava a acreditar que “O Lobisomem”, bem como “O

Boi Sem Cabeça” estava logo ali, por trás de alguma “moita”.

Na realidade as rodas de conversas das comunidades tradicionais quilombolas, em

muito divergem das relações cotidianas de homens e mulheres nas grandes e médias cidades

brasileiras, pois, os cosmopolitanos se veem hipnotizados pelas novidades tecnológicas e pela

velocidade das informações que acessam no cotidiano, bem como, a pressa e o individualismo

que impera na sociedade do “descarte” capitalista pós-moderna.

Nesse mesmo sentido, se privam de construir um convívio de relações mais próximas,

dadas a ausência de tempo do sujeito em ouvir o Outro, conforme assertiva observação de

Bosi (2015) já pontuado em páginas precedentes. Entretanto, em Morrinhos, os laços de

consanguinidade e amizade dos: parentes, compadres, vizinhos, aproximam mais as pessoas

formando uma rede de consideração, dessa forma, criam laços de amizades que são

fortalecidos nas ações partilhadas nos, diversos espaços da comunidade, por exemplo: nas

reuniões, nas colheitas, no muxirum, e principalmente, nas festas em que todos participam,

sendo, portanto, uma atividade coletiva.

De maneira que estar na roda para as conversas naquela comunidade, fez-me refletir

sobre a influência dos aspectos históricos, culturais e da tradição na linguagem como algo

muito presente e, nessa lógica, pontuam Vygotsky (1988) e Bakhtin (1993) que a linguagem

humana produz significados para os sujeitos, de tal forma que, o criar, o (re) criar e o modelar

são formas de interpretarem as experiências do vivido frente aos eventos do cotidiano.

Na comunidade de Morrinhos, o significado se traduz para além das fantasias e do

imaginário, mas na figura de um ancião que tem a vez da fala e a dos “mais novos” que

exercem a vez de ouvir. O papel do ancião que fala que conta histórias de tempos passados é

muito valorizada, ganhando “sabor” indescritível, portanto, somente um quilombola, pode de

direito, registrar com fidedignidade esse cenário. Ainda foi possível observar que nesses

momentos há uma relação educativa, que é a de respeitar a vez do outro falar e do valor dado

ao conhecimento dos anciãos e anciãs.

Nessa perspectiva, os espaços em que transitam as narrativas permitem uma pedagogia

espontânea de tal forma que os anciões, ao narrarem suas histórias, transmitem conhecimentos

advindos das trocas de experiências no espaço sociocultural da comunidade. Nesse sentido, as

narrativas se tornam um importante aporte de socialização do grupo, pois o ato de contar

história contribui para manter e (re) significar ritos, tradições e valores.

Ainda, nas palavras de Castilho e Campos:

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O ato da narração se reveste, portanto, de um caráter eminentemente pedagógico,

por envolver conhecimento que, por sua vez, remete ao ensino-aprendizagem que

permeia esse espaço-tempo. Ousamos afirmar que essa pedagogia se inclui na

categoria de pedagogia espontânea ou natural, compreendida como as aprendizagens

construídas fora de instâncias institucionais, na ambiência familiar, por meio de

reuniões também espontâneas. Como didática, destacam a observação e a audição

das narrativas, em que se aprendem coisas da vida, os valores, as crenças, os

costumes, como também o respeito, a união, a amizade, a solidariedade, entre

outros. Isso tudo sem que haja alguém especialmente designado para ensinar, ou

que exista intenção deliberada e consciente para aprender. (CASTILHO, CAMPOS,

J.J.2016, p. 313).

Diante desse quadro, nas comunidades tradicionais o aprendizado se constrói no

âmbito das famílias, nos quintais, na festa, na pescaria, no mutirão, no velório, na lavoura.

Especificamente, para os quilombolas as narrativas orais são acrescidas de elementos

simbólicos, compreendidas como atividades de natureza lúdica, partícipe e grupal. Há

interação entre as narrativas, os narradores e a territorialidade, o parentesco, o compadrio, a

vizinhança, o sentido de pertencimento. A criação e manutenção de laços afetivos e de

consanguinidade se caracterizam tão essenciais quanto o que pode ser aprendido nesses

espaços-tempo culturais.

Anciãos e anciãs, ao contarem suas histórias, fruto das tradições ritualísticas e

lembranças arraigadas na memória por gerações, instilam nas pessoas um processo de

compreensão e desmistificação dos fatos e situações que não compreendem e, que podem ser

reais ou fictícios; é para isso que servem as narrativas míticas, para dar explicações e sentido

às diversas situações que os sujeitos encontram no cotidiano.

Conforme Abbagnano (2000, p. 675) “o mito não se limita ao mundo ou à mentalidade

dos primitivos. É indispensável a qualquer cultura. Cada mudança histórica cria sua mitologia,

que, no entanto, tem relação indireta com o fato histórico”. Assim, as histórias míticas nos

trazem ensinamentos nas diversas etapas e fases da vida.

A mitologia lhes ensina o que está por trás da literatura e das artes, ensina sobre a

sua própria vida. É um assunto vasto, excitante, um alimento vital. A mitologia tem

muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação, quando você passa

da infância para a responsabilidade de adulto, da condição de solteiro para a de

casado. Todos esses rituais são ritos mitológicos. (CAMPBELL, 1990, p. 25).

Os ensinamentos intrínsecos às mensagens contidas nas narrativas míticas propiciam a

quem as ouve, a reelaboração de significados, para as diversas situações de experiências

vivenciadas em grupo. No mesmo viés, os rituais contribuem para que os sujeitos, em cada

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fase da vida, compreendam as histórias, lendas e mitos enquanto formas instigadoras de

justificação da existência humana.

Todavia, a função social de lembrar e aconselhar, desempenhada pelos anciãos e

anciãs poderiam ser um alento, de modo que, a arte de contar histórias, quando resgatada nos

faz lembrar que somos humanos na essência e que tudo está conectado: o olhar, os gestos, a

cultura, os rituais, as tradições, a natureza. Dessa forma, quando o ato de contar histórias

acontece realiza-se o fato essencial que é humanizar o humano, torná-lo mais sensível e

respeitoso para com o Outro, as diversidades, perseguindo um mundo mais livre e equânime

socialmente.

A ideia do respeito e acolhimento do outro contrapõem ao modelo individualizado que

permeia as relações sociais no capitalismo, reiterado por Bosi (2015) quando afirma que, nas

grandes e médias metrópoles as pessoas já estão exauridas pela pressão da vida moderna e,

suas demandas sociais sempre emergenciais e por isso, o Outro sempre tem menos espaço

para ser ouvido. Obcecadas pela competição e pelo individualismo Freire (1987) destaca que,

a sociedade capitalista, não trabalha a favor da vida, mas da morte, pois seus objetivos se

distanciam cada vez mais de propiciar humanidade ao humano, nisso suas histórias e

narrativas perdem força, em detrimento da alienação social.

Por outro lado, o exercício do ouvir e contar histórias nos faz sentir como sujeitos

pertencentes a um grupo, a uma comunidade cultural, de maneira que para Benjamin (1986)

pondera que a fonte trilhada pelos narradores perpassa pela experiência que as pessoas

vivenciaram entre si ao longo dos tempos, elas alimentam a memória da comunidade

agregando valores, que são privilegiados pelo grupo. Esses valores tornam-se outro tipo de

capital, denominado como cultural: Silva (2011, p. 34) “Na medida em que essa cultura tem

valor em termos sociais, [...] na medida em que ela faz com que a pessoa que a possui obtenha

vantagens materiais e simbólicas, ela se constitui como capital cultural”. Além disso, estimula

o intelecto do narrador, pois ele interfere, cria e recria os acontecimentos narrados com uma

riqueza de detalhes.

Por esse viés, as comunidades negras e quilombolas, em especial a de Morrinhos, a

figura do narrador/ancião/anciã está centrada na tradição oral, posto que, as narrativas

conservam vigor mesmo diante do tempo. Frente a este panorama, reafirmamos com Vansina

(2010) que a função dos anciões nessas comunidades é de preservar a essência das narrativas

míticas do grupo e no grupo.

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3.2 PERSPECTIVAS DE MITOS E LENDAS

As principais narrativas míticas que se proliferam são os mitos e as lendas. Nesse

ambiente Kruger (2011) destaca que existe uma diferença básica entre ambas, e concomitante,

para o autor, há três possibilidades apontadas para o surgimento das narrativas míticas: A

primeira escatológica, que fala sobre o fim dos tempos; em sequência a cosmológica, que

procura dar explicação ao universo; e por último, a etiológica, que trabalha a ideia de

explicação do ambiente em que as pessoas se situam e partilham no cotidiano.

No entanto, as lendas são histórias que misturam o real e o fictício e, são criadas de

forma espontânea, mas necessitam de um narrador que lhes dê vida. Todavia, é

imprescindível a figura do contador de histórias para adicionar a elas ingredientes pessoais e,

assim, reinterpretá-las a cada instante em que são repetidas às novas gerações. Essas

narrativas têm em comum, o fato de serem permeadas por simbologias, trilhando um enredo

que envolve o sobrenatural.

Em todo caso, a tradição oral é a expressão que se atribui ao ato de transmissão oral da

visão de mundo de uma determinada comunidade e, simultâneo, dá explicação sobre ela,

segundo as mais variadas perspectivas, mas pode ser definida, nas palavras de Vansina (2010,

p. 140), como “(...) um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra. Suas

características particulares são o verbalismo, e sua maneira de transmissão [...] difere das

fontes escritas”.

Diante disso, Bosi (2015) e Hampaté Bâ (2010) reiteram que, em comunidades

tradicionais, os idosos são tidos como os guardiões da palavra, os narradores-mestres,

portanto os responsáveis pela preservação de um tesouro espiritual de apreço para o grupo,

por semearem a seiva da sabedoria nas tradições culturais e na ambiência em que vivem.

Para Hampaté Bâ (2010), a tradição oral se baseia em certa concepção de homem, do

seu lugar e do seu papel no seio do universo. Nesse panorama, a sociedade ancestral negra é

considerada uma das referências nesta tradição, em que histórias, contos, lendas, mitos e

rituais são criados, narrados e compartilhados por avós, pais, filhos e todos da coletividade.

No princípio, as sociedades eram constituídas eminentemente pela palavra falada –

ágrafa –, e os Griots e/ou Maa Ngala eram pessoas detentoras da arte da palavra, na tradição

africana. Nesse contexto, encontrava-se na expressão dos anciões o poder de preservar a

essência da sabedoria do povo, como riqueza cultural dos antepassados (HAMPATÉ BÂ,

2010, p. 183).

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Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação

diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais,

venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral. [...]

Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas.

Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas

(VANSINA, 2010, p. 139-140).

A importância dada à linguagem falada, tanto pela sociedade africana quanto pela

afrodescendente, está no reconhecimento de que o ser humano é a sua palavra, portanto é a

voz que o seguirá por gerações e, uma vez pronunciada, não retorna. Comunidades

tradicionais, a exemplo de Morrinhos, lócus desta pesquisa, têm na oralidade uma dimensão

importante das significações de sua vida e vivência. Os trabalhos dos tradicionalistas Hampaté

Bâ (2010) e Vansina (2010) demonstram que, de acordo com a concepção dos praticantes

africanos da tradição oral, o ser humano é resultado de seu discurso, porquanto, para essas

sociedades, a fala foi recebida dos deuses, por conseguinte, trata-se de algo divino.

Nessa perspectiva, a palavra revela-se sagrada para o homem, de maneira que, os

guardiões da palavra, como são chamados os anciões e anciãs em comunidades tradicionais

são extremamente importantes nesses grupos. Em outras palavras, na medida em que um

ancião ou anciã verbaliza ou narra palavra, um enunciado tem o peso semântico e a força da

ancestralidade de seu povo e da sua gente. De tal forma que, a falta ocasionada pela passagem

de um deles “para a outra margem do rio” é tida como uma enciclopédia que se queima, ou

mesmo perdida. (HAMPATÉ BÂ, 2010).

Nesse contexto, a tradição oral é reconhecida pelos estudiosos do tema como um

lugar: espaço e tempo de construção e partilha de conhecimentos e sociabilidades. Na

concepção de Hampaté Bâ (2010), os mestres tradicionalistas – ou seja, os grandes

depositários da herança oral, na tradição africana –, eram nomeados de diversas maneiras,

segundo aos aspectos socioculturais e a região em que viviam.

O sentido que sua atividade possuía se resumia em “fazedores do conhecimento”, ou

simplesmente “conhecedores”, ou mestres de iniciação de um ramo profissional. O que

transmitiam era a “ciência da vida” – Hampaté Bâ (2010, p. 175) “trata-se de uma ciência

eminentemente prática que consiste em saber como entrar em relação apropriada com as

forças que sustentam o mundo visível e que podem ser colocadas a serviço da vida”. Nessa

perspectiva, essa forma de educação se constrói espontaneamente e cotidianamente:

[...] no seio de cada família, onde o pai, a mãe ou as pessoas mais idosas são ao

mesmo tempo mestres e educadores e constituem a primeira célula dos

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tradicionalistas. São eles que ministram as primeiras lições da vida, não somente

através da experiência, mas também por meio de histórias, fábulas, lendas, máximas,

adágios, etc. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 183).

As mensagens contidas nas narrativas trabalhadas pelos anciãos e anciãs são

apreendidas na naturalidade do processo de contação de histórias, de forma lúdica e

espontânea, transitam na ambiência para além dos muros escolares, é uma educação em que a

criança, o jovem e os adultos, aprendem no mesmo espaço das tarefas do cotidiano, pela

liberdade de acompanhar o pai na roça, na pescaria, nos festejos, jogos de bola, nos mais

diferentes espaços sociais da comunidade. Nesse sentido, é uma educação não institucional,

mas permeada por rituais, simbologias e mensagens que possuem na sua essência, a liberdade,

a intuição, e a sensibilidade para instruir-se pelo exemplo espontâneo do Outro.

As narrativas exercem papéis importantes para o grupo e contribuem no

fortalecimento do sentimento de pertença, de maneira que refletem em seu interior as

reminiscências e memórias dos sujeitos, segundo Halbwachs (1990):

Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam

seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com

suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que

a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum.

(HALBWACHS, 1990, p. 22)

Nessa perspectiva, as histórias partilhadas no grupo sociocultural em Morrinhos, ao

longo do tempo, sejam no cotidiano com a família, no trabalho, na igreja, nas relações

partilhadas nos mais diversos momentos do grupo, acentua-se o sentimento de pertença e o

enraizamento da memória. Vale observar a seguinte história, contada por Senhor Gonçalo, 79

anos, o ancião mais idoso de Morrinhos.

Eu já mocinho, até já namorava uma moça aqui da comunidade de Morrinhos, falei

para o meu pai: - Eu vou sair para trabalhar para ganhar um dinheirinho, numa

fazenda no pantanal. Eu era muito forte, não tinha medo. Trabalhei muitos meses

numa fazenda no pantanal derrubando mata para fazer pastagens. Era serviço

bruto, mas eu só não tinha idade, mas sempre fui muito forte. No período que

trabalhei nessa fazenda pude finalmente ganhar um dinheirinho e, então, retornei,

para a cidade de Poconé e, posteriormente, para Morrinhos. Pude comprar roupas

e também comprei redes que minha mãe fazia. Fiz questão de pagá-la, e ela ficou

muito contente. Os anos foram passando e eu sempre trabalhando aqui em

Morrinhos nas fazendas próximas do pantanal. Casei e tive filhos que hoje moram

em Várzea Grande. Depois minha primeira mulher faleceu e, depois de um tempo,

conheci outra mulher e me casei novamente. Sempre fomos muito unidos. A família

é muito importante, é o nosso porto seguro. (GONÇALO, 79).

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As narrativas fictícias ou reais das reminiscências dos anciões e anciãs remetem a

fatos passados do lembrar e do recordar, mas não significa que o ancião ou anciã irá transpor

os fatos acontecidos numa longínqua infância, juventude, ou mesmo adulto, da forma como

ocorreram, tendo em vista que, ao narrar, o tempo, o vento, o espaço e os cenários são outros.

Nesse viés, pesquisas de Thompson (1992) apontaram que quanto mais se avança na idade, há

decréscimo paulatino nas reminiscências e memórias do passado, a menos que o idoso não

tenha nenhuma enfermidade associada à demência e, ao mesmo tempo, tenha sido adepto da

tradição oral, aí os resultados das pesquisas apontam elevados graus de lembranças de fatos

acontecidos há décadas passadas; tudo dependerá de como foi trabalhada a memória ao longo

do tempo.

No pensar de Thompson (1992).

A construção e a narração da memória do passado, tanto coletiva quanto individual,

constitui um processo social ativo que exige ao mesmo tempo engenho e arte,

aprendizado com os outros e vigor imaginativo. Nisto, as narrativas são utilizadas,

acima de tudo, para caracterizar as comunidades e os indivíduos e para transmitir

suas atitudes. (THOMPSON, 1992, p. 185).

Em face de tal perspectiva, a memória coletiva trabalha para a difusão das

experiências do vivido, por isso, suplanta a memória individual, na medida em que, os

sujeitos ao narrarem suas histórias acabam por recorrerem as suas memórias passadas que,

foram construídas socialmente, ao longo dos tempos. (HALBWACHS, 1990).

Uma vez que as narrativas contadas pelos anciões estão impregnadas pelas memórias e

lembranças do passado, constituem um tesouro dos ancestrais para as comunidades negras

tradicionais e representam a memória coletiva. Para Hampaté Bâ (2010) tal processo fortalece

o sentido de pertença e os aspectos identitários e culturais dessas comunidades. A memória

que se manifesta de forma livre é a que mais representa a sensibilidade humana, pois alia arte

e poesia como expressões do sonho do vivido.

Na esteira de Halbwachs (1990), Bosi (2015, p. 55) infere “(...) lembrar não é reviver,

mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado, a

memória não é um sonho, é trabalho.” E as narrativas são expressões das lembranças,

reminiscências e memória cultural de um grupo, particularmente, dos anciãos e anciãs que

possuem a função do lembrar e aconselhar.

Conforme Bosi (2015) ensina:

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Há um momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da

sociedade, deixa de ser um propulsor da vida do presente do seu grupo: neste

momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar.

A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade. (BOSI, 2015,

p. 63).

Esse preceito é muito observado nas sociedades tradicionais negras afrodescendentes,

cuja valoração do idoso tem outro viés: de respeito e reverência aos mais velhos, tendo em

vista que já viveram muitos anos e são possuidores das experiências do vivido.

Diante dessa perspectiva, as narrativas míticas expressadas pelos anciões são

categorias importantes de aglutinação de saberes e fazeres culturais, na medida em que

transmitem ensinamentos espontâneos às gerações que, por sua vez, apropriam-se delas,

acrescentado novos elementos ao que foi transmitido. Nesse sentido, Vansina (2010) nos

lembra de que os rituais, as tradições e as narrativas são todas formas culturais passíveis de

serem engendradas em gêneros literários.

No Estado de Mato Grosso, as narrativas míticas sempre tiveram um espaço

importante no imaginário coletivo dos mato-grossenses; nesse sentido, segundo Leite (1995) e

Siqueira (2002), as lendas, contos e mitos constituem aspectos importantes da cultura que

revelam a formação identitária da população da região, na medida em que, representam a

memória coletiva de povos que têm em sua essência, as raízes de matrizes negras, indígenas e

europeia que ressignificaram as narrativas míticas advindas de diversas partes do globo.

Dessa forma as narrativas míticas carregam em seu interior as memórias dos

antepassados, de modo que, são resultados da arte do narrar, sobretudo dos contadores de

histórias. Para Benjamin (1983, p. 205) “contar história sempre foi à arte de contá-las de

novo”, de maneira que, sempre existirá a figura do narrador que com engenho, arte e

habilidade molda a história, emprestando formas, luzes e nuances as histórias que conta, feito

um artesão que molda o vaso.

No município de Poconé, assim como em muitas outras localidades de Mato Grosso,

inúmeras narrativas míticas fazem parte do imaginário coletivo do povo, de modo que as

histórias contadas são repassadas de geração em geração e, possuem sua própria versão em

cada lugar em que são repetidas, de acordo com as interpretações de cada comunidade.

Nessa perspectiva, são exemplos típicos, de narrativas míticas da região: “O

Curupira”, “O Pé de Garrafa”, “A Alavanca de Ouro”, “O Lobisomem”, entre tantas outras

que permeiam o imaginário popular da ruralidade de hoje e de outrora. Tais narrativas

expressam essencialmente aspectos da experiência do vivido especialmente em comunidades

que tem na tradição oral o motriz que alimenta a cultura.

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Conforme mencionado em páginas precedentes à tradição oral é fonte inesgotável de

narrativas míticas, e Vansina (2010, p. 196) enfatiza: “Numa sociedade oral, a maioria das

obras literárias são tradições [...]” De modo que, as narrativas míticas mais popularmente

conhecidas e alimentadas nas rodas de contação de histórias são as lendas e os mitos.

3.3 AS LENDAS MÍTICAS DE MORRINHOS NAS VOZES DE SEUS ANCIÃOS

Durante alguns meses pude sentir o universo cultural de Morrinhos, de modo que em

algumas tardes de 2015 e 2016, nos momentos em que chegava à comunidade para as

entrevistas e, mesmo nos momentos lúdicos de narração das histórias, com os anciões, anciãs

e alunos, ou para acompanhar os preparativos e as festas de São Benedito, São Bento e São

Lázaro na comunidade, sempre notava ao fundo “as vozes” dos pássaros e da natureza.

Concomitante ao meu trabalho percebia os raios do pôr do sol, que emolduravam o

crepúsculo, marcando sobremaneira as características das casas, das árvores e das pessoas que

passeavam pela rua principal do vilarejo. Algumas, casualmente, cumprimentavam-me com

uma saudação de boas vindas.

Por essa atmosfera de Morrinhos, pude registrar algumas narrativas míticas,

especialmente as valoradas no universo cultural daquela comunidade quilombola, dentre elas:

“A Lenda do Padre”, “O Minhocão”, “O Lobisomem”, “O Boi Sem Cabeça”, “A Ave

encantada”, “O Martelinho de Ouro” e “O Arco Iris” que de alguma forma, retratam aspectos

culturais e míticos da comunidade quilombola.

As narrativas aconteceram em ambientes diversos, de forma natural e espontânea.

Algumas vezes pude observá-las durante os preparativos para as festas de São Bento, São

Lázaro e São Benedito, este último o padroeiro da comunidade. Ressalto que as narrativas

contadas por senhor Joanito e os alunos Dionizio e Rosilda foram colhidas no momento em

que as pessoas estavam reunidas no quintal da casa do festeiro, após o almoço.

Nesse mesmo sentido, a lenda narrada pela anciã Leonilza aconteceu no finalzinho da

tarde, no instante em que a mesma arrumava e enfeitava o mastro para a festa de São Bento e

São Lázaro, tendo em vista que, na distribuição das atividades para o evento, ela ficou

incumbida de tal tarefa.

Ao mesmo tempo, na comunidade de Morrinhos, pude registrar as lendas narradas

pelos senhores Gonçalo e Sebastião. O primeiro relatou às histórias no quintal de sua

residência, já no final do dia, no crepúsculo, enquanto escamava uns peixes que acabara de

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pescar no rio Bento Gomes. Já as lendas narradas pelo senhor Sebastião aconteceram em um

final de semana, precisamente, em um domingo no crepúsculo ao final da tarde, após um dia

de mutirão em sua residência.

Nessa sequência, nos momentos em que foram registradas as narrativas míticas, havia

uma atmosfera de total atenção e respeito aos contadores; todas as pessoas presentes paravam

para escutá-los, de modo que a entonação da voz, a gesticulação, as pausas, faziam parte dessa

atmosfera fantástica e mágica. Em Morrinhos, a ancianidade exerce a função do lembrar e

aconselhar, tão escassa fora dos espaços das comunidades tradicionais.

Observei que as histórias ouvidas na comunidade quilombola de Morrinhos espalham

ensinamentos para além de uma simples mensagens que diz respeito à natureza, aos rios e aos

animais, na medida em que, são ensinamentos não formais, mas espontâneos na essência, e

que as crianças, jovens e adultos da comunidade os levam para a vida inteira.

Assim, o que os anciãos e anciãs de Morrinhos narram não são simples histórias, eles

proferem a seiva da sabedoria, ancorados na experiência do vivido. Nesse propósito,

Benjamin (1986) acredita que nesses espaços culturais o narrador conduz do seu jeito, o

universo da narrativa. Do mesmo modo que Vansina (2010) confirma em seus escritos que

tais narrativas são um produto essencialmente da tradição oral e, que necessitam da figura de

um ancião, para dar vida / encanto às histórias que profere.

As narrativas míticas partilhadas em Morrinhos têm na essência esses ensinamentos

espontâneos e culturais importantes e marcantes para o grupo. Nesse percurso registrei a

narrativa “A Lenda do Padre”, contada por Dona Rosilda, possui aspectos e características

peculiares vincadas na ruralidade, assim relatada:

A Lenda do Padre

Noutro tempo quando meus pais e avós ainda andavam pelas matas e rios aqui da

comunidade, com alguma frequência eles ouviam coisas, vozes e uivos, bem como

pedras que eram jogadas e, aí, eles olhavam e não conseguiam observar nada, não

viam nada. Então, papai e mamãe diziam que se tratava de assombração. Certa

ocasião, ainda há muito tempo atrás, quando por aqui havia muito mato e animais,

algumas pessoas saiam para caçar, e se encontrasse um bicho, então, eles atiravam

no bicho e o bicho virava um padre. Eu lembro que minha avó contava que o bicho

apareceu para meu irmão também, e, eu lembro que ele chegou correndo cansado,

até de nariz aberto. Depois ele disse que tinha aparecido um bicho, no meio da

estrada, e, então, ele pegou a espingarda e atirou no bicho, então, o bicho no

mesmo instante, virou um padre. Ele ficou bastante assustado e desandou a correr,

e correu tanto, que apareceu na casa do Senhor Sebastião bem cansado, de tanto

correr do bicho. (ROSILDA, 33,)

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Ouvir histórias como as da Dona Rosilda, que possuem uma dimensão mágico-

fantástica, cria em quem ouve elementos para além do que foi especificamente narrado na

história. Isso acontece na medida em que nos ensina a lidar com os problemas e impasses que

enfrentamos no curso da vida; de toda sorte que, crianças, jovens e adultos, ao ouvirem a

mensagem da narrativa, saberão que, se por ventura alguém sair para caçar e atirar em algum

animal, ele se transformará em um Padre. Numa linguagem metafórica é pecado matar os

bichos; no dizer de Dona Rosilda “é errado sair para caçar”. Nesse aspecto, as narrativas

carregam mensagem para aprendizagens eminentemente significativas para o grupo.

Conforme Abramovich (2003):

As histórias, através da sua dimensão mágico-fantástica, captam a atenção e o

interesse das crianças, despertam a sua imaginação, criam condições favoráveis à

reflexão e ao espírito crítico, desenvolvem a sua capacidade inventiva e criativa, em

poucas palavras, permitem aprendizagens verdadeiramente significativas.

(ABRAMOVICH, 2003, p.57).

As narrativas míticas fantásticas trabalham com a linguagem metafórica e com o

lúdico, em que há uma aprendizagem espontânea partilhada socialmente, principalmente, no

âmbito das crenças, e dos rituais. Nesse sentido carregam mensagens importantes para o

grupo, de maneira que o exercício de contar história, sobretudo, as lúdicas alimentam os seres

humanos em todas as suas dimensões, tornando-os mais resistentes as agruras enfrentadas no

cotidiano.

Em face de tal constatação, outra lenda bastante difundida na ruralidade e em

Morrinhos, é a do “Lobisomem”, registrada principalmente nas falas da anciã Dona Leonilza

e dos anciãos Sebastião e Gonçalo; narrativas que conheceram porque participaram do fato

vivido e / ou conheciam alguém que já tinham visto o personagem.

A Lenda “O Lobisomem”

Noutro tempo, os mais velhos contavam que na fazenda aqui perto tinha um homem

que virava lobisomem. Todo mundo acreditava que ele virava mesmo o lobisomem:

ele era esquisito. O gerente da fazenda deu emprego para ele, mas achava ele meio

estranho, até que certo dia, à noite, ele estava aqui perto da comunidade, num bar

bebendo com outro peão da fazenda. Depois de bem tarde, o peão saiu primeiro e

foi embora para fazenda levando uma garrafa de cachaça. No meio do caminho, e

já era bem tarde da noite, o bicho avançou nele, então, o peão pegou a garrafa e

“tacou” na testa do lobisomem, só assim conseguiu largar dele. Saiu desesperado

correndo com um corte na testa. No outro dia, lá na fazenda, o rapaz contou o que

tinha sucedido para os colegas, e também para o gerente da fazenda. Então, todos

já desconfiaram do rapaz. Como de costume, todo dia cedo, os peões tomavam café

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juntos, nesse dia, ficaram esperando o rapaz chegar para o quebra torto [café da

manhã reforçado], porque, certamente, se ele fosse realmente o lobisomem, ia estar

com a marca na testa. Pois, seu moço, senhor acredita que foi dito e feito, o peão

apareceu todo sem graça, com enorme sinal bem na testa. Então, foi isso que

aconteceu. (LEONILZA, 60, ).

As narrativas míticas fantásticas trazem elementos migratórios de diversas culturas

espalhadas pelo globo e quando chegaram ao Brasil, juntam-se às de origem indígenas e

ganharam ares, cores e características peculiares de cada região. Porém, sobre esse processo

de migração das narrativas míticas, importante assinalarmos o viés destacado por Barbosa

(2011), sobre a contribuição dos africanos.

O negro brasileiro cujos ancestrais foram trazidos a ferro e fogo do continente

africano, [...] trouxeram com eles um de seus bens mais preciosos, que ninguém lhes

tiraria: as suas histórias. É nesse “baú fabuloso” vieram os contos, as lendas, e

fábulas transmitidas de pais para filhos, há várias gerações.

( BARBOSA, 2011, p. 32)

De tal forma que, na comunidade de Morrinhos, a lenda mítica do Lobisomem,

embora tenha origem europeia, no Brasil ela se manifestou de diferentes formas, ao sabor da

criatividade dos narradores de histórias, que ao contá-las colocam ingredientes especiais a

cada desempenho narrativo. Nesse mesmo sentido, o ancião Sebastião, relata sobre um

episódio que presenciou quando ainda na longínqua infância, da visita do tal “Lobo Homem”,

na casa do seu padrinho, em Morrinhos. Conforme descrito abaixo:

A Lenda “O Lobisomem”

Agora, o Lobisomem eu mesmo já vi uma vez. Quando eu era gurizote, nós matamos

uma rês, lá no meu padrinho, e já era de noite, e aí estavam os cachorros, latindo,

latindo, bravos, muito bravos e o bicho comendo, comendo, comendo a cabeça do

boi. Lá tinha uma mangueira - tem até hoje a mangueira lá – e ele estava sentado

no pé da mangueira, sentado com a bunda no chão, porque ele não dá as costas

para o cachorro. Aí, ele sentado com a bunda, assim encostado na mangueira e,

mandando , comendo a cabeça do boi, comendo a cabeça do boi. Aí, minha

madrinha falou assim: - Menino corre lá e, chama o seu padrinho. Aí o bicho

assustou e começou a correr. (SEBASTIÃO, 60).

Conforme já mencionado em páginas precedentes, em Poconé, Cangas e,

principalmente, em Morrinhos, são recorrentes as histórias do Lobisomem, pois quase todos

conhecem alguém que já viu o bicho ou sabe alguma narrativa da visita do animal, que

perambula pelas noites de lua cheia do povoado. Segundo reza a lenda do lobo / homem, para

se “quebrar” o “encanto do bicho” e fazê-lo retornar ao seu estado de ser humano novamente,

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era preciso que alguém o ferisse, “mas o bicho é ligeiro seu moço ele corre bem duro. A

orelha dele fazia um som enorme e batia assim, praft, praft, praft e tomou rumo da rua. Os

cachorros correram atrás dele, mas ele correu bem duro.” conclui o ancião. Essas histórias

são muito difundidas na comunidade, tanto que outra versão foi a do ancião mais idoso da

comunidade, Senhor Gonçalo, 79 anos, sobre o tal animal.

A Lenda “O Lobisomem”

O senhor já ouviu falar sobre a localidade de Boa Vista? Pois é, lá tinha um sujeito

que era o retrato de lobisomem, ele mesmo dizia que era um. O nome dele era

Venâncio e a mãe dele chamava Cutá. Ele era feio pra burro. Certo dia, numa noite

de lua cheia, a mãe dele disse; - Filho vamos no sítio de Benedito. No meio do

caminho, Venâncio falou para mãe dele que precisava ir ao mato para fazer

“precisão” [necessidades fisiológicas]. Enquanto a mãe aguardava, começou a

ouvir alguns uivos e barulhos estranhos, quando de repente, apareceu o bicho e

desandou correr atrás dela, chegando a rasgar a saia dela, mas ela, graças ao bom

Deus, conseguiu escapar. Aí, seu mano, o povo descobriu que o Venâncio era

mesmo o lobisomem. Dias depois, ele começou espalhar por aí, que lembrava que

tinha corrido atrás da mãe dele e, ela corria mais ainda. Eh, seu mano, Deus fez o

dia para nós seu mano, e a noite que é a treva para os bichos (GONÇALO, 79).

As narrativas sobre “O Lobisomem” contado pela anciã e anciãos traduzem aspectos

culturais migratórios dos “colonizadores” portugueses, que as trouxeram do continente.

Porém a lenda “O Lobisomem” encarta variadas versões e interpretações, mas a mensagem

advinda dela, que paira no imaginário coletivo da comunidade quilombola de Morrinhos, é

que, devemos respeitar o tempo da natureza; a partir de determinado horário, as pessoas da

comunidade devem se recolher em suas casas, para evitar assombrações e os ataques dos

bichos. Assim, os ensinamentos do ancião Sr. Gonçalo carregam a mensagem: “Deus fez o

dia para nós e a noite, que é a treva, para os bichos [...] a noite é para descanso, ficar

recolhido [...] nós devemos respeitar a natureza.”, acentua o ancião.

A mãe natureza é a que regula os tempos / espaços dos seres humanos. Quando chega

o crepúsculo, os hormônios da noite afloram e a melatonina regula e prepara o nosso corpo

para o repouso; o mesmo vale para o amanhecer, pois com a ação dos raios solares o cortisol

aquece o nosso corpo para despertá-lo. Nas palavras de Rousseau (1995, p. 126) que “O

tempo de repouso é o da noite, marcado pela natureza. É sabido pela observação que o sono é

mais tranquilo e mais suave quando o sol se encontra abaixo do horizonte”.

Assim, os ensinamentos espontâneos contidos na lenda e difundidos em Morrinhos,

ainda hoje fazem sentido. Do mesmo modo, os anciões narram histórias chamando atenção

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para preservação do que ainda resta. Conforme a narrativa da “Ave encantada”, contada pelo

senhor Sebastião:

A Lenda: “Ave encantada”

Vou contar uma história para o senhor, bem aí [em frente à casa do senhor

Sebastião] assim tem uma aroeira, daqui você pode ver ela. Aí tinha um varador

[espécie de trilha de passagem para as pessoas] esse varador, há muito tempo

atrás, quando o senhor passava perto da aroeira, olha acontecia às vezes de

jogarem pedra na gente. Aí, aí era estranho demais! Nesse mesmo lugar aí, também

aparecia uma avezinha, do tamanho de um pintinho. O senhor não vai acreditar no

que eu vou dizer, pois ela aparecia, mas ninguém era capaz de pegar essa avezinha.

Podia fazer o esforço que quisesse, as pessoas corriam atrás dela, mas ninguém era

capaz de pegá-la. Você podia até carcar [prender a ave no chão] ela com o chapéu

no chão, assim, mas o senhor não conseguia pegar a danada. (SEBASTIÃO, 60,).

Nesse contexto, a mensagem implícita da narrativa aponta para o ensinamento de que

não se devem caçar pássaros nas matas, pois, crianças e jovens que moravam nas

comunidades rurais tinham por hábito matar passarinhos nas matas, apenas como lazer,

ocasionando maus tratos aos bichos. Algumas vezes, a depender da ave, ela era servida para

refeição da família; mas, outras vezes, ela era simplesmente morta e descartada.

Desse mesmo modo, os pais que discordavam de tais atitudes, repetiam essa história.

Talvez, por essa razão, a narrativa “A ave encantada” como as outras, ensejam mensagens de

advertência para as crianças e jovens da comunidade, no sentido de não sair pela mata

apedrejando passarinhos, uma vez que, a qualquer instante, pode ser que apareça a “A luz

misteriosa”, “O Boi Sem Cabeça” ou mesmo receber algumas pedradas da “assombração”.

Na fala de Guimarães Rosa, o rio é uma palavra mágica que povoa e enseja histórias

da alma humana e que inspiram narrativas sobre os mistérios da vida e o cotidiano dos

ribeirinhos brasileiros; na medida em que suas águas “carregadas de mistérios” transformam-

se em encanto nas vozes dos narradores e contadores de histórias, então, o rio passa a fazer

parte do imaginário dos moradores.

O rio Bento Gomes, que em tempos passados era fonte de riqueza e fartura para a

comunidade e o pantaneiro, foi palco de diversas lendas míticas, de pescadores e moradores

que margeiam o seu leito. Suas águas conduzem os enigmas de certo: “Minhocão de

Morrinhos”, conforme podemos observar na narrativa do senhor Gonçalo:

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A Lenda: “O Minhocão”

Quando nós morávamos ali em cima, nos tínhamos dois poços, um por nome de

poço redondo. O poço redondo, quando secava, ficava uma correnteza até que

cortava. Nesse poço, fazia redemoinho, assim, quando tinha [redemoinho] às vezes

que gente chegava lá, parecia que ele tinha aquele rumor, revirava tudo aquele

poço. Parecia que revirava aquele poço, [por outro lado], nos víamos lá tipo de

uma canoa debruço, então, nós acreditávamos que podia ser o minhocão; porque na

água, falam que tem o bicho mais feroz do que no seco. Eu vou falar para o senhor,

quando eu era novo, para mim não tinha rio cheio para eu atravessar. Eu tirava

minha roupa e amarrava na cabeça e olha, nadava [...], mas de noite, de noite que

os bichos saem tem oportunidade de sair e andar. Tem muitos que falam que tem

uma assombração, esse aí é coisa de outro mundo (GONÇALO, 79,).

A narrativa “O Minhocão” tem como ambiente o espaço sociocultural do pescador e

do ribeirinho. Ocorre em várias regiões do Estado de Mato Grosso e do Brasil, em diferentes

versões. É marcado também pela presença do indivíduo narrador, conhecedor profundo da

natureza onde vive e de seus mistérios, podendo imprimir seu próprio tom à narrativa,

refletindo o desejo de dar, à sua maneira, uma explicação ao fenômeno natural.

Nesse caso, o redemoinho que ocorre dentro dos rios e lagos pode ser visto como uma

grande alegoria. Por assim dizer, do ponto de vista da metáfora, a narrativa descreve as

preocupações do homem em seu meio, tentando explicar os fenômenos naturais existentes,

nesse mesmo sentido a metáfora é “a mais expressiva forma de linguagem para apreender e

explicar a realidade”. (JESUS; BRANDÃO, 2003).

Por esse ponto de vista, o elemento talvez mais significativo, merecedor de ênfase da

parte do narrador, está centrado na elevação e impostação da voz. Alertando as pessoas para

os seus perigos, esse recurso diz respeito à advertência que deseja transmitir aos ouvintes, em

especial àqueles que têm por hábito desobedecer à regra de não abusar do banho de rio

durante o dia e evitar banhar-se nele durante a noite.

Por essa perspectiva, a narrativa contribui para disciplinar e/ou normatizar a relação do

homem com o seu entorno, mais especificamente com o rio Bento Gomes. Para os moradores

de Morrinhos a água do rio é mais do que uma fonte de alimento e de vida, para eles, o espaço

do rio é doce feito festa, lugar de diversão e alegria. Ainda por esse caminho, os enigmas das

narrativas míticas na comunidade continuam na lenda “O Boi Sem Cabeça”, relatada pelo

aluno Dionízio.

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A Lenda: “O boi sem cabeça”

Olha, vou contar para o senhor uma coisa, que o senhor não vai acreditar, aqui

mesmo, na comunidade de Morrinhos, tinha um pé de Embiruçu, e os mais velhos

sempre diziam que nesse pé de árvore sempre nascia um Boi sem cabeça, e, o tal

Boi sem Cabeça atacava o povo, corria atrás do povo. Esse pé de Embiruçu era

encantado porque sempre os mais velhos contavam que escutavam também sons de

siriri, cururu, aí você chagava lá e, não via nem ouvia nada. (DIONÍZIO, 49).

A lenda que Dionízio contou é muito conhecida em todo Brasil, mas com a

denominação: “Mula Sem Cabeça”, mas em Morrinhos ela ganhou características e

adaptações próprias. Segundo alguns historiadores, tal narrativa se frutifica em ambientes de

domínio do mundo da religião católica. A possível mensagem implícita na narrativa, talvez

possa estar relacionada ao fato de evitar que as mulheres flertassem com os padres, e, caso

isso acorresse, um infortúnio aconteceria à moça transformando-a em um monstro. Já para o

aluno Dionízio, trata-se de “um mistério que ninguém sabe explicar direito, uma coisa do

outro mundo”.

As lendas míticas para Kruger (2011) são importantes para os seres humanos, na

medida em que, os significados emanados por elas vão para além dos aspectos somente

culturais e literários. Como consequência, os sujeitos estabelecem uma interpretação dialética

com e no ambiente, (re) criando significados novos para as histórias que contam no grupo. Por

esse caminho, o senhor Sebastião, narra a sua versão para o “Boi Sem Cabeça”.

A Lenda “O boi sem cabeça”

Uma vez, também perto desse pé de embiruçu, meu primo Benedito, viu um boi sem

cabeça. Um boi sem cabeça correu atrás de meu primo Benedito, aí correu atrás

dele. A sorte dele, que essas coisas assim, aonde têm água que corre o bicho num

passa, né? A sorte dele que quando um lugar de passada de água, o bicho não

consegue atravessar, passar, né? Então, ele correu, ele correu e correu bem duro,

depressa. Ele era bom para correr, e já bem distante, lá na frente Benedito

atravessou a passada de água, o córrego, e o bicho, ficou para o lado de cá.

Também quando ele chegou à fazenda até de boca aberta e bem assustado, que o

senhor precisava ver. (SEBASTIÃO, 60,).

A lenda mítica narrada pelo aluno Dionizio e o ancião Sebastião, em Morrinhos, sobre

o “Boi Sem Cabeça”, tem sua origem, segundo estudiosos do tema, no universo português.

Conforme mencionado em linhas anteriores, as mesmas migraram para diversas regiões do

nosso país com o “colonizador” europeu; a elas foram acrescentadas cores, olhares,

expressões, entonações e sentidos próprios em cada lugar, sendo, portanto incorporadas às

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diversas matrizes culturais que aqui se encontravam e sucederam. No cenário regional

brasileiro foi recriada e reinventada com características peculiares, adaptando-se a cada

região, colorindo por assim dizer, as narrativas em solo de cada comunidade, com a marca de

cada narrador.

Do mesmo modo, em Morrinhos, as narrativas míticas narradas pelos moradores

Sebastião e Dionízio expressaram valores e características vivenciadas pelos sujeitos daquela

comunidade quilombola. No que diz respeito à dimensão que elas representam para os

moradores, uma vez que ela se desloca pontualmente para a preservação do rio Bento Gomes,

fontes de recursos importantes de sustento e de lazer para os moradores.

Neste seguimento, o ancião Sebastião foi indagado do por que, no caso da narrativa, o

“Boi sem Cabeça” o bicho não atravessa um córrego ou passagem de água. Ele disse: “Nesse

caso, o bicho não pode atravessar a água porque na água tem mais mistério do que no seco,

né. Por isso devemos cuidar das florestas e do rio Bento Gomes”. Nesse sentido, as lendas

sempre trazem na essência, mensagens espontâneas que fazem sentido no grupo onde são

contadas, porque as pessoas acreditam nas histórias narradas por aqueles que têm o legado da

experiência.

Parodiando Céspede (2015), no tempo em que as narrativas eram mais comuns, as

pessoas acreditavam nos contos, nas fábulas, nas lendas narradas pelos pais, da mesma forma

que os pais acreditavam nas histórias das avós, do mesmo modo como estas ouviam com

atenção as mensagens advindas das narrativas trazidas pelas bisavós. Na essência, cada

história contada tinha o poder de proteger quem as ouvissem do pavor, do medo, das

enfermidades, trazendo conforto e segurança, para as crianças, jovens e mesmo aos adultos.

Por esse universo dos “baús de memórias” emergiam “conselhos entesourados” que eram

repassados de geração em geração.

Ao enveredar e trilhar por esse repertório de narrativas míticas de Morrinhos percebi

que as lendas “O arco-íris” e “As luzes de Morrinhos” também inferem mensagens educativas

espontâneas para os sujeitos, justamente sobre os mistérios que envolvem o mundo das águas

e do ambiente. Conforme as histórias dos anciões Sebastião e Joanito:

A Lenda: “O arco-íris”

Certo dia quando eu estava pescando no rio, de repente o tempo mudou, o céu ficou

bem escuro e, começou a cair um dilúvio de água. Depois, deu uma acalmada e

apareceu um arco íris. Olha, ele te deixa perdido quando ele cai no rio, eu não fico

perto dele, mas nem a pau, é perigoso demais, ele é feio demais na água, ele

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envermelha, quase por um quilometro de distância, daí, ele vai deixando a gente

zonzo. Ele tem uma catinga ruim, você tem que cai fora do rio, senão sua cabeça vai

ficando meio zonza, a cor dele é muito forte, até sua vista vai ficando doendo. Eu já

vi diversas vezes na água, aqui mesmo no rio Bento Gomes, na comunidade de

Morrinhos, na água ele esparrama que é só, porque diz que ele bebe água do rio. É

muito assustador. (SEBASTDIÃO, 60).

A Lenda: “O martelinho de ouro”

Esse dia mesmo, eu estava lá na roça, eu tinha subido lá para a roça, estava

bijando [cuidando] uma anta que estava acabando com uma mandioca da minha

roça. Eu estava sentado, lá no chão, já um bom tempo, quando vi, de repente, uma

tocha de fogo assim, [metro e meio] que veio na direção do pé de mandioca. Veio,

veio vindo e, eu expiando ela assim. Depois parou, aí foi novamente, de repente

parou. Aí eu falei comigo mesmo: - Eu vou expiar um pouquinho mais de perto. Ai

levantei e fui pé por pé e pensei comigo: - Eu vou lá, né? E ela já tinha hora que

estava acesa. Acendia e parava, aí eu falei, vou lá , quando cheguei perto, quando

cheguei bem mais bem de perto, a luz sumiu. E é nessa direção mesmo do pé de

Embiruçu. (JOANITO, 60).

A aparição do “Martelinho de ouro de Morrinhos” e de “Bolas de Fogo”, que

sobrevoam e atravessam os canaviais e os mandiocais madrugada a fora, é recorrente em

algumas regiões do Brasil; do mesmo modo, a assustadora aparição do Arco Íris que “bebe

água” no rio Bento Gomes. Essas narrativas, em diferentes lugares, possuem significados

diversos. Em Morrinhos, as pessoas têm a crença que a bola, ou a luz misteriosa, tem um dote

de ouro e sai à procura daquele que será o beneficiado. A sorte repousou sobre o ancião

Joanito, pois ele a encontrou na roça de mandioca; todavia, o escolhido precisa ser corajoso

suficiente para seguir o objeto incandescente.

Por outro lado, talvez, a mensagem intrínseca à narrativa “Arco Íris”, é a que as

pessoas não devem se aproximar do rio em dias de chuvas fortes e tempestades, caso

contrário, podem ser engolidas e/ou sugadas por um arco íris.

Em face do refletido, essas narrativas simbólicas, mesmo ganhando diferentes

roupagens, carregam significados perpetuados culturalmente por determinadas comunidades,

o que lhes dá algumas características comuns, como por exemplo, narrativas localizadas em

regiões em que existe ouro, tais como Cuiabá, Poconé, Cangas e Morrinhos, tem uma

roupagem própria da atividade extrativista.

Segundo a interpretação do narrador, ancião Joanito: “Os mais velhos sempre diziam

que essas aparições aconteciam em lugares onde tinha ouro, e devia ser mesmo porque, ai

doutro lado não tem há muito tempo o garimpo Morrinhos? Não é mesmo!” Essa lenda tem

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uma ambiência propícia, à medida que, na divisa com a comunidade quilombola, existe um

garimpo de grande porte, às margens do rio Bento Gomes.

O ato de narrar produz efeitos também múltiplos, uma vez que valoriza a sabedoria do

idoso, potencializa sua autoestima e sua autoconfiança como detentor de capital cultural sui

generis, abarcando a ideia difundida de que “quem conta um conto aumenta um ponto”. Por

essa acepção, veiculam mensagens de caráter natural, de modo que, inspirado em Hampaté Bâ

(2010) e Vansina (2010) poderíamos inferir que as narrativas têm marcas pedagógicas

espontâneas, vinculadas aos aspectos das relações no interior das comunidades tradicionais.

Em face de tal interpretação, as narrativas míticas promovem a (re) construção da

sabedoria do grupo, como assinala Vansina (2010, p. 141): “os saberes e fazeres culturais

moldam os sujeitos condicionando-os; as tradições, por sua vez, são impregnadas de saberes e

fazeres culturais, que têm na narrativa uma de suas formas de manifestação”, além de

potencializar a sociabilidade e a união das famílias e da comunidade.

Não há narrativas inúteis e/ou desinteressadas. Pode-se verificar que os significados

trazidos pelas narrativas míticas guardam a função de demonstrar a dramatização ritualística

simbólica da gênese humana para dar explicação à razão existencial de sua espécie e, assim,

responder às angústias que permeiam as dimensões socioculturais dos seres humanos,

porquanto, a visão de cada cultura sobre tais explicações a respeito do sobrenatural influencia

o modus vivendi dos sujeitos nas comunidades (CUCHE, 1999).

Os anciãos e anciãs, nas palavras de Hampaté Bâ (2010) e Vansina (2010), são pessoas

especiais, escolhidas de forma espontânea no coletivo social para transmitir com entusiasmo

os rituais, as tradições, as experiências do vivido da memória coletiva do/ao grupo. Portanto,

repassam os ensinamentos necessários à boa convivência com a natureza e com as pessoas

com que se relacionam no cotidiano.

Foi possível perceber que os anciãos e anciãs de Morrinhos conservam em suas

memórias variadas narrativas e exercem alegremente o papel de narradores. Eles sentem-se

importantes ao contar suas histórias nas rodas de conversa, lembrando o que afirmou Meihy

(2014, p.83): “além de outros efeitos, [narrar] propicia aos idosos a conquista da dignidade e

da autoconfiança”.

Na comunidade, a relação existente entre os idosos e as novas gerações ainda é de

respeito e de profunda consideração e, acabam por proporcionar a preservação das histórias

no convívio do grupo, de forma que os anciãos e anciãs continuam ocupando o lugar de

esteio, como guardiões das histórias da comunidade.

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No chão de suas comunidades, ainda vivem em uma dimensão que contraria a lógica

do “apagamento” que muitos “velhos” vivenciam, na atualidade. Bosi (2015), por exemplo,

argumenta que os idosos, na maioria das vezes, não são ouvidos pela sociedade

contemporânea, particularmente pelos mais jovens, acirrando conflitos entre as gerações.

Nas palavras de Bourdieu:

E muitos conflitos de gerações são conflitos entre sistemas de aspirações

constituídos em épocas diferentes. Aquilo que para a geração 1 foi uma conquista de

toda uma vida, é dado imediatamente, desde o nascimento, à geração 2 [...]

Evidentemente nem todos os velhos são anti-jovens, mas a velhice também é um

declínio social, uma perda de poder social. (BOURDIEU, 1983, p. 7).

Para o autor, embora o idoso já tenham desempenhado suas funções produtivas na

sociedade, esse não reconhecimento contribui para o empobrecimento das relações sociais

travadas no cotidiano das famílias e das sociedades, especialmente entre as gerações.

Todavia, em comunidades tradicionais, caso de Morrinhos, os idosos ainda são

valorados socialmente e suas experiências são importantes para manutenção sociocultural do

grupo. Quanto às suas narrativas, percebe-se que são do tipo lendas míticas e carregam

releituras e interpretações próprias da região e, em geral, trazem consigo mensagens e

ensinamentos, ou seja, uma dimensão pedagógica, que chamamos aqui de pedagogia

espontânea ou natural, no sentido de que as reuniões das famílias, parentes, vizinhos ou

amigos são sempre espontâneas e, ambiente que se inicia a contação das histórias.

Castilho e Campos (2016) inferem que os jovens, ao ouvirem as narrativas, passam a

respeitar as matas, os animais, os rios e lagos e, da mesma forma, aprendem a não

desobedecer aos mais velhos e a se respeitarem. Nesse mesmo sentido, os narradores não

sabem que estão ensinando e os ouvintes que estão aprendendo. E os espectadores, ouvem as

narrativas com respeito, carinho e atenção, curiosos, e prestando atenção a cada gesto,

expressão e movimento do contador, ansiosos para desvendarem o desfecho da narrativa

apresentada.

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CAPÍTULO IV - O CURRÍCULO EM AÇÃO NA ESCOLA DE MORRINHOS

Neste capítulo, busco, em linhas gerais, realizar uma análise de documentos

relacionados à Escola Municipal de Morrinhos. Um deles denomina-se “Projeto Político

Pedagógico” e o seguinte trata-se do livro didático “Saberes e Fazeres do Campo (2014)” –

Língua Portuguesa, História e Geografia 4º Ano, utilizado pela escola. Concomitantemente,

almejo cotejar as práticas pedagógicas desenvolvidas com os alunos para compreender que

lugar essas dimensões curriculares reservam aos saberes locais, especificamente, às narrativas

míticas.

Nesse contexto, para analisar o Plano Político Pedagógico, o livro didático e as

práticas pedagógicas, faz-se necessário contextualizar o currículo e as dimensões curriculares

ora mencionadas. Freire (1987), ao refletir sobre a prática pedagógica da educação tradicional,

infere que a mesma está atrelada à educação bancária e tem o firme propósito em depositar,

transferir e transmitir valores e conhecimentos aos alunos, a partir de uma visão elitista.

No entanto, segundo o mesmo autor, tal concepção não se preocupa em averiguar

quais conhecimentos esses educandos possuem, ou mesmo, se eles estão aprendendo de fato

nesse processo pedagógico de ensino. A reflexão pontuada por Freire (1987) está pautada,

principalmente, em refletir sobre como a pedagogia e as práticas curriculares devem ser e

atuar no cotidiano dos espaços e tempos escolares, para a transformação social dos sujeitos,

sobretudo, daqueles das camadas sociais excluídas. (FREIRE, 1987).

Nesse propósito, para Bourdieu e Passeron (2012), o currículo expressa o pensar e o

discurso da classe dominante. Na medida em que as crianças e jovens da elite já identificam e

compreendem tais símbolos e significações trabalhadas, esses discursos fazem parte do seu

cotidiano. Por outro lado, os sujeitos das classes dominadas não conseguem decifrar os

códigos, posto que são estranhos e não fazem parte do seu dia a dia, assim, são excluídos,

porque não se veem representados nos fazeres e saberes escolares.

Em face de tal constatação, Silva (2011) argumenta que:

As crianças e jovens das classes dominantes veem seu capital cultural reconhecido e

fortalecido. As crianças e os jovens das classes dominadas têm sua cultura nativa

desvalorizada, ao mesmo tempo, que o seu capital cultural, já inicialmente baixo ou

nulo, não sofre qualquer aumento ou valorização. Completa-se o ciclo da reprodução

cultural. É essencialmente através dessa reprodução cultural, por sua vez, que as

classes sociais se mantêm tal como existem, garantindo o processo de reprodução

social. (SILVA, 2011, p. 35).

Diante desse contexto, Bourdieu e Passeron (2012) advogam, para a base da pirâmide

social, um currículo que reflita e trabalhe formas e modelos pedagógicos centrados em

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símbolos e significados aportados socialmente pelo viés do capital cultural das populações

menos privilegiadas. De tal forma, esse modelo permitiria aos sujeitos oportunidades idênticas

de aprendizagens dos saberes e fazeres sociais circulantes, tanto de oprimidos quanto de

opressores.

Por esse princípio, Silva (2011) interpreta e classifica as teorias curriculares em três

vertentes. No primeiro plano discorre sobre as Teorias Tradicionais de currículo, cujo objetivo

central é simplesmente de estabelecer as políticas curriculares do Estado, por concentrar seus

esforços nas questões que envolvem os aspectos tecnicistas de ensino, aprendizagem e

avaliação. A segunda categoria aborda as Teorias Críticas cujas premissas deslocam a ênfase

dos conceitos simplesmente pedagógicos de ensino e aprendizagem da forma tradicional, para

focar suas intenções e propósitos nos aspectos de ideologia e poder. De modo que para o

autor, há ainda uma terceira abordagem curricular, que o mesmo denomina de Pós-Crítica;

nela, o currículo procura tratar e enfatizar os discursos que permeiam os espaços e dimensões

escolares, tendo um olhar voltado, principalmente, para as reflexões que envolvem: gênero,

identidade, diferença, cultura, raça e etnia.

Em face de tal contexto, neste trabalho de pesquisa utilizei a perspectiva teórica pós-

crítica para compreender as práticas das dimensões curriculares na escola de Morrinhos, na

medida em que, essa teoria reflete temáticas que envolvem os discursos e os seus significados

impressos nos sujeitos, bem como, a relação entre saber, poder e cultura. Nessa perspectiva o

currículo é compreendido enquanto prática de significação social, pois, carregam em seu bojo,

todos os elementos e características valoradas socialmente (SILVA, 2011).

Pensando a educação das últimas quatro décadas, principalmente, a partir da

redemocratização do país, ocorrido na segunda metade da década de 1980 e, posterior à

aprovação da Constituição Federal de 1988, aconteceram processos de lutas pela inclusão de

grupos “minoritários” na educação. Também destaque-se que outros espaços de diálogo foram

forjados com muita luta, por meio da sociedade organizada e suas representações nos

Movimentos Sociais, o que propiciou aos brasileiros de diversas matrizes culturais, espaços

para que pudessem expressar suas vozes, trajetórias, angústias e agruras, silenciadas por

políticas autoritárias e ditaduras repressivas.

Nesse universo, a educação é apontada como um direito fundamental inalienável ao

ser humano e, destacada e assegurada aos brasileiros pela Constituição Federal de 1988, ao

afirmar, em seu Artigo 205 que: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,

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será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno

desenvolvimento da pessoa.”.

No entanto, decorridos 28 anos da promulgação da lei maior, as vozes ouvidas nas

audiências públicas, sobre educação quilombola no Estado de Mato Grosso, em 2015,

ecoaram preocupações relacionadas aos caminhos trilhados, considerando a efetivação de

políticas públicas voltadas à modalidade de educação quilombola, que parece ainda distante

do que preconizam as Leis nº 10.639/2003 e nº11. 645/2008, além da Resolução nº8 /

CNE/CEB/2012.

Assim, as discussões sobre educação quilombola é necessária à proporção que os

dados do censo escolar, publicado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP,

2014) 17

sobre a educação quilombola, registram que no Brasil existem 2.200 escolas

quilombolas espalhadas por todos os estados da federação, atendendo a uma população de

212.980 alunos, oriundos de 2.648 comunidades quilombolas. O mesmo censo evidencia que,

em Mato Grosso, o número de alunos quilombolas atendidos totaliza 7.834, distribuídos em

37 escolas de seis municípios.

Conforme mencionado em páginas anteriores, a Escola Municipal de Morrinhos,

Poconé MT, é a única da localidade e atende os alunos até o 5º ano, na modalidade

multisseriada. Em 2016, atendeu 10 alunos, com idades que variam entre 7 a 10 anos; à noite,

no ano de 2015, funcionou uma sala da Educação de Jovens e Adultos, com 17 alunos. O

professor não é quilombola e reside em Cangas, Distrito de Poconé, distante 35 quilômetros

de Morrinhos. O educador faz o trajeto todos os dias pela manhã, sendo necessário ressaltar

que o acesso à comunidade se dá por estrada não pavimentada e é precário.

Diante do exposto, reflete-se sobre o papel do Projeto Político Pedagógico (PPP) como

uma ferramenta importante para entender o que acontece no interior da escola, na medida em

que ele registra as dimensões e práticas curriculares que são trabalhadas no espaço escolar.

Partindo desse pressuposto, Veiga (2005) argumenta que o PPP é Projeto porque apresenta

concepção de metas e objetivos que visam criar condições para que haja uma escola que

trabalhe competências e habilidades que mexam com o interior da escola. Nesse mesmo

sentido, também é um documento Político porque tem uma dimensão sociocultural a exercer,

de tal forma que envolve: pais, alunos, professores e comunidade para além da escola. E,

17 Disponível em: <http://www.dataescolabrasil.inep.gov.br/> Acessado em: 03 fev.2016

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finalmente, o autor infere que é Pedagógico porque estabelece propostas norteadoras para as

práticas pedagógicas curriculares no cotidiano escolar.

Nessa perspectiva, as análises aqui apresentadas refletem as mensagens dos

documentos e fazeres escolares contidas no PPP da escola, tendo em vista que, em essência,

retratam as atividades cotidianas do fazer escolar e os projetos desenvolvidos pela unidade de

ensino do município com os alunos, professores e comunidade em geral; incluindo-se as

propostas, objetivos e metas a serem atingidos pela unidade de ensino durante o ano letivo.

Diante dessa tarefa, o PPP, quando é democrática a realização do mesmo, deve

envolver todos os sujeitos da comunidade na sua feitura: alunos, pais, professores,

coordenação, direção e demais colaboradores. Em outras palavras, o Projeto Político

Pedagógico é a constituição de uma escola e sua filosofia deve ir além dos muros escolares.

Nas palavras de Veiga (2005), é de responsabilidade dos integrantes da comunidade escolar,

gestor, coordenador, professor, alunos e comunidade a elaboração desse documento, sendo,

portanto, partilhado e implementado de forma coletiva. É sob essa perspectiva que foi

analisado o PPP da escola municipal de Morrinhos.

4.1 O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO

O Projeto Político Pedagógico da Escola Municipal de Morrinhos é um documento

que teve sua origem no ano de 2005 e sua redação se deu na Secretaria Municipal de

Educação de Poconé. O documento é único, para todas as escolas rurais do município de

Poconé18

. O mesmo encontra-se desatualizado, e, portanto, necessitando de atualização para

que possa contemplar o arcabouço jurídico que sucederam tal período, conforme já

mencionados em páginas anteriores. Em linhas gerais, apresento uma síntese do que foi

possível constatar no referido PPP, ao mesmo tempo em que reflito sobre a seguinte questão:

Que lugar o PPP da escola reserva aos saberes da comunidade Morrinhos, em específico, às

narrativas orais?

O Projeto Político Pedagógico é referência para as 72 escolas municipais de Poconé,

das quais 68 são rurais. Embora no documento constem os anos de 2005 e 2006, como sendo

o período de execução, ele está em pleno vigor. Cabe destacar, ainda, que esse foi o Projeto

18Exceto a maior escola rural da rede municipal de Poconé Nossa Senhora Aparecida Distrito do Chumbo que

possui um Projeto Político Pedagógico próprio.

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Político Pedagógico disponibilizado pela atual gestão (2012 / 2016) da Secretaria Municipal

de Educação de Poconé, para que fosse analisado na pesquisa ora apresentada. Segundo o

órgão gestor, há um novo Projeto Político Pedagógico em elaboração em 2016, no entanto

ainda não está disponível à consulta.

O PPP começa abordando os aspectos históricos do município de Poconé e, no que

refere à educação, o documento registra que: “O ensino em Poconé se concentra nos

estabelecimentos da rede municipal, estadual e na Associação de Pais e Amigos dos

Excepcionais - APAE”. Nesse sentido, o documento tem uma propositura geral e genérica do

histórico do município, omitindo as características e as especificidades de cada unidade

escolar, principalmente, as que estão localizadas na zona rural do município. Ao mesmo

tempo, não menciona a modalidade de educação quilombola.

Na sequência, o PPP aborda a caracterização e identificação da Secretaria Municipal

de Educação, assim descritas: “A Secretaria Municipal de Educação Cultura Esporte e Lazer

[...] é um órgão criado e mantido oficialmente pela Prefeitura Municipal de Poconé [...] possui

normas que regulamentam o seu funcionamento [...]”. Do mesmo modo, a caracterização

silencia as vozes das escolas, sem que sejam feitas referências ao protagonismo do ambiente

escolar.

Nessa seção, há um levantamento histórico da Secretaria Municipal de Educação, com

o seguinte teor: “A Secretaria Municipal de Educação atende e é responsável por 72 (setenta e

duas) escolas sendo 04 (quatro) localizadas na zona urbana e 68 (sessenta e oito) na zona

rural”. O documento não apresenta dados de cada uma das unidades escolares, como número

de alunos, professores, equipe gestora, modalidade de ensino. Nem ao menos informa o nome

dessas escolas e os aspectos históricos e culturais dessas comunidades.

Na seção nominada Regime de funcionamento, o PPP declara: “A Secretaria

Municipal de Educação Cultura Esporte e Lazer funciona todo o ano, nos períodos matutino e

vespertino [...]”. Nesse sentido, trata-se de caracterização da organização interna da Secretaria

Municipal em que, novamente, não se percebe a participação das unidades escolares nesse

processo.

No item que versa sobre a Filosofia, o Projeto Político Pedagógico menciona que a

filosofia da Secretaria de Educação é de construir, executar e avaliar o projeto político

pedagógico, nesse sentido, a tarefa de cada escola é: “Contribuir para que as escolas

desenvolvam um ensino inovador e de qualidade, onde o educando, consciente de seus

direitos e deveres se transforme em crítico atuante no processo de transformação social.” No

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entanto, o que pude observar durante o período de pesquisa (2015/2016) é que o ensino

ofertado é do tipo tradicional: professor, lousa, livro didático, em que não são

problematizados os fazeres e saberes das comunidades que a escola atende, dentre elas a

comunidade quilombola de Morrinhos.

Acerca ao objetivo geral, o PPP (2005) assim estabelece: “[...] integração escola

comunidade a Secretaria Municipal de Educação objetiva estimular, apoiar e desenvolver

ações educativas que possibilitem essa integração [...]”. No entanto, durante o período em que

estive realizando a observação participante, não foi possível identificar ações, por parte do

órgão gestor, que apontassem para cursos e capacitações didático-metodológicos para munir o

educador na perspectiva do trato com as questões da modalidade de educação quilombola,

tendo em vista o mencionado objetivo geral.

Em relação aos objetivos da Secretaria Municipal de Educação Cultura Esporte e

Lazer, o órgão gestor central, elenca oito pontos, que considera importante para a Secretaria,

entre eles: “Organizar e realizar reuniões, cursos, seminários, visitas às escolas, apresentando

sugestões, soluções, parcerias [...] oferecendo capacitação ao docente e ao administrativo”.

Todavia, durante o ano de 2016, observei que não houve qualquer tipo de formação ao

educador.

Na justificativa do PPP ocorre um equívoco, assim descrito: “Neste Projeto Político

pedagógico, a Secretaria Municipal de Educação deve ser considerada não apenas como um

órgão central, mas também um lugar de possibilidades de construção de conhecimentos

(grifos meus) [...]”. Nessa acepção, a Secretaria Municipal assume o lugar da escola – o de

construir conhecimento. O discurso institucional tem uma leitura equivocada do processo da

prática pedagógica, à medida que chama para si mesma essa responsabilidade, nega e silencia

as vozes, identidades, culturas e saberes da comunidade escolar.

Da organização didática, segundo o Projeto Político Pedagógico (2005) “A

determinação das matérias e seus conteúdos específicos, sua distribuição por série e respectiva

carga horária faz-se conforme a grade curricular”. Novamente há um engano no documento,

ao relacionar conteúdos com grade curricular, um conceito já ultrapassado que remete a algo

que engessa e limita espaços e tempos escolares.

O currículo escolar é tratado como grade curricular, na acepção da Secretaria

Municipal de Educação, (2005) que assim o apresenta: “Entendemos que a marca referencial

é o instrumento através do qual o pensar e o fazer da escola ganha sentido, é o currículo

escolar”. No entanto, as observações participantes, bem como, a própria análise do conteúdo

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do PPP como um todo, expressam ou demonstram o silenciamento e a negação das vozes dos

alunos, professores e comunidade escolar, pois as políticas para educação quilombola não são

contempladas e evidenciadas; ao contrário, silenciadas.

Por outro lado, “o pensar e o fazer” terão significado para os alunos e a comunidade

escolar à medida que seus discursos forem ouvidos e respeitados, proporcionando a esses

sujeitos o devido protagonismo. Nesse viés, deve ser observado que existem 72 escolas, das

quais 68 são rurais. Portanto, cada uma com características próprias, sentimento de pertença e

peculiaridades que devem ser valoradas em uma gestão democrática. Nesse sentido, deve ser

inserido no bojo das práticas pedagógicas o estabelecido nas Leis n.º10.639 / 2003,

11.645/2008 e o que consta na Resolução n.8/CNE/CEB/2012 sobre a educação quilombola.

Relacionado aos conteúdos, no que refere ao estabelecido no PPP sobre os

procedimentos para a escolha dos conteúdos a serem trabalhados nas escolas do município, os

mesmos são listados anualmente por professores, coordenadores e assessoria pedagógica da

Secretaria Municipal de Educação. No entanto, em nenhum momento se oferece

protagonismo às características de cada uma das 72 escolas atendidas pelo município

abarcadas pelo Projeto Político Pedagógico.

Do mesmo modo, o calendário escolar, referência na adequação das dimensões da

organização do tempo espaço-escolar, é realizado de forma centralizada pelo gestor

municipal, com a participação de diretores, coordenadores e técnicos da Secretaria Municipal

de Educação. Nesse processo, não se percebe, a participação de professores, alunos e

comunidade escolar, bem como, os pontos elencados no Artigo 11 da Resolução n° 08

/CNE/CEB 2012 que define questões que envolvem o calendário para a modalidade de

educação quilombola, a saber:

O calendário da Educação Escolar Quilombola deverá adequar-se às

peculiaridades locais, inclusive climáticas, econômicas e socioculturais, a critério o

respectivo sistema de ensino e do projeto político-pedagógico da escola, sem com

isso reduzir o número de horas letivas previsto na LDB. (BRASIL, RESOLUÇÃO

Nº8/CNE/CEB/2012).

Entende-se que um calendário que tenha um viés democrático, precisa, sobretudo, ser

discutido e refletir os espaços-tempos das comunidades quilombolas para além dos muros

escolares, para contemplarem as peculiaridades e necessidades de cada unidade de ensino.

Exemplos típicos são os tempos de plantio e colheita; nesses períodos, as famílias dedicam

tempos e energia para o manejo da terra. Da mesma forma, a época das águas, outubro a

março, pois é sabido que em Morrinhos, como na maioria das comunidades rurais do

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pantanal, as estradas permanecem praticamente intransitáveis. Portanto a elaboração do

calendário escolar deveria considerar essas particularidades locais, dando possibilidade do

cumprimento real dos 200 dias letivos, a que todo estudante tem direito.

Cabe ressaltar, ainda, a mobilidade/flexibilidade do calendário escolar, que de maneira

alguma deverá ser entendido como afrouxamento da carga horária anual, na medida em que,

esta deve ser estipulada mediante a legislação em vigor. No caso específico da Educação

Básica, são 200 dias letivos e 800 horas anuais, conforme o Artigo n° 24 da LDBN

9394/1996.

Outro ponto a ser destacado do Projeto Político Pedagógico da Escola Municipal de

Morrinhos versa sobre os papeis que devem exercer os profissionais da educação, caso

específico dos professores, no processo de ensino e aprendizagem. O documento menciona

que: “Espera que este desenvolva com eficiência sua função específica de preparar o cidadão

para o seu tempo”. Por outro lado, o PPP da escola não pontua sobre quais formações

continuadas os educadores das escolas rurais terão para trabalharem as temáticas do conteúdo

programático, por exemplo, que dialogam com as diversidades, o que se estende de modo

direto ao currículo das comunidades quilombolas. Concomitantemente, o documento não

detalha nem explica o que significa “preparar o cidadão para o seu tempo”. No olhar do

professor da comunidade de Morrinhos: “significa preparar o aluno para a vida”.

Por outro lado, um Projeto Político Pedagógico ancorado no sentimento de pertença e

que valorize os saberes e fazeres das comunidades tradicionais quilombolas, deve direcionar-

se para uma reflexão crítica sobre as peculiaridades dos sujeitos dessas comunidades. Por essa

acepção, precisa fortalecer o processo identitário.

Nesse sentido, cabe às escolas e a todos os seus processos, aproximarem o currículo

dos saberes e fazeres da comunidade, no sentido mesmo refletido por Hall (2006), Munanga

(2005) e Castilho (2011). Para Hall (2006), a identidade é fortalecida no confronto, ao passo

que na visão de Munanga (2005) manifesta-se claramente pela importância dos saberes

empíricos das comunidades tradicionais nos fazeres cotidianos da escola. Nessa perspectiva,

Castilho (2011) vai além e argumenta enfaticamente quando afirma a necessidade vital das

práticas curriculares das escolas quilombolas refletirem os saberes e fazeres das comunidades

em que estão inseridas, sob pena de seu gradativo apagamento.

O mesmo PPP menciona como são realizadas as escolhas dos gestores da rede

municipal de ensino. Nesse propósito o PPP preconiza que: “A Direção é construída por um

diretor (a) eleito pela comunidade escolar para o biênio de 02 (dois) anos nas escolas da área

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urbana e por um diretor (a) nomeado pelo Prefeito Municipal na área rural [...]”. Essa

descrição carrega em si mesmo um retrocesso imenso relacionado à lei da gestão democrática,

contradizendo ao exposto na legislação vigente em nível federal – LBDN9394/ 1996, e ao

mesmo tempo, fere o dispositivo que está manifestado no artigo Art. 39 da Resolução nº 8

/CNE/CBE/2012, a saber:

A Educação Escolar Quilombola deve atender aos princípios constitucionais da

gestão democrática que se aplicam a todo o sistema de ensino brasileiro e deverá ser

realizada em diálogo, parceria e consulta às comunidades quilombolas por ela

atendida. [...] § 2º A gestão das escolas quilombolas deverá ser realizada,

preferencialmente, por quilombolas. (BRASIL, Nº08/CNE/CEB/2012).

Do mesmo modo o PPP precisa corresponder aos pressupostos da Lei e Diretrizes

Bases da Educação – LBDN9394/ 1996, buscando enfatizar o caráter democrático e político

das ações do campo educacional, conforme o que determinam seus artigos 12,13 e 14.

De igual forma, que esteja em sintonia com o que reza a Resolução nº8 /

CNE/CEB/2012, em seu artigo VIII, sobre a “Implementação de um projeto político-

pedagógico que considere as especificidades históricas, culturais, sociais, políticas,

econômicas e identitárias das comunidades quilombolas;” Assim, espera-se que o PPP possa

refletir os anseios por uma educação que pense a escola e os sujeitos como partícipes de um

projeto pedagógico maior que integra e humaniza o humano. (FREIRE, 1987).

Nesse sentido, Silva (2014) enfatiza que o PPP de viés democrático deve considerar,

em sua essência, aspectos curriculares que trabalhem conteúdos que abarquem desafios

enfrentados numa sociedade pluricultural e em mudança; ao mesmo tempo, as escolhas dos

componentes curriculares reflitam decisões políticas da escola e do educador, primando por

trabalhar competências e habilidades a partir de uma filosofia do pensar pedagógico inserido

em um mundo globalizado.

4.2 O LIVRO DIDÁTICO UTILIZADO NA ESCOLA DE MORRINHOS

O livro didático utilizado na escola municipal de Morrinhos é o da coleção FTD -

Saberes e Fazeres do Campo (PNLD Campo, 2014) distribuído pelo Ministério da Educação

por intermédio do Fundo Nacional Desenvolvimento da Educação. A coleção é seriada e por

área para o atendimento do 1º ao 5º ano.

Nesse sentido, faço análise, especificamente, do exemplar da disciplina de Língua

Portuguesa, Geografia e História, 4º ano editora FTD, que tem como autora de Língua

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Portuguesa: Isabel Carpaneda e Angelina Bragança. A Isabela é especialista em supervisão

escolar e orientação escolar e, Angelina é especialista em administração escolar; ambas atuam

como assessoras pedagógicas em Brasília – Distrito Federal.

Por outro lado, as autoras dos módulos de Geografia e História: Tânia Moraes e Suely

Almeida são do Estado de Minas Gerais. A primeira é Doutoranda em Ciências da Educação e

exerce a função de professora e pesquisadora em Educação do Campo no Instituto Federal

Norte de Minas; a segunda, especialista em supervisão pedagógica e coordenadora do Centro

de Formação de Professores, ambas da cidade de Almenara- MG.

O referido livro foi escolhido para análise tendo em vista que se trata do principal

material didático utilizado pelo professor de Morrinhos em suas aulas. Diante disso, realizei

uma síntese das principais temáticas encontradas no livro, a partir da percepção analítica de

Castilho (2011), Sacristán (2002) e Silva (2014). Nas 288 páginas analisadas, foram

encontradas as seguintes temáticas que dialogam com os saberes e fazeres do campo.

Quadro 2 - Síntese livro didático – saberes e fazeres do campo – 2014

Disciplinas Narrativas

míticas Memória Ancestralidade

Problematização

das agruras quilombolas

Sim Não Sim Não Sim Não Sim Não

Português X X X X

Geografia X X X X

História X X X X

Fonte: Quadro elaborado pelo autor, 2016.

O quadro supracitado expõe na parte vertical as disciplinas contempladas no livro

Saberes e Fazeres do Campo, do 4º Ano; no plano horizontal foram colocadas algumas

temáticas que considerei importantes serem verificadas no bojo das disciplinas pontuadas,

tendo em vista que, o foco desta pesquisa versa sobre narrativas míticas e memórias em

comunidade quilombola.

Cabe ressaltar que o livro faz parte do Programa Nacional do Livro Didático do

Campo – (PNLD Campo), distribuído pelo Ministério da Educação, por intermédio do Fundo

Nacional Desenvolvimento da Educação. Segundo o que está impresso na contra capa do

livro, ele foi produzido: “após uma criteriosa avaliação da Secretaria de Educação

Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão”, continua o documento: “(...) para que

professores e estudantes contem com materiais de qualidade física e pedagógica”.

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Na sequência apresentamos o Quadro (3) com uma síntese das observações sobre as

análises dos conteúdos do livro didático: “Saberes e Fazeres do Campo”, conforme o Plano

Nacional do Livro didático (2013).

Quadro 3 - Síntese da análise dos conteúdos do livro didático “Saberes e Fazeres do Campo”.

Plano Nacional Livro Didático (2013).

Quadro esquemático

Pontos fortes Os conteúdos são apresentados com retomadas nos anos seguintes, com ampliação da

complexidade.

Pontos

Fracos

Excesso de conteúdos em algumas áreas como Ciências, História e Geografia, o que

pode ocasionar prejuízo nos necessários aprofundamentos de alguns temas e,

sobretudo, no ritmo/tempo adequado para aquisição/construção dos conhecimentos,

pelos alunos.

Destaque A preocupação em contextualizar as atividades e as ilustrações em situações relativas

ao campo brasileiro.

Programação

do ensino

Traz uma discussão sobre a Educação do Campo e apresenta os fundamentos teóricos

e metodológicos.

Fonte: MEC / PNLD/ Campo, 2013.

A editora do livro: “Saberes e Fazeres do Campo” FTD (2014, p. 200) enfatiza que a

coleção “[...] tem como objetivo principal apoiar a prática docente nas escolas do campo,

oportunizando por meio de conteúdos e das atividades [...] uma integração mais ampla entre

aluno e comunidade, bem como a escola, a família e a comunidade”. No entanto, nas análises

realizadas nas 288 páginas do referido livro, pude detectar que 15,62% de atividades

propostas abordam temáticas que dizem respeito aos aspectos que versam sobre: 1. Memória,

comunidade e história, 2. Minha comunidade nossa história. 3 Grupos de convivência. 4.

História escrita e história contada / Linha do tempo: você e sua comunidade. O que é

diversidade cultural. O campo: tempos, sujeitos e histórias. 5. “Povo e cultura” e “lugar e

cultura”. 6. Tradições do lugar. 7. Folclore e tradição popular. Nesse sentido reflito sobre

cada item elencado:

1. Comunidade, memória e história, as autoras trabalham a ideia das experiências

coletivas e de que forma essas memórias são preservadas ao longo dos tempos, no coletivo do

grupo. Embora seja assertiva a ideia de destacar a relação memória e comunidade, as autoras

poderiam enfatizar quem são as pessoas que “guardam” a memória e a história das famílias, e

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das comunidades. Tendo em vista que no pensar de Bosi (2015) a sociedade capitalista é

maléfica, sobretudo, com os idosos, à medida que os exclui e isola do seio social.

2. Minha comunidade, nossa história, as autoras procuram enfatizar que a história de

vida de cada pessoa está diretamente ligada à história da comunidade. Inferem que os sujeitos

nas comunidades partilham experiências do vivido e que: “a vida comunitária é um exemplo

de união e partilha”. Por outro lado, as mesmas não problematizam as questões encontradas

no cotidiano das populações campesinas. Nesse sentido, a história oral poderia ser útil, pois

para Thompson (1992, p. 44), ela “Estimula professores e alunos a se tornarem companheiros

de trabalho. Traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da

comunidade.” Deveriam servir também para refletir sobre as principais agruras vivenciadas

pelos povos quilombolas.

3. Outro ponto destacado pelas autoras diz respeito aos “Grupos de convivência”. Nesse

item, elas destacam a importância para a comunidade das histórias de vida das pessoas.

Inferiram que “Os grupos de convivência são espaços em que nos relacionamos com outras

pessoas compartilhando ideia, saberes e fazeres” (2014, p. 151); em seguida, solicitam aos

alunos que reflitam sobre os grupos de convivências nos espaços em que vivem e o papel que

exercem na construção de valores como: honestidade, solidariedade e respeito.

Nesse ponto destaco que são assertivas as propostas das autoras, pois percebi que a

comunidade de Morrinhos valoriza o pertencimento e os laços de consanguinidade, bem como

a comunidade a que pertencem. Nesse mesmo sentido, as Orientações e Ações para a

Educação das Relações Étnico Raciais reafirmam que: “Entre a população negra, o sentimento

de pertencer a uma família é muito valorizado. A família é um esteio, porto seguro, que dá

segurança para enfrentar as dificuldades próprias do país em que vivemos”. (BRASIL, 2006,

p.40).

4. História escrita e história contada / Linha do tempo: você e sua comunidade. O que é

diversidade cultural. O campo: tempos, sujeitos e histórias percebem-se inúmeras temáticas

que são apresentadas pelas autoras no intuito de que se trabalhe “A memória da comunidade”,

pois, para elas “A história de vida das pessoas da sua comunidade está registrada nas

memórias das famílias que vivem no local”; assim, podemos dizer que, para as autoras, a

memória é o resultado do coletivo, pelas histórias e vivências das pessoas do lugar.

Nesse item supracitado, embora haja ilustração de um idoso rodeada por crianças, mas

a essência textual, não enfatiza os idosos como os guardiões da memória do grupo; as autoras

inferem que as histórias são preservadas por meio da “contação de histórias locais”. Por outro

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lado, o livro não faz nenhuma referência às figuras dos contadores de histórias – avôs, avós,

por exemplo, como sujeitos ativos na preservação da memória do lugar. Esse apagamento faz-

nos lembrar das palavras de Benjamim (1986) sobre o apagamento da memória, pois para o

autor, as pessoas vivem a pobreza da experiência e da memória. Nas palavras de Benjamin

(1986)

Nossa pobreza de experiências nada mais é que uma parte da grande pobreza que

ganhou novamente um rosto tão nítido e exato como o do mendigo medieval. Pois

qual é o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não o vincula a

nós? [...] essa pobreza de experiência não é uma pobreza particular, mas uma

pobreza de toda a humanidade. (BENJAMIN, 1986, p. 196).

Na esteira de Benjamin (1986), Bosi (2015) também reflete sobre o que está posto na

sociedade pós-industrial, no apagamento da memória e no “descarte” das histórias e das

pessoas, sobretudo, dos idosos, posto que já não tenham mais forças para lutar, portanto para

o sistema capitalista já não servem.

Por outro lado, nas comunidades tradicionais, especificamente a Morrinhos, os idosos

ainda carregam a função social do lembrar e aconselhar e são valorados pelo grupo, sendo seu

esteio. O que muito os difere das proposituras encontradas nas grandes e médias metrópoles,

narradas e descritas por Bosi (2015).

Figura 17 - Senhor Gonçalo, 79 anos.

Fonte: Acervo do autor, 2016

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A figura 17 acima destaca o senhor Gonçalo, 79 anos, descendente direto dos

fundadores da comunidade, e apontado pelos moradores de Morrinhos como principal

contador de histórias - guardião da memória de Morrinhos. Nessa perspectiva, Halbwachs

(1990, p.6) infere que: “a memória individual existe, mas ela está enraizada dentro dos

quadros diversos [...] A rememoração pessoal situa-se na encruzilhada das malhas de

solidariedades múltiplas dentro das quais estamos engajados”.

5. E, por fim, são evidenciadas as propostas de “Povo e cultura” e “lugar e cultura”. No

primeiro tópico as autoras trazem a concepção de cultura como sendo: “o modo de viver,

pensar, trabalhar, falar, produzir artes, etc.” (FTD, 2014, p. 159). O segundo item trabalha o

conceito de identidade, argumentando que: “A identidade de um povo ou de uma comunidade

revela o jeito de ser de seus membros, como o modo próprio de falar, de pensar e de fazer.”

(FTD, 2014, p. 160).

A perspectiva apontada por Hall (2011) trabalha a ideia de que a identidade é

construída ao longo do tempo e são múltiplas. Por essa acepção, os sujeitos durante a vida não

possuem uma identidade, mas diversas; sendo, o resultado do pensar e do agir dos seres

humanos, diante daquilo que partilham socialmente.

6. O capítulo 2, referente ao módulo de História, trabalha as questões que envolvem as

“Tradições do lugar”. O texto diz respeito às perspectivas das tradições, evidenciando o que é

e como ela está presente nas comunidades. O texto termina o enfatizando que as tradições

estão presentes, ressaltando que “Os costumes, as lendas, as cantigas e as brincadeiras fazem

parte da tradição conservada por sua comunidade.” (2014, p. 163).

7. Já o subitem do capítulo supracitado: “Folclore e tradição popular” remetem às

concepções sobre o que são lendas (2014, p. 164), estabelecendo-as como “narrativas

fantasiosas ou contadas oralmente que fazem parte da tradição de um povo.” Nesse sentido, é

dito que as lendas, bem como os “causos” são partes das tradições do folclore. Cabe ressaltar

que nesta pesquisa enfatizamos que as narrativas míticas fazem parte da cultura, por trata-se

de um capital cultural importante para o grupo, à medida que são valoradas socialmente. Por

outro lado, o termo folclore, deve ser evitado por remeter a ideia de uma “manifestação

menor” de um grupo.

Na sequência, destaco que o livro didático Saberes e Fazeres do Campo (2014) carrega

em seu bojo a intenção de apresentar uma práxis pedagógica diferenciada para o povo

campesino, conforme os pontos destacados anteriormente pelas autoras. Contudo, percebi que

ainda carece de um longo caminho para que ecoem o chão das escolas do campo, sobretudo,

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as escolas quilombolas; deveriam trazer conteúdos locais e regionais mais próximos da

realidade dos alunos e que façam sentido para essas populações. À medida que povos do

campo são múltiplos, cada qual constrói e vivencia suas próprias histórias, narrativas,

identidades, culturas e lutas específicas.

Embora o livro didático mencione povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas – em

menor número, como populações campesinas, considero que a proposta das autoras, necessita

retratar as populações do campo em suas especificidades, culturas, identidades, sentimento de

pertença, etc., dada as diversidades de populações que há no campo.

Nesse contexto, observei que o livro, quando muito, elenca algumas fotografias

regionais que, a meu ver, continuam distantes da maioria dos alunos das comunidades

tradicionais quilombolas, caso de Morrinhos. Aliás, essa interpretação que vai ao encontro das

observações dos especialistas do Ministério da Educação que o analisaram: “nota-se, porém

que questões centrais da vida campesina relativas as organizações sociais e luta pela terra, são

pouco abordadas, bem como as relações entre cidade e campo.” (PNLDCAMPO, 2013, p.31),

Nesse universo, observei que das 288 páginas do citado livro, 45 tratam de temáticas

que envolvem tradições, memória e comunidade, portanto, perfazem um total correspondente

a 15, 62% dos textos produzidos, sendo a maioria deles relacionados à disciplina de história.

No entanto, em relação aos conteúdos que dialogam com a modalidade de educação

quilombola, a partir da Resolução nº 8/CNE/CEB/2012 e Leis nº 10.639 / 2003 e nº

11.645/2008, são poucas as inferências encontradas no livro que dão conta dessas orientações.

A propósito, exemplo a ser registrado refere-se aos pequenos textos explicativos sobre

“A memória da comunidade” (p. 157); neles, as autoras trazem uma pequena nota explicativa

sobre os “Griots”, que na África eles são os contadores de histórias e responsáveis pela

memória, tradição e cultura africana.

No final, como sugestões de atividades complementares, há uma citação, na página

257, com seis linhas, sobre o Programa Brasil Quilombola e o seu endereço para acesso.

Nesse sentido, pude também observar poucas ilustrações que trazem a presença da população

negra.

Nesse mesmo sentido, os autores como Rosemberg (1987), Silva (1995) e Munanga

(2005) entre outros, têm estudado profundamente as questões sobre a discriminação racial e

educação. Em seus estudos apontam que, embora tenha havido avanços no arcabouço legal, o

acesso da população negra à educação de qualidade, que tenha materiais pedagógicos

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apropriados para trabalharem os saberes e fazeres dessas populações, conforme o que foi

exposto, ainda é um sonho a ser perseguido por todos.

. Nas 288 páginas analisadas, foram encontradas, cinco fotografias descritas no

Quadro (4), com as respectivas caracterizações.

Quadro 4 - Quantitativo de imagens encontradas no livro didático: “Saberes e fazeres do

Campo”

Fotos Caracterização

Foto 1 (p, 67) Trabalhar adjetivos

Foto 2 (p. 124)

Criança quilombola brincando A ilustração aborda as populações do campo.

Foto 3 (p. 157)

Griots

Responsáveis pela “Memória da Comunidade”, tradição

cultural na África.

Foto 4 (p. 168)

Casal de dançarinos Dança de roda “Jongo” de origem africana

Foto 5 (p. 177)

Moradores de comunidade africana.

Libéria, África.

Temática: agricultura familiar: tradição indígena e

africana.

Fonte: Quadro elaborado pelo autor, 2016.

Da mesma forma, nas perspectivas de Munanga (2005) e Silva (1995), tais premissas

refletem resultados seculares do descaso por parte da sociedade brasileira com a população

negra e afrodescendente, que fora sempre preterida das políticas públicas. Assim, os livros

didáticos e as propostas curriculares ainda não refletem o chão das comunidades tradicionais

quilombolas, caso de Morrinhos. No dizer de Sacristán (2002), é preciso que a escolas

apropriem desses conhecimentos e os ressignifiquem no seu cotidiano.

Os autores Bourdieu e Passeron (2012) trabalham a ideia de que toda a forma de

imposição curricular é arbitrária, na medida em que não respeita as vozes e a cultura daqueles

que são afetados pela ação pedagógica; portanto, a concepção delineada pelos autores é a de

que existe nesse processo uma “violência simbólica”, resultante de um processo cultural

arbitrário. (BOURDIEU; PASSERON, 2012)

Essa assertiva dos autores acima é corroborada no contexto de produção do livro

analisado, pois as temáticas e propostas nele abordadas, com foco nos módulos de língua

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portuguesa, geografia e história que foram analisados, ainda permanecem distantes das

realidades vivenciadas pelas populações tradicionais quilombolas.

Assim sendo, ainda há um longo caminho para que as populações negras e

quilombolas se vejam representadas nos materiais didáticos e, por consequência, no currículo

e PPP das escolas. A argumentação de Castilho (2011), sobre essa mesma questão, aponta que

boa parte dos livros didáticos apenas folcloriza o espaço rural e exime de problematizá-lo em

todas as suas dimensões, de tal forma que, as lutas pela terra, os conflitos existentes com os

fazendeiros, grileiros e especuladores, são deliberadamente apagados:

Nas palavras de Castilho (2011)

O ambiente rural é mostrado tangencialmente como um lugar distante, uma

realidade a parte, um paraíso ecológico onde estão as plantas e os animais, e os rios.

As pessoas que moram no campo são pouco retratadas [...] não se faz referência ao

proletariado rural, das lutas que há no campo. Os conflitos de terra, o abandono

governamental aos pequenos agricultores, o êxodo rural, o problema dos sem – terra

e dos quilombolas não existem nesses livros. (CASTILHO, 2011, p. 172).

Nessa propositura, os problemas apontados por Castilho (2011) continuam a existir

nos livros didáticos, especificamente, o cotejado, na medida em que não problematizam a

realidade dos quilombos, como por exemplo: a função social do lembrar e aconselhar dos

anciãos e anciãs dessas comunidades. Portanto, não se trata de um material didático voltado

especificamente para a modalidade e realidade quilombola; essa constatação exige a

necessidade de refletir sobre a perspectiva apontada por Silva (2014), que destaca o desafio

colocado ao currículo escolar: trabalhar as temáticas do reconhecimento do outro, de seu

pertencimento, de sua identidade e de sua cultura.

Diante desse contexto, a escola tem o desafio de escolher um livro que agregue o

patrimônio cultural dos quilombolas, seus rituais, suas narrativas, a partir de uma proposta

pedagógica que reflita as suas práticas pedagógicas cotidianas, em que o outro, não seja

estranho, mas se sinta abraçado e representado em suas mais profundas dimensões sociais,

políticas e culturais. (SILVA, 2014).

O livro didático precisa refletir e enfatizar em seus textos, valores como partilha,

mutirão, união, solidariedade, costumes, dádiva, rituais, aspectos importantes presentes nas

comunidades e nelas partilhados no fazer cotidiano, como observado em Morrinhos. Dessa

forma, a escola que trabalha esses valores em sua prática pedagógica cotidiana desenvolve

uma prática que faz sentido para o aluno quilombola; ele se sentirá representado e acolhido

como sujeito de uma comunidade que valoriza a identidade e o sentido de pertença de seus

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educandos. Nessa propositura, o currículo deve ser pensado a partir da comunidade, fazendo

um contraponto necessário ao currículo da sociedade capitalista.

4.3 AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA ESCOLA DE MORRINHOS

No ano 2016, pude observar as práticas pedagógicas na escola em Morrinhos. Houve

facilidade para minha inserção nessa etapa de pesquisa, tendo em vista que já conhecia o

educador há mais de dez anos; uma vez que trabalhamos na mesma escola, a presença mutua

não estranha facilitou a proximidade no campo de pesquisa. Nesse sentido, observei as aulas

de matemática, português, história e geografia, num total de seis aulas. Com o propósito de

perceber se as práticas pedagógicas da escola de Morrinhos refletem os saberes e fazeres

locais, sobretudo em relação às narrativas míticas partilhadas no universo quilombola de

Morrinhos.

Do mesmo modo, para dar conta de tal desafio, busquei apoio, em Paré e Oliveira

(2008), Pacheco (2003) e Sacristán (1999), dentre outros. O primeiro argumenta que a escola

é o lócus de construção de conhecimento; por essa acepção, ele destaca a importância dos

saberes e fazeres das populações negras e afrodescendentes e, ao mesmo tempo, destaca que

estes devam ser contemplados no cotidiano das práticas escolares. Para o segundo, a educação

escolar transita em um espaço cultural diverso e compartilhado, enfatizando que os discursos

dos educadores são importantes nas escolhas do que se trabalhar em sala de aula, mas que

nunca estão ausentes de interferências de normas institucionais do Estado, bem como das

intenções regimentares. Por isso, as propostas pedagógicas devem romper com o viés

eurocêntrico, na medida em que ao privilegiá-los acabam por reforçar os preconceitos. Em

face de tal propositura, intenta-se o conceito de práticas pedagógicas a partir do ponto de vista

de Sacristán (1999):

A prática pedagógica educativa é algo mais do que a expressão do ofício dos

professores, é algo que não lhes pertencem por inteiro, mas um traço cultural

compartilhado [...] tem sua gênese em outras práticas que interagem com o sistema

escolar [...] São características que pode ajudar-nos a entender as razões das

transformações que são produzidas e não chegam a acontecer. (SACRISTÁN, 1999,

p. 91).

Em se tratando de práticas culturais compartilhadas com os fazeres escolares observei

em minhas incursões cotidianas, realizadas no campo de pesquisa, que há ritos particulares de

professor, pais e alunos em Morrinhos. Diante dessa constatação, os quilombolas da

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comunidade partilham a ideia de que a vida é cheia de rituais; sem ritos, não há vida em

comunidade. Nessa linha, Cyrulnik (1995) argumenta que na ausência dos rituais a vida dos

seres humanos deixaria de ter sentido, por isso, os rituais estão presentes nas mais diferentes

situações do cotidiano em Morrinhos: na relação com o ambiente sociocultural, na missa, no

casamento, nos jogos, nas procissões, nas ladainhas dos cultos religiosos, nas reuniões

coletivas e também na escola e nas práticas pedagógicas, por assim dizer.

Nessa perspectiva, reflete Silva (2014):

A vida social no geral argumentava Dukheim, é estruturada por essas tensões entre o

sagrado e o profano, e é por meio de rituais, como por exemplo, as reuniões

coletivas dos movimentos religiosos ou as refeições em comum, que o sentido é

produzido. É nesses momentos que ideias e valores são cognitivamente apropriados

pelos indivíduos (SILVA, 2014, p. 41).

Dessa maneira para as populações quilombolas esse processo é valorado e tem um

significado peculiar e importante no ambiente sociocultural dos sujeitos dessas comunidades.

Nessa propositura, em Morrinhos, escola e família são instituições parceiras, sendo a primeira

a extensão da segunda, uma vez que possuem fortes laços; assim, a escola e a comunidade são

um tecido único que se complementam. Castilho (2011) corrobora tal assertiva afirmando que

na maioria dos quilombos a educação escolar mistura-se com as famílias.

Nas palavras de Castilho (2011):

Há uma cultura escolar [...] é bem distinta das escolas urbanas ou mesmo de outras

escolas rurais. O sistema de parentesco que organiza a escola a comunidade

transforma a escola em uma escola de família, uma escola negra para negros, cujos

membros partilham a mesma linguagem, história social, política, econômica, enfim,

vivenciam as mesmas experiências comunitárias. (CASTILHO, 2011, p. 178).

Esse cenário, em muito assemelhava do início da escola de Morrinhos, pois a mesma

funcionava na casa da família de Dona Catarina Antônia da Silva, descendente do fundador da

localidade quilombola. Relatos orais dos moradores dizem que ela foi a primeira a

desempenhar a função de professora da comunidade.

A presidente da Associação dos Moradores, Senhora Rosilda, que foi sua aluna,

realizou a seguinte narrativa sobre esse período mencionado. “Minha vó Catarina, que dava aula

para nós [...] na cozinha dela [...] por livre e espontânea vontade, para comunidade” (ROSILDA, 2016). O

relato, em certa medida, confirma a ideia apontada por Castilho (2011) sobre o modelo de

escolarização no período do Governo Imperial, nas chamadas “casa escola”.

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Décadas depois, Senhora Catarina foi homenageada e a Escola Municipal de

Morrinhos passou a denominar-se Escola Municipal Professora Catarina Antônia da Silva. A

mesma atende etapas do Ensino Fundamental, de I a IV anos, de acordo com o Ato de

Autorização 3271/92, publicado no Diário Oficial em 14.04.2010.

Ao tempo da pesquisa, a escola funcionava com uma turma multisseriada sob a

regência do professor José Ilário, 44 anos, formado em Geografia pela Universidade Estadual

de Mato Grosso (Unemat), curso realizado em Poconé. Ele é pai de dois filhos e mora numa

comunidade que se situa aproximadamente 40 quilômetros de Morrinhos. Há seis anos leciona

na escola de municipal e considera-se negro; quando perguntado qual é a sua acepção a

respeito do ser quilombola, responde:

Eu não tenho um conhecimento aprofundado sobre o que vem a ser Quilombola,

mas eu acredito assim que ser quilombola é fazer parte de uma família unida que

trabalha numa agricultura sustentável, né, porque tem aquela lavoura, que vem

cultivando aquela tradição que vem do pai, que passa para o filho e assim, para o

neto, e assim vai indo, né? Ele vem carregando uma tradição que vem dos avós,

porque aqui a gente conversa com eles aqui são uma família só, a gente vê aqui que

tudo isso é uma família só, tio, tia, primo, primo, se você for analisar bem, é uma ou

duas pessoas que não são daqui da comunidade. (PROFESSOR ILÁRIO, 2016).

As colocações do educador vão ao encontro das mencionadas pelo ancião Gonçalo

“aqui em Morrinhos, é tudo um povo só, irmão, irmãs, tios, primos, tudo gente nossa, num é

mesmo? É sim!”. Cabe ressaltar que o referido educador não é quilombola, e, por morar na

comunidade vizinha, Distrito de Cangas, próximo à igreja Nossa Senhora do Carmo, a sua

rotina começa todos os dias por volta das 4h30min da manhã. Então, após acordar, prepara

um “quebra torto” reforçado, despede-se dos filhos e da esposa, pega a moto de 150

cilindradas e dirige-se para a estrada que conduz a Morrinhos.

O caminho é estreito e não é asfaltado, de modo que nos dias de verão a poeira castiga

os olhos e a respiração das pessoas. Nos meses de chuva, o professor faz um verdadeiro rally

para transpor os quase 40 quilômetros de distância até a comunidade de Morrinhos. O trajeto

se torna mais desafiador na medida em que a estrada não recebe reparos com frequência,

exceto em anos de eleição.

No trajeto, o professor passa por várias fazendas, sítios e muitos “mata-burros”,

desviando de cobras, vacas, bois e cavalos, que utilizam da mesma estrada vicinal; com sorte,

consegue chegar a Morrinhos aproximadamente às 6h45min da manhã. Essa rotina é realizada

de segunda a sexta feira.

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Ao chegar à comunidade e na escola, o professor observa atentamente os alunos

acompanhados dos pais, que todos os dias, antes de irem para a lida no campo, nas fazendas e

garimpo, ou mesmo para os afazeres do dia a dia, passam na igreja do padroeiro da

comunidade - São Benedito; com seus filhos, pedem proteção, paz e saúde, para todos os

moradores da comunidade. Depois desse ritual, as crianças, ainda em frente à igreja, se

despedem dos seus pais pedindo a sua benção: “benção, pai”, “benção, mãe”; em seguida,

todos os alunos dirigem-se à escola da comunidade, que fica do outro lado da rua principal.

Notei, no período de observação, que essa era a rotina dos pais e das crianças da comunidade

repetida com alguma frequência.

Na sequência cotidiana que inaugura a rotina escolar, o professor Ilário recepciona os

alunos na escola com uma saudação de boas vindas: “Bom dia, criançada!” Então, todos

respondem: “Bom dia, professor Ilário”. Cuidadosamente, todos se sentam e pegam seus

cadernos, borrachas e lápis para o começo das atividades da manhã. O professor começa a

aula perguntando: “Estão todos bem, crianças?”, e eles respondem afirmativamente.

Nesse contexto, o educador expôs a aula do dia, que foi de História. Especificamente,

sobre a história da comunidade. Pontuou as questões elencadas no livro didático Saberes e

Fazeres do Campo ao mesmo tempo em que dialogou com os alunos, se eles conheciam ou já

ouviram histórias sobre a comunidade, ao que responderam que não. Então, o professor

solicita aos educandos que abram o livro no módulo de história, sobre as questões da memória

da comunidade e resolvam as atividades propostas. Posteriormente, explica as atividades na

lousa e solicita a todos os alunos que copiem os exercícios das atividades. Nessa dinâmica

ocorreram, também, as aulas de Geografia e Língua Portuguesa, perfazendo um total de duas

aulas observadas de cada disciplina no ano de 2016.

Notadamente, o professor utiliza uma prática pedagógica nos moldes tradicionais, em

que realiza exposição dos conteúdos na lousa, em seguida solicita que os alunos anotem tudo

e, posteriormente, efetua explicação da temática preparada. Em sequência, é dado

determinado tempo para que os alunos trabalhem nos exercícios. O único apoio didático que

observei nas aulas foi o livro “Saberes e Fazeres do Campo” (2014).

Nesse contexto, os alunos permanecem sentados em fileiras e, na medida do possível,

tentam resolver os conteúdos trabalhados pelo educador. Vez ou outra chamam o professor

para perguntar sobre a temática trabalhada. Percebi que há um esforço maior do educador por

tratar-se de uma sala com alunos que se encontram em fases diferentes de aprendizagem, ou

seja, atende a um aluno do segundo ano, que está em processo de alfabetização, três que estão

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no terceiro ano, sabem ler e escrever com algumas dificuldades, e seis alunos que estão no

quarto ano.

Por outro lado, vale o registro de que, das aulas assistidas, não observei nenhum gesto

mais enfático do educador no sentido de chamar a atenção dos alunos para fazer silêncio

durante ou após as atividades, ou mesmo separar alguma confusão. Do mesmo modo, também

registrei cooperação entre os alunos, por exemplo, no empréstimo de lápis, borracha, canetas

entre eles. Faz-nos lembrar de o que enfatiza Munanga (2005) sobre a importância que essas

populações dão às relações de amizade e solidariedade com as pessoas do grupo.

Entretanto, importante refletirmos sobre as palavras de Castilho (2011, p. 182) que

alerta: “(...) homogeneizar processos educativos em classes multisseriadas travestidos de

currículos nacionais não formará sujeitos autônomos intelectual ou socialmente.” Nessa

propositura, o que se quer problematizar são as condições em que é ofertada essa educação

para os alunos de Morrinhos, com propostas curriculares distantes da sua realidade, conforme

mencionado em páginas precedentes, por ocasião da análise do livro didático. Importante

mencionar a fala do educador professor Ilário: “Neste ano de 2016, não recebemos nenhum

tipo de formação e/ou capacitação”.

Nesse contexto, longe de realizar uma “crítica pela crítica” da educação que é feita na

escola de Morrinhos e impingir nos ombros dos educadores a calamidade da educação

realizada nas comunidades quilombolas, nos inspiramos nos dizeres de Paulo Freire (2006).

Para o autor, nesses casos, os educadores das comunidades devem ser instrumentalizados com

ferramentas teóricas e metodológicas necessárias para pensar a escola para além dos seus

muros e, concomitantemente, munir o educador com formação adequada, para, assim,

implementar propostas pedagógicas que reflitam criticamente o chão da escola. Freire (2006)

infere que esse é o viés que deve ser seguido e refletido por todos aqueles que trabalham e

pensam uma educação para a cidadania dos menos favorecidos.

Na esteira de Freire (2003), Castilho (2011) reflete que responsabilizar o educador

pelo fracasso escolar dessas populações seria o mesmo que isentar os poderes constituintes da

obrigação em investir em formação para os educadores e em estruturas melhores para os

espaços escolares. Nas palavras de Castilho (2011, p. 171): “é desresponsabilizar o Estado por

seu histórico descompromisso com a maioria das populações rurais, e com as populações

negras rurais e urbanas” pela calamidade em que se encontra a maioria das escolas

quilombolas do estado de Mato Grosso, conforme constatado por mim e reiterado nas vozes

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dos moradores dessas comunidades em cinco audiências públicas realizadas no referido

Estado.

Nesse sentido, os desafios apontados pela expansão e atendimento da população

quilombola, no que tange ao campo educacional, são enormes; cenário advindo das demandas

reprimidas por séculos de silenciamento e exclusão. As vozes dos participantes das cinco

audiências no Estado apontaram carências comuns às comunidades quilombolas, por

ausências de efetivação de políticas públicas necessárias à prática dos direitos garantidos em

nas leis 9394/1996, 10.639/2003, e 11645/2008, reiteradas em outras resoluções e decretos

que versam sobre a temática, mas que ainda não foram organicamente implementadas nas

comunidades quilombolas.

Nessa perspectiva, os estudos de Munanga (2005), Silva (1987) e Castilho (2011)

evidenciam que nos diversos setores da sociedade brasileira a população negra e

afrodescendente foi sempre deixada à margem das políticas públicas, materiais e simbólicas,

excluídas das riquezas que ajudou a produzir para o país. Portanto, continua ainda em

desvantagens histórica em relação ao acesso às políticas sociais de saúde, moradia, transporte

e, principalmente, de crédito e de educação, ao se comparar com outros grupos étnicos

brasileiros. Conforme (BRASIL, 2006):

Ao professor (a) educador (a), tendo a memória e a história como perspectiva, cabe

o ofício de colecionar, sistematizar, analisar e contextualizar, em parceria com seus /

suas (as) e quiçá toda a comunidade escolar, o que pode ser considerado como fato

histórico, o que é relevante para um entendimento do processo histórico de

reconstrução da memória que registra nos livros e orienta uma agenda educacional.

(BRASIL, 2006, p. 60).

Tudo indica que falta formação inicial e continuada especifica para que os docentes

compreendam a importância que deve ser atribuída aos fazeres e à cultura local da população

quilombola. Uma nova prática docente será possível pela via da reflexão da ação cotidiana,

que, dada a realidade, por si só, certamente não acontecerá.

Portanto, há que se garantirem práticas políticas mais eficazes, que tenham “olhos”

que enxerguem as problemáticas vividas por essas populações, e que garantam formação,

material didático específico e acompanhamento pedagógico. Há que se garantir, em especial,

a construção coletiva do Projeto Político Pedagógico da Escola Municipal de Morrinhos, de

modo a contemplar as vozes e práticas dos habitantes dessa comunidade; somente dessa

maneira, se tornará um PPP vivo e representativo da história, das celebrações, das festas,

enfim, dos sabores e saberes da cultura de Morrinhos.

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Do mesmo modo, as narrativas míticas de Morrinhos, ao serem incluídas na proposta

pedagógica do universo escolar, contribuirão para valorizar o patrimônio cultural dos saberes

da comunidade, na medida em que as histórias contam lendas míticas partilhadas na

comunidade e que alimentam o imaginário coletivo do grupo. Nesse sentido, Abramovick

(1993) menciona que os estímulos sensoriais partilhados nas histórias são importantes para

transmitir significados e mensagens de ludicidade aos seres humanos, pois navega no

ambiente da imaginação, da fantasia e da brincadeira, instigando o público a ouvir novas

histórias.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

“O narrador figura entre os mestres e os sábios.

Ele sabe dar conselhos não para alguns casos,

como o provérbio, mas para muitos casos, como o

sábio.”

Walter Benjamin

O que motivou os caminhos desta pesquisa foi o fato de ter observado durante o

período deste estudo, 2015 e 2016, os aspectos socioculturais tradicionais e peculiares que

permeiam a comunidade de Morrinhos, observações ratificadas pela memória do tempo em

que morei próximo a Morrinhos (2006 a 2014), principalmente, no que diz respeito ao trato

com as raízes vincadas no campo, na relação com a natureza, bem como nas dimensões

tradicionais da cultura local. Do mesmo modo, ressalto os valores de solidariedade, amizade,

união e acolhimento do Outro que movem a vida das pessoas no quilombo. Nesse sentido, os

rituais de fé presentes na religiosidade das festas do padroeiro São Benedito e dos demais

santos: Santo Antônio, São Bento e São João, dentre outros, aproximam as pessoas, tornando-

as resistentes no enfrentamento das agruras do cotidiano.

Por esse caminho, despertou-me o interesse em compreender as relações existentes

entre as narrativas e as memórias partilhadas na comunidade com os saberes e fazeres

escolares. Para perseguir tal objetivo realizei um levantamento minucioso sociocultural de

Morrinhos, apoiado no modelo etnográfico delineado por Geertz (2008), em que a observação

me propiciou registrar o acervo oral local, sempre a partir das vozes dos colaboradores deste

trabalho.

Assim, Morrinhos é uma área remanescente de quilombo, localizada na zona rural, às

margens do Rio Bento Gomes, em Poconé-Mato Grosso, e já foi certificada pela Fundação

Cultural Palmares, conforme a Portaria nº 84, publicada no Diário Oficial da União, em 8 de

junho de 2015. Trata-se de um pequeno vilarejo, onde está localizada a maioria das 24

residências, com uma média de quatro moradores em cada casa. A titulação é única e oferece

aos moradores a possibilidade de partilharem o mesmo espaço territorial, o que não é tarefa

difícil, uma vez que eles estão ligados por consanguinidade, situação confirmada na narrativa

do ancião Gonçalo, 79 anos: “aqui tudo mundo é parente, avó, avô, pai, mãe, filho, primo, só

tem gente da gente.”

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Dessa forma, observei como vivem, plantam, moram e se comunicam com outras

comunidades. Também foi possível registrar a organização sociocultural partilhada nas

diversas ações do dia a dia, como o muxirum e o trabalho coletivo, bem como a luta pela

regularização fundiária – situação ainda pendente junto aos órgãos governamentais, conforme

já delineado nesta pesquisa. Nesse mesmo sentido, nos estudos sobre a situação dos

quilombos no país destaca-se a insuficiência das garantias constitucionais pelo direito à terra

por parte das populações quilombolas, ou seja, elas não são suficientes para dirimir os

conflitos internos e externos, fato que coloca muitas dessas comunidades em litígio, sofrendo

com a redução de seus territórios. Com Morrinhos não foi diferente.

Relacionado às narrativas míticas, pude constatar na comunidade um rico repertório

oral, que é resultado de diversas aventuras pelas quais os seres humanos viveram no passado.

No princípio, eram narrativas contadas nas cavernas, à luz e ao calor das fogueiras, mas com o

passar dos milênios e séculos elas migraram para diversas regiões do globo, recebendo

versões próprias a cada momento em que eram (re) contadas pelos narradores.

Notadamente, já no século XX, as narrativas orais destacaram-se, alimentando a

imaginação e os ouvidos atentos de crianças, jovens e adultos. Eles sentavam-se em círculos

ou embaixo de frondosas árvores frutíferas, ou mesmo nas varandas em volta do velho fogão

à lenha, na “boca da noite” ou logo cedo, no “quebra torto”, para ouvirem as mais fantásticas

e fascinantes narrativas sobre personagens míticos, que ainda hoje são observadas, sobretudo,

em comunidades tradicionais.

Nesse mesmo sentido, Campbell (1990) nos ensina que os seres humanos enredam

pelo mundo das narrativas míticas, na tentativa de entender o mundo que os cerca e, ao

mesmo tempo, amenizar os medos, inseguranças e agruras; voltam-se a essas práticas,

sobretudo, em situações que não dominam plenamente. Portanto, podemos dizer que essas

mesmas narrativas são importantes para a vida humana, como condição de sobrevivência

sociocultural das identidades dos grupos.

Dessa forma, as histórias e narrativas míticas contadas no passado pelos mais velhos,

anciãos e anciãs, falavam de contos, lendas e fábulas que tinham a função de humanizar o

humano, torná-lo mais leve, à medida que o lúdico e a imaginação propiciados por essas

histórias oportunizavam às crianças, jovens, e até mesmos aos adultos, alívio para alma e

alimento para o espírito. Parodiando Estés (1998), as narrativas partilhadas pelos contadores

de histórias permitem a criação de um cobertor, cujo fim principal é o de aquecer o humano,

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em suas mais diversas dimensões espirituais, na proporção que aproximam as pessoas,

tornando-as fortes e resilientes no enfrentamento de suas angústias e medos.

Por outro lado, a pós-modernidade forja nos sujeitos histórias curtas, prontas e

acabadas, colocando-os sob o jugo impositivo das múltiplas fontes de informações e de acesso

e compartilhamento das tecnologias midiáticas. Tal condição assevera-se pela ausência de

tempo para dedicar-se ao Outro, pois “tempo é dinheiro” e o capital é imperativo na sociedade

pós-moderna. Nesse mesmo sentido, a sintonia de “irmandade” e de cumplicidade, até então

existentes, perde espaços para relacionamentos aligeirados, cujos sentimentos rasos não

fincam suas raízes nas antigas tradições.

Esse esvaziamento é exposto por Simone Wiel (1979), quando afirma a não

necessidade de se criar raízes, posto que não podemos carregá-las porque vivemos num

mundo cada vez mais instável e global. Nesse viés, Campbell (1990, p. 147) afirma que “a

vida de hoje é tão complexa, muda tão rápido, que não há tempo para que qualquer coisa se

cristalize, antes de ser descartada.”

Por outro lado, na contramão do afirmado, Bosi (2015) argumenta que as raízes

deveriam ser consideradas como um tesouro a ser lapidado e um direito fundamental dos seres

humanos. É por esse viés que as comunidades tradicionais dos quilombos, do campo,

ribeirinhas, indígenas, caminham; à medida que demarcam valores importantes, como a

dádiva, a solidariedade, a amizade e a união vividas no cotidiano dessas populações e

valorizadas por elas. São essas as reflexões do terceiro capítulo desta dissertação sobre as

narrativas, na perspectiva de Marquez (2003), que entoa: o ser humano vive para contar as

experiências e os tesouros que observou da vida.

Caminhando no mesmo sentido, o acervo das narrativas dos anciãos e das anciãs de

Morrinhos, aqui reunido, ultrapassa os grupos que os escuta e os reproduz, pois faz parte do

patrimônio e das raízes daquela comunidade. Portanto, o criar, contar e (re) contar histórias

mantêm vivos os aspectos socioculturais das gerações passadas e de todo povo, valorizando o

sentido de pertença e os laços de solidariedade no grupo.

Para Hampaté Bâ (2010), as tradições movimentam a rede de convívios mútuos e

aproximam mais as pessoas. Complementa Geertz (2008), ao afirmar que os seres humanos

são eminentemente rituais e simbólicos e, ao desenvolverem essa arte milenar de contar

histórias, que são exclusivas das sociedades humanas, alimentam a roda das culturas e o ethos

de todo um povo.

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É bem verdade que a cultura não é estática, mas dinâmica, pois vivemos em águas

culturais; entretanto, os valores que permeiam as tradições das populações tradicionais

quilombolas, caso de Morrinhos, precisam ser difundidos amplamente, uma vez que vivemos

em um mundo cada vez mais carente de valores humanizadores. Nessa acepção, os estudos

contemporâneos recomendam práticas pedagógicas de contação de histórias em nossas

escolas, pois o ouvir, o contar, o (re) contar produzem efeitos significativos nas crianças,

jovens e até mesmo nos adultos que as escutam.

Nesse sentido, o pesquisador Belintane (2016) argumenta que ouvir histórias, lendas,

fábulas, ou mesmo brincar de advinhas e trava-línguas é essencial para as crianças em

processo de alfabetização para que estabeleçam um arcabouço cultural e repertório sensorial e

imagético, que trarão consequências positivas para a vida do estudante, refletindo em toda sua

existência. E o mesmo pesquisador vai além, ao afirmar que os educadores que não gostam ou

mesmo não trabalham a temática de contar, ler, recontar histórias para as crianças e jovens

não aperfeiçoam as suas práticas docentes, atingindo resultados muito aquém dos possíveis.

Conforme Belintane (2010, p. 697): “Essas habilidades deveriam ser compreendidas como

indispensáveis para o exercício da profissão e ser exigidas em concursos públicos e no próprio

trabalho.”.

Dessa forma, podemos afirmar que os professores e contadores de histórias

desempenham um papel importante na cultura popular e que a escola precisa levar em

consideração e trabalhar no seu cotidiano essas estratégias para valorizar o patrimônio cultural

da comunidade. Lendas e histórias míticas são fontes preciosas de transmissão de

conhecimentos e valores, sobretudo, para mostrar aos alunos a diversidade da cultura

brasileira, contribuindo para que os estudantes conheçam e saibam conviver e respeitar a

alteridade.

Por esse caminho, acredito que a escola de Morrinhos precisa propor em seu Projeto

Político Pedagógico ações norteadoras que orientem a prática docente sobre propostas

pedagógicas que contemplem as narrativas e os saberes e fazeres da comunidade, de tal forma

que possa aprofundar o trabalho com o universo sociocultural do aluno, percebendo que tais

atitudes se tornarão estimulantes e importantes à aprendizagem deles. O desafio colocado é o

de tornar o currículo “o mais próximo possível” da realidade dos alunos e sem nenhum

estranhamento pelo educando. Com isso, a aprendizagem se fará mais significativa e

prazerosa.

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O resultado da presente pesquisa revelou, em que pese todos os avanços no campo

jurídico e conceitual das últimas três décadas, que as escolas quilombolas devem trazer para

seu cotidiano os saberes e fazeres locais. As observações, conforme delineadas em análises do

Plano Político Pedagógico, do livro didático Saberes do Campo (2014), bem como das

práticas pedagógicas da Escola Municipal de Morrinhos apontaram que a valorização do

patrimônio sociocultural da comunidade ainda é muito incipiente. Ademais, o currículo que

permeia o seio da comunidade escolar é ainda, essencialmente, o reproduzido pelo livro

didático que, como já ficou demonstrado no quarto capítulo desta pesquisa, representa um

olhar lançado sobre a cultura local pelo viés eurocêntrico.

No que se refere às narrativas míticas, conclui-se que são pouco exploradas

pedagogicamente como fontes lúdicas e, quando realizadas, são atividades esporádicas,

propostas pelo professor, mas que não fazem parte do currículo oficial, muito menos do Plano

Político Pedagógico da referida escola, conforme também ficou evidenciado no quarto

capítulo deste trabalho.

A sugestão que se coloca à comunidade escolar, bem como ao órgão gestor do

município de Poconé, é o de atualizar o PPP das escolas do campo a partir de um amplo

processo reflexivo e de debates que envolvam todas as unidades escolares da modalidade

quilombola. Nesses debates, devem ser ressaltadas as peculiaridades e características de cada

uma das comunidades, pois possuem demandas próprias, adequando o PPP à legislação e aos

avanços que aconteceram no campo jurídico educacional nas últimas décadas.

Para que sejam contemplados os saberes e fazeres locais ao currículo não basta

considerar tais dimensões nos documentos oficias, mas oportunizar o direito a uma formação

pedagógica específica aos educadores, como tão bem nos ensinou Freire (1987). Para o autor,

os professores devem estar munidos de um aparato teórico-metodológico necessário para que

possam enfrentar os desafios colocados pela educação contemporânea.

Assim, cada educador poderá fazer na prática pedagógica uma interface entre o

currículo e o modo de viver da comunidade, valorizando o patrimônio cultural e suas raízes.

Nessa propositura, resgatar a função social desempenhada pelos anciãos e pelas anciãs no seio

da comunidade, bem como os valores partilhados socialmente no cotidiano do grupo, como

afetividade, amizade e solidariedade, tão comuns na cultura local.

Assim, espera-se que os resultados alcançados por esta pesquisa possam de alguma

forma estimular o debate e a reflexão para novas frentes de pesquisas, no sentido da busca

permanente por um currículo que contemple os saberes e fazeres locais, em suas mais diversas

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dimensões culturais. De igual forma, almeja-se que as práticas pedagógicas tradicionais

quilombolas possam ser, de fato e de direito, enfatizadas no cotidiano do universo escolar.

Somente assim a educação fará sentido aos alunos da comunidade e, concomitantemente, trará

sentido para cada um deles, fazendo diferença em sua história de vida.

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ANEXO – A – Roteiro de entrevistas e perguntas norteadoras do PPP.

Perguntas norteadoras para a análise do Plano Político Pedagógico.

1. Quem produziu o Plano Político Pedagógico?

2. Os professores, alunos, pais e comunidade escolar participaram na elaboração do Plano

Político Pedagógico?

3. O Plano Político Pedagógico da escola de Morrinhos contempla as políticas para as

diversidades das leis 10.639 / 2003, 11.645 /2008 e Resolução Nº8 /CNE/CEB/2012 versa

sobre a modalidade de educação quilombola?

4. Qual a percepção do professor da escola de Morrinhos relacionado ao Plano Político

Pedagógico?

Roteiro para o livro didático

1 – Identificação da obra?

2- Qual disciplina pertence o livro?

3- Do ponto de vista do texto e da imagem, o livro reproduz estereótipo, preconceito e

discriminação?

4 – Qual a sua opinião sobre o livro? Ele incorpora as mudanças ocorridas na renovação

proposta pelo Programa Nacional do Livro Didático em relação à diversidade?

5-Em quais proporções aparecem às imagens dos negros aparecem no livro?

As atividades do livro condizem com a realidade do público que o utiliza?

Perguntas aos moradores anciãos / anciã.

Na sequência, estabeleço o rol de perguntas usadas para cada um dos seguimentos

pesquisados, cuja sequência foi assim estabelecida: Anciões/anciã, alunos e professor. O

primeiro grupo de perguntas que transcrevo abaixo foi destinado aos moradores idosos, com o

propósito de compreender quais são os saberes dos anciãos/anciãs de Morrinhos, referentes

aos contos, os mitos e as lendas que alimentam o imaginário coletivo e a memória viva da

comunidade Quilombola de Morrinhos.

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1. Qual seu nome e idade? Aonde o senhor nasceu?

2. O senhor sempre morou aqui?

3. O senhor sabe ler, escrever?

4. O senhor/a conhece a história de sua comunidade ou ouviu falar?

5. O senhor/a conhece alguma história que os pais, avós ou parentes narravam?

6. O senhor/a costuma narrar histórias para crianças e jovens?

7. Quando isso acontece? Qual horário?

8. Qual dia da semana?

9. E quais são essas histórias?

10. O senhor pode contar uma história dessas para mim?

11. Na sua infância, quais eram as histórias que o senhor/a ouvia? O senhor/a conhece

alguma história de seres que protegem as matas, os rios, e os animais?

12. Qual a importância dessas histórias?

13. Para que serve contar histórias?

Perguntas aos alunos (as)

A seguir, apresento as perguntas destinadas aos alunos, que tiveram o propósito de

desvelar a relação entre os fazeres escolares e os saberes concernentes à oralidade dos

moradores da comunidade de Morrinhos, a fim de verificar se havia uma práxis dialógica

entre o currículo empírico e o currículo contido no Plano Político Pedagógico da escola de

Morrinhos.

1. Qual o seu nome e idade?

2. Aonde você nasceu?

3. Você mora na comunidade?

4. Você pode narrar uma história que aprendeu com o seu avô/avó, ou parente próximo?

5. Você conhece alguma história de seres que protegem as matas, os rios, e os animais?

6. Quem contou?

7. Qual é a atenção dada aos idosos da comunidade?

8. Você atende os conselhos ou pedidos dos mais velhos?

9. Você pode dar um exemplo?

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10. Quais histórias você já ouviu sobre a origem de Morrinhos?

11. Você consegue definir qual o sentimento de quando morre um idoso na comunidade?

12. Tem idoso na sua família?

13. Que importância tem seu avô/avó ou bisavô/bisavó para você?

14. O seu avô/avó mora com quem?

15. O idoso é chamado nas reuniões da escola?

16. O idoso é chamado para contar histórias na escola?

Perguntas ao professor

O grupo de perguntas a seguir foi destinado ao professor para identificar quais os

saberes culturais (os mitos, as lendas e os contos) são trabalhados pelo currículo escolar na

prática pedagógica e, concomitante observar se os fazeres escolares contemplavam as

narrativas míticas, do universo cultural da comunidade de Morrinhos.

1. Qual seu nome e idade?

2. Você sabe o que é ser quilombola?

3. O senhor/a mora na comunidade? Há quanto tempo?

4. Há quantos anos leciona na escola de Morrinhos? E para que turma?

5. Quais dos saberes vivenciado na comunidade são trabalhados no cotidiano escolar? E

de que forma?

6. Os mais velhos são chamados a participar dos eventos da escola? Para quê?

7. Quais histórias, contos, lendas e mitos, permeiam o imaginário coletivo da

comunidade de Morrinhos?

8. Qual é o papel que os mais velhos desempenham na comunidade? Poderia dar

exemplos?

9. Poderia contar alguma história repassada pelos seus pais, avós ou alguém de

Morrinhos, sobre a origem da comunidade?

10. A escola leva em conta esses e outros saberes locais? Como?

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ANEXO– B - Documentos do Quilombo Morrinhos.

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