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9 “Minha terra é o Leme”: a sala de Clarice S ão conhecidas muitas fotos de Clarice que nos revelam retratos extremamente belos. Mesmo em fotografias de enquadramento familiar ou social, alguma coisa aurática se impõe: diríamos uma inten- sidade, um alheamento que emana do seu rosto e nos devolve o seu mundo, a sua escrita. Algumas dessas fotos, em particular os retratos dos anos 1960 e 1970 captados em sua casa no Rio de Janeiro, deixam entrever quadros como pano de fundo, ou mais propriamente pedaços de quadros ou pedaços de molduras. Em 1959, quando retorna ao Brasil, Clarice ins- tala-se no Leme, num apartamento na Rua General Ribeiro da Costa. Esta foi a primeira morada da es- critora no Rio, após o regresso dos Estados Unidos. Contudo, a maior parte dos retratos foi tirada na sala do seu apartamento na Rua Gustavo Sampaio, para onde se mudou em 1965. Ali passaria os últimos anos. Por ali passaram muitos dos entrevistadores, acom- Miolo Clarice pinturas.indd 9 27/03/13 18:19 ESTE PDF FOI ENVIADO PARA RAQUEL COZER

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“Minha terra é o Leme”:a sala de Clarice

s ão conhecidas muitas fotos de Clarice que nos revelam retratos extremamente belos. Mesmo

em fotografias de enquadramento familiar ou social, alguma coisa aurática se impõe: diríamos uma inten-sidade, um alheamento que emana do seu rosto e nos devolve o seu mundo, a sua escrita.

algumas dessas fotos, em particular os retratos dos anos 1960 e 1970 captados em sua casa no rio de Janeiro, deixam entrever quadros como pano de fundo, ou mais propriamente pedaços de quadros ou pedaços de molduras.

Em 1959, quando retorna ao Brasil, Clarice ins-tala-se no Leme, num apartamento na rua General ribeiro da Costa. Esta foi a primeira morada da es-critora no rio, após o regresso dos Estados unidos. Contudo, a maior parte dos retratos foi tirada na sala do seu apartamento na rua Gustavo sampaio, para onde se mudou em 1965. ali passaria os últimos anos. por ali passaram muitos dos entrevistadores, acom-

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Em Chevy Chase com alzira Vargas do amaral,Zilah Mafra peixoto e Mafalda Veríssimo;

na parede veem-se quadro de Fayga Ostrowere retrato de Clarice por Ceschiatti.

Leme: Clarice com o filho

paulo, na sala do apartamento, da rua General

ribeiro da Costa, e na sala da

rua Gustavo sampaio.

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panhados de fotógrafos que registraram os instan-tâneos. ali Clarice foi fotografada por Olga Borelli. ali viveu nessa terra excessiva e ardente, a terra da sua literatura: “a minha terra é o Leme.” todos os lugares, o mesmo lugar, o país interior imaginado, o país que todos temos dentro de nós; só a ele pode-mos voltar. Esse é o lugar de Clarice, como disse em depoimento ao Museu da imagem e do som (1976): “agora minha terra é o Leme, onde moro desde 1959.” uma terra de papéis, livros, imagens.

É a partir da década de 1960 que Clarice constrói uma casa sua, quando deixa sua vida de mulher de di-plomata. Os instantâneos que a flagram em vários ân-gulos mostram um espaço repleto de quadros, o que é um indicador óbvio do requinte e do bom gosto da autora e especialmente da sua predileção pelas artes plásticas. ainda que em outros lugares se tenha rode-ado de obras de arte, como se pode ver nas fotos da página anterior, é no Leme que aumenta a sua coleção.

as fotografias de Clarice apresentam dominan-temente um fundo que não é o repetido clichê do escritor fixamente retratado com a estante pejada de livros atrás de si. O universo da autora está ali no ambiente que a reflete: papéis e livros sobre as pe-quenas mesas, máquina de escrever, sofá e cadeirões, plantas, o seu cão ulisses e os quadros. as referên-

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cias à ambiência da sala são apresentadas por alguns entrevistadores e, nesse contexto, as pinturas acabam por chamar a atenção. Veja-se o que escreve, em 1973, a jornalista Marisa raja Gabaglia: “na sala de Clari-ce, quadros, muitos quadros. plantas. Livros. Con-chas e algas mortas sobre a mesa de mármore.”1 Eric nepomuceno, em uma entrevista com Clarice para a revista Crisis, de Buenos aires (1976b), fala da sala “confortável, luminosa e com as paredes repletas de quadros”. se a profusão de pinturas é assinalada, re-feriram-se ainda a este respeito duas recorrências em muitas das reportagens: são mencionadas em especial as obras plásticas que retratam a escritora e ainda as listagens de alguns dos nomes dos artistas da pina-coteca clariciana. no início da década de 1970, sér-gio Fonta assinala a predileção da entrevistada pelas artes plásticas, reportando-se às “inúmeras obras em esculturas e quadros, gravuras bacaníssimas de Maria Bonomi, Fayga Ostrower” (1972) que se encontram em seu apartamento no Leme.

Em algumas fotos dos anos 1960 tornam-se muito presentes os quadros da sala de Clarice, mas isso é

1 a referida entrevista foi encontrada no arquivo de Clarice Lispector, no arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de rui Barbo-sa, num recorte sem demais referências.

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sobretudo visível nos registros fotográficos da dé-cada de 1970, e existem com efeito mais fotografias deste período. Germana de Lamare, em uma entre-vista, anota que a parede da sala está “atapetada de quadros”, apontando “scliars e Bonomis” (1972), e assinala os retratos da autora. a entrevistadora parte de um desenho de Ceschiatti para se centrar no delineamento da figura da entrevistada. Este é um tópico recorrente em muitas entrevistas: os jornalis-tas tomam como ponto de partida uma referência aos quadros onde Clarice aparece retratada para intro-duzir algumas notas sobre o retrato que eles próprios pretendem apresentar. assinale-se aqui uma refe-rência, que não se encontra em outras entrevistas, ao painel de uma fotografia ampliada: trata-se de uma paisagem do açude da solidão, um recanto na Flo-resta da tijuca. no ano anterior, na crônica de 22 de maio, no Jornal do Brasil, posteriormente publicada em A descoberta do mundo, Clarice tinha feito alusão ao painel; talvez por isso a entrevistadora o refira:

uma amiga e eu tínhamos programado uma ida ao açude da solidão, para compará-lo com o meu painel de Franceschi. De repente, acossa-da pelo calor e prevendo que alguma coisa ruim ia acontecer, disse: não quero ir à Floresta da tijuca. (LispECtOr, 1999a, p. 346)

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O ambiente requintado dá conta do interesse de Clarice pelas artes plásticas, que se manifesta de di-versas formas, desde os anos 1940, ainda que o con-tato com os artistas se tenha fortalecido a partir da década de 1960. Os quadros são uma memória que possibilita a reconstituição de certos círculos de ar-tistas amigos da escritora, alguns do período em que era casada, outros já da época do retorno ao Brasil. Leo Gilson ribeiro entrevistou Clarice para o Jornal da Tarde e escreveu:

Em seu apartamento no Leme, no início de Co-pacabana, Clarice tem conforto e recordações do tempo em que era casada com o diplomata Maury Gurgel Valente. Lá passa a maior parte de sua vida, entre livros e quadros, todos pre-sentes de seus amigos. (riBEirO, 1969)

nesta apresentação ainda não aparecem os nomes dos pintores dos quadros de Clarice. É sobretudo nas entrevistas dos anos 1970 que os nomes surgem referidos com frequência.

Os quadros não são decoração parada, uma pare-de. Os quadros acompanham-na e nas salas vivem no cotidiano de filhos e animais. Os quadros não são simples mobília, estão ali naturais, esconderijo de aranhas e esperanças. Em A descoberta do mundo, lido como espécie de diário, vemos a todo o momen-

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to as referências às pinturas naturalmente integra-das no mundo de Lispector, como é o dia a dia com as crianças. por exemplo, na bela crônica intitulada “uma esperança”, publicada inicialmente no Jornal do Brasil, em 10 de maio de 1969:

– preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros – falei sentindo a frase deslo-cada e ouvindo certo cansaço que havia na mi-nha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: faça o favor de facilitar o ca-minho da esperança. (LispECtOr, 1999a, p. 193)

O gosto pelas artes era justamente um dos aspec-tos presentes na educação dos filhos. paulo Gurgel Valente numa entrevista à Manchete, cinco anos após a morte da mãe, foca este ponto (1982): “Ela me criou com muita liberdade. Dava-me muita abertura nas artes plásticas. Conversava também sobre diversos assuntos ligados à cultura dos povos.” Esse cuidado pode ser comprovado numa carta escrita para o filho paulo no período em que este se encontrava estu-dando nos Estados unidos (1969): “sem você, tive muito trabalho para pendurar o iberê Camargo e a Maria Bonomi. tive que botar a Grauben em outro lugar. Mas quando você voltar, veremos.”

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