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Migração e ocupação da Capela de Santana do Piraí: o processo de povoamento e distribuição de terras na formação do Vale do Paraíba fluminense (1781-1812) Vladimir Honorato de Paula 1 Considerações iniciais O português José Luis Urbano é considerado o responsável pela construção de uma ermida erguida à margem direita do rio Piraí em meados da década de 1770 e dedicada a Nossa Senhora de Santana. Natural de uma região do Reino de Portugal sob a jurisdição eclesiástica do Arcebispado de Braga, José Luis Urbano ergue a ermida em honra a Nossa Senhora de Santana em local defronte do rio Piraí e situado num ponto estratégico à época em virtude da proximidade com rotas internas de circulação de pessoas e animais que demandavam o local em busca de diferentes áreas da região. Situada nos limites da Freguesia de São João Marcos, e bem próxima do local em que o rio Piraí desembocava no rio Paraíba do Sul, e onde São João Marcos fazia fronteira com a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Campo Alegre da Paraíba Nova, a ermida se mantinha no centro do local onde a fronteira agrícola iniciava um processo ainda que modesto de expansão ao final do século XVIII. A época de construção da ermida coincide com as primeiras movimentações de aquisição de terras férteis empreendidas por uma geração de desbravadores pioneiros que adentraram os sertões dos rios Piraí e Paraíba do Sul a partir dos núcleos de colonização estabelecidos nas Freguesias de São João Marcos e Nossa Senhora da Conceição do Campo Alegre da Paraíba Nova. Situada sobre o rio Piraí e a meio caminho do rio Paraíba do Sul, e nos limites onde as fronteiras dessas duas Freguesias se encontravam, podemos perceber que a construção da ermida estava diretamente relacionada com os desdobramentos da ação colonizadora derivada da pressão sobre áreas férteis onde a fronteira agrícola apresentava condições de suportar uma expansão. Nossas pesquisas não indicaram nenhum pedido ou confirmação de sesmaria relacionando o fundador da ermida com a obtenção de terras por meio de concessões régias sesmarias. Apesar de prevalecer essa ausência de informações a esse respeito, acreditamos que José Luis Urbano tenha se apossado de áreas férteis em algum _____________________________________

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Migração e ocupação da Capela de Santana do Piraí: o processo de povoamento e

distribuição de terras na formação do Vale do Paraíba fluminense (1781-1812)

Vladimir Honorato de Paula1

Considerações iniciais

O português José Luis Urbano é considerado o responsável pela construção de uma

ermida erguida à margem direita do rio Piraí em meados da década de 1770 e dedicada a

Nossa Senhora de Santana. Natural de uma região do Reino de Portugal sob a jurisdição

eclesiástica do Arcebispado de Braga, José Luis Urbano ergue a ermida em honra a Nossa

Senhora de Santana em local defronte do rio Piraí e situado num ponto estratégico à época em

virtude da proximidade com rotas internas de circulação de pessoas e animais que

demandavam o local em busca de diferentes áreas da região. Situada nos limites da Freguesia

de São João Marcos, e bem próxima do local em que o rio Piraí desembocava no rio Paraíba

do Sul, e onde São João Marcos fazia fronteira com a Freguesia de Nossa Senhora da

Conceição de Campo Alegre da Paraíba Nova, a ermida se mantinha no centro do local onde a

fronteira agrícola iniciava um processo ainda que modesto de expansão ao final do século

XVIII.

A época de construção da ermida coincide com as primeiras movimentações de

aquisição de terras férteis empreendidas por uma geração de desbravadores pioneiros que

adentraram os sertões dos rios Piraí e Paraíba do Sul a partir dos núcleos de colonização

estabelecidos nas Freguesias de São João Marcos e Nossa Senhora da Conceição do Campo

Alegre da Paraíba Nova. Situada sobre o rio Piraí e a meio caminho do rio Paraíba do Sul, e

nos limites onde as fronteiras dessas duas Freguesias se encontravam, podemos perceber que

a construção da ermida estava diretamente relacionada com os desdobramentos da ação

colonizadora derivada da pressão sobre áreas férteis onde a fronteira agrícola apresentava

condições de suportar uma expansão. Nossas pesquisas não indicaram nenhum pedido ou

confirmação de sesmaria relacionando o fundador da ermida com a obtenção de terras por

meio de concessões régias sesmarias. Apesar de prevalecer essa ausência de informações a

esse respeito, acreditamos que José Luis Urbano tenha se apossado de áreas férteis em algum

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1Doutorando em História pelo PPGH da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Email

para contato [email protected]

ponto das terras que margeavam o vale do rio Piraí, numa atitude bem próxima ao adotado por

outros indivíduos que buscaram os sertões desse mesmo rio, e do Paraíba do Sul, com o

objetivo de tomar posse das terras disponíveis. Essa suposição deriva das informações que

obtivemos com a leitura do testamento que o mesmo fez redigir pouco antes de sua morte no

ano de 1814, quando assinalava aos herdeiros a divisão dos bens do casal que ficara pelo

falecimento de sua esposa anos antes2. Mesmo não tendo acesso ao inventário aberto pelo

falecimento da esposa de José Luis Urbano, D. Francisca da Silva Miranda, certamente os

bens legados pelo casal deveriam se constituir em grande medida de itens do universo rural e

agrícola do período, como bem podemos observar quando analisamos um conjunto de

inventários e testamentos mandados fazer por pessoas detentoras de posses em condições de

legar estes bens aos herdeiros e residentes no entorno da Capela de Santana do Piraí.

A partir do trabalho de uma geração de desbravadores pioneiros concentrados no

entorno da ermida dedicada a Nossa Senhora de Santana, a prática agrícola se ampliava para

abranger uma série de atividades, com destaque especial para a produção e beneficiamento da

cana de açúcar e o desenvolvimento de culturas de mantimentos para a subsistência e eventual

comercialização dos excedentes no pequeno comércio de abastecimento que se estruturava.

Portanto, a possibilidade de obtenção de terras férteis situadas num local de fronteira agrícola

em processo de abertura e numa região favorecida pela existência de condições ideais no

fomento à prática da agricultura foi o incentivo básico para a migração de indivíduos oriundos

de diferentes partes do Império e da América Portuguesa. Portugueses naturais das mais

distantes e distintas áreas se encontram nas Freguesias de São João Marcos e de Nossa

Senhora da Conceição do Campo Alegre da Paraíba Nova dando início a formação e

organização de uma sociedade colonial de base estamental, escravista e assentada na posse e

uso da terra. Tendo como interesse a formação da Capela de Santana do Piraí, o objetivo

principal do presente trabalho será o desenvolvimento de uma análise sobre essa sociedade

colonial em gestação e de sua relação com processo de povoamento e de ocupação das terras

disponíveis na Capela de Santana do Piraí. Pretendemos analisar esse desenvolvimento a

partir de três objetivos secundários: pensar o deslocamento espacial pelos quadrantes do vasto

Império Português como forma de ascensão social e econômica a partir de novas

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2Arquivo da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro (doravante ACMRJ) Livro de Óbitos e Testamentos

(1811-1828) AP 0930 - Testamento de José Luis Urbano\fl. 24-25 - 1814

possibilidades de investimento, articular a idéia da aquisição de terras e a promoção de

atividades econômicas em áreas de fronteira agrícola em expansão como forma primordial de

acúmulo de riqueza material e o estabelecimento de ligações familiares na sedimentação de

núcleos familiares em zonas de ocupação pioneira com objetivos previamente articulados.

A ermida se torna uma Capela: movimentação e migração no povoamento e ocupação

dos sertões dos rios Piraí e Paraíba do Sul

A ermida que José Luis Urbano mandara erguer nas margens do rio Piraí em data

ainda incerta da década de 1770 fora elevada a condição de Capela Curada no ano de 1776,

concorrendo em muito para a criação dessa nova circunscrição religiosa a provisão do Bispo

da Diocese do Rio de Janeiro, D. Frei Antônio do Desterro, de 26 de fevereiro de 1766, onde

determinava o desmembramento de parte das terras das Freguesias de São João Marcos e de

Nossa Senhora da Conceição do Campo Alegre da Paraíba Nova para o surgimento da nova

capela3. Recolhemos essa informação do livro de visitação pastoral efetuada no ano de 1794

pelo visitador eclesiástico Monsenhor Pizarro nas terras da Freguesia de São João Marcos.

Segundo foi possível recolher das impressões de Monsenhor Pizarro, a elevação da ermida a

condição de Capela Curada se enquadrava no esforço da Igreja Católica em atender a

necessidade de fornecimento de amparo espiritual aos moradores do entorno do singelo

templo. Elevada a condição de Capela Curada, a antiga ermida de Nossa Senhora de Santana

passaria a adotar a condição de oratório em uso, derivando dessa nova situação a assistência

de um sacerdote incumbido de administrar os Santos Sacramentos e assistência espiritual a

população que antes se via obrigada a buscar a administração dos preceitos religiosos no

arraial sede da Freguesia de São João Marcos, o que demandava uma

viagem de cerca de oito léguas por caminhos nem sempre adequados ao transito de

homens e animais, sobretudo nas épocas chuvosas do ano. Nossa opinião é que a elevação da

ermida a condição de Capela Curada se deve principalmente às profundas transformações

econômicas e sociais pelo qual a região do entorno do templo vinha experimentando desde os

primeiros assentamentos de núcleos colonizadores verificado na década de 1760, com as

concessões iniciais de terras na forma de sesmarias e o apossamento de perras pelos

desbravadores pioneiros em áreas das margens dos rios Piraí e Paraíba do Sul. Nesse sentido,

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3Arquivo Municipal de Piraí (doravante AMP) Livro das Visitas Pastorais feitas pelo Monsenhor Pizarro a

Freguesia de São João Marcos no ano de 1794 – folhas 58 a 62, edição fac-similar.Uma vez elevada a Capela

Curada, foi seu primeiro capelão o Padre Agostinho Luis Pacheco de Andrade, coadjutor na Freguesia de São

João Marcos.

temos a Capela Curada de Nossa Senhora de Santana sendo estabelecida num ponto onde as

frentes de colonização e ocupação da terra se encontravam e se misturavam a partir dos

núcleos de colonização mais antigos do entorno das Freguesias de São João Marcos e de

Nossa Senhora da Conceição do Campo Alegre da Paraíba Nova. Tal fato demonstra em parte

a coexistência de frentes de povoamento direcionado a partir de assentamentos populacionais

mais antigos dessas duas Freguesias e orientados no sentido de ocupação de áreas do entorno

dos rios Piraí e Paraíba do Sul ainda não ocupado. Num claro exemplo do apossamento de

terras sobre áreas do entorno desses rios citamos o caso do primeiro capelão da Capela Curada

de Nossa Senhora de Santana, Reverendo Padre Agostinho Luis Pacheco de Andrade, que

pediu e obteve uma sesmaria sobre o rio Paraíba do Sul no ano de 1782. Apesar de exercer

seu ministério espiritual na Freguesia de São João Marcos, a quem a Capela Curada era filial,

suas terras estavam situadas na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Campo Alegre

da Paraíba Nova4. Essa informação foi obtida quando procedemos a um levantamento sobre

as concessões de sesmarias que foram sendo feitas pelas autoridades coloniais em

atendimento aos pedidos de terras cuja localização identificava as áreas requeridas como

pertencentes a locais do entorno dos rios Piraí e Paraíba do Sul, principalmente no ponto em

que estes dois rios se encontravam.

Analisando as pedidos de confirmação, concessão e demarcação de sesmarias feitas

nas áreas de domínio sobre o local onde o rio Piraí encontrava o rio Paraíba do Sul entre as

décadas de 1760 e 1820, e situando esses processos com as áreas próximas da Capela de

Santana do Piraí foi possível perceber que a região do entorno desses dois rios estava sendo

convertida de modo relevante numa importante frente de ocupação em decorrência do elevado

quantitativo de sesmarias pedidas pelos interessados e concedidas pelas autoridades.

Justamente nessa região onde o rio Piraí encontrava o rio Paraíba do Sul será construída a

Capela Curada de Nossa Senhora de Santana, localizada no extremo norte da Freguesia de

São João Marcos e onde esta Freguesia fazia divisa com a Freguesia de Nossa Senhora da

Conceição do Campo Alegre da Paraíba Nova. Em momento oportuno deste artigo, pretendo

trabalhar e discutir a partir dos dados obtidos com o levantamento das sesmarias concedidas

nas áreas de domínio eclesiástico sob jurisdição da Capela de Santana do Piraí o processo de

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4AMP Cópia de uma Relação das Sesmarias doadas na Capitania do Rio de Janeiro até 1824 e feitas a partir dos

originais mantidos no Arquivo Nacional – Requerente Agostinho Pacheco de Andrade (1784) NOTAÇÃO:

BI.15.108, fl. 28.

ocupação da terra, procurando demonstrar a articulação entre a aquisição de terras e a

promoção de atividades econômicas em áreas de fronteira agrícola em expansão como forma

primordial de acúmulo de riqueza material. Por enquanto, nosso objetivo principal se insere

no contexto de relacionar a elevação da ermida de Nossa Senhora de Santana com a condição

de Capela Curada no contexto do aumento populacional do entorno do templo em virtude da

disseminação de assentamentos colonizadores no vale dos rios Piraí e Paraíba do Sul ao final

do século XVIII.

Sob as Benções de Deus: o povoamento nos vales dos rios Piraí e Paraíba do Sul a partir

dos registros de batismo

A necessidade de acompanhar a relação existente entre a constituição da ermida de

Nossa Senhora de Santana à condição de Capela Curada como conseqüência do aumento da

população nas terras que margeavam os rios Piraí e Paraíba do Sul nos obrigou a consulta de

uma documentação de caráter essencialmente eclesiástico. A partir dessa documentação,

nosso objetivo principal era obter na leitura dos registros eclesiásticos um conjunto de

informações sobre a primeira geração de desbravadores que adentraram os sertões incultos

dos rios Piraí e Paraíba do Sul no extremo onde as Freguesias de São João Marcos e de Nossa

Senhora da Conceição do Campo Alegre da Paraíba Nova se encontravam e as frentes de

povoamento se misturavam. Nesse contexto, procuramos identificar quem eram esses

desbravadores e situar, sempre que possível, o local de procedência desses indivíduos,

estabelecendo uma relação quando as fontes consultadas assim permitissem com o processo

da migração de indivíduos oriundos de diferentes partes do Império Português e da América

Portuguesa para as áreas de fronteira agrícola em processo de abertura e expansão. Com estes

objetivos em mente, partimos para a análise de uma documentação eclesiástica pertencente a

antiga Freguesia de São João Marcos, do qual a Capela de Nossa Senhora de Santana era filial

até no ano de 1811 e depositada na atualidade no Arquivo da Catedral Metropolitana do Rio

de Janeiro. Na Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro trabalhamos com dois livros de

batismos de livres da Freguesia de São João Marcos, respectivamente o Primeiro e o Segundo

Livro de Batismos de Livres, que cobrem os anos de 1781 até 1810. A consulta a estes dois

livros nos possibilitou o acesso a informações sobre o Sacramento do batismo dispensado na

Capela de Santana até a elevação desta em Paróquia no ano de 1811.

A análise das páginas do livro Primeiro e Segundo de Batismo de Livres oferecia a

possibilidade de consulta a um conjunto de dados referentes a primeira geração de

desbravadores assentados no entorno da Capela e que levaram seus filhos a pia batismal desse

templo para receberem o batismo. Apesar de reconhecer que o Sacramento do Batismo era

ritual fundamental para o perfeito funcionamento da sociedade colonial em formação na

região em estudo por se constituir num rito de passagem como pretende Arnold Van Gennep,

transportando o neófito ao limiar da Igreja Católica e, portanto, adentrando um mundo

dominado pelo cristianismo e seus significados sociais e religiosos, e isto no sentido de sua

admissibilidade de uma nova comunidade restrita aos cristãos. Portanto, não pretendemos

com este artigo desenvolver um estudo sobre o universo mental, ontológico e mesmo

cosmológico do cristianismo que permeava a imersão da criança nas águas da pia batismal

numa sociedade de Antigo Regime (VAN GENNEP, 1978:115-118). Não será objeto de

estudo deste trabalho uma análise sobre o significado e da prática do batismo, ao menos no

seu sentido teológico e cultural, mesmo que as fontes consultadas assim o permitam. Nosso

objetivo principal será o unicamente o uso dos assentos como base para a identificação do

lugar de origem, nesse caso não no seu sentido social e de hierarquia para o período, mais sim

quanto a procedência espacial dos pais incumbidos de levarem a pia batismal seus filhos que

porventura vieram ao mundo nas imediações da Capela de Santana do Piraí. Assim,

procuramos nos registros informações como a que constam do assento de batismo da inocente

Francisca, batizada aos doze de março de 1792 na Capela de Santana do Piraí.

O capelão responsável por ministrar o Sacramento do batismo anotou que a ingênua

Francisca era filha legítima de Pedro Carreiro e de sua mulher Catarina de Jesus. Além da

legitimidade e da filiação, o capelão, a época o Reverendo Padre Agostinho Luis

Pacheco de Andrade registrou o local de procedência dos pais da inocente, fazendo

notar que Pedro Carreiro era natural de São João Marcos, enquanto Catarina de Jesus havia

nascido na distante Jacareí, da Capitania de São Paulo5. Em treze de outubro de 1795, o casal

Pedro Carreiro e Catarina de Jesus conduziriam à pia batismal a inocente Clara, que havia

nascido poucos dias antes. Como de praxe, o Reverendo Padre Agostinho Luis Pacheco de

Andrade fez registrar o local de procedência dos pais da inocente, bem como a procedência

dos avós de âmbito paterno e materno de Clara. Assim, anotou o Reverendo Padre que o pai

de Pedro Carreiro, de nome Manoel Carreiro, havia nascido nas Ilhas portuguesas do

Atlântico, e sua mãe, Maria da Silva, era natural de um lugar do Bispado de Mariana.

Enquanto os pais de Catarina De Jesus eram procedentes todos da Capitania de São Paulo,

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5ACMRJ Livro Primeiro de Batismos de Livres de São João Marcos (1781-1798) – fl. 22 -12 de março de 1792

não sendo especificado em maiores detalhes as Vilas ou Freguesias de origem6. Os assentos

acima detalhados evidenciam uma característica bem peculiar a essa primeira geração de

desbravadores em obter terras no entorno da Capela de Santana do Piraí: a mobilidade

espacial e a migração dentro dos espaços do Império Português. Com exceção de Pedro

Carreiro, natural de algum ponto da Freguesia de São João Marcos, os demais membros do

grupo parental ao qual as inocentes Francisca e Clara haviam se ligado por nascimento faziam

parte de pelo menos três diferentes áreas do Império Português.

No momento em que consultamos os assentos anotados no Primeiro e no Segundo

Livro de Batismos de Livres da Freguesia de São João Marcos, foi possível observar a

mobilidade espacial e a migração como uma condição para a gestação da sociedade do

entorno da capela aqui em estudo. Determinado a desenvolver a relação existente entre

mobilidade espacial e migração com a formação da Capela de Santana do Piraí, nossa

pesquisa selecionou um conjunto de 230 assentos referentes ao Sacramento do batismo

dispensado na Capela de Santana do Piraí entre 1781 e 1810. O uso desses assentos se deve ao

teor das informações que os registros apresentam de forma quase que invariável, como o

nome dos inocentes levados a pia batismal, o dia do nascimento e do ato do batismo, a

identificação dos pais e dos padrinhos, o local em que foi realizado o ato do batismo e o nome

do pároco responsável pela celebração do ato espiritual. Conforme foi possível observar a

partir da análise dos 230 assentos selecionados, podemos inferir que os mesmos faziam

menção ao batismo de crianças consideradas como legítimas e onde filiação aparece na

relação dos pais então identificados e reconhecidos, de ingênuos descritos como expostos

devido ao fato do abandono destes em casas alheias após o parto e dos assinalados como

naturais, isto quando a filiação do ingênuo levado a pia batismal recaia somente sobre as

mulheres, ocorrendo a ausência da figura do pai, sempre dado na documentação como

incógnito ou desconhecido. Com o objetivo de apresentar uma relação dos ingênuos levados a

pia batismal com o período em análise optei por elaborar uma tabela de forma a quantificar o

número de ingênuos apontados como legítimos, dos ingênuos considerados como expostos e

dos ingênuos relacionados como sendo naturais e identificados no conjunto de 230 assentos

de batismo retirados do Primeiro e Segundo Livro de Batismos de Livres da Freguesia de São

João Marcos batizados na Capela de Santana do Piraí entre 1781 e 1810.

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6ACMRJ Livro Primeiro de Batismos de Livres de São João Marcos (1781-1798) – fl. 22 -13 de outubro de 1795

Tabela 01: Relação dos assentos dos ingênuos legítimos, dos assentos dos ingênuos expostos e dos assentos dos

ingênuos naturais registrados entre os anos de 1781e1810.

Primeiro Livro de Batismos de

Livres (1781-1798)

Segundo Livro de Batismos de

Livres (1798-1810)

Total

Ingênuos

legítimos

68 131 199

Ingênuos

expostos

01 07 08

Ingênuos filhos

de naturais

08 15 23

Total de assentos

registrados

77 153 230

Fonte - Livro Primeiro de Batismos de Livres de São João Marcos (1781-1798) AP0923 e Livro Segundo de

Batismos de Livres de São João Marcos (1798-1810) AP0924.

A tabela 01 demonstra que a ampla maioria das crianças levadas para receberem o

Sacramento do batismo na Capela de Santana do Piraí entre 1781 e 1810 eram reconhecidos

como sendo legítimos, enquanto um muito reduzido conjunto era identificado na condição de

exposto ou natural. O elevado conjunto de filhos legítimos sinaliza para a estruturação de uma

sociedade em formação com forte presença de ingênuos legitimados pelo sacramento do

matrimônio ou simplesmente constituído por uniões consensuais e alicerçadas fora do âmbito

disciplinador da Igreja Católica e de seus representantes. De um modo geral, e comparando os

assentos obtidos para os dois livros aqui em estudo, podemos perceber que havia por parte

dessa sociedade pioneira e desbravadora dos sertões uma demanda expressiva pela busca do

batismo para os ingênuos que então nasciam no entorno da Capela Curada de Santana do

Piraí. A procura pelo batismo indica a existência de relativas taxas de reprodução natural dos

grupos sociais estabelecidos, o que bem poderia demonstrar o assentamento na área de

abrangência da Capela de Santana de uma população estabilizada em áreas de povoamento

concentrada de forma inicial nos vales dos rios Piraí e Paraíba do Sul onde foram sendo

concedidas as primeiras sesmarias.

Como os dois livros aqui em análise tratam de forma única de assentos para a

população livre do período, uma vez que os batismos de ingênuos de condição escrava eram

anotados em livros separados, temos aqui uma dinâmica própria de reprodução desse grupo

social dentro de uma sociedade segmentada com fortes símbolos de distinção social e

fragmentação. A fim de identificar a origem espacial dos pais que levavam seus filhos para o

batismo na Capela de Santana do Piraí, optamos por trabalhar somente com os assentos de

batismo das crianças reconhecidas como legítimas nos livros consultados, excluindo,

portanto, de nosso trabalho os assentos relacionados aos ingênuos considerados como

expostos e dos ingênuos relacionados como sendo naturais e que aparecem na tabela 01.

Nossa opção pela adoção dessa seleção de fontes para os assentos de batismo se

relaciona com a dificuldade que representaria para nossa pesquisa uma análise dos registros

dos ingênuos considerados como expostos e dos ingênuos relacionados como sendo naturais

em virtude da falta de informações completas a respeito dos pais e dos seus avós. Diferente

dos ingênuos considerados como expostos e dos ingênuos relacionados como sendo naturais,

os assentos dos ingênuos apontados como legítimos na documentação representam uma

excelente forma para a identificação acerca da origem espacial da geração pioneira de

desbravadores devido as informações que os assentos trazem a partir do reconhecimento da

filiação. Portanto, excluído de nossa análise os registros dos ingênuos considerados como

expostos e dos ingênuos relacionados como sendo naturais, e mantendo somente os assentos

dos ingênuos apontados como legítimos e relacionados na tabela 01 elaboramos a tabela 02.

Tabela 02: Relação dos assentos dos ingênuos legítimos, dos assentos dos ingênuos filhos de forros e dos

assentos dos ingênuos filhos de naturais da terra e registrados entre os anos de 1781e1810.

Primeiro Livro de Batismos de

Livres (1781-1798)

Segundo Livro de Batismos de

Livres (1798-1810)

Total

Ingênuos legítimos 56 121 177

Ingênuos legítimos

apontados como filhos de

forros

08 10 18

Ingênuos legítimos

identificados como filhos

de naturais da terra

04 - 04

Fonte - Livro Primeiro de Batismo de Livres de São João Marcos (1781-1798) AP0923 e Livro Segundo de

Batismo de Livres de São João Marcos (1798-1810) AP0924.

Conforme podemos observar na tabela 02, o conjunto dos ingênuos apontados como

legítimos na documentação podia comportar inclusive crianças oriundas de casais compostos

por forros e índios, sendo que estes eram identificados na documentação como sendo naturais

da terra. Apesar da presença de ingênuos oriundos de casais compostos por forros e índios,

parte expressiva dos ingênuos levados à pia batismal na Capela de Santana do Piraí eram

oriundos de casais cujos pais não foram reconhecidos na documentação como sendo

integrantes da condição de egressos do cativeiro, caso atribuído aos forros, ou simplesmente

naturais da terra, a respeito dos índios. Portanto, chegamos a um conjunto de 177 assentos

nessa condição, enquanto 18 assentos dizem respeito a filhos nascidos da união de casais

reconhecidos como egressos do cativeiro, mais inscritos na documentação na condição de

forros, enquanto somente 04 registros estão ligados aos ingênuos em que os pais são

identificados como naturais da terra.

Os dezoito casais que foram à pia batismal com seus filhos durante o período e que

foram reconhecidos como egressos do cativeiro representam a presença do elemento africano

nas terras então em processo de povoamento. Desse conjunto chama a atenção o casal

formado por José Pinto e Brígida da Silva, identificados na documentação como sendo pardos

forros mais naturais da Freguesia de São João Marcos e moradores na época na Capela de

Santana do Piraí7. O primeiro assento de batismo relacionando pardos forros com a Capela de

Santana do Piraí data de 03 de julho de 1785, quando o casal Manoel Pinto e Margarida

P(ileg) Nunes batizaram a ingênua Anna. Como padrinhos o casal escolheu o próprio

fundador da capela, José Luiz Urbano e sua mulher Francisca da Silva. O documento de

batismo de Anna não fornece maiores detalhes sobre o casal de pardos forros Manoel Pinto e

Margarida P(ileg) Nunes, mais torna evidente que os mesmos eram moradores da Capela de

Santana as margens do rio Piraí e, portanto, aptos a reconhecerem a importância que o

sacramento do batismo assumia para essa sociedade então em formação, sobretudo quanto às

possibilidades que o ato em si apresentava8. Sobre o conjunto de quatro casais encontrados

nos registros do Livro Primeiro de Batismos de Livres da Freguesia de São João Marcos, os

assentos dão conta que os mesmos eram denominados como sendo araris e habitantes das

margens do rio Paraíba do Sul. Dos índios aqui registrados, as fontes consultadas são pouco

generosas no fornecimento de informações mais abrangentes sobre os naturais da terra,

ficando os dados nos assentos resumidos somente a identificação dos padrinhos, a data de

batismo, o nome do pároco responsável e o nome dos casais. Desses nomes, os quatro casais

se faziam identificar por nomes cristãos, o que pode evidenciar o processo de assimilação

cultural pelo qual haviam sido condicionados a experimentar e incorporar e expressos nos

registros consultados.

Duas questões podem ser consideradas quando avaliamos os dados das tabelas 01 e

02: em primeiro lugar a procura intensa pelo sacramento do batismo por casais que habitavam

a área do entorno da Capela de Santana do Piraí. Os números a esse respeito indicam a

presença de um contingente populacional bastante expressivo para o período e a época em

questão, mostrando o processo de ocupação das terras desde meados da década de 1760

quando ocorrem as primeiras concessões de sesmarias na região. Os números expressos nos

____________________________________

7ACMRJ Livro Primeiro de Batismos de Livres de São João Marcos (1781-1798) – fl. 107 -30 de novembro de

1795

8ACMRJ Livro Primeiro de Batismos de Livres de São João Marcos (1781-1798) – fl. 30 -03 de julho de 1785

livros em consulta demonstram de forma objetiva um aumento na população local, fato este

que vem confirmar que a região em estudo, a Capela Curada de Nossa Senhora de Santana,

localizada no extremo norte de São João Marcos e onde esta Freguesia fazia divisa com a

Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Campo Alegre da Paraíba Nova, no ponto onde

o rio Piraí encontrava o rio Paraíba do Sul, se convertia em ponto de ocupação de terras e de

assentamentos populacionais estáveis; em segundo lugar, a forte predominância de casais não

listados na documentação como forros ou naturais da terra. Os 177 assentos de ingênuos

nascidos de casais não listados na condição de forros ou naturais da terra representariam tanto

um grupo expressivo em decorrência de sua proporção dentro do contingente populacional e

presente na documentação, quanto em relação a sua condição de migrantes oriundos de

diferentes partes do Império e da América Portuguesa. Nesse contexto, migrar representava o

deslocamento espacial, gerando em conseqüência o abandono definitivo do lugar de origem e

o afrouxamento dos laços e da rede de solidariedade familiar e de amizade que alicerçavam

dentro do Brasil Colônia e do Império a vida dos indivíduos. Contudo, e conforme indicou a

historiadora Shelia de Castro Faria, o recurso a migração era em certas situações

indispensável, sobretudo quando se tratava de áreas de colonização antiga e, portanto, com

poucos recursos a serem oferecidos às gerações mais novas diante das possibilidades que as

zonas pioneiras poderiam oferecer (FARIA, 1998: 120-125). Conforme demonstraremos no

próximo tópico desse artigo, a migração e o deslocamento espacial foram condições básicas

para a formação e reprodução da sociedade constituída no entorno da Capela Curada de Nossa

Senhora de Santana, uma vez que parte expressiva dos 177 assentos de batismos dos ingênuos

listados na tabela 02 como não sendo oriundos de pais forros ou naturais da terra tiveram

como origem indivíduos provenientes de distintas áreas do Império e da América Portuguesa.

Migrantes em terras estranhas: deslocamento populacional e espacial na formação da

Capela de Santana do Piraí

Os 177 assentos listados na tabela 02 como não sendo de ingênuos registrados na

condição de filhos de pais forros ou de naturais da terra estão ligados a casais que possuíam

em comum o deslocamento e a migração. Levantamos essa conclusão quando analisamos o

local de origem desses homens e mulheres que levaram seus filhos a pia batismal na Capela

de Santana do Piraí entre os anos de 1781 e 1810. As anotações que acompanham os assentos

de batismo dos ingênuos nessa condição e mandados fazer pelos párocos responsáveis pela

imposição do sacramento revelam a procedência dos pais, facilitando com estas anotações

nosso acesso aos dados sobre suas origens.

Os dados sobre o local de origem dos pais dos ingênuos levados a pia batismal tem

demonstrado a prática da migração como um conceito básico na trajetória de parte expressiva

dos homens e mulheres identificados na documentação. O acesso ao conjunto de informações

tem possibilitado a nossa pesquisa compor um quadro sobre o local de origem de parte da

primeira geração de povoadores pioneiros que desbravaram e ocuparam as terras onde foi

constituída a jurisdição eclesiástica da Capela de Santana do Piraí. A jurisdição eclesiástica

compreenderia a época parte significativa da área do médio e do baixo vale do rio Piraí, bem

como as áreas da margem direita e esquerda do rio Paraíba do Sul, incluindo as terras incultas

situadas entre o Paraíba do Sul e o rio Preto, nos chamados sertões do gentio bravo, no

extremo onde as Freguesias de São João Marcos e de Nossa Senhora da Conceição do Campo

Alegre da Paraíba Nova se encontravam e as frentes de povoamento se misturavam. O ponto

de partida de nossa pesquisa sobre o local de origem da primeira geração de povoadores

pioneiros que desbravaram e ocuparam as terras onde foi constituída a jurisdição eclesiástica

da Capela de Santana do Piraí serão os 177 assentos de ingênuos listados na tabela 02 como

não sendo filhos de pais forros ou naturais da terra e listados no Livro Primeiro e Segundo de

Batismos de Livres da Freguesia de São João Marcos entre os anos de 1781 e 1810. Podemos

afirmar que a análise desse conjunto de assentos revelou a existência de casais formados pela

união de noivos que nasceram na América Portuguesa, enquanto existiam casais cuja origem

era regiões do Reino de Portugal ou ilhas portuguesas do Atlântico. A fim de expor a relação

dos casais cuja origem foi a América Portuguesa e de regiões do Reino de Portugal ou ilhas

do Atlântico montamos a tabela 03, onde separamos em dois grupos os casais de acordo com

o local de nascimento dos noivos. Assim, a tabela 03 apresenta os pais dos ingênuos com

alguma região da América Portuguesa pelo nascimento, ao mesmo tempo em que destacamos

o total de registros onde o casal comportou pelo menos um indivíduo que nasceu fora da

grande colônia portuguesa da América, quando não ambos nasceram no território

metropolitano ou nas ilhas.

Tabela 03: Relação dos casais registrados no Livro Primeiro e Segundo de Batismo de Livres da Freguesia de

São João Marcos entre os anos de 1781e1810.

Casais onde os noivos

nasceram na América

Portuguesa

Casais onde um dos noivos nasceu fora da

América Portuguesa

Primeiro Livro de Batismos

de Livres (1781-1798)

44 12

Segundo Livro de Batismos

de Livres (1798-1810)

103 18

Total de assentos registrados 147 30

Fonte - Livro Primeiro de Batismo de Livres de São João Marcos (1781-1798) AP0923 e Livro Segundo de

Batismo de Livres de São João Marcos (1798-1810) AP0924.

Duas questões podem ser levantadas quando analisamos os dados presentes na tabela

03 e relacionamos essas informações com os 177 assentos de ingênuos legítimos listados na

documentação e até aqui em uso: em primeiro lugar, o elevado quantitativo de casais que

procuraram a Capela de Nossa Senhora de Santana entre os anos de 1798 e 1810. Para o

período de 1781 a 1798, existem somente 56 assentos que revelam a procura de casais pela

Capela de Santana em busca de batismo para seus filhos. Por esses números, podemos

perceber que quase duas vezes mais assentos de batismo são produzidos pelo pároco da

Capela de Santana entre o final do século XVIII e a elevação dessa capela a Paróquia em

1811; em segundo lugar, observamos uma elevada predominância de homens e mulheres

oriundos da América Portuguesa e que levaram seus filhos à pia batismal entre 1781 e 1810.

Os 147 assentos que fazem alguma relação com casais originários da América Portuguesa e

presentes na tabela 03 indicam uma forte propensão para a migração interna no povoamento

da região aqui em análise quando em comparação com os indivíduos que mantinham como

origem algum local situado fora da colônia portuguesa no continente americano. Assim, e

para o período de 1781 a 1798, somente 30 casais foram constituídos pela união de ao menos

um dos noivos ligado por nascimento a terras distantes da América, quando não ambos

nasceram fora do território colonial.

Acerca do conjunto de 30 casais, verificamos de modo geral uma forte tendência para

a migração de caráter masculino, com os homens se deslocando de partes do Império

Português e contraindo matrimônio em diferentes locais da América Portuguesa com as

moças solteiras. No tocante a esse grupo, prevalecia como origem desses homens algum lugar

referente às ilhas portuguesas do Atlântico, vindo em segundo lugar o território metropolitano

conforme podemos verificar a partir da montagem da tabela 04. Essa tabela foi elaborada

tendo em vista a origem desses casais a partir da localização de um dos seus membros com

relação ao Império Português.

Tabela 04: Relação de origem dos casais onde um dos noivos nasceu fora da América Portuguesa registrados no

Livro Primeiro e Segundo de Batismo de Livres da Freguesia de São João Marcos entre os anos de 1781e1810.

Portugal Ilhas do Atlântico América Portuguesa

Primeiro Livro de Batismos de

Livres (1781-1798)

5 5 2

Segundo Livro de Batismos de

Livres (1798-1810)

5 10 3

Total 10 15 5

Fonte - Livro Primeiro de Batismo de Livres de São João Marcos (1781-1798) AP0923 e Livro Segundo de

Batismo de Livres de São João Marcos (1798-1810) AP0924.

Os cinco casais que aparecem na tabela 04 e relacionados com a América Portuguesa

foram formados pela união de homens que nasceram dentro da Colônia com mulheres que

nasceram fora do território colonial. Desse conjunto, 02 homens nasceram em Guaratinguetá,

enquanto os outros 03 nasceram na então Freguesia de São João Marcos. Ao contrário dos

homens que imigraram para a Capela de Nossa Senhora de Santana e ai batizaram seus filhos

entre os anos de 1798 e 1810, as mulheres relacionadas com a migração e que aparecem no

Livro Primeiro e Segundo de Batismos de Livres da Freguesia de São João Marcos são todas

provenientes das ilhas portuguesas do Atlântico. No total são sete mulheres, sendo uma

registrada no Livro Primeiro de Batismos de Livres, enquanto seis são relacionadas no Livro

Segundo de Batismos de Livres. Com relação às mulheres aqui apresentadas, acredito que seu

deslocamento esteja relacionado com a migração de âmbito familiar, uma vez que para todas

aqui analisadas existe em comum o nascimento dos pais em território das ilhas, e a relação

destes com os batizados. Para os sete casos encontrados, ao menos em seis batizados os avós

maternos surgem na documentação como padrinhos, e tais atos não se davam meramente por

procuração apresentada, e sim da presença física de ambos no ato da celebração do

Sacramento do batismo. Estas observações podem ser feitas quando levamos em consideração

as informações presentes nos assentos de batismo dando conta da relação dos avós e do local

de origem de ambos, bem como dos padrinhos presentes ao ato. A relação dessas informações

com o cruzamento dos dados obtidos com a origem espacial demonstra a presença dos avós

em território colonial, o que em nossa opinião se dava a partir da ocupação permanente dos

espaços agrícolas disponíveis. Estas observações serão importantes quando analisarmos a

origem dos 147 assentos de filhos de naturais da América Portuguesa e assim estabelecer a

ligação destes com a migração e a posterior fixação em pontos da Freguesia de São João

Marcos em primeiro lugar, e de modo posterior no entorno da Capela Curada de Nossa

Senhora de Santana do Piraí.

Feitas essas considerações acerca desses trinta casais onde ao menos um dos noivos ou

ambos nasceram fora da América Portuguesa, nosso objetivo a partir desse momento será

tratar de forma específica do local de origem dos homens e mulheres que levaram seus filhos

ao batismo na análise dos 147 assentos de ingênuos em que os casais foram formados por

noivos que tiveram como local de nascimento a grande colônia portuguesa em solo

americano. A primeira conclusão a que chegamos ao analisar os dados coletados em nossa

pesquisa sobre a origem espacial desses casais seria sua relação com as Capitanias do Rio de

Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais. Para os 147 assentos de casais que levaram seus

filhos à pia batismal na Capela de Santana do Piraí entre 1781 e 1810, prevaleceu a ligação de

ao menos um dos cônjuges pelo nascimento com alguma dessas três Capitanias, com especial

destaque para o Rio de Janeiro e São Paulo em decorrência do elevado número de homens e

mulheres que aparecem nos registros como sendo originários de um desses locais. A fim de

indicar a participação de cada uma dessas Capitanias aqui apresentadas com relação a origem

dos casais aqui apresentados elaboramos a tabela 05 com o objetivo de indicar a origem dos

responsáveis pelos ingênuos batizados na Capela de Santana do Piraí. Contudo, e conforme

podemos perceber a partir da análise da própria tabela 05, nossa opção foi por apresentar a

origem desses casais a partir da distribuição espacial qualificando e quantificando os homens

e mulheres dentro de nossa proposta de estudo. Assim, a tabela abaixo foi produzida da forma

como se segue e tendo por objetivo apresentar ao leitor a origem espacial dos homens e

mulheres que levaram seus filhos a pia batismal entre 1781 e 1810:

Tabela 05: Relação dos homens e mulheres que nasceram na América Portuguesa de acordo com sua origem e

sua distribuição entre as Capitanias.

Capitania do Rio

de Janeiro

Capitania de São Paulo Capitania de Minas Gerais

H – M H – M H – M

Primeiro Livro de Batismos

de Livres (1781-1798)

19 - 31 16 – 9 9 – 4

Segundo Livro de Batismos de

Livres (1798-1810)

52 - 69 42 – 28 9 – 6

Total 71 – 100 58 – 37 18 – 10

OBS: H – representa o conjunto dos homens; M – representa o conjunto das mulheres. Fonte - Livro Primeiro de

Batismo de Livres de São João Marcos (1781-1798) AP0923 e Livro Segundo de Batismo de Livres de São João

Marcos (1798-1810) AP0924.

Os números apresentados na tabela 05 indicam uma questão que temos verificado ao

longo de nossos estudos de forma a compreender a participação da primeira geração de

desbravadores pioneiros que ocuparam as terras do entorno da Capela de Santana do Piraí:

sobre essa sociedade em processo de estruturação, prevalecia de certa forma o recurso a

migração a e ao deslocamento como base de formação territorial e social. Quanto ao elemento

masculino, podemos indicar que prevalecia de modo amplo o recurso ao deslocamento

espacial tanto fora quanto dentro da Capitania do Rio de Janeiro. Um total de 76 homens que

levaram seus filhos a pia batismal entre 1781 e 1810 revelaram ter como origem as Capitanias

de São Paulo e Minas Gerais, enquanto 71 homens assumiram a Capitania do Rio de Janeiro

como origem, sendo que parte expressiva desse conjunto são oriundos da Freguesia de São

João Marcos, e o restante, de locais próximos, como a Freguesia de Nossa Senhora do Campo

Alegre da Paraíba Nova. Aos homens que assumiram sua origem com as Capitanias de São

Paulo e de Minas Gerais, sobressaía o contingente que expressava sua ligação com o território

paulista, particularmente com a área do nordeste da Capitania de São Paulo, especialmente as

regiões do entorno de Guaratinguetá, Taubaté e Jacareí. Para a Capitania de Minas Gerais, os

registros indicam que prevaleciam as regiões de Baependi, Pouso Alto e especialmente

Yuruoca. Diferente dos homens, onde o deslocamento era uma condição essencial na

trajetória de suas vidas, e isto levando em consideração uma provável migração interna para

os que nasceram dentro da Freguesia de São João Marcos, para as mulheres prevalecia de

certa forma uma origem com a Freguesia de São João Marcos. Se levarmos em consideração

o número de mulheres que migraram para São João Marcos a partir da tabela 05, num total de

47, o contingente apresentado não chega a metade daquelas que assumiram essa Freguesia

como local de origem. Apesar de também consideramos a hipótese dessa primeira geração de

mulheres que nasceram em São João Marcos terem experimentado em algum momento de

suas vidas o processo de migração interna a esta Freguesia, continuava prevalecendo ainda

assim sua ligação com esta região pelo nascimento. Feitas considerações, observamos que

entre os homens e mulheres que relacionaram São João Marcos como local de nascimento,

acreditamos na hipótese de uma possível transferência de mulheres, e mesmo de homens, de

áreas antigas de colonização dessa Freguesia, como os locais do entorno do Caminho Novo de

São Paulo e do ribeirão das Lages, para pontos próximos da Capela de Santana do Piraí.

Sobre essa transferência acerca de uma área antiga de colonização em direção a Capela

de Santana do Piraí, acredito que o deslocamento ocorria dentro de uma proposta de

colonização que incluía o abandono das áreas próximas da faixa litorânea de São João Marcos

por uma proposta de interiorização da ocupação colonial em busca dos espaços ainda livres de

posses e sesmarias. Assim, essa proposta de interiorização da ação colonizadora permitiria o

avanço sobre regiões da bacia do rio Paraíba do Sul a partir de um movimento pioneiro de

ocupação em dois sentidos: o primeiro da faixa litorânea da Capitania do Rio de Janeiro, nas

proximidades dos antigos núcleos de São João Marcos e do vale do ribeirão das Lages, no

sentido de subida rumo às terras do médio e baixo vale do rio Piraí, abandonando os

tradicionais centros populacionais dessa Freguesia, enquanto o segundo provinha de forma

progressiva da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Campo Alegre da Paraíba Nova,

ocupando os espaços entre o rio Paraíba do Sul e o rio Preto.

Nessa marcha colonizadora prevalecia a ocupação de modo especial de terras nas

margens do vale do rio Paraíba do Sul, em áreas que na documentação consultada são

referendadas como pertencentes ao sertão do gentio bravo, conforme podemos encontrar em

pedidos de sesmaria ou de confirmação de posses, como fez o Vigário da Vara Joaquim José

Gonçalves de Moraes, que pede na década de 1810 a confirmação de quatro de suas

sesmarias, sendo que uma delas constava como localizada no Sertão do Gentio Bravo, além

do Rio Paraíba do Sul, em terras da Freguesia de Nossa Senhora do Campo Alegre da Paraíba

Nova, mais em área de jurisdição eclesiástica da Capela de Santana do Piraí9. Outra de suas

sesmarias estava localizada no ribeirão do Bororó, também no Sertão do Gentio Bravo, além

do Rio Paraíba do Sul10. As expressões como ribeirão do Bororó ou Sertão do Gentio Bravo

servem para induzir nossa percepção sobre áreas desprovidas de ocupação colonizadora,

portanto, capaz de suportar uma expansão pela simples ausência da propriedade fundiária ai

estabelecida, o que proporcionava a obtenção de posses simples ou das sesmarias dadas e

confirmadas pelas autoridades coloniais então constituídas. A disponibilidade de terras na

região aqui em análise entre o final do século XVIII e princípios do século XIX foi um dos

fatores que possibilitou a transferência dos homens e mulheres cuja trajetória de vida aparece

nos registros de batismos para a Capela de Santana do Piraí. Conforme temos observado, a

relação da migração e do deslocamento espacial se relacionava de forma direta com a

possibilidade de obtenção de terras férteis e livres da posse consolidada de modo legal e

reconhecida e sua conversão em áreas de cultivo e pastoreio. As terras aqui assinaladas

possuíam grande importância na medida em que permitiam a exploração dos recursos naturais

então disponíveis, entre os recursos naturais cobiçados estariam a fertilidade natural do solo

representado pela mata virgem e a disponibilidade da água, necessário para o funcionamento

dos engenhos e demais benfeitorias, como o ribeirão do Bororó, do Vigário da Vara Joaquim

José Gonçalves de Moraes, irmão do Barão do Piraí, e membro da importante família

Gonçalves de Moraes. Assim estabelecido algumas considerações sobre o povoamento, no

próximo tópico nossa intenção será o de discutir o processo de apossamento de terras por

meio da concessão de sesmarias para o entorno da Capela de Santana, tentando demonstrar

por meio do uso das fontes de pesquisa a relação existente entre a migração e o deslocamento

espacial com o apossamento de terras e o posterior cultivo dessas áreas por meio da trajetória

de vida de alguns indivíduos identificados nos registros de batismo aqui consultados.

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9AMP Cópia de uma Relação das Sesmarias doadas na Capitania do Rio de Janeiro até 1824 e feitas a partir dos

originais mantidos no Arquivo Nacional – Requerente Joaquim José Gonçalves de Moraes (1810-1814)

NOTAÇÃO: BI.15.166

10AMP Cópia de uma Relação das Sesmarias doadas na Capitania do Rio de Janeiro até 1824 e feitas a partir dos

originais mantidos no Arquivo Nacional – Requerente Joaquim José Gonçalves de Moraes (1810-1812)

NOTAÇÃO: BI.15.170

Homens e terras nos vales dos rios Piraí e Paraíba do Sul: um estudo inicial sobre a

ocupação territorial da Capela de Santana do Piraí

Conforme temos discutido ao longo desse artigo, o entorno da Capela Curada de

Santana do Piraí se converteu numa importante área de ocupação colonizadora desde pelo

menos a década de 1760 quando se verificam as primeiras concessões sobre pedidos e

confirmações de sesmarias. Um dos mais antigos sesmeiros foi Francisco Pernes Lisboa,

agraciado com uma concessão na barra do rio Piraí, nas proximidades do local onde esse rio

desembocava no rio Paraíba do Sul. Temos essa informação uma vez que tivemos acesso ao

pedido de confirmação de sesmaria que o mesmo fez no ano de 1772, o que evidencia que a

posse de suas terras na barra do rio Piraí se fez muito antes da década de 177011. Infelizmente,

não foi possível localizar nos assentos de batismos registrados no Livro Primeiro de Batismos

de Livres de São João Marcos qualquer informação sobre a origem desse sesmeiro ou de suas

relações familiares mais alargadas. As únicas informações a que tivemos acesso fazem

menção unicamente à sua participação no apadrinhamento de ingênuos. Sendo que o fundador

da Capela Curada de Nossa Senhora de Santana, José Luis Urbano recorreu a Francisco

Pernes Lisboa, na ocasião já ostentando a patente de Capitão, e sua esposa, D. Thereza

Francisca, para apadrinhamento de sua filha, a ingênua Joaquina, em dezembro de 178112. Do

pai da ingênua Joaquina, José Luis Urbano, localizamos o assento de batismo de quatro dos

onze filhos que teve na relação com sua esposa, D. Francisca da Silva, e levados à pia

batismal na Capela Curada de Nossa Senhora de Santana. Analisando esses assentos, foi

possível identificar o estreitamento de laços com importantes membros da sociedade em

formação, uma vez que figuram entre os padrinhos e madrinhas homens e mulheres indicados

pela condição de donas ou qualificados na ostentação de patentes das milícias coloniais.

Nesses quatro assentos, três filhas foram apadrinhadas por membros da elite agrária em

formação na área de abrangência da Capela. O próprio Capitão Francisco Pernes Lisboa e sua

esposa, D. Thereza Francisca, seu irmão, João Pernes Lisboa com sua esposa D. Anna

Evangelista de Miranda, e Antonio Gonçalves de Moraes, com sua esposa D. Rita Clara de

Souza. Como indica Paulo Eduardo Teixeira, os termos dona e a qualificação por meio de

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11AMP Cópia de uma Relação das Sesmarias doadas na Capitania do Rio de Janeiro até 1824 e feitas a partir dos

originais mantidos no Arquivo Nacional – Requerente Francisco Pernes Lisboa (1772) NOTAÇÃO: BI.15.1658

12ACMRJ Livro Primeiro de Batismos de Livres de São João Marcos (1781-1810) – fl. 05 -28 de dezembro de

1781

patentes militares são atribuições que representam aqueles com possibilidade do exercício de

mando e de condição superior dentro da sociedade (TEIXEIRA, 2008: 02-04).

Somando a concessão feita a Francisco Pernes Lisboa na barra do rio Piraí, e tendo

como referencia temporal as décadas de 1760 e 1810, localizamos outras concessões de

sesmarias que foram sendo feitos sobre áreas de terras no vale do rio Piraí. Observando o

espaço temporal em destaque, localizamos na documentação um total de quatorze concessões,

como por exemplo, a que foi feita a João José, em 1797. Pelo pedido de sesmaria feito, suas

terras ficariam localizadas em algum ponto do rio Piraí, tendo os barrancos desse rio e seu

espelho d`água como um ponto de referencia13. Nesse ponto, informo que o rio Piraí serviu

nesta pesquisa como uma referencia geográfica segura na localização das concessões de

sesmarias que foram sendo feitas, pois que adotando esse rio como referencia geográfica foi

possível delimitar as concessões feitas na área onde foi erguida a Capela de Santana. Apesar

de adotar esse recorte de pesquisa, delimitando uma área especifica de observação, não

descartamos que outras concessões tenham sido efetuadas. Somente não dispomos de

condições de relacionar de modo seguro estas doações com as que foram efetuadas na Capela

Curada de Nossa Senhora de Santana, no rio Piraí. Explico que nossa intenção com esse

levantamento preliminar foi unicamente de demonstrar a apropriação de terras no vale do

Piraí, uma vez que não cabe nesse artigo uma quantificação sobre as concessões de sesmarias

feitas de modo abrangente na antiga Freguesia de São João Marcos devido a insuficiência de

informações mais precisas ligando estas doações com as localidades. Caso fosse possível,

poderíamos identificar os pedidos e as confirmações com relação aos centros de colonização

então existentes, como as áreas do entorno do Caminho Novo para São Paulo, o vale do

ribeirão das Lages, a paragem do rio Claro e do Capivary, bem como a Capela de Santana do

Piraí e as terras situadas nos sertões do gentio bravo, além do rio Paraíba do Sul. Por

enquanto, e conforme temos tratado nesse trabalho, nosso interesse apenas nos leva as

doações feitas no vale do rio Piraí, como a concedida a Tomás Rodrigues Monteiro, no ano de

1771, no rio Piraí e no ponto onde o Caminho Novo cruzava esse rio no caminho para

Guaratinguetá14.

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13AMP Cópia de uma Relação das Sesmarias doadas na Capitania do Rio de Janeiro até 1824 e feitas a partir dos

originais mantidos no Arquivo Nacional – Requerente João José (1797) NOTAÇÃO: BI.15.1666

14AMP Cópia de uma Relação das Sesmarias doadas na Capitania do Rio de Janeiro até 1824 e feitas a partir dos

originais mantidos no Arquivo Nacional – Requerente Tomas Rodrigues Monteiro (1771) NOTAÇÃO: BI. 15.47

Situar as sesmarias pedidas e obtidas por meio de indicações precisas era antes de mais

nada um expediente ao qual o sesmeiro recorria a fim de garantir a aceitação de suas

pretensões territoriais ao menos num período em que a região das margens

dos rios Piraí e Paraíba do Sul se convertia dentro de um movimento inicial em área de

fronteira agrícola em expansão. João Fernandes Lancha, requerendo sesmaria na Freguesia de

Nossa Senhora da Conceição do Campo Alegre da Paraíba Nova, obteve terras na região norte

dessa Freguesia. Tomando o cuidado de bem assinalar suas pretensões territoriais com relação

ao espaço em processo inicial de ocupação na década de 1790, tomou o cuidado de situar suas

terras como citas no caminho da Aldeia de São Luis Beltrão. Assim, suas terras estavam

assinaladas estando a meio caminho entre o arraial da Freguesia e o aldeamento dos índios15.

As terras pedidas em sesmarias pelos sesmeiros até aqui identificados eram concedidas

mediante a aprovação das autoridades constituídas e faziam parte do amplo processo de

povoamento dos espaços incultos da Capitania do Rio de Janeiro ao final do setecentos e

inicio do oitocentos. Conforme temos observado, a ocupação nestas áreas ocorriam dentro dos

limites da Real Fazenda de Santa Cruz, anteriormente pertencente aos padres da Companhia

de Jesus, como bem indicam os historiadores Ricardo Salles e Rafael Marquese (SALLES &

MARQUESE, 2015: 100-110). O movimento de ocupação aqui em análise se enquadra no

contexto de apropriação de áreas de mata virgem com imenso potencial de cultivo feito a

partir da migração interna e pelo desenvolvimento de uma economia agrícola assentada no

cultivo de roças de subsistência e de excedentes comerciais, do beneficiamento da cana de

açúcar nos poucos engenhos e engenhocas e na criação de pequenos rebanhos. Para Eduardo

Schnoor, prevalecia uma economia baseada principalmente numa produção rural atrelado ao

comércio regional de excedentes agrícolas com determinadas áreas litorâneas (SCHNOOR,

2005: 24-36). Como pretende o historiador, essa ocupação em nada mantém relação com o

boom cafeeiro que afeta a região aqui estudada depois da década de 1820, quando a produção

de um artigo de exportação de alto valor no mercado internacional promove uma verdadeira

revolução na sociedade estabelecida diante da alta concentração de riqueza. A concentração

de uma apreciável riqueza com a economia cafeeira se faria em mãos de um grupo social

incumbido de dirigir a produção do café e do controle sobre ampla escravaria necessária para

o trabalho da lavoura, que como pretende Ricardo Sales, seria a classe senhorial em formação

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15AMP Cópia de uma Relação das Sesmarias doadas na Capitania do Rio de Janeiro até 1824 e feitas a partir dos

originais mantidos no Arquivo Nacional – Requerente João José (1797) NOTAÇÃO: BI.15.1666

em expansão dentro de sua proposta de atrelamento de seus interesses aos destinos do Estado

Imperial (SALLES, 2008: 150-180).

O movimento de ocupação dos vales dos rios Piraí e Paraíba do Sul durante a

formação espacial e econômica da Capela de Santana do Piraí ocorre em virtude da atuação de

indivíduos que mantinham em comum uma ligação com a migração e a busca por terras em

áreas de fronteira agrícola em expansão. Bem antes do advento da economia cafeeira no Vale

do Paraíba Fluminense na Província do Rio de Janeiro após a década de 1820 (SANTOS,

1999: 30-80), a partir do qual se estruturava a classe senhorial identificada por Ricardo Salles,

a geração pioneira de desbravadores estudados para a Capela de Santana do Piraí se dedicava

a atividades bem mais modestas, quase sempre visando sua participação nos circuitos

mercantis locais e regionais de abastecimento e de diversificação produtiva. Como atestam os

poucos documentos a que tivemos acesso e que revelam parte da riqueza material mantida em

poder dos homens e mulheres alvo de nossa pesquisa. Assim, e interessados em dimensionar a

riqueza material dessa sociedade em formação, recorremos a um pequeno conjunto de

testamentos mandados elaborar por aqueles em condições de legar algum bem material e

imaterial aos herdeiros, como fez o imigrante português Custódio Barbosa, natural do Bispado

do Porto, e casado com Anna Maria Nogueira. Apesar de residente na Freguesia de São João

Marcos, Custódio Barbosa era senhor e possuidor de meia légua de terras citas no vale do rio

Piraí. O testamento redigido em abril de 1803 revela parte dessa economia diversificada então

praticada no vale do rio Piraí a partir da descrição dos bens mais importantes. Da leitura do

documento compreende que o testador era um lavrador no Piraí com terras onde predominava

o plantio da cana de açúcar, uma vez que possuía uma engenhoca, criação de gado e cavalos e

outros animais de menor importância e não descritos16. Desse testamento não encontramos

qualquer referencia quanto a presença de escravos, o que nos leva a deduzir sua ausência

dentro dessa propriedade. Diferente de Custódio Barbosa, Manoel Alves Ferreira informou

aos herdeiros deter em sua posse um conjunto de escravos e escravas sem maiores detalhes ao

redigir seu testamento em julho de 1798. No testamento de Manoel Alves Ferreira, consta

como referencia a presença de gados, cavalos, um engenho e senzalas a fim de acomodar a

escravaria17. Como se trata de um testamento, os itens do universo material dessa sociedade

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16ACMRJ Livro de Óbitos e Testamentos (1798-1822) AP 0928 - Testamento de Custódio Barbosa\fl.19 -1803

17ACMRJ Livro de Óbitos e Testamentos (1798-1822) AP 0928 - Testamento de Manoel Alves Ferreira\fl.06 -

1798

não foram descritos determinando sua quantidade ou fazendo qualquer menção que faça uma

referencia ao valor individual de cada item. As referencias aos bens mantidos nos inventários

se destinavam somente a informação sobre a sua existência para conhecimento dos herdeiros.

Levando em consideração o modesto conjunto de testamentos utilizados em nossa

pesquisa, não pretendemos desenvolver uma análise de modo mais amplo acerca da riqueza

material e imaterial dessa geração pioneira. Neste artigo pretendemos somente apresentar

alguns dados acerca desse panorama social e econômico revelado por meio das fontes

consultadas. Nesse contexto, podemos perceber que somente as terras e as moradas de casa

eram motivo por parte dos testadores de alguma observação mais detalhada. Manoel Alves

Ferreira ditou possuir um quarto de légua de terras de testada com uma légua de fundos, mais

uma casa de morada de madeira coberta de telhas no arraial da Freguesia de São João Marcos,

além de outra morada de três lanços de boa madeira coberta de telhas em local não

especificado18. João Pereira Cabral declarou em testamento não possuir terras, mais

simplesmente que era morador nas terras de seu pai, o sesmeiro Apolinário Pereira Cabral, na

paragem do morro das Colheres, onde mantinha suas benfeitorias e demais posses. De acordo

com seu testamento, nas terras de seu pai suas posses se resumiam as casas de morada e de

trabalho, roças e demais benfeitorias não especificadas. Interessante nesse testamento é a

indicação precisa da quantidade de escravos, bem diferente dos demais documentos até aqui

analisados e onde faltam maiores detalhes sobre a mão de obra cativa de origem africana

presente na região. João Pereira Cabral revelou ser senhor de 17 escravos, sem mencionar,

contudo, maiores detalhes sobre a idade, sexo, procedência e funções exercidas dentro da

propriedade18. De fato, um dos mais importantes testamentos para esse estudo acerca da

riqueza material da geração pioneira de desbravadores da Capela de Santana do Piraí foi a

leitura do testamento de José Luis Urbano, de 1814, e redigido em 14 de dezembro desse ano,

na Cidade do Rio de Janeiro. Mesmo levando em consideração a ausência de uma descrição

dos bens que porventura seriam legados aos herdeiros, uma vez que os bens disponíveis já

haviam sido partilhados anteriormente, as informações com relação aos legados em esmolas e

os dotes dados aos herdeiros não deixam dúvida sobre o de se tratar de uma pessoa de posses

materiais apreciáveis. Com o objetivo de apresentar em detalhes os legados em esmolas e os

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18ACMRJ Livro de Óbitos e Testamentos (1798-1822) AP 0928 - Testamento de João Pereira Cabral \fl.57-58 -

1808

dotes, bem como os beneficiários das doações, elaboramos a tabela 06, conforme abaixo

segue:

Tabela 06 – Relação dos legados testamentários deixados por José Luis Urbano

BENEFICIÁRIO BENS LEGADOS BENEFICIÁRIO BENS LEGADOS

A filha D. Joanna

Rosa de Miranda

1:200$000 em dinheiro A filha D. Maria dos

Santos Reis

200$000 em dinheiro

Ao neto José, filho

do Capitão João

Pernes Lisboa

100$000 em dinheiro

para adquirir um

escravo

Esmolas para as obras da

Senhora Santana da

minha Freguesia de Piraí

50$000 em dinheiro

A José e Manoel,

filhos do Capitão

Custódio Gonçalves

Maia

12$800 a cada um em

dinheiro

A mesma Senhora de

Santana do Piraí

Uma missa cantada com Sermão

na sua Igreja de Piraí

Fonte: ACMRJ Livro de Óbitos e Testamentos (1811-1828) AP 0930 - Testamento de José Luis Urbano\fl.24-

25-1814

Além dos bens deixados em legados testamentários a alguns herdeiros, entre netos,

filhos e a Senhora Santana do Piraí, José Luis Urbano relatou ainda os dotes que foram dados

as filhas quando contraíram matrimônios. Assim, informou ter doado a filha D. Anna

Joaquina de Miranda um dote quando se casou em primeiras núpcias com Manoel Coelho

Sobreiro, que foi uma escrava crioula de nome Ignácia no valor de sete doblas, uma saia de

seda e um capote druguete de castor no valor de 40$00019. Sobre a dotação feita por José Luis

Urbano, concluímos que sua atuação esta de acordo com os pressupostos levantados para o

dote feito por Elizabeth Souza Abrantes, para quem dotar bem os filhos era uma obrigação

social e essencial das famílias, especialmente daquelas consideradas ricas, ou em condições

de dispor de recursos econômicos e materiais em favor destes (ABRANTES, 2010:35-40).

Por se tratar de um homem em condição de realizar os atos de doação de dotes e legados

testamentários, estamos diante de um homem com apreciável riqueza material constituída

dentro da Capela de Santana do Piraí.

Considerações finais

O trabalho aqui apresentado teve por objetivo apresentar algumas noções preliminares

sobre a pesquisa que conduzo na atualidade no PPGH da UNIRIO visando à elaboração da

Tese de doutoramento onde analiso a família Gonçalves de Moraes dentro de sua formação

familiar ampliada na antiga Vila de Piraí entre o século XVIII e XIX. Com esse objetivo, foi

necessário reconstituir a formação histórica da região de atuação dessa família desde sua

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19ACMRJ Livro de Óbitos e Testamentos (1811-1828) AP 0930 - Testamento de José Luis Urbano\fl. 24-25 -

1814

a década de 1760 com o estabelecimento do português Antônio Gonçalves de Moraes e de sua

esposa a paulista D. Rita Clara de Souza: a Capela Curada de Nossa Senhora de Santana, no

rio Piraí, no ponto onde os limites entre as Freguesias de São João Marcos e de Nossa

Senhora da Conceição do Campo Alegre da Paraíba Nova se encontravam e as frentes de

povoamento estavam misturadas. A reconstituição da ocupação da Capela de Santana do Piraí

revelou um processo histórico de formação atrelado ao fenômeno da migração e a

transferência de homens e mulheres de diferentes partes da América Portuguesa e do Império

Português em busca de terras com a abertura e expansão da fronteira agrícola. Os livros de

batismos de livres revelaram o deslocamento espacial de uma geração pioneira e desbravadora

dos vales dos rios Piraí e Paraíba do Sul, com a estruturação de uma sociedade de base

estamental, escravista e assentada na posse e uso da terra. Uma das beneficiarias desse

movimento pioneiro será a família oriunda do matrimônio do português Antônio Gonçalves

de Moraes com a paulista D. Rita Clara de Souza em virtude do exponencial patrimônio

fundiário que sua descendência vai controlar no oitocentos nas terras onde foi criada em 1776

a Capela Curada de Nossa Senhora de Santana.

Fontes e bibliografias citadas

Fontes Impressas e Cópias pertencentes ao Arquivo Municipal de Piraí - AMP

Livro das Visitas Pastorais feitas pelo Monsenhor Pizarro a Freguesia de São João Marcos no ano de

1794 – folhas 58 a 62, edição fac-similar

Visita Pastoral de D. José Caetano da Silva Coutinho a Piraí em 1811e a criação da Paróquia a Santana

do Piraí no do processo 005.11.128

Criação da Freguesia de Santana do Piraí por sua Excelentíssima Reverendíssima D. José Caetano da

Silva Coutinho no do processo 005.11.123

Visita Pastoral a Santana do Piraí 18225-1828 no do processo 005.11.124

Capítulos da Visita Episcopal de 1825 no do processo 005.11.115

Cópia de uma Relação das Sesmarias doadas na Capitania do Rio de Janeiro até 1824 e feitas a partir

dos originais mantidos no Arquivo Nacional

Fontes Primárias pertencentes ao Arquivo da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro –

ACMRJ

Livro Primeiro de Batismo de Livres de São João Marcos (1781-1798) AP0923

Livro Segundo de Batismo de Livres de São João Marcos (1798-1810) AP0924

Livro de Óbitos e Testamentos (1811-1828) AP 0930

Livro de Óbitos e Testamentos (1798-1822) AP 0928

Livros, Artigos, Dissertações e Teses

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