Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

26
8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 1/26 ENSINO DA GRAMÁTICA OPRESSÃO? LIBERDADE? EVANILDO BECHARA SÉRIE PRINCÍPIOS 1 a escola e a chamada crise do idioma  A crise com que a escola se defronta tem raízes mais profundas do que uma simples verificação da escassez de recurso e do desinteresse das autoridades competentes, ou do despreparo do corpo docente e discente. A nosso ver, uma análise mesmo superficial permite apontar três ordens de crises independentes, mas estreitamente relacionadas, que acabam desaguando na ação da escola. Recebendo o aluno já possuidor de um saber lingüístico prévio limitado à oralidade, a escola não o leva a desenvolver esse potencial — enriquecendo a sua expressão oral e permitindo-lhe criar, paralelamente, as condições necessárias para uma tradução cabal, efetiva e eficiente, expressiva e coerente (falando ou escrevendo) de suas idéias, pensamentos e emoções. A primeira crise é na ordem institucional, na própria sociedade, que, de uns tempos para cá, seguindo as pegadas de uma tendência mundial do após-guerra, privilegiou o coloquial, o espontâneo e ‘o expressivo, renovando, consideravelmente, a língua popular e o argot. Este movimento, positivo em sua essência, trouxe, pela incompreensão e modismo de muitos, uma conseqüência nefasta, à medida que o privilegiamento da oralidade estimulou o desprestígio da tradição escrita culta, já que se defendeu — sem ser praticado afetivamente pelos escritores, pois nunca deixaram de contemplar a sua obra como arte — que o verdadeiro bom estilo é aquele que se aproxima da espontaneidade popular, ou, então, aquele que se despe da artificialidade do estilo cultivado. A desinformação das pessoas e a crescente substituição da leitura pelos meios de comunicação de massa não permitiram ver o quanto havia de erro na suposição de que os modernistas, aceitando a decisiva influência popular, admitiram todas as alterações de linguagem, ainda aquelas que destruíam “as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma”, como dizia Machado de Assis. “Tudo é válido na língua, desde que se logre comunicar-se.” A tendência influenciou decisivamente os costumes lingüísticos de tal modo que, no português do Brasil, a distância entre o nível popular e o nível culto ficou tão marcada que, se assim prosseguir, acabará chegando a se parecer com o fenômeno verificado no italiano ou no alemão, por exemplo, - com a distância entre um dialeto e outro. A expansão vitoriosa da crônica, especialmente da crônica do quotidiano vazada em língua também do quotidiano, alargou a influência do coloquial dentro da escola, já que as antologias para fins didáticos são praticamente constituídas de crônicas. O coloquialismo, que no trabalho de muitos cronistas modernos resulta de um elaborado e consciente artesanato expressivo, nem sempre tem sido visto como tal no dia-a-dia de sala de aula. O resultado é que os alunos, não sendo alertados para o propósito estilístico que ins pira a opção lingüística, limitando-se a essa leitura, têm perdido o contacto com os tradicionais textos “clássicos” e, com isto, a oportunidade de extrair deles subsídios para o seu enriquecimento idiomático, especialmente no campo da sintaxe e do léxico. E assim perde a escola o apoio que lhe poderia dar a literatura no aperfeiçoamento da educação lingüística dos alunos. A segunda crise é na universidade, já que a lingüística ainda não conseguiu constituir-se definitivamente, desdobrando-se em diversas lingüísticas que discutem seu objeto, suas tarefas e suas metodologias. Apresentadas ora paralela ora conflitivamente, a verdade é que as teorias lingüísticas ainda não chegaram a consolidar um corpo de doutrina capaz de permitir uma descrição funcional- integral do saber elocucion do saber idiomático e do saber “expressivo”.

Transcript of Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

Page 1: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 1/26

ENSINO DA GRAMÁTICA

OPRESSÃO? LIBERDADE?

EVANILDO BECHARA

SÉRIE PRINCÍPIOS

1a escola e a chamada crise do idioma 

A crise com que a escola se defronta tem raízes mais profundas do que uma simples verificação daescassez de recurso e do desinteresse das autoridades competentes, ou do despreparo do corpo docentee discente.

A nosso ver, uma análise mesmo superficial permite apontar três ordens de crises independentes, masestreitamente relacionadas, que acabam desaguando na ação da escola. Recebendo o aluno já possuidorde um saber lingüístico prévio limitado à oralidade, a escola não o leva a desenvolver esse potencial —enriquecendo a sua expressão oral e permitindo-lhe criar, paralelamente, as condições necessárias parauma tradução cabal, efetiva e eficiente, expressiva e coerente (falando ou escrevendo) de suas idéias,

pensamentos e emoções.A primeira crise é na ordem institucional, na própria sociedade, que, de uns tempos para cá, seguindoas pegadas de uma tendência mundial do após-guerra, privilegiou o coloquial, o espontâneo e ‘oexpressivo, renovando, consideravelmente, a língua popular e o argot.

Este movimento, positivo em sua essência, trouxe, pela incompreensão e modismo de muitos, umaconseqüência nefasta, à medida que o privilegiamento da oralidade estimulou o desprestígio datradição escrita culta, já que se defendeu — sem ser praticado afetivamente pelos escritores, poisnunca deixaram de contemplar a sua obra como arte — que o verdadeiro bom estilo é aquele que seaproxima da espontaneidade popular, ou, então, aquele que se despe da artificialidade do estilocultivado. A desinformação das pessoas e a crescente substituição da leitura pelos meios de

comunicação de massa não permitiram ver o quanto havia de erro na suposição de que os modernistas,aceitando a decisiva influência popular, admitiram todas as alterações de linguagem, ainda aquelas quedestruíam “as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma”, como dizia Machado de Assis. “Tudo éválido na língua, desde que se logre comunicar-se.”

A tendência influenciou decisivamente os costumes lingüísticos de tal modo que, no português doBrasil, a distância entre o nível popular e o nível culto ficou tão marcada que, se assim prosseguir,acabará chegando a se parecer com o fenômeno verificado no italiano ou no alemão, por exemplo, -com a distância entre um dialeto e outro.

A expansão vitoriosa da crônica, especialmente da crônica do quotidiano vazada em língua também doquotidiano, alargou a influência do coloquial dentro da escola, já que as antologias para fins didáticos

são praticamente constituídas de crônicas.O coloquialismo, que no trabalho de muitos cronistas modernos resulta de um elaborado e conscienteartesanato expressivo, nem sempre tem sido visto como tal no dia-a-dia de sala de aula. O resultado éque os alunos, não sendo alertados para o propósito estilístico que ins pira a opção lingüística,limitando-se a essa leitura, têm perdido o contacto com os tradicionais textos “clássicos” e, com isto, aoportunidade de extrair deles subsídios para o seu enriquecimento idiomático, especialmente no campoda sintaxe e do léxico.

E assim perde a escola o apoio que lhe poderia dar a literatura no aperfeiçoamento da educaçãolingüística dos alunos.

A segunda crise é na universidade, já que a lingüística ainda não conseguiu constituir-sedefinitivamente, desdobrando-se em diversas lingüísticas que discutem seu objeto, suas tarefas e suasmetodologias. Apresentadas ora paralela ora conflitivamente, a verdade é que as teorias lingüísticasainda não chegaram a consolidar um corpo de doutrina capaz de permitir uma descrição funcional-integral do saber elocucion do saber idiomático e do saber “expressivo”.

Page 2: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 2/26

A terceira crise é na escola, na medida em que, não se fazendo as distinções necessárias entregramática geral, gramática descritiva e gramática normativa, a atenção do professor se volta para osdois primeiros tipos de gramática, desprezando justamente a gramática normativa que deveria ser oobjeto central de sua preocupação e, em conseqüência, despreza toda uma série de atividades quepermitiriam levar o educando à educação lingüística necessária ao uso efetivo do seu potencialidiomático.

2

Linguagem e educação lingüística

“Tradicionalismo” e mudança

O título educação lingüística não é novo nem cedo conseguiu impor-se tal como hoje se procuraentender. Começou por merecer certa preocupação entre os lingüistas, passando depois a serconsiderado, entre pedagogos e professores, ç um domínio puramente técnico-didático. Hoje seconstitui num promissor campo de pesquisa e de resultados para a lingüística e a educação, pondoclaro, como bem disse o professor italiano Raffaele Simõne’, que a linguagem não é apenas uma“matéria” escolar entre as outras, mas um dos fatores decisivos ao desenvolvi mento integral do

indivíduo e, seguramente, do cidadão.Lá fora, os resultados de estudos empreendidos por conhecidos representantes da pesquisa lingüística eeducacional já repercutiram nos programas e currículos das universidades e das escolas de ensinomédio.

Entre nós, onde tem sido tênue o fluxo de influência científica dessas pesquisas, explodiu uma reaçãoao que se convencionou chamar pejorativamente tradicionalismo e a mudança — que se fazianecessária em vários pontos — acabou por produzir resultados desastrosos.

Ë oportuno lembrar que, de todos os componentes do currículo das escolas de ensino médio, foram ostextos destinados ao ensino de língua portuguesa os que mais sofreram com a onda novidadeira,introduzindo, além da doutrina discutível, figuras e desenhos coloridos tão extemporâneos edesajustados, que aviltaram o tradicionalismo e insultaram a dignidade por que sempre se pautaram ostextos escolares entre nós. A comparação entre um livro para ensino da língua portuguesa e outro parao ensino da matemática, da história ou da geografia, quase nos leva a retirar o primeiro da linha do quese costuma chamar compêndio didático, para incluí-lo no rol dos antigos e coloridos almanaquesdistribuídos ao início de cada ano, como os tornados célebres almanaques do Capivarol, esquecidoproduto farmacêutico. Muito lucrariam os alunos se esses produtos de uma pretendida revoluçãoeducacional guardassem a dignidade e a soma de boas informações que caracterizaram o AlmanaqueGarnier, por exemplo.

Já que estamos fazendo uma crítica a certas inovações perturbadoras e pouco producentes que muitoscompêndios, à luz de uma didática formal ou informal, pretenderam introduzir no ensino da língua

portuguesa, na década de 60, cabe um comentário acerca do privilegiamento da língua oral,espontânea, em relação à língua escrita.

Deveu-se o fenômeno, cremos nós, a duas ordens de fatores: uma de natureza lingüística, outra denatureza política. As ciências da linguagem vieram patentear que as línguas históricas são fenômenoseminentemente orais e que o código escrito outra coisa não é senão um equi valente visível do códigooral, que, de falado e ouvido, passa a ser escrito e lido. Assim sendo, a lingüística norte-americana,especialmente ela, pôde desenvolver rígidos e precisos modelos de descrição de línguas indígenas que

 jamais conheceram, de modo sistemático, a trans posição escrita do discurso falado.

Esta possibilidade de uma metodologia com rigor científico aplicada a línguas ágrafas parece queestimulou em muitos estudiosos bloomfieldianos certa desatenção ao código escrito, considerando-o

até campo que extrapolava a investigação lingüística, Tal atitude chegou a provocar a crítica deGleason, autor de um dos melhores manuais de lingüística descritiva de orientação norte-americana.

Essa visão distorcida da realidade incentivou outro passo adiante dado por alguns lingüistas, tambémem geral norte-americanos; a crítica à natureza normativa da gramática tradicional, com a defesa de

Page 3: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 3/26

que se deve deixar a língua livre de qualquer imposição. Um desses lingüistas, Robert Hall, em 1950,chegou a intitular ou a aceitar esse título pela editora a um livro seu de divulgação lingüística: Leaveyour language alone [ a sua língua em paz], título que, a bem da verdade ou de alguma mudança deorientação, foi alterado na 2. edição.

Portanto, vieram pela porta da própria lingüística e se instalaram nas salas de aula de língua portuguesaesse privilegiamento do código oral eni relação ao escrito e certa desatenção a normas estabelecidaspela tradição e conservadas ou recomendadas no uso do código escrito padrão.

Por isso, assistiu-se entre nós, na década de 60, a um insurgimento contra o ensino da gramática emsala de aula; em vez de dotá-la de recursos e medidas que a tornassem um instrumento operativo e demaior resistência às críticas que justamente lhe eram endereçadas desde há séculos, resolveram muitosprofessores e até sistemas estaduais de ensino aboli-Ia, sem que trouxessem, à sala de aula, nenhumoutro sucedâneo que, apesar das falhas, pudesse sustentar-se pelo espaço curto de uma única geração.

A bem da verdade, cabe-nos dizer que já se assiste, a partir da década de 70, a uma reação a esseestado de coisas, e os livros didáticos mais recentes voltam a insistir no padrão culto da linguagem,quer nas recomendações da gramática normativa, quer através da inclusão e seleção de textos,literários ou não, que refletem esse padrão.

Ainda insistindo nessa ordem de idéias, é interessante lembrar a indulgência e até certo elogio com queFerdinand de Saussure comenta a tarefa da gramática tradicional, de inspiração grega. Logo naintrodução do Cours de linguistique générale, ao referir-se à polissemia do termo gramática, diz queessa gramática tradicional está “fundada na lógica e desprovida de toda a visão científica edesinteressada da própria língua”, porquanto o que se pretende é “unicamente dar regras paradistinguir as formas corretas das incorretas; é uma disciplina normativa, muito distante da observaçãopura, o seu ponto de vista é necessariamente restrito” 2

A outra ordem de fatores procede da política, ou, para não desmerecer uma atividade nobre, de certasteses populistas e demagógicas, especialmente no que concerne à educação lingüística de adultos,segundo as quais de vem os “oprimidos” ficar com sua própria língua e não aceitar a da classedominante.

Ora, a educação lingüística põe em relevo a necessidade de que deve ser respeitado o saber lingüísticoprévio de cada um, garantindo-lhe o curso na intercomunicação social, mas também não lhe furta odireito de ampliar, enriquecer e variar esse patrimônio inicial. As normas da classe dita “opressora” e“dominante” não serão nem melhores nem piores, ou as normas da língua literária não serão nemmelhores nem piores do que as usadas na língua coloquial. Como bem lembrou o professor RaffaeleSimone , “enquanto a posição populista perpetua a segregação lingüística das classes subalternas, a educação lingüística deverá ajudar a sua liberação”.

A tese populista do ponto de vista democrático é tão falha quanto a tese que combate, pois ambasinsistem num velho erro da antiga educação lingüística, já que ambas são de natureza “monolíngüe”,isto é, só privilegiam uma variedade do código verbal, ou a modalidade dita “culta” (da classe dita

“dominante” ou “opressora”), ou a modalidade coloquial (ou da classe dita “oprimida”).Gramática e ensino

Quem lida com o ensino da gramática na escola sabe que uma língua histórica (como a portuguesa, ainglesa, a alemã, a italiana etc.) é um conjunto de sistemas que apresentam entre si coincidências ediferenças, tais como observamos na comparação de outros sistemas lingüísticos. De modo quenenhum falante conhece toda uma língua histórica, mas sim usa uma variedade sintópica (um dialetoregional), sinstrática (um nível social) e sinfásica (um estilo de língua). claro que esse mesmo falanteestá à altura de entender mais de um sistema lingüístico de sua língua histórica, pois que está emcondições de reconhecer que existem outros falantes que utilizam a língua diferentemente dele. Chegaaté t perceber uma diacronia, pois que reconhece em muitos usos o ar da arcaicidade ou de novidade

que assumem certos usos que pratica — para extrair deles recursos estilísticos — ou que ouve ou lê aoutrem.

Assim sendo, a rigor, cada modalidade da língua tomada homogênea e unitariamente, ou, em outros termos, toda língua funcional — como a entende o lingüista Eugenio Coseriu — tem a sua gramática

Page 4: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 4/26

como reflexo de uma técnica lingüística que o falante domina e que lhe serve de intercomunicação nacomunidade a que pertence ou em que se acha inserido.

Como bem lembra esse mestre, “constitui aspecto fundamental da linguagem o manifestar-se elasempre como língua: conquanto ‘criação’, isto é, produção contínua de elementos novos, e, portanto,neste sentido, ‘liberdade’, por outro lado, a linguagem é, ao mesmo tempo, ‘historicidade’, técnicahistórica e tradição, vínculo com outros falantes presentes e passados: em suma, solidariedade com ahistória atual e com a história anterior da comunidade dos falantes (. . .). Não se trata, entretanto, de

uma limitação da liberdade (como vez por outra se pensa), mas da dimensão histórica da linguagem,que coincide com a própria historicidade do homem. Aliás, a liberdade humana não é arbítrioindividual, é liberdade histórica e, como quer que seja, a língua não se ‘impõe’ ao indivíduo (em boraisso freqüentemente se costume dizer): o indivíduo ‘dispõe’ dela para manifestar sua liberdade deexpressão”.

Cada porção de falantes homogênea e unitária não se equivoca lingüisticamente ao usar a técnicahistórica específica para manifestar sua liberdade de expressão. Neste sentido, cada falante é umpoliglota na sua própria língua, à medida que dispõe da sua modalidade lingüística e está à altura dedescodificar mais algumas outras modalidades lingüísticas com as quais entra em contacto, quer aquelautilizada pelas pessoas culturalmente inferiores a ele, como aquelas a serviço das pessoasculturalmente superiores a ele.

Na escola antiga, o professor cometia o erro de entender como a língua aquela modalidade culta —literária ou não — refletida no código escrito ou na prática oral que lhe seguia o modelo, de todorepudiando aquele saber lingüístico aprendido em casa, intuitivamente, transmitido de pais a filhos.

Hoje, por um exagero de interpretação de “liberdade” e por um equívoco em supor que uma língua ouuma modalidade é “imposta” ao homem, chega-se ao abuso inverso de repudiar qualquer outra línguafuncional, que não seja aquela coloquial, de uso espontâneo na comunicação cotidiana.

Em ambas as atitudes há realmente opressão, na medida em que não se dá ao falante a liberdade deescolher, para cada ocasião do intercâmbio social, a modalidade que melhor sirva à—mensagem, aoseu discurso.

No fundo, a grande missão do professor de língua materna — no ensino da língua estrangeira oproblema é outro — é transformar seu aluno num poliglota dentro de sua própria língua,possibilitando-lhe escolher a língua funcional adequada a cada momento de criação e até, no texto emque isso se exigir ou for possível, entremear vá rias línguas funcionais para distinguir, por exemplo, amodalidade lingüística do narrador ou as modalidades praticadas por seus personagens.

Assim sendo, haverá opressão em “impor”, indistintamente, tanto a língua funcional da modalidadeculta a todas as situações de uso da linguagem, como a língua funcional da modalidade familiar oucoloquial, nas mesmas circunstâncias, a todas as situações de uso da linguagem, pois que ambas asatitudes não recobrem a complexa e rica visão da língua como fator de manifestação da liberdade deexpressão do homem.

Por outro lado, haverá “liberdade” quando se entender que uma língua histórica não é um sistemahomogêneo e unitário, mas um diassistema, que abarca diversas realidades diatópicas (isto é, adiversidade de dialetos regionais), diastráticas (isto é, a diversidade de nível social) e &afásicas (isto é,a diversidade de estilos de língua), e que cada porção da comunidade lingüística realmente possui dedireito sua língua funcional, que resulta de uma técnica histórica específica.

Cada valor lingüístico que a descrição científica depreende só se opõe realmente a cada outro valordentro de uma mesma língua funcional.

Comparar, na descrição, um valor lingüístico de determinada língua funcional com outra línguafuncional é cometer, na sincronia, o mesmo erro que antigamente se fazia ao se comparar determinado

fato em dois ou mais estádios históricos da língua.Por exemplo, ao se ensinar o uso tripartido dos demonstrativos este/esse/aquele, não se dirá que esta éa prática da língua portuguesa, mas de certas línguas funcionais do português, como, por exemplo, amodalidade literária culta. Realmente, quem quiser utilizar-se, por algum estímulo cultural ouconveniência estilística — mas sempre dentro de sua “liberdade” de opção na escolha da língua

Page 5: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 5/26

funcional que melhor lhe sirva ao intuito de expressão — da língua funcional culta literária, terá deobservar essa sintaxe dos demonstrativos.

Já, por exemplo, essa norma é distinta da norma da língua familiar ou coloquial (ai. Umgangssprache),em que a divisão se faz apenas entre este uma vez que se muda a óptica da distinção: na modalidadeculta literária a distinção se faz em consonância com as três pessoas do discurso, enquanto namodalidade familiar ou coloquial, a distinção é entre os conceitos “perto”/”longe”. É claro que, dentroda liberdade de criação de que goza cada língua funcional em se servir dos valores lingüísticos do

sistema que se sobrepõe a todas as línguas funcionais concretizadas no discurso, a modalidadecoloquial ou familiar pode retomar a distinção (aqui uma distinção sobre outra distinção, isto e,“longe”/”perto” + “pessoa do discurso”) que leva em conta as pessoas do discurso e fazer uso deexpressões como:

1ª pessoa — perto esse aqui

2ª pessoa — perto esse aí 

3ª pessoa — longe aquele ali, acolá

Em vista disto, não se pode, a rigor, fazer uma descrição lingüística de uma língua histórica em suaplenitude; a descrição só pode abranger um corpus homogêneo e unitário, vale dizer, uma língua

funcional: sintópica, sinstrática e sinfásica.As variedades lingüísticas que não apresentam oposição de valor são apenas fatos de arquitetura dalíngua, ou de estrutura externa, de uma língua funcional.

As variedades que apresentam oposição de valor, constituem fatos de estrutura, ou de estrutura interna,tomando-se aqui os termos arquitetura e estrutura nas acepções propostas por L. Flydal e retomadaspor Eugenio Coseriu.

A não-consideração desses fatos e de outros, que os modernos lingüistas vêm pondo em relevo, tempermitido certa crítica injusta à gramática escolar, que é vista como a descrição da própria língua emsua totalidade histórica, como a descrição do único uso possível da língua. O ensino dessa gramáticaescolar, normativa, é vá lido, como o ensino de uma modalidade “adquirida”, que vem juntar-se (nãocontrapor-se imperativamente!) a outra, “transmitida”, a modalidade coloquial ou familiar.

Como bem lembrou o inesquecível mestre Matoso Câmara, “a gramática normativa É em o seu lugar àparte, imposto por injunções de ordem prática dentro da sociedade. É um erro profundamenteperturbador misturar as duas disciplinas e, pior ainda, fazer lingüística sincrônica com preocupaçõesnormativas”.

Acredito que o ensino da gramática normativa resulta da possibilidade de que dispõe o falante deoptar, no exercício da linguagem, pela língua funcional que mais lhe convém à expressão. Resulta,portanto, da “liberdade” de escolha que oferece uma língua histórica considerada em sua plenitude.

É uma língua “adquirida” cuja técnica histórica lhe cabe ser “ensinada”.

Transformar essa língua funcional no modelo universal para todas as situações de expressão é um atode “opressão” tanto quanto privilegiar a modalidade coloquial e familiar sobre todas as demais línguasfuncionais à disposição dos falantes.

Problema diferente é acompanhar a descrição de cada língua funcional — a que serve de base àgramática escolar normativa e aquela que reflete o conjunto de normas da modalidade familiar oucoloquial — e as alterações por que passa. É claro que há necessidade constante de, em cada umadelas, verificar se as normas depreendidas num determinado momento persistem noutro momento dodevenir histórico da linguagem humana.

Educação lingüística hoje

Trataremos agora de pôr em relevo em que aspectos técnicos e operativos a moderna concepção deeducação lingüística contrasta com a antiga e de que maneira dessas

diferenças resultam novas condições de funcionamento da linguagem, para cuja consecução serãonecessárias mu danças, às vezes profundas, na metodologia do ensino da língua portuguesa e no

Page 6: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 6/26

preparo dos professores que a irão ensinar. Entretanto não se veja a educação lingüística que aqui sepropõe como uma superposição de dados lingüísticos, psicológicos, didáticos e sociolingüísticos,deixando aos que nos acompanham a tarefa ingrata de fazer-lhes a síntese ou, quase sempre, oembaralhamento. Conforme acentua Raffaele Simone, desta educação lingüística pro posta terão desurgir conseqüências muito sérias. Entre es tas, a exigência de que toda a produção de materiaisdidáticos para a escola seja profundamente renovada nas idéias, procedimentos e estratégias, à luz doconfronto entre a ação científica da universidade e a da experiência dos professores a quem estáconfiada a tarefa operativa da educação lingüística.

Como observa ainda Raffaele Simone , o sistema de educação lingüística tradicional, contra o qual nosbatemos, é “a manifestação específica de um programa educacional global, cujo sinal instintivo era e éser discriminatório e seletivo, autoritário e injusto; . é, enfim, o rígido sis tema de processospragmáticos e organizacionais em que este complexo de teoria e ideologia pode transpor-se à atividadeeducativa quotidiana: os currículos (com suas preferências, suas exclusões, suas ênfases), as atividadesdidáticas (com os mecanismos que tendem a valorar a criança ou que, ao contrário, a ignoram), aorganização geral da atividade escolar (com seus horários, com sua seca separação entre as“disciplinas”, com o português reduzido a disciplina entre as outras e como as outras), a formação dosprofessores (com sua total, mas não casual, ignorância das propriedades do potencial lingüístico quetêm de ensinar) “.

O centramento na linguagem

O primeiro grande ponto que distingue a educação lingüística aqui proposta, da tradicional, é que elaagora pretende deixar de ser uma educação centrada na língua para centrar-se na linguagem. Significaisto que a educação lingüística anseia hoje sair do antigo glotocentrismo, para extrair todos os recursosde uma organização pronta para “poder significar”, no dizer do lingüista inglês M. A.

K. Halliday, que amplia a expressão com que Saussure se refere à linguagem como organização pronta“para falar” 6

Como a linguagem é uma pura faculdade, torna-se possível que o homem se expresse através de sinaisfônico

-acústicos (como nas “línguas” entendidas no seu sentido mais geral), ou de sinais pertencentes a“línguas” (aqui entendidas em sentido restrito, como códigos de comunicação) não-verbais.

Centrado como era o aprendizado na língua verbal escrita e nas suas regras de estrutura ecombinações, punha-se de lado o complexo e rico papel da linguagem no ato de comunicação entrepessoas que vivem em sociedade.

Está aqui, cremos, o ponto nevrálgico de uma antiga discussão, que, bem entendido, poderá oferecerorientações mais seguras, mais estimulantes e mais produtivas entre “saber português” e “sabergramática”, duas capacidades diferentes, posto que extremamente conexas.

As funções da linguagem

Outro campo fértil de pesquisa e de âmbito operativo é o que diz respeito às funções da linguagem, ouseja, os diversos fins a que se destinam os enunciados lingüísticos. As funções da linguagem, já postasem evidência por Bühler, mereceram desde cedo a preocupação dos integrantes do Círculo Lingüísticode Praga que sobre elas, especialmente Roman Jakobson, escreveram páginas que se consideraramdefinitivas até o final da década de 60. Como sabemos, levando em conta os cinco elementosnecessários a toda comunicação lingüística — emissor, receptor, contexto, código e contacto —Jakobson distinguiu as seis seguintes funções: referencial (centrada a mensagem no contexto), emotiva(no emissor), conativa (no receptor), fática (no contacto), metalingüística (no código) e poética (namensagem).

No início da década de 70, Halliday, em estreita ligação com o grupo de Basil Bernstein, retomou, em

ter mos radicalmente novos, a problemática das funções da linguagem e elaborou, sem pretenderesgotar, uma pro posta de sete funções: instrumental, reguladora, interativa ou interpessoal, pessoal,heurística, imaginativa e representativa.

Page 7: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 7/26

A primeira--função, a mais ligada aos modelos da linguagem da criança, é a instrumental, através daqual se usa a linguagem para obter que determinadas coisas sejam feitas; é a função do Eu quero. Asegunda função, intimamente relacionada com a instrumental, é a reguladora, quando se usa alinguagem para regular o comportamento de outrem, a ponto de determinar que se faça ou se deixe defazer algo desse modo, e não de outro: Você deixará a mamãe muito triste se não for dormir agora.Muito próxima da função reguladora é a função interpessoal, que consiste no uso da linguagem paraestabelecer uma interação entre a pessoa e os outros, para incluir ou excluir esses outros do grupo aque a pessoa pertence, para impor status ou para contestar um status imposto, enfim, para manifestar ohumor, o ridículo, a decepção e a persuasão.

A quarta função é a pessoal, que, muito próxima da anterior, usa a linguagem para manifestação de suaprópria individualidade. Como bem diz Halliday , não se está aqui falando simplesmente de umalinguagem como expressão de desejos e atitudes, mas sim e também de um elemento pessoal na funçãointerativa da linguagem. A função heurística da linguagem consiste na indagação da realidade, no usoda linguagem para agir como instrumento na solução de problemas, na aprendizagem ou no conhecimento de como a linguagem torna essa pessoa capaz de explorar o ambiente em que se insere ou quetem diante de si. A função imaginativa estabelece uma relação entre a pessoa e o seu ambiente, mas ofaz de modo diferente. Aqui a pessoa se serve da linguagem para criar seu próprio mundo,eventualmente imaginário, mas como é desejado. Finalmente, a função representativa, através da qual

se faz uma comunicação sobre algo, se expressam pensa mentos.Halliday chega a adiantar, com base numa conhecida tese de Bernstein, que, se é fato que o insucessoescolar decorre principalmente de uma insuficiência lingüística, esta insuficiência deve ser entendidacomo ignorância ou controle inadequado das funções da linguagem.

Por outro lado, lembra que há limitações no pro cesso de apresentação e aprendizagem, por parte dacriança, das funções da linguagem, devendo o professor estar atento à evolução psicocronológica doaluno, bem como funções ou formas de funções mais complexas só lhe podem ser levadas medianteprocedimento educ centrado nesse objetivo. Ê dentro dessa prospectiva, segundo Raffaele Simone 8,que é possível reinterpretar em termos mais inteligentes e atuais a conhecida oposição bernsteinianaentre “código restrito” e “código elaborado”, que não se diferenciariam pela amplitude de vocabulário

e de sintaxes que compreendem, mas pelo insuficiente controle das funções ou pelo controle de umalista reduzida de funções.

Para R. Simone , sem entrar em pormenores, a pro posta de Halliday está mais próxima dos objetivosda educação lingüística do que as funções apontadas por Jakobson, e acentua que desenvolver alinguagem, em todas as suas funções, “significa não apenas dotar a criança de um cômodo instrumentopara superar as dificuldades técnicas impostas pela educação, mas, e sobretudo, permitir-lhe o acesso auma variedade de atmosferas que d’outra maneira lhe estariam vedadas ou só lhe seriam parcialmenteacessíveis: o conhecimento (ainda o científico, pelo menos nos níveis iniciais, consoante asimportantes indagações de Vygotskij), a socialização, a percepção de si mesma enquanto organismofuncionante e enquanto membro de uma unidade cultural definida, a estabilização do próprio caráter, e

assim por diante. Por outro lado, desenvolver apenas algumas funções da linguagem é o mesmo quelimitar a formação da criança, reduzindo-a âmbitos a que lhe dá acesso a restrita lista de funções queconheça. Saber fazer com a linguagem tudo o que é permitido fazer não significa tão-somente adquirircapacidades lingüísticas, porém apropriar-se de uma gama de capacidades de outro gênero,estreitamente vinculadas à evolução global da pessoa”.

Educação lingüística e sistema educacional

A educação lingüística orientada por um modelo teórico com base científica e com possibilidades deser operacionalizada a ponto de promover modificações e enriquecimentos na competência lingüística

de provocar, como natural conseqüência, uma reforma de currículo e de atividades didáticas.

O currículo tradicional que se põe em execução com vistas à educação lingüística se mostra, em geral,na prática, antieconômico, banal, inatural e, por isso mesmo, improdutivo. Antieconômico por ensinaraos alunos fatos da língua que eles, ao chegarem à escola, já dominam, graças ao saber lingüísticoprévio (como a função distintiva dos fonemas, a morfologia flexiva e a sintaxe elementar); banal,porque o tipo de informações que são subministradas aos alunos nada ou pouco adiantam à capacidade

Page 8: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 8/26

operativa do falante, limitando-se, quase sempre, a fornecer-lhes capacidade classificatória, e, como alíngua não é um rol de nomenclatura, a banalidade do aprendizado atinge as proporções de um novosuplício de Tântalo; inatural, porque muitas vezes segue o caminho estruturalmente inverso à direçãodo desenvolvimento lingüístico dos alunos, partindo dos componentes lingüísticos não dotados designificação para os dotados dela; por exemplo, da fonética e fonologia para a morfologia e, depois, asintaxe e a semântica.

É nosso dever enfrentar esse problema, concorrendo para sua solução. Mas, para esta luta, não basta a

colaboração dos que militam na escola de todos os níveis; as autoridades federais e estaduais deverãoconcorrer com os recursos, sempre parcos, de que dispuserem, e o grande concurso que não poderáfaltar é o da sociedade brasileira como um todo, pois o destino da educação se confunde com o própriodestino dessa mesma sociedade.

O papel do professor de língua materna

A escola como um todo harmônico e cada matéria como um componente desta orquestra têm comoescopo e fim essencial a cultura integral dos educandos.

A tarefa do professor de língua materna no que tange à execução de uma política de educaçãolingüística deve ampliar-se e enfileirar-se no rol dos componentes curriculares que permitam chegaremos alunos a essa cultura integral de que falam muitos programas de ensino secundário.

Desde logo, convém ressaltar que não é só através da aula de língua portuguesa que o aluno chegará aessa cultura integral; todas as matérias que lhe são ministradas concorrem para esse objetivo maior.Mas acreditamos que é na aula de língua portuguesa que se abre maior espaço para tais oportunidades.Ao entrar no mundo maravilhoso das informações que veiculam os textos literários e não-literários,modernos e antigos, terá o professor de língua materna a ocasião propícia para abrir os limites de umaeducação especificamente lingüística. Compete-lhe primeiro ministrar aos seus alunos conteúdoscapazes de levá-los à compreensão do mundo que os cerca, nos mais variados campos do saber.

Também é certo que não desejamos ampliar a tarefa do professor portuguesa, já de si complexa e difícil, para transformá-lo num professor de cultura geral; mas queremos insistir no fato de que talprofessor, com base nas informações de um material que constante e amplamente utiliza em aula,pode, ao lado da educação lingüística que lhe compete especificamente ministrar, oferecer a seusalunos numerosos subsídios ou para diretamente enriquecer a sua cultura nas áreas do saber, ou osestimulando a ler e consultar uma bibliografia especializada para que atinjam essa cultura integral.

É também evidente que o. primeiro mestre a se beneficiar desse enriquecimento cultural doseducandos é o próprio professor de língua materna, porquanto, ampliando os seus conhecimentosnuma área de maior extensão, os alunos terão primeiro mais assunto para comunicar a seussemelhantes, e depois estarão mais aptos a traduzi-los com maior eficiência e com maior precisãoidiomática.

Também desejamos enfatizar que esta nossa visão não simplesmente repete um conhecidoprocedimento didático de correlação horizontal de matérias constantes dos cursos de 1.0 e 2.0 graus,mas o enriquece com o aproveitamento de outras ciências que podem ser trazidas à sala de aula, sempreocupação de rigorosa sistematização. São informações ministradas ao sabor da oportunidade, masveiculadas com o propósito certo de contribuir para a cultura integral do aluno.

A primeira área do saber a merecer a constante preocupação formativa do professor de língua maternaé a própria linguagem e a sua manifestação concreta através das línguas históricas (portuguesa,inicialmente). Melhor do que nós, di-lo o genial lingüista italiano Antonino Pagliaro:

“Como em todas as ciências, o valor humano da gramática, antes de ser didático e normativo, éformativo. Ele leva a mente a refletir sobre uma das criações mais importantes e humanamente maisvinculativas, de cuja constituição, de outro modo, nos não preocuparíamos mais do que com o

mecanismo da circulação do sangue ou da respiração (pelo menos enquanto funcionam bem!). Comtudo a palavra é uma atividade consciente, e a adesão a um sistema lingüístico diferente daquele a quepode ríamos chamar natural, como a aquisição de uma língua comum, é, em substância, um fato deordem volitiva. A reflexão sobre a constituição e os valores desse sistema desenvolve e aperfeiçoa aconsciência lingüística que é também uma consciência estética; simultaneamente e por meio das

Page 9: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 9/26

análises das correlações e das oposições que constituem o seu caráter funcional, habitua a mente adescobrir no pensamento discursivo as formas que foram

elevadas a uma função cognoscitjva mais alta no pensa mento racional” 10

O contacto com uma língua nos permite observar numerosos fatos de ordem extralingüístjca que atuamnas relações entre palavras e coisas, língua e pensamento, O primeiro deles é, sem dúvida, o que várioslingüistas denominam “afetividade” e que vem a ser uma série de alterações e desvios causados nalíngua pelos estados psíquicos emocionais em que está envolvido o falante. Estas transformações

afetam todo o material lingüístico, dos sons à estrutura das palavras, da seleção vocabular à construçãodas frases. Nesta ordem de fatores, viram também alguns psicanalistas, com Freud à frente — e, àsvezes, com certo exagero —, a origem de muitos erros de fala e de escrita nos chamados pensamentosmarginais, que, existentes com repressão no subconsciente, reaparecem e influem no enunciado defosSos pensamentos, sem que disso, muitas vezes, nos demos conta.

As pesquisas da linguagem

Estes estados afetivos se traduzem por complexos mecanismos lingüísticos e extralingüísticos que osfalantes deflagram no seu potencial lingüístico e que têm merecido análises dos investigadores dalinguagem humana.

Não só a utilização artística dos fonemas, o trânsito do acento intelectual ao acento afetivo, a perda daforça expressiva de certos vocábulos que passam a elementos gramaticais banalizados, a colocação doadjetivo com re percussões no sentido do sintagma, mas também o emprego de determinadoscomponentes lingüísticos servem para sugerir situações psicológicas ou até marcas de traçosemocionais de personagens. Ë interessante, por exemplo, o emprego que da interjeição hein faz JoséLins do Rego para caracterizar exclusivamente os estados de pressão psicológica nas situaçõesanormais que enfrenta o capitão Lula de Holanda no romance Fogo morto, como, por exemplo, nestapassagem, onde o excesso de repetição parece querer pôr pelos olhos do leitor esta particularidade:

— Amizade — gritou Seu Lula — então o senhor me aparece para me ameaçar e ainda me fala emamizade, hein?

— Pois é o que lhe digo, estou na paz.— Não faço acordo nenhum, hein? não faço acordo nenhum, hein? Amélia, vem cá.

E quando Amélia chegou, o homem se levantou com respeito.

— Olha, Amélia, este homem está aí com a história de

(p. 178 da 10..a ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1970.)

O estudo dos elementos vivos da língua, especial mente da língua falada como investigou a disciplinaconhecida pelo nome de geografia lingüística — conforme a praticaram Gilliéron, Jaberg e Jud, entreoutros —, mostrou as conseqüências advindas da necessidade que sente o homem de exprimir-se comclareza, evitando confusões ou ruídos na mensagem, provocados especialmente pela homonímia ou

homofonia. Por outro lado, estas pesquisas mostram a pouca eficácia expressiva dos vocábulos depequeno volume fonético, o que leva, quase sempre, a serem os monossílabos substituídos, no devenirhistórico, por concorrentes de maior extensão. Parece que se repete na vida da linguagem o mesmoprincípio de sobre vivência do mais forte em detrimento do mais fraco, t’aI como ocorre na vida eseleção animal. Dentro deste princípio, ou muitos monossílabos não resistem à ação do desgastefonético através do tempo, ou o vocábulo afetado aumenta, com auxílio de elementos prepositivos oupospositivos, o seu volume fonético e garante a sua sobrevivência na língua, quando não opta porbuscar uma nova palavra, do próprio acervo doméstico ou de em préstimo a Outro idioma.

Outra lição que as pesquisas da vida da linguagem nos revelam é a íntima relação entre língua ecultura, no pressuposto de que a história da língua significa, para os adeptos da chamada escola

idealista — com Vossier à frente —, história artística no sentido mais lato do termo, pois representaum ramo da história da cultura. Mudado o eixo da causalidade lingüística para o campo da históriacultural, tenta-se buscar para as transformações ocorridas no idioma razões •diferentes das quecomumente a escola positivista prescreve. Assim, por exemplo, o incremento do chamado artigopartitivo em francês passou a ser explicado, pelos idealistas, não mais pela criação nova com que

Page 10: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 10/26

contou essa língua suprir o enfraquecimento e posterior ausência da pronúncia do -s final, por volta de1300, p a oposição gramatical singular/ /plural, mas por uma nova atitude espiritual do povo francêsque, nessa época, se acostumou a tratar o todo com visão de comerciante, para quem tudo é objeto demedida e tráfico, contável e divisível.

Ainda sem sair do campo das ciências lingüísticas, pode o professor ampliar o conhecimento reflexivodo idioma nacional e do mundo objetivo que circunda o falante através do estudo e análise metódicado vocabulário, importante e extensa zona da língua que, pelo me nos na concepção tradicional, escapa

à jurisdição da gramática. Estudando atentamente o vocabulário, estabelece o professor, perante seusalunos, a estreita relação que existe entre as palavras e as coisas que, como já preceituava este sempreatual Comênio na sua Didactica magna, em 1627, não devem ser estudadas separadamente, “uma vezque as coisas separadas das palavras nem existem, nem se entendem; mas enquanto estão unidas,existem aqui ou além e desempenham esta ou aquela função”

Infelizmente entre nós não surtiram os efeitos esperados as inteligentes propostas, no âmbito doaprendizado do vocabulário, de Charles Bally, no famoso Traité de stylistique française; nem mesmoos esforços do padre Carlos Spitzer no seu precioso Dicionário analógico da língua portuguesa, nem osdo Prof. Firmino Costa no seu Vocabulário analógico, nem os do Prof. Antenor Nascentes com oprecioso Tesouro da fraseologia brasileira, nem tampouco as pesquisas de João Ribeiro nas Frasesfeitas e nas Curiosidades verbais representaram estímulos suficientemente fortes para que daí sepassasse a um es tudo sistemático do léxico português dentro do âmbito da educação lingüística emnível de 1.0 e 2.° graus. Só modernamente contamos com tímidos ensaios cuja influência benfazejaainda não se fez sentir.

Em livro didático e nas excelentes e sempre atuais Instruções metodológicas para execução doprograma de português que redigiu em 1942 para o Ministério de Edu cação e Cultura, só conhecemosa exceção do mestre Sousa da Silveira que, especialmente nos Trechos seletos, deu várias boasamostras de como se pode interessar inteligentemente o aluno para, através do estudo do vocabulário,alargar os seus horizontes de cultura, relacionar a língua portuguesa com outras áreas do saber humanoe despertar no educando o gosto do termo próprio ou a preocupação da busca da palavra maisexpressiva.

Enveredando pelo estudo do vocabulário colhido em textos literários, encontra o professor ensejosuficiente para alargar os horizontes culturais de seus alunos. Uma passagem como aquela de Machadode Assis, no famoso Apólogo da agulha e do novelo de linha, quando o escritor compara os dedoságeis da costureira, preparando o vestido da baronesa, com

“os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética”

permite ao mestre variadas informações: a primeira, de ordem lingüística, sobre o valor de galgo emcontraposição a cão, cachorro, ressaltando o aspecto literário do termo em relação a seuscorrespondentes ou similares da mesma área semântica, mas nem por isso com eles combináveis nestae noutras situações contextuais; aí repousa o primeiro componente daquilo que Machado chamou, com

propriedade, “a cor poética”. O outro componente é a alusão à fonte, da Mitologia, pois que Diana era,entre os romanos, a deusa da caça. Está aberto o caminho para o professor mostrar o quanto o textoliterário em língua portuguesa deve a esse recurso poético da Mitologia, de modo que o seuconhecimento se torna imprescindível a quem desejar descodificar corretamente as freqüentes alusõesque prosadores e especialmente poetas fazem às divindades mitológicas greco-romanas.

Velhos costumes

As vezes, a língua é repositório de velhos costumes que se apagaram e por isso mesmo, sem ainterveniência da explicação do professor, a palavra ou expressão se mostra ao aluno totalmentedestituída de sua força significativa. Quem não conhece, por exemplo, o modo de dizer:

“Isso não lhe custou nem um copo d’água”?

Pois bem. A expressão é, como lembrou o nosso maior folclorista Luís da Câmara Cascudo, com baseem Alexandre Herculano, uma reminiscência de multas mínimas para o homicídio do magistrado emconseqüência da de negação de justiça 12

Page 11: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 11/26

Outro costume lembrado pelo referido folclorista é o puxão de orelha aos estudantes rebeldes à boadisciplina ou ao bom ritmo de estudos. Para os romanos, as orelhas eram a sede da memória, poisestavam consagradas à deusa Memória, Mnemosine. O puxão de orelha valia por um processomnemônico para que o faltoso não se esquecesse de suas obrigações. Daí o costume de puxar asorelhas a alguém para que se lembre de alguma coisa, usança vigente nos tempos modernos. Por isso éque na sátira Apokolokintosis, Sêneca faz que Hércules puxe a orelha de Diéspiter para lembrar-lheque deveria favorecer a Cláudio na seqüência dos elogios fúnebres dirigidos a esse imperador numesforço a mais para a divinização.

Talvez até, por extensão semântica e valorização expressiva, esteja nessa relação entre orelha ememória, para denotar aquilo que pelas suas qualidades é digno de ser lembrado, o estímulo iniciadordo tão antigo quanto enigmático gesto de pegar no lóbulo da orelha e exclamar complementariamenteÉ da pontinha, é da pontinha da orelha, ou, de maneira sintética, é daqui.

O gesto parece antiqüíssimo, e de Portugal chegou até nós. Os literatos portugueses registraram o gestoe a expressão, e os vemos, por exemplo, em Eça de Queirós, quando, em A ilustre casa de Ramires, D.Antônio Vila- lobos convida Gonçalo Mendes Ramires:

Ouve lá! Tu queres hoje cear no Gago, comigo e com o João Gouveia? Vai também o Videirinha e oviolão. Temos uma tainha assada, uma famosa. E enorme, que comprei esta manhã a uma mulher da

Costa por cinco tostões. Assado peio Gago!... Entendido, hein? O Gago abre pipa nova de vinho, doAbade de Chandin. Conheço o vinho. É daqui, da ponta fina. E Titó, com dois dedos, delicadamente,sacudiu a ponta mole da orelha 13

Na França, vinho de uma orelha é aquele de excelente qualidade e que se opõe ao de duas orei/ias;segundo Câmara Cascudo, os “gestos franceses relativos ao vinho duma orelha e vinho de duas orelhasera inclinar a cabeça para um lado ou movê-la várias vezes, duma para outra orelha,desaprovativamente” (Op. cit., 155).

Um campo interdisciplinar

O trabalho do filólogo na manipulação, editoração e explicação do texto literário o leva a pedirsubsídios a várias disciplinas auxiliares. Entre outras e sem esgotar a lista, além daquelasespecificamente lingüísticas ou com elas muito relacionadas (a lingüística, a teoria da litera tura, ateoria da comunicação, a ecdótica, a paleografia, por exemplo) filólogo haurir conhecimentos na estética, no direito, na história, na geografia, na etnologia, na etnografia, na filosofia, na teologia, nofolclore, na história da cultura.

Trabalhando e explicitando o texto aos seus alunos, a tarefa do professor de língua materna é muitomenos complexa, embora isto não signifique que seja muito me nos ampla e muito mais fácil. Daí anecessidade de ter esse mestre a seu dispor, em casa e no lugar onde exerce a sua atividadeprofissional, uma bibliografia seleta onde seus conhecimentos, de toda sorte, possam ser amplia dos esuas dúvidas possam ser elucidadas. Daí também a necessidade de uma renovação nos livros didáticos,para que contenham, em doses homeopáticas e a nível do desenvolvimento psicológico e cultural dos

seus leitores, esse tipo de informação complementar à sua educação lingüísticaNão menos importante será também o papel do professor universitário, quer o de língua portuguesa oufilologia portuguesa — no Instituto de Letras —, quer o professor de didática de língua ouglotodidática no mesmo institUtO ou na Faculdade de Educação —, no sentido de estimular o futuromestre a nutrir-se dessas informações e a conhecer uma bibliografia básica do que lhe será útil naatividade dentro de sala de aula, incutindo neles que sua tarefa maior não é fazer de seus alunos umfuturo universitário, um futuro gramático, filólogo ou lingüista, um futuro literato, mas um cidadão útile operante na sociedade de que vai tomar parte ativa.

3

O ensino da língua portuguesa

Entre a experiência e as regras

Page 12: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 12/26

Page 13: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 13/26

tipo de atividade escolar, procurou novos caminhos. João Ribeiro, por exemplo, nas célebres Notasfinais à sua Gramática 2, curso superior, assim se manifesta:

“ . .1 sou pessoalmente infenso às doutrinas gerais de análise lógica, não porque sejam errôneas ouinadaptáveis ao ensino, mas porque não ensinam coisa alguma do idioma. As questões de análiselógica são as que mais excitam o interesse dos professores brasileiros. Creio que haverá excesso nestapaixão e que resulta do propósito de explicar analiticamente muitas das palavras, idéias e frases quesão pensadas e só valem como atos sintéticos. Nas minhas lições de português feitas no Pedagogium

do Rio de Janeiro, a análise lógica foi completamente eliminada por inútil e insignificante. Sempre mepareceu que conhecidos os termos essenciais da proposição, todo estudo ulterior e pormenorizado dedivisões, subdivisões e classificações de frase e talhos de frase, nada ou quase nada aproveita a quemquer estudar a língua vernácula, e faz parte do que antigamente se chamava Gramática geral filosóficaou sistema mais ou menos lógico aplicável a todas as línguas. Tenho visto que muitos alunos deportuguês sabem talvez analisar; mas não sabem ler, nem entender o que lêem, e ainda menos escrevercorretamente, sem falar aqui do que ignoram da história da língua. O método que adotei nas minhasaulas foi o da análise dos vocábulos, isto é, a sua formação histórica, a dos elementos morfológicos eprosódicos, a boa pronúncia, a certa significação, o emprego sintático, a sinonímia, a colocação, asflexões e variações, isto é, em uma palavra, o sentido e a forma, que só se compreendem cabalmentena frase ou no discurso” (p. 490).

O método adotado por João Ribeiro nas aulas do Pedagogium já aparece, por exemplo, com pequenasvariações, nas Noções de análise fonética, etimológica e sintáxica de Pacheco da Silva Júnior e JoséVentura Bóscoli, saídas em 1888.

Um dos mestres que mais se bateram contra o excesso da análise lógica entre nós foi o professor SilvaRamos, da excelência de cujas aulas no Colégio Pedro II são unânimes os testemunhos de quantosforam seus alunos e especialmente a atividade magisterial de um Sousa da Silveira. Seus conselhos decomo pode o professor pro ceder em sala de aula merecem ser aqui lembrados. No artigo intitulado“Explicar ou complicar?”, publicado no número inicial da Revista de Filologia Portuguesa, em 1924,comenta:

“Assim se procedia na aula de português: lido o trecho, o estudante, por si, ou com o auxílio do mestre,procurava explicar-lhe o sentido, para o quê punha na ordem direta as inversões, substituindo osvocábulos por sinônimos, apontando a significação de cada palavra e as acepções em que podia sertomada, e, uma vez por outra, convertia o verso em prosa [ . .1 Cumpre-me dizer que, no programa deportuguês do Colégio Pedro II, elaborado pelo alto espírito do Conde de Laet, na qualidade decatedrático do Externato e que tive a honra de subscrever, como catedrático do Internato, o maiorespaço é dado aos exercícios práticos de composição: cartas, descrições, pequenas narrativas; apenasno 2.° ano se alude à análise lógica. É nesses exercícios que o professor corrige aos alunos os vícios deexpressão, em regra, os mesmos que se ouvem cá fora, na boca de muitas pessoas que aprende ram aanalisar. Tinha muita gente no teatro — Assisti o baile — Estive a tua espera e você não apareceu —Não fala que me perturbas — A três anos que moro nesta casa

— Conquanto lhe não conhecesse, já lhe estimava, pelas ausências que me faziam do senhor — Aquinão há esse livro, mas pode-se-o mandar buscar — Não me dou bem nessa terra [ terra onde está].”

Fazendo do estudo da gramática um fim em si mesma, pôde-se facilmente observar que tal atividadenem ministrava aos alunos, através do conhecimento das normas gramaticais, o conhecimento dalíngua, nem tampouco a habilidade expressiva. Num país como o Brasil, onde as variedades diatópicassão menos acentuadas do que em outras nações, em que a língua standard ou nacional tem de concorrercom a forte vitalidade dos dialetos locais, a ação do professor se apresenta, neste particular, mais fácil.Mas mesmo assim, trazem os alunos para a escola variedades lingüísticas diastráticas ou de carátersociocultural que cabe levar em conta. Enquanto a língua de casa traduz cabalmente as noções de ummundo e de uma vivência reduzida, a língua da escola irá prepará-los, acompanhando o seu

desenvolvimento psicológico e cultural, para descobrir no pensamento discursiVo as formas que foramelevadas a uma função cognoscitiva mais alta no pensamento racional.

Formação, aperfeiçoamento e controle das competências lingüísticas

Page 14: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 14/26

Entramos, assim, num dos escopos principais da educação lingüística, que consiste em obviar um doserros graves do ensino tradicional, vale dizer, não cometer o engano de transformar o monolingüismocoloquial do aluno que chega à escola no monolingüismo culto do aluno que dela se despede. Não cabeà instituição de ensino a simples substituição da norma coloquial usada na língua funcional do alunopela norma culta usada na língua funcional da escola. Como já se disse, caberá ao professor e à escolacomo um todo transformar o aluno num poliglota dentro da sua própria língua histórica — aportuguesa, em nosso caso.

Por outro lado, os objetivos da educação lingüística não se esgotam aqui, mas prosseguirão no esforçometódico e sistemático de permitir ao aluno cabal controle das diversas funções da linguagem nautilização dos re cursos expressivos.

Em termos gerais, podemos dizer que o objetivo precípuo da escola consiste na formação,aperfeiçoamento e controle das diversas competências lingüísticas do

aluno.

Em artigo intitulado “Para uma renovação da didática da língua—materna a”, o lingüista italianoVincenzo Lo Cascio explana considerações tão oportunas sobre a matéria, que, na verdade, nos podemservir como pontos de um programa didático que o professor deve desenvolver na escola.

Em primeiro lugar, Lo Cascio distingue dois tipos de competência lingüística:A: competência da descodificação (ou receptiva); B: competência da produção lingüística (ou ativa).Estas duas distinções no domínio da competência lingüística comportam três componentes:

(1) competência gerativa (ou lingüística);

(II) competência comunicativa;

(III) competência dos instrumentos lingüísticos, isto é, competência dos canais lingüísticos esemióticos em geral e da interação desses.

No âmbito desta última competência deverão ser distinguidas mais precisamente

(1) competência auditiva(a) em nível receptivo A<( competência da leitura

(3) competência verbal

(b) em nível produtivo B<( competência da escrita

No que tange, enfim, à educação lingüística será necessário distinguir entre

(1) enumeração das competências e hierarquias, existentes ou possíveis, entre elas, e

(2) processos de aprendizagem e desenvolvimento de tais competências.

A competência da descodificação ou receptiva com porta os seguintes desdobramentos:

(1) Competência gerativa do sistema lingüístico da comunidade (isto é, do núcleo familiar ou social aque pertencemos), e, mais precisamente:

(a) competência categorial: competência gradual das categorias gramaticais da língua (verbos, orações,subordinantes, nomes, traços semânticos e sintáticos etc.)

(b) competência lexical: competência dos elementos lexicais pertencentes ao sistema lingüístico emestudo, suas relações e seus referentes;

(c) competência fonológica: capacidade de distinguir e reconhecer os sons característicos desse sistemalingüístico;

(d) competência derivacional: capacidade de aplicar uma série finita de regras para entender uma

infinidade de combinações lingüísticas (chamadas textos ou ora ções) dos elementos componentesdesse mesmo sistema lingüístico;

(e) competência de gramaticalidade e aceitabilidade:

Page 15: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 15/26

capacidade de distinguir elementos e combinações consideradas próprias do sistema lingüísticos que ofalante aprendeu daqueles outros que não fazem parte dele;

(f) competência lógico-semântico conhecimentos das relações entre estruturas lingüísticas, significadose realidades cognitivas e portanto habilidade no saber identificar as mensagens, transformar os dadoslingüísticos em estruturas lógicas e Conceituais.

A competência comunicativa comporta: -

(a) coltêiiita avaliativa, em fase da descodificação: avaliação dos significados objetivos das mensagenspercebidas e confronto delas com os contextos e as situações específicas em que são empregados;

(b) competência intersemjótjca: capacidade de integrar as informações que sejam consideradas comodadas na situação e no contexto, com as estruturas lingüísticas percebidas, e com as informaçõesprocedentes de outros sistemas semióticos e que acompanham as informações lingtiísticas;

(c) competência, em nível da compreensão do sistema lingüístico nacional: a língua “mãe” ou “oficial”de toda a nação e que pode ser diferente da referida competênçia gerativa;

(d) competência das variedades lingüísticas: registros, diassistema, diglossia.

(III) A competência dos instrumentos lingüísticos, e, mais precisamente:

(a) competência auditiva: capacidade de ouvir com fins de comunicação, técnica da seleção e dacompreensão global ou minuciosa das mensagens percebidas;

(b) competência da versão gráfica da mensagem:

saber ler, não apenas como tradução de signos gráficos em símbolos lingüísticos mas também comodescodificação e avaliação das mensagens transmitidas através da escrita.

Até aqui vimos a competência da descodificação; quanto ao segundo aspecto, a competência daprodução lingüística, Lo Cascio assinala:

(1)

Competência gerativa ou “criativa”, e, mais precisa-

mente:

(a) competência de conversão lógico-semântica: capacidade de traduzir mensagens, conceitos,pensamentos em formas lingüísticas;

(b) competência derivacional: no âmbito do sistema lingüístico eleito, capacidade de gerar, com umconjunto finito de regras de um determinado sistema lingüístico, seqüências lingüísticas, orações,textos (e, portanto, significados) infinitos, pertencentes ao mesmo sistema lingüístico. Para tanto sãonecessárias as seguintes competências:

(1) competência lexical: competência que é mais restrita do que a que pertence ao grupo decompetências de descodificação, já que, lendo ou ouvindo, entendemos muito mais palavras e oraçõesdo que aquelas que efetivamente sabemos produzir por nossa própria conta;

(2) competência categoria!: o conjunto de regras e categorias já mencionadas para o mesmo tipo decompetência quando tratamos da descodificação;

(3) competência transformacional: capacidade de utilizar seqüências lingüísticas e expandi-las comoutras seqüências do mesmo sistema lingüístico.

(II) Competência comunicativa, que comporta as seguintes variedades:

(a) competência seletiva dos informes: seleção dos pontos de vista e portanto dos produtos (output)lingüísticos mais adequados para transmitir determinadas informações numa determinada situação oucontexto, isto é, noção da paráfrase e das relações entre as várias construções da !íngua, habilidadepara relacionar o próprio saber lingüístico com os dados de sua execução;

(b) competência intersemiótica: capacidade de usar e dosar diversos sistemas semióticos conforme ascircunstâncias, bem como capacidade de integrá-los. Consta pelo menos de duas partes:

Page 16: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 16/26

(1) competência avaliativa em fase de descodificação: avaliação das próprias intenções, conhecimentoda mensagem que se deseja transmitir, orientação sobre a situação de comunicação e a manipulaçãodos elementos lingüísticos para a consecução dos es- copos visados. Ordenamento eventual de taispropósitos em estruturas seriadas;

(2) competência de predição: capacidade de análise dos efeitos pretendidos ou que serão pretendi dosno descodificador (feedback);

(c) competência do uso dos códigos restritos, isto é, implícitos;

(d) competência do uso dos códigos elaborados, isto é, explícitos, que se servem menos dos contextosou de informações imaginadas como “dados”;

(e) competência dos outros códigos lingüísticos; em primeiro lugar, competência da língua materna;

(f) competência das variedades lingüísticas (registros, estilos etc.).

(III) Competência dos instrumentos lingüísticos, e, mais precisamente:

(a) competência verbal: saber falar, exprimir-se verbalmente, isto é, não recorrendo constantemente agestos;

(b) competência gráfica: saber escrever, quer dizer, traduzir a signos gráficos as expressões

lingüísticas; (c) competência da expressão escrita: saber comunicar-se através da linguagem escrita,linguagem que requer uma habilidade diferente na avaliação dos contextos e em geral o uso de umcódigo mais elaborado, isto é, explícito e que exige, em qualquer caso, que a mensagem sejaestruturada em séries.

Importância da atividade oral

Depois deste quadro que, apesar de esquemático, se apresenta como de muita utilidade para o trabalhodocente, Lo Cascio enfatiza a prioridade da competência verbal. Quase sempre a escola enfatiza assuas preocupações com o “ensinar a ler e a escrever”, como se se tratasse de ensinar dois códigos queconstituem uma alternativa que substitui a realidade lingüística quotidiana. Seria necessário, acentua olingüista italiano, que se pro Pusesse inicialmente ensinar a “falar”, não só como instrumento de

expressão mas também como instrumento social de comunicação para todas as ocasiões.Neste sentido, o ensino lingüístico na escola deverá partir da atividade oral, pois que constitui a basepara a aquisição ideal de quase todas as competências lingüísticas de que falamos atrás. Mas vale apena lembrarmos, ainda com Lo Cascio, que a função do professor deve ser a de um estimulador, quenão deve também perder de vista a sua missão programaticamente corretiva.

Este exercício não só promoverá um desenvolvimento de uma habilidade e de um hábito de falar, deverbalizar, mas ainda de reflexão, de formulação de idéias, sobre a própria atividade lingüística.

Destaca-se, desta maneira, o papel catalisador do professor de língua, em sala de aula, ponto de partidae de convergência para que o aluno desenvolva hábitos de falar com eficiência, desembaraço, correção

e certa elegância, além da aquisição e assimilação do conhecimento. Com isto, pretendemos pôr nosdevidos termos a tese de que o professor, sob a alegação de falar a língua do seu aluno, maisfacilmente se aproxima dele e do seu mundo. A estratégia vale como movimento inicial, e não comouma atitude permanente para que se instaure em sala de aula aquilo a que podemos bem chamar de“mesmice idiomática”, onde o mestre fala a língua do aluno por lhe faltar competência para utilizaçãode um nível mais adequado com os seus compromissos de educador. Também com isto não desejamosque retorne à sala de aula aquele professor de palavras difíceis e retórica vazia.

A presença do verdadeiro professor ajudará ao aluno na percepção e individualização das mensagensrecebidas, estimulará a formação da competência receptiva dos educandos, permitindo-lhestransformar as informações que a eles chegam em categorias e estruturas do seu mundo capa zes de serexpressas por eles mesmos, através da sua competência produtiva.

Pela eficácia da mensagem

Num ambiente escolar como o nosso, em que a perseguição ao erro de português e a sua correçãopratica mente preenchem todo o espaço da educação lingüística, vale a pena insistir na seguinte lição

Page 17: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 17/26

do mestre italiano que estamos citando: quando se fala de ação corretiva, obvia mente não estamosquerendo entender a procura do erro de gramática e a correção dele, mas sim um exame da eficáciacom que foi estruturada a mensagem. Pouco importa, nessa fase da atividade escolar, se a criançacomete um erro de gramática; é bem mais importante analisar com ela se o que queria dizer ficoucompreensível aos outros. Torna-se necessário ajudá-la a encontrar as palavras que lhe faltavam paraprosseguir na transmissão do que estava comunicando e colocá-la em condições de não se deixarinfluenciar ou perturbar pelos distúrbios que condicionam a sua execução.

Lo Cascio é um mestre do presente, porém nos é muito confortador aproximar essa lição do lingüistaitaliano à de um mestre brasileiro do passado, Manuel Bonfim, que já nas suas excelentes Lições depedagogia, no início do século, também assim relaciona o uso da língua com a estruturação lógica damensagem:

“De modo geral, os defeitos de linguagem só se corrigem na reforma do pensamento. Os próprios errosde sintaxe banal são defeitos de elaboração; têm importância para a elucidação íntima, e nãosimplesmente para a comunicação dos pensamentos. Cada um deles indica, nitidamente, que arepresentação afirmada na consciência não foi a que devera ser” .

A educação lingüística não descurará do importante papel desempenhado pelo processo de audição damensagem, quando a descodificação concentrará sua atenção naquilo que mais importa a quem ouve

uma seqüência lingüística. Como bem, lembra Lo Cascio, uma notícia dada pela rádio italiana sobre oBrasil pode despertar particular e diferente interesse ao apaixonado pela caça, ao biólogo, ao estudiosode etnologia, ao cidadão ou operário que aspira a emigrar para estas plagas. Cada um, diante de umamensagem que capta, a percebe e a filtra consoante o seu interesse permanente ou ocasional. Muitasvezes até o nosso ouvinte privilegia certos aspectos da informação que lhe transmitimos sem que nóstenhamos tido qualquer interesse em dar-lhes o relevo despertado. Por isso, deverá a escola ensinar aosalunos a estratégia do ouvir, permitindo-lhes assumir uma atitude de concentração nos pontos maisimportantes da informação, uma atitude de seleção e hierarquização dos aspectos substantivos eadjetivos da mensagem, bem como saber avaliar os procedimentos de argumentação da pessoa comque falam.

Igual atenção deverá merecer da escola o ensino da leitura, da redação da aula de gramática. Parafinalizar, diremos alguma coisa a respeito desta última atividade, tendo em vista os muitosdesconcertos que sobre a gramática se tem ouvido e praticado em sala de aula.

Segundo Lo Cascio, uma gramática descritiva destina da ao ensino da língua materna deverá ter comoobjetivo explicitar ao aluno o sistema lingüístico que ele já conhece e especialmente fazê-lo entenderque a língua, além de ser um veículo de expressão e criatividade, é também instrumento decomunicação, é instrumento social e que por isso se organiza segundo as funções que deve cobrir. Umagramática pedagógica descritiva deve além disso escla recer quais são os elementos fundamentais dossistemas lingüísticos; só em última análise deverá proceder à adequada denominação e definição dascategorias. Esses nomes técnicos e sua classificação correta são menos importantes do que a propostade exercícios que ministrem ao educando o desenvolvimento do pensamento e o apto desempenho de

suas competências lingüísticas receptivas e produtivas.Como bem esclareceu Antonino Pagliaro, no seu livro já citado, a reflexão sobre a constituição e osvalores desses sistemas desenvolve e aperfeiçoa não só uma cons ciência lingüística, mas ainda umaconsciência estética, ao permitir que saiamos do nosso complexo mundo inte rior para o complexomundo interior do nosso semelhante.

4

A lingilística, a gramática escolar e o ensino da língua portuguesa

A gramática tenta codificar e fixar o chamado uso idiomático. Desta maneira, ela assume um papeloriginariamente didático. Entretanto, como pretende fixar esse mesmo uso, a gramática passa a ser

dogmática, na medida em que se reveste da prerrogativa de ser uma gramática acadêmica ou deautoridades. E aí, ao agasalhar certos usos e ao repudiar outros, ela se vê na contingência de dar osporquês,7i of explicações: assim, aspira a ser científica. E é aí nesse momento que ela assume um

Page 18: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 18/26

terceiro papel, aquele que, pelos interesses teóricos, a faz aproximar-se, às vezes invadir e outras tantasconfundir-se com a lingüística.

Mas é claro que a gramática não se confunde com a lingüística, tendo em vista os próprios objetivos decada uma. Enquanto a primeira, normativa, registra o uso idiomático da modalidade padrão, a segunda,como ciência, estuda a linguagem articulada nos seus polifacetados as pectos e realizações.

Podemos, com Wagner e Pinchon, dizer que o ensino dessa gramática normativa pertence mais àeducação que à instrução: ele pretende mostrar ao falante como dizer isso e repelir aquilo para atender

aos usos e seleções esperados de uma pessoa culta. É uma atitude modelar diante da língua, igual à quedeve assumir ao se dirigir aos mais velhos ou ao sair de um elevador, por exemplo, entre outras "boasmaneiras”.

O ensino da gramática com intuitos eminentemente normativos tem-se aproveitado das teoriaslingüísticas dominantes.

No século passado predominaram na lingüística as teorias histórico-evolutivas que, dentro de sala deaula, repercutiram, entre outros aspectos, na idéia de que o presente da língua se explicava pelopassado e que a fase atual do idioma resultava de uma “corrupção” de fase anterior. Daí nasceu oprestígio dos escritores lusitanos dos séculos XVI e XVII, e, como conseqüência, a ausência deautoridades brasileiras, exceção feita, rarissimamente, àquelas que entre nós refletiam o prestígio dosusos portugueses. A Antologia nacional de Fausto Barreto e Carlos de Laet (e mais ainda na primeiraversão de Fausto Barreto e Vicente de Sousa) é bem um exemplo dessa fase da modalidade cultabaseada em autoridades “clássicas”.

Daí também a preocupação historicista de que se reveste a reforma do ensino de línguas, especialmenteda materna, que norteou o programa elaborado por Fausto Barreto, em 1887, e donde derivaram asgramáticas portuguesas escritas por brasileiros que fizeram época até os primeiros decênios do séc.XX, quer entre nós, quer entre portugueses: João Ribeiro, Pacheco da Silva Júnior e Lameira deAndrade, Maximino Maciel, Alfredo Gomes, Ernesto Carneiro Ribeiro e, anterior, mais independentee defeituosa, Júlio Ribeiro.

O primeiro eco das modernas idéias lingüísticas, ins pirado exatamente em Ferdinand de Saussure,surgiu na década de 20, com as gramáticas redigidas por M. Said Ali: curiosamente um renovador dagramaticografia portuguesa sem ter sido nunca professor da disciplina, pois era catedrático de alemãodo Colégio Militar e Colégio Pedro II, estudioso da geografia e adaptador de excelentes compêndiospara o ensino do francês e do inglês a brasileiros.

O primeiro reflexo do ensinamento saussuriano na obra de Said Ali recaiu sobre a dicotomia sincronia/ diacronia, perfeitamente explicável num momento em que a visão exclusiva historicista dominava adescrição e o ensino das línguas.

O Curso de lingüística geral do mestre genial saíra, póstumo, em 1916, e já em 1919, no prefácio à 2.ed. das Dificuldades da língua portuguesa Said Ali se referia à proveitosa introdução no estudo doportuguês da lição de Saussure.

Partindo do legítimo conceito de diacronia em Saussure, Said Ali ideou uma Gramática do portuguêshistórico (note-se que o mestre brasileiro, ainda tendo presente a lição do lingüista genebrino, não usoua denominação gramática histórica, mesmo escrevendo um livro com intuito ao programa oficialvigente na época, e só por este motivo aceitou a alteração de título proposta pelo editor para Gramáticahistórica, na 2. edição). Em vez de seguir o caminho em geral percorrido pelos manuais do gênero, dolatim ao português, imaginou um estudo diacrônico do português arcaico ao português moderno, duassincronias tão válidas quanto a anterior. A inovação não foi entendida pelos seus contemporâneos que,não só não lhe acolheram o livro (teve apenas duas edições em vida do autor, sendo “redescoberto” sódepois que os estudos lingüísticos da década de 60 vieram validar a iniciativa do mestre brasileiro!),mas ainda lhe condenaram a idéia de escrever uma gramática histórica sem latim, chegando a atribuir a

influências de amizade o 1.0 prêmio Francisco Alves concedido à obra, em 1921.Ainda na Gramática secundária da língua portuguesa procurou expurgar os defeitos de uma descriçãoque confundisse sincronia com diacronia, e sua preocupação foi em geral bem sucedida, a ponto desobre ela dizer Matoso Câmara que se trata de uma “admirável síntese didática”.

Page 19: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 19/26

Mais modernamente os compêndios gramaticais vie ram, em parte, a beneficiar-se de outrosensinamentos presentes no Curso de lingüística geral de Ferdinand de Saussure: caracterização dosvalores opositivos dos fone mas, distinguindo-se, assim, a pertinência dos traços fonéticos comodiferenciadores de vocábulos e as diversas realizações fonéticas geradoras de “variantes”. Grossomodo, estavam os compêndios distinguindo fonemas de sons, fonologia de fonética. Entra aí ainfluência do Círculo Lingüístico de Praga, que, se não estou engana do, aparece pela primeira vezentre nós, em livro didático, na 2 edição da Gramática portuguesa (1945) do eminente mestre paulistaMário Pereira de Sousa Lima.

A dicotomia langue/parole abriu para nós o campo fértil da estilística, e as gramáticas mais recentespuderam distinguir o uso idiomático do recurso estilístico, aquele selecionado pela norma vigente nacomunidade, este inédito, episódico, quase individual, a serviço de um intuito estético. Pôde ogramático compreender que estilística não se confunde com gramática, e se aquela aparece inseridanum compêndio gramatical, é porque este, verdadeira gaveta de sapateiro, por erro de tradição, encerraalgumas disciplinas que não lhe dizem, a rigor, respeito, como, por exemplo, a versificação.

A seguir, o estruturalismo americano nos pôs luz a alguns problemas de análise mórfica, e assimpuderam os compêndios gramaticais de língua portuguesa distinguir derivação de flexão (mormente nadescrição do gênero nos nomes), a conceituação da parassíntese e do hibridismo (este ainda numaflagrante confusão entre sincronia e diacronia), o problema das vogais temáticas e das desinência degênero (livro/aluno em Oposição a zero/ /aluna), a descrição mórfica do verbo (amaria composto dosdois verbos amar + ria ou forma simples Constituída dos morfemas am - a - ria, tomada -ria comodesinência modo-temporal de futuro do pretérito do indicativo) e tantos outros fatos.

Não pautado por simples xenofobia (como, por exemplo, o caso de Macedo Soares), mas compreocupações de alicerçar-se em bases lingüísticas, já alguns autores, como Said Ali, tinham mostradoque a língua portuguesa podia admitir uma norma lusitana e outra brasileira, ambas igualmente válidas.Assim, estudava-se, por exemplo, a colocação dos pronomes pessoais objetivos. Esta linha de açãoensejou a que Sousa da Silveira enfatizasse a exemplificação de suas Lições de português combrasileiros dos dois últimos séculos, abrindo definitiva Possibilidade de análise lingüística em corpusaté então descurado.

Outra renovação que a gramática escolar hauriu na lingüística, mais precisamente na sociolingüística,foi a certeza de que a língua comporta, além dos dialetos regionais (ou Variedades diatópicas), osdialetos sociais (Ou variedades diastráticas), de modo que não se pode pensar que a realizaçãoidiomática só se faça ou só se possa fazer na modalidade culta, postergando de todo a modalidadecoloquial, a língua transmitida de pais a filhos. Fez-se, ainda, a diferença entre língua escrita e línguaoral, e prestou-se atenção a que a língua literária se pauta eminentemente na utilização dos recursosidiomáticos para fins estéticos.

A gramática gerativa e transformacional se preocupou em reformular, entre outras coisas, o estudo dasintaxe, mas até agora foram Poucos ou nenhuns os resultados de sua influência Positiva aproveitadospela gramática escolar.

Ultimamente, alguns teóricos da linguagem, como Eugenio Coseriu, têm desenvolvido algumaspesquisas em questões que se mostram bastante aproveitáveis para unia melhor descrição da língua,refletindo-se, desse modo, na construção da gramática escolar. Desejo citar aqui o conceito de línguafuncional como imperativo da análise lingüística. Uma língua histórica — como a portuguesa,francesa, espanhola etc. — não é bem um sistema lingüístico, mas sim um diassistema, um conjuntomais ou menos complexo de “dialetos” (variedades diatópicas), de “níveis de língua” (variedadesdiastráticas) e de “estilos” (variedades diafásicas). Assim, não basta para uma perfeita descriçãoestrutural da língua encará-la enquanto técnica sincrônica do discurso, mas precisa ainda apresentar-seunitária e homogênea, vale dizer, ser um só dialeto (sintópica), num só nível (sinstrática) e num sóestilo de língua (sinfásica). Esta técnica lingüística unitária e homogênea assim entendida é o que se

pode chamar língua funcional. Como ensina Eugenio Coseriu, o adjetivo funcional encontra aqui sua justificação porque somente esta língua entra efetivamente nos discursos. Só numa língua funcional, enão numa língua histórica em sua plenitude (por ser uma coleção de línguas funcionais), é que têmvalidade as oposições, estruturas e funções que se encontram numa tradição idiomática.

Page 20: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 20/26

Partindo deste conceito de língua funcional, caberá à gramática normativa, levando-se em conta apolítica do idioma a ser adotada na escola, precisar que técnica lingüística unitária e homogênea deverádescrever em especial. Dizemos em especial, porque o que em geral ocorre é que todo falante, dentrode sua língua histórica, é “plurilíngüe” ou “poliglota”, isto é, ao lado de uma técnica que consideranormal como sua, consegue distinguir “desvios” dessa técnica, que pertencem a outras línguasfuncionais existentes na referida língua histórica considerada em sua plenitude.

A língua portuguesa admitirá, por exemplo, construções como há fatos tem fatos / têm fatos / 

houveram fatos, que se distribuem por línguas funcionais diferentes. Talvez na língua funcional queutilize há fatos, também se registre a regência chegar a casa, enquanto chegar em casa só apareçanaquelas outras línguas funcionais onde ocorre tem fatos / têm fatos ou houveram fatos. E assim pordiante.

Desse modo, a glotodidátjc não pode, sem uma análise mais profunda, adotar como normais nagramática escolar “desvios” da chamada língua só pelo peso da sua freqüência na chamada línguacoloquial ou familiar.

A gramática escolar deverá, com o auxílio da lingüística, determinar que língua funcional será objetode sua descrição e que línguas funcionais servirão de confronto nos “desvios” a serem apontados aosseus leitores.

5

O ensino de língua portuguesa nos cursos universitários

Ê justo, apesar de paradoxal, que se pare para pôr em discussão este ponto: por que a língua portuguesaestá cada vez menos conhecida de nossos alunos?

Tentarei ressaltar brevemente alguns pontos que considero nevrálgicos para um melhor desempenhodos professores egressos de nossos cursos superiores de Letras.

A lingüística e disciplinas afins

Em primeiro lugar, a lingüística e disciplinas afins, sem dúvida, carreiam elementos imprescindíveis e

indispensáveis à formação do professor de língua portuguesa, mas não pretendem substituir esseprofessor pelo professor de lingüística, ou de teoria da comunicação, por exemplo.

O que se quer que a lingüística informe ao futuro professor de línguas, entre outros temas, dentro doobjetivo de construir uma teoria da estrutura e das funções da linguagem e das línguas, é o conceito elimites da disciplina; a natureza da linguagem e o concretizar-se através das línguas; o fato lingüísticoe seus aspectos teóricos; as línguas, suas regularida e seu devenir na história; os procedimentos para aanálise lingüística sincrônica e dia- crônica e seus reflexos na teoria da gramática geral e da gramáticaparticular de uma dada língua, para que o professor de português, por exemplo, não se preocupe emdefini, o adjetivo em português, pois que o conceito de adjetivo deve ser o mesmo em todas as línguas;deve sim, em sala de aula, insistir nas características do comporta mento desta classe em português,características que o fazem diferir do adjetivo em francês ou em inglês.

Lingüística e gramática tradicional

O que, de modo algum, compete à lingüística é ser o pelourinho da gramática tradicional, apontando-lhe os erros mas não a enriquecem com sucedâne mais eficazes. Lingüistas do porte de Saussure, desdeos início da lingüística contemporânea, já ressaltaram as qualidades da gramática tradicional, dentrodas limitações da sua proposta pedagógica é Mais recentemente, Lyons (língua e lingüística Zahar,1982) declara que “ultimamente os lingüistas vêm adotando uma perspectiva mais equilibrada quanto àcontribuição que a gramática tradicional [ . .} vem prestando ao desenvolvimento de sua disciplina” (p.47). E importa lembrar que o mesmo lingüista, falando do conceito de flexão, declara, acerca dagramática tradicional: “Se bem explicada e precisamente formulada, a abordagem tradicional é pelomenos tão boa quanto qualquer outra alternativa que tenha sido até agora apresentada” (Id., ibid., p.101).

Infelizmente muita gente não traça com a devida segurança os limites desses campos, e transforma,assim, a aula de língua portuguesa numa aula de lingüística de objetivos bem diferentes.

Page 21: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 21/26

Uma nomenclatura que se aplica ao lingüista pode ter utilização restrita na aula de português; masmuita gente vê, por exemplo, em SINTAGMA a pílula salvadora para combater todos os males de umpéssimo ensino da língua materna.

Língua materna e línguas estrangeiras

Outros — com pior conseqüência — não conseguem fazer a distinção entre o ensino da língua maternae o ensino das segundas línguas ou línguas estrangeiras. Daí advém um grave erro que se estáincutindo na aula de português: tratar a língua materna (e ensiná-la!) como se fosse uma língua

estrangeira.Sabemos todos que a metodologia difere num e noutro ensino, e confundi-los é minimizar apotencialidade dos recursos do aprendizado do vernáculo.

Como conseqüências perigosas, senão danosas, do mau emprego da lingüística na aula de português,pode mos citar:

a) o empobrecimento da língua escrita culta nas atenções do professor;

b) o embaralhamento do conceito de norma lingüística, em especial para a língua escrita.

Que o lingüista enfatize a língua oral, bem conhecemos as razões que o levam a isso, porquanto a

universalidade dos idiomas se patenteia na sua oralidade.Mas o professor de língua portuguesa, sem desprestigiar o valor da língua coloquial — erro, aliás, daantiga geração de mestres —, deve centrar sua atenção no padrão culto, que presidirá à produçãolingüística do educando, falando ou escrevendo.

Vê-se que se confundiram os conceitos e níveis de língua oral e língua escrita, língua coloquial elíngua culta, com graves prejuízos para a orientação do ensino do português.

Que a língua coloquial esteja presente no ensino da língua estrangeira, compreende-se, porque aí oaluno tem de se adequar à realidade única que o professor lhe põe diante dos olhos, pela mesma razãopragmatista que sempre acompanha o aprendizado de uma outra língua. Mas, no tocante à línguamaterna, esse nível de aprendizado já lhe é conhecido pela espontaneidade da língua transmitida no lar

e no convívio da comunidade lingüística em que se desenvolveu o aluno.A esse saber lingüístico prévio a escola acrescenta uma língua adquirida, pautada pelos padrõeslingüísticos que vigem nas pessoas escolarizadas e que se esperam do desempenho de uma pessoaculta ou aspirante a esse nível de cultura.

É claro que, em se tratando da língua materna a serviço da escola, não basta que os professores ealunos se contentem com a simples e balbuciante transmissão de idéias e sentimentos. E à escola,principalmente à escola de l.° e 2.° graus, é que cabe ministrar esse ensino, sob a orientação segura eeficiente do professor de língua portuguesa e de todos os agentes com que conta para tal fim. Tem-sede compreender que o professor de português não é o único agente de que dispõe a escola paradeflagrar o aprendizado da língua vernácula.

O conhecimento da língua portuguesa

Os erros apontados acima extrapolaram os limites dos alunos e chegaram ao próprio professor deportuguês que, ensinando a desacreditar os padrões da língua escrita e culta, acabaram eles mesmospor desconhecer esses padrões.

Não é raro ouvir-se de um mestre entrosado com as idéias de Saussure, HjelmsieV e Jakobson umasérie de 0 em péssimo português, algumas das quais nocivas à própria eficiência da comunicação.

É claro que não falamos aqui do “rancismo” gramatical, mas de pequeflir1as noções de conjugação deverbo (“quando eu ver. . .“), de emprego de pronomes (“para mim fazer. . .“), que tornam perplexoqualquer professor da “velha guarda”.

Quando alguns traduzem, fazem-no para um pidgin de difícil filiação, tornando o novo texto bem maiscom plexo de entendimento do que o original, em língua estrangeira.

Page 22: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 22/26

Esses são os engastados na ciência lingüística, que é, como a entendem, uma pseudociência. Osverdadeiros lingüistas, quando escrevem, primam no vernáculo; veja-se, por exemplo, um Sapir, umBloomfieid, um Fries, um Bolinger, para só falar dos de língua inglesa.

Entre nós, o que acontece? Conviver com os bons autores, antigos e modernos, é tido como sinal de“cafonice”. E, com isto, o padrão da língua culta vai sendo esquecido por aqueles que a deveriam saberpor profissão.

Esse tipo de lingüística, entre nós, fez soçobrar a filologia; ao contrário, aliás, do que acontece nos

países onde a verdadeira lingüística está em pleno apogeu.Com essa ignorância, estamos cedendo a palma aos estrangeiros que vão estudando a línguaportuguesa mais que os nacionais.

Com as sempre raríssimas exceções, quem dentre nós

estuda a tradição dos temas que preocuparam um Said

Ali, um Sousa da Silveira, um Antenor Nascentes, um

José Oiticica, um Serafim da Silva Neto, um Ismael de

Lima Coutinho, senão um Harri Meíer, um Joseph Piei, um

Joan Corominas, um Yakob Maikiel, um Giuseppe Ta vani, todos estrangeiros?

Por tudo isto, deve a Universidade, nas aulas de língua portuguesa, ao lado da descrição científica desua gramática, voltar à tarefa de transmitir os padrões da língua escrita culta, através do aturadoconvívio dos clássicos brasileiros e portugueses de todas as épocas.

Os colégios de aplicação

Outro ponto que há de merecer a acurada atenção dos cursos de formação de professor de línguaportuguesa é o que diz respeito aos procedimentos pedagógicos a serem utilizados em sala de aula.Pouco aproveita o profundo conhecimento teórico que o professor venha a ter de sua disciplina, se lhefaltam as condições mínimas do saber didático-pedagógico que lhe permitam desvendar ao aluno os

segredos de sua ciência.Isto se consegue com o inter-relacionamento dos institutos de com as faculdades de educação e com oscolégios de aplicação.

Vivemos num clima de desconfiança ou de auto-afirmação; essas instituições fazem, com os seusisolamentos, uma grande vítima que é o futuro professor, cuja ação negativa se desdobrará noinsucesso das aulas e na insatisfação de seus alunos.

Falta o suficiente entrosamento dos cursos de Letras e da prática dos colégios de aplicação,entrosamento que será salutar para o bom desempenho do futuro professor. Outras vezes, oentrosamento existe, mas chega ao aluno universitário muito tarde, e é mais cômodo bater a estrada

conhecida do que retroceder e adotar métodos e procedi mentos mais eficazes.O foro de idéias

Acredito que nos está faltando a ATMOSFERA UNIVERS1TA vale dizer, um conjunto de condiçõesfavoráveis que permitem o sucesso no desempenho da ação universitária, no estudo, na pesquisa e nosseus reflexos na pedagogia do ensino de línguas, isto é, na gloto didática.

Torna-se importante que as autoridades federais, estaduais e municipais de ensino concorram com ossubsídios necessários para que se criem, entre o magistério brasileiro, modestas revistas — mas derigorosa publicação periódica — que se constituam num foro de idéias que, depois de expostas eamplamente debatidas, possam ser introduzidas experimentalmente em sala de aula, para o exame davalidade e alcance pedagógicociefltí Estas publicações de aparência modesta seriam o lugar certo para

que lingüistas, filólogos, gramáticos professores, educadores, bibliotecários, escritores, filósofos,políticos e quantos técnicos existam, possam trazer à discussão temas e problemas das especialidadesque, de algum modo, os aproximam.

Page 23: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 23/26

Com isto, estaríamos corrigindo uru erro muito difundido entre nós, pelo qual o canal das inovações,renovações e revoluções da ciência e da pedagogia seja o livro didático destinado a inocentes vítimasdo processo reformista: os pobres, incautos e desprotegidos alunos.

Estimulo ao magistério

Focalizamos aqui apenas alguns aspectos dos problemas que afligem, na Universidade, a formação dosprofessores de língua portuguesa. Os problemas são muitos, mas não de solução impossível.

O nosso professorado, apesar de toda sorte de desamparo que, por todos esses anos, tem recaído sobreos seus ombros, tem-se mostrado vigilante no seu aperfeiçoa mento e confiante em dias melhores. Isto já é um bom sin para o êxito de uma reação inteligente.

Mas a verdade é que esse professorado já está dando mostras de certa inquietude e de certa desilusão,como comprova a fuga do magistério em direção a outras ocupações de salários menos vis. Isto porqueas soluções estão tardando mais do que deviam, mais do que é possível suportar.

A sociedade brasileira, através de todas as suas agências de educação, deve despertar para osproblemas que afligem o professorado, sob pena de encontrá-lo in capaz de lutar pela sua redenção.

6

Vocabulário críticoÁgrafa (língua): aquela que não possui escrita, por servir a uma comunidade que não atingiu certonível de civilização.

Análise gramatical: segundo o lingüista Eugenio Coseriu, é a gramática que investiga o nívelindividual da linguagem, isto é, de um texto determinado. Através da aná lise gramatical, este tipo degramática identifica as funções gramaticais efetivamente expressas num dado texto (cf. gramática).

“Argot”: o mesmo que o port. gíria e jargão ou o inglês slang, é, em sentido restrito, uma línguaespecial baseada num “vocabulário parasita que empregam os membros de um grupo ou categoriasocial com a preocupação de se distinguirem da massa dos sujeitos falantes” (Marouzeau apud MatosoCâmara, Dic. de filologia e gramática, s.v. gíria).

Arquitetura das línguas: segundo o romanista norueguês Leiv Flydal, a diversidade interna da língua,ou, como ensina Coseriu, a coexistência, numa mesma língua histórica (v.), de formas diferentes parafunções análogas ou vice-versa. Assim, arquitetura se distingue de

estrutura das línguas (v.); por exemplo, o emprego dos verbos haver e ter nas orações de valorexistencial (há livros, tem livros) é um fato de arquitetura, e não de estrutura, porque são fatos quepertencem a línguas funcionais (v.) distintas.

Clássico (escritor, texto): o que apresenta correção gramatical que se pode apontar como padrãoesperado nas pessoas de cultura e que, por isso, pode servir de linguagem modelar nas classesescolares.

Código: sistema de signos convencionais que permite a organização da mensagem emitida pelo falantee en tendida (descodificada) pelo ouvinte. A língua é um código.

Código verbal: é o sistema de signos convencionais constituído pela língua (os sons e os sinaisescritos), em oposição a códigos não-verbais, como a gesticulação, o desenho, os sinais mecânicos etc.

Competência: termo utilizado por Chomsky (ingi. competence) para indicar o conjunto deconhecimentos lingüísticos que o falante, mais ou menos inconsciente- mente, possui, e se contrapõe aperformance, que é o uso efetivo da língua realizado pelo falante.

Contacto (ou canal): meio pelo qual são transmitidos os signos do código, como, por exemplo, nacomunicação oral, o ar através do qual se transmitem esses signos ou, na comunicação escrita, uma

página de texto.Contexto: conjunto de outros elementos ou condições que estão relacionados com um elemento dodiscurso e que contribuem para dar-lhe ou precisar-lhe um significado.

“Corpus”: determinado texto ou conjunto determinado de textos objeto de investigação e análise.

Page 24: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 24/26

Derivação: processo de formação de novas unidades léxicas com auxílio de prefixos e/ou sufixos ou,para outros teóricos, só com sufixos, já que as novas formas com

prefixos passam a integrar outro processo criativo, chamado composição.

Descrição (a respeito de línguas): procedimento de análise pelo qual se procura precisar as funções dascate gorias verbais próprias de uma língua e descrever o esquema material de sua expressão.

Descrição funcional integral: descrição que aspira a dar uma idéia precisa do saber idiomático efetivo

dos fa lantes de uma língua histórica.Desinência zero: ausência de traço formal ou semântico numa unidade lingüística que se opõe a outraunidade dotada desse traço, como, em português, a desinência de singular em livro é zero por nãoconter a desinência de plural que aparece em livros.

Diacronia: consideração que se faz da língua em seu desenvolvimento histórico; existe uma diacroniasubjetiva, própria dos falantes, e uma diacronia objetiva, que resulta do estudo do historiador dalíngua, havendo constantemente a possibilidade de uma não coincidir com a outra (cf. sincronia).

Dia fásica: denominação cunhada por Eugenio Coseriu, à semelhança dos termos diatópica (v.) e dia(v.), para designar as variedades “estilísticas” entre os diversos tipos de modalidade expressiva (dogrego diá “através de” e phásis “expressão”). São exemplos, entre outros, de variedades diafásicas as

diferenças entre língua falada e língua escrita, língua “de uso” (ai. Umgangssprache) e língua literária,entre o modo de falar familiar e o solene, entre a linguagem corrente e a linguagem burocrática ouoficial. Podem-se apontar diferenças dentro de algumas dessas variedades, como, por exemplo, nalíngua literária, a diferença entre poesia e prosa, e, dentro da própria poesia, a diferença entre poesialírica e poesia épica etc. À unidade integrante das variedades diafásicas Coseriu chama sinfásica.

Diassistema: conjunto mais ou menos complexo de variedades diatópicas (v.), diastráticas (v.) e dia!ásicas (v.) que integram uma língua histórica (v.).

Diastrática: denominação proposta pelo romanista norueguês L. Flydal para designar as variedades de“níveis” entre os diferentes estratos socioculturais de uma comunidade lingüística (do gr. diá “atravésde” e lat. stratum “camada”). As variedades diastráticas são mais acentuadas em sociedades onde háprofundas diferenças entre as diversas camadas sociais. São exemplos de variedades diastráticas asdiferenças entre língua culta e língua popular. À unidade integrante das variantes diastráticas chama-sesinstrática.

Diatópica: denominação proposta por Flydal para designar as variedades de “dialetos” entre osdiferentes espaços geográficos em que uma língua histórica é falada (do grego diá “através de” e tópos“lugar”). As variedades diatópicas podem ser apontadas •nos tipos regionais de língua comum (um tipo“nordestino”, um tipo “sulista”, um tipo “carioca” etc.) ou, mais fáceis de delimitação nas -variedadesdas línguas históricas f ala das por países diversos, como o português do Brasil e de Portugal. Àunidade integrante das variedades diatópicas chama-se sintópica.

Diglossia: possibilidade de coexistência, no sujeito falante, do dialeto regional e da língua comumoficial, adquirida na escola. Difere do bilingüismo à medida que este pressupõe a coexistência decódigos lingüísticos diferentes, no sujeito falante, que pode usar indistinta mente qualquer das línguas.Em certos autores, diglossia é entendida como sinônimo de bilingüismo, enquanto outros consideramdiglossia a aptidão que uma pessoa demonstra em usar outra língua, além da materna.

Ecdótica: denominação introduzida por H. Quentin para designar a disciplina que estabelece as normasmétodo

lógicas e que preside à pesquisa dos problemas técnicos inerentes a edições de textos antigos emodernos, com vistas a assegurar-lhes a originalidade e a exatidão textuais. Para muitos autores,ecdótica é sinônimo de crítica textual.

Educação lingüístiCa: atividade que tem por objetivo o desenvolvimento das aptidões verbais dosujeito falante, estreitamente ligada com sua correta socialização, com seu desenvolvimentopsicomotor e com a maturação de todas as suas capacidades expressivas e simbólicas.

Emissor: aquele que, na comunicação, produz uma mensagem segundo as regras do código utilizado.

Page 25: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 25/26

Estilística: disciplina que estuda a língua nas suas funções de “expressão” e de “apelo”, no esquema deK. Bühler, enquanto a gramática a estuda na função “representativa”.

Estilo: “lato sensu, a maneira típica por que nos exprimimos lingüisticamente, individualizando emfunção da nossa linguagem” (Matoso Câmara).

Estrutura das línguas: segundo Flydal, fato que consiste na existência de correlaçõeS sistemáticas(traduzidas por oposições funcionais na expressão e no conteúdo) das unidades de uma mesma línguafuncional (v.).

Flexão: procedimento morfológico que permite variar um vocábulo para expressão de determinadascategorias gramaticais existentes numa dada língua. Este procedi mento pode consistir em acrescentarmorfema fora do radical (flexão externa), subtrair, alternar ou reduplicar morfema dentro do radical(flexão interna).

Funções da linguagem: diversos fins que são atribuídos aos enunciados. A conceituação e aespecificação das funções variam de acordo com as diversas correntes teóricas da lingüística. Opsicólogo alemão Karl Bühler apresentava um esquema tripartido: presefltaÇã0, expressão e apelo; olingüista russo Roman Jakobson relacionava-as aos elementos necessários da comunicação:

emissor ou remetente (função emotiva), receptor ou destinatário (função conativa), ao código (função

me talingüística), no contexto (função referencial), no contacto (função tática) ou na mensagem em si(função poética). Já o lingüista inglês M. A. K. Hailiday, em estreita ligação com o grupo de BasilBernstein, apresentou proposta, sem esgotar o assunto, de sete funções:

instrumental (uso da língua para obter que certas coisas sejam feitas); reguladora (para regular ocomportamento de outrem, a ponto de determinar que se faça ou se deixe de fazer algo desse modo, enão de outro); inter- pessoal (para estabelecer uma interação entre a pessoa e os outros, impor status oucontestar um status imposto, para manifestar o humor, o ridículo, a decepção e a persuasão); pessoal(para manifestar sua própria individualidade); heuristica (indagação da realidade para agir comoinstrumento na solução de problemas); imaginativa (para estabelecer uma relação entre a pessoa e seuã e, finalmente, representativa (para fazer uma comunicação sobre alguma coisa).

Glotodidática: disciplina que, baseada em critérios lingüísticos, tem por objeto o ensino das línguas —materna ou estrangeiras.

Gramática: disciplina lingüística que estuda os atos lingüísticos nos três níveis da linguagemdistinguidos por Eugenio Coseriu: o universal (correspondente ao falar em geral), o histórico(correspondente a uma língua histórica) e o individual (correspondente ao discurso ou texto). Assim,teremos três tipos de gramática: a gramática geral (designação preferível a universal), a gramáticadescritiva (v.) e a análise gramatical (v.). Ao lado dessas três gramáticas científicas, há uma de pura

seleção da norma culta, chamada gramática normativa (v.).

Gramática descritiva: estudo das tradições lingüísticas consideradas como sistemas. Não lhe cabe,como ensina Coseriu, definir, mas descrever as categorias verbais depreendidas numa dada língua,suas funções e procedimentos gramaticais.

Gramática geral: ramo da lingüística teórica que estuda os fundamentos dos conceitos gramaticais, asfunções e os procedimentos gramaticais.

Gramática gerativa e transformacional a que trata das relações, expressamente das relações deequivalência entre estrutura superficial e a chamada estrutura pro funda.

Gramática normativa (também chamada do bom uso): corpo de recomendações de como se deve dizer,subjetivamente selecionadas e fixadas por larga tradição entre os falantes de nível superior de umacomunidade, especialmente no uso escrito. É uma gramática que tem finalidades didáticas.

Gramática tradicional: denominação vaga que se aplica à tradição teórica ou à prática de descreveruma língua desenvolvida por uma corrente do passado. Entre os gerativistas, a denominação se aplicaao estruturalismo americano de feição bloomfieldiana (orientada pelo lingüista Leonard Bloomfield);entre os comparatistas do séc. XIX e ainda hoje entre nós, a denominação se refere à tradição

Page 26: Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

8/6/2019 Microsoft Word - Evanildo Bechara - Ensino da gramática - opressão liberdade

http://slidepdf.com/reader/full/microsoft-word-evanildo-bechara-ensino-da-gramatica-opressao-liberdade 26/26

gramatical greco-latina. O precursor imediato da gramática gerativa é essa gramática tradicional,segundo declarações do próprio Chomsky.

Hibridismo: procedimento de formação lexical com ele mentos oriundos de línguas diferentes.

Língua culta/padrão: modalidade de língua, especialmente escrita, que, como diz Matoso Câmara,“serve para as comunicações mais elaboradas da vida social e para as atividades superiores doespírito”, e constitui o substrato da língua comum ou nacional, que se superpõe às variedadesregionais.

Língua familiar/coloquial: modalidade de língua, especial mente oral, de expressão espontânea entrepessoas escolarizadas, mas que não apresenta a coerência e a fixidez das formas gramaticais nem ocuidado e a elaboração do léxico da língua culta.

Língua funcional: língua que se delimita dentro da língua histórica e que se caracteriza por ser umcorpus homogêneo e uniforme, vale dizer, uma variedade sintópica (v.), sinstrática (v.) e sinfásica (v.).

Língua histórica: conjunto constituído historicamente de técnicas lingüísticas em geral nãohomogêneas, mas que apresentam uma unidade ideal e assim identificadas

pelos falantes dessa língua: língua portuguesa, língua espanhola, língua alemã etc.

Norma: tudo o que espontânea e prontamente se diz numa comunidade lingüística. A norma lingüísticase opõe a anormal, enquanto a norma da gramática normativa se opõe a incorreto. Não há inteiracoincidência entre as duas normas porque, em geral, a lingüística se adianta à sua codificação pelagramática normativa.

Padrão: (cf. língua culta).

Parassíntese: processo de formação lexical com utilização concomitante de prefixo e sufixo.

“Pidgin”: língua simplificada nascida do contacto de comunidades diferentes; em sentido restrito,aplica-se a uma língua mista falada nos portos da China (pidgin-English), com base no vocabulárioinglês e adaptada ao sistema gramatical chinês. Pidgin é a pronúncia de formada do inglês business.

Receptor ou destinatário: aquele que, na comunicação, recebe e descodifica uma mensagem elaboradadentro das regras de um determinado código.

Registro: utilização que cada falante faz dos níveis de língua para adequar-se ao saber idiomático dointerlocutor.

Saber elocucional saber falar em geral, considerado enquanto técnica.

Saber lingüístico capacidade de formar corretamente orações ditas ou inéditas numa determinadalíngua.

Sincronia: consideração que se faz da língua sem levar em conta o tempo, isto é, estudada só nummomento determinado do seu devenir histórico (cf. diacronia).

Sinfásica: (cf. diafásica).Sinstrática (cf. diastrática).

Sintópica: (cL diatópica).

Sociolingüística: disciplina lingüística que estuda as diferenças Lingüísticas em relação à estratificaçãosocial.

Vogal temática: elemento acrescido ao radical e que serve de característica mórfica de um conjunto devocábulos do mesmo grupo nominal ou verbal.