MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

download MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

of 10

Transcript of MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

  • 8/18/2019 MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

    1/10

    Daniel Caballero | Pascal Ferreira | Ele disse: “Não gosto de paisagem. (Off we go. )”

    "Por natureza entendemos o nexo infindo das coisas, a ininterruptaparturição e aniquilação das formas, a unidade ondeante doacontecer, que se expressa na continuidade da existência espacial etemporal.(…) A nossa consciência, para além dos elementos, deveusufruir de uma totalidade nova, de algo uno, não ligado às suassignificações particulares nem delas mecanicamente composto - sóisso é a paisagem."Georges Simmel – Filosofia da paisagem

    “…repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse que avida tanto podia ser uma ópera como uma viagem de mar ou umabatalha…” Machado de Assis – Dom Casmurro

    “A paisagem, tão admirável como quadro, é em geral incómodacomo leito.” Bernardo Soares – Livro do Desassossego, vol. II, p. 37

    PERSONAGENS :

    Ele (sempre ausente da peça, é uma espécie de voz da consciência).Eles – em uníssono discordante: Daniel e Pascal.Homem da montanha – tem uma casa incrustada no coração pois a sua matéria é a madeiraHomem do concreto (termo brasileiro para o cimento de Portugal) – usa chapéu e bermudas efaz-se acompanhar de um bloco e lápis.Eu – que estou por aí.

    CENA ZERO:Ele disse : “Não gosto de paisagem. ”

    Eu digo : Off we go .

    Eles (Daniel e Pascal) dizem : “vamos dentro da paisagem pois a caminhada, a viagem, a derivae o mergulho est ão lá dentro, submersos...”

  • 8/18/2019 MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

    2/10

    Eu digo : “…avançando para uma saída luminosa?” Eles dizem : “…hum talvez…”

    Acto I[ENTRA EM CENA O HOMEM DA MONTANHA]

    Homem da montanha : “Há certa tendência em olhar as imagens – quer pictóricas, querfotográficas – sondando o passado. Olhamo-las, não somente para um fruir estético que seproponha descontaminado, “suspendendo” outros pensamentos e razões…todavia, acaba -sequase sempre relacionando o reconhecimento (entre o) do visto com “algo”, coisificando aimagem, ao mesmo tempo que se concetualiza a imagem – no contexto de um imaginárioprivado ou societário. Assim, se processa esse crescendo, paralelo à nossa vida como pessoa;esse acumulo que é um arquivo iconográfico/iconológico – pois se trata de desvelar camadassucessivas, de as decifrar…, contribuindo para o aperfeiçoamento de uma educação estéticaimplícita.

    Eu: Então, quais são as razões da paisagem? Porque se convencionou, com tal veemência, quenos atinge, assim, a contemporaneidade? Posso citar o Bernardo Carvalho que escreveu emMongólia :

    “A paisagem na arte contemporânea é uma memória de estar nomundo.”1

    Homem da montanha: … precisamos tanto, sempre, de encher essa pedra da memória. Apaisagem serve muito bem para dar imagens a coisas que se perderam. É mais fácilreconhecer os episódios da vida, a terem acontecido em paisagens do mundo.

    1 Bernardo de Carvalho, Mongólia , p.26

  • 8/18/2019 MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

    3/10

    “A paisagem oscila entre um imaginário empático do artista e abuscade uma realidade objectiva das plantas, dos animais, dos relevos,das cidades e de tudo o que constitui a paisagem.”2

    Homem do concreto: Lá vens tu, com essa ideia do Amiel a dizer que a paisagem é um estadode alma… 3

    Eu: Prefiro a convição do nosso Bernardo Soares – que imaginou as suas paisagens de chuva,através da janela do seu escritório…será que as melhores paisagens são aquelas que vemospela janela? Sem estarmos dentro das paisagens, da natureza? Bom, não merespondam…deixem -me acreditar que: “ Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estadode alma.”Como eu acredito nisso…que não acredito.

    [ouve-se, sem se ver na paisagem, a voz dele]

    Ele disse : “Não gosto de paisagem. ” Não acredito na paisagem. Sim. Não o digo porque creia no “a paisagem é um estado de alma” do Amiel, um dos bons momentosverbais de mais insuportável interiorice. Digo-o porque não creio.”4

    Homem do concreto: Acredite-se ou não na paisagem, há dias em que: “… esta é a paisagemque me pertence, e em que entro como um figurante numa tragédia cómica.”5

    2 Bernardo de Carvalho, Mongólia , p.5 3 Vide Henri-Frederic Amiel in Fragments d’un Journal intime , Geneve, Georg & Cº Libraires-Éditeurs,

    1911. Vols I et II.4 Bernardo Soares, Livro do Desassossego , ebook, p. 4135 Bernardo Soares, Livro do Desassossego , vol. II, p. 37

  • 8/18/2019 MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

    4/10

    Homem da montanha : tu possuis todas as paisagens que existem para tu veres. Certo, éconveniente que tu as vejas ou as queiras construir do nada? Como se todas as manhãs domundo - do Pascal Quignard – estivessem sempre na linha – possível ou impossível - da portade casa, ali prontinhas a serem empilhadas. Cada dia que haja, farias uma torre de paisagemdiferente. Mas era sempre paisagem porque na palavra paisagem não se vê nada…ou… vê-se

    tudo.Eu: Oh pois! … (rsrsrs) Vejam lá, será? Como se pode concluir algo…do alto dessas torres demarfim que tu constróis? Tudo está lá dentro. Esses teus momentos rápidos, impulsos depaisagens…paisagens encarnadas, a carne da paisagem…ando às voltas de Gilles Deleuze .

    “O mais que há no mundo é paisagem, molduras que enquadramsensações nossas, encadernações do que pensamos.” 6

    [pausa para respirarem a ideia de paisagem que é uma encarnação]

    Acto II

    Eu: Vamos avançando com as ideias para outras bandas de paisagem. Será que ainda existemesmo paisagem nos argumentos dos filósofos e na prática dos artistas e poetas? Porque,décadas atrás, André Lhote escreveu acerca da “decadência da paisagem composta” ,mencionando Poussin e Claude Lorrain. Que fazer…

    [percebe-se que provocaram uma interrupção e não a deixam falar]

    Homem do concreto:… ideia da paisagem composta … talvez aconteça; por conta dessa massa

    de olhares que entram e enxergam dentro da alma, quando o viajante pára e compõe a suaimagem de síntese…

    6 Bernardo Soares, Livro do Desassossego , vol. II, p. 37

  • 8/18/2019 MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

    5/10

    “O viajante, no seu movimento incessante, vê tudo à distância.Silhuetas recortadas contra a paisagem. Imagens arquitecturais sedestacando no horizonte. Pessoas e lugares que pretendeencontrar depois da próxima curva. A viagem é produção desimulacros, de um mundo puramente espectral erguido à beira daestrada.” 7

    Homem da montanha : eu diria talvez, e por minha conta e risco, relembrando esse pintoralemão que andou pela América do Sul…

    [sai de cena o homem do concreto]

    Eu: …então, referes -te ao Rugendas?

    Homem da montanha : não te apresses em falar… deixa-me falar do princípio. O Alexandervon Humboldt entendeu o seu ofício como implicando a “apropriação” visual da natureza,pela via de um acúmulo de imagens que fosse via privilegiada, em termos de rigor paraconstituição de seu conhecimento minucioso. A imagem isolada não servia para a aderênciade saber: carecia assegurar as imagens em formato conjunto, pela completude instituindo oquadro.

    Eu: vais mesmo dizer isso tudo…e para quê?

    Homem da montanha (sem dignar-se dar réplica, continua…) : Johan Moritz Rugendas8, àsemelhança e motivado pelo geógrafo, percebeu que deveria proceder, de modo a captar“fisionomia” da paisagem. Assim, viajou pelo Brasil, entre 1822 e 1825.

    Eu: É. César Aira, emUm episódio na vida do pintor viajante (2000), narra exatamente asefabulações de Reguendas, no seu périplo pelas terras da América do Sul. Haja precisão,minha gente. Sejamos rigorosos…Vá -se lá saber quem nos ouça!

    [Entra em cena o homem do concreto]Homem do concreto : Perdão, regressei. Entro nessa conversa. Tem aquele outro…chamado deSandro Lanari que é o protagonista da ficção de Luiz Antonio de Assis Brasil,O pintor de retratos(2001). O escritor narra a história de um fotógrafo que progressivamente se converte em pintor.

    Homem da montanha:“…todo artista deveria representar a natureza livre da necessidade de pré- julgamento, das representações antecipadas, visto que a natureza não

    sofresse a deformação do olhar preconcebido, em outras palavras, umanatureza virginal.” 9

    Eu: Sem querer parecer doutrinal mas…não pode ignorar que as t radições pictóricas e artesanais já estabelecidas, foram largamente reforçadas pela nova ciência experimental e pela tecnologia.

    7 Nelson Brissac Peixoto – “Miragens”, Cenários em ruínas – a realidade imaginária contemporânea ,Lisboa, Gradiva, 2010, p.1378 Johann Moritz Rugendas (Augsburgo, 29 Março 1802 — Weilheim an der Teck, 29 maio 1858) foi

    um pintor alemão que viajou por todo o Brasil, durante de 1822 a 1825, pintando os povos ecostumes que encontrou. Estudou na Academia de Artes de Munique.9 Svetlana Alpers, A Arte de Descrever , São Paulo, Edsup, 1999, p.38

  • 8/18/2019 MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

    6/10

    Ajudou à confirmação da importância das imagens, nesse périplo, nesse caminho para o queseria um novo e inelutável conhecimento do mundo. 10

    [pausa, olham-se os 3 em cena]

    Eu: Não dizem nada? Então, continuo… No séc. XVIII, Alexandre Rodrigues Ferreira empreendeu jornada pela Amazónia, da qual empreendeu relato pormenorizado - «Viagem Philosophica»(1783-1792) que, até hoje, enreda qualquer leitor e espetador.

    Homem da montanha: Nos tempos do antigo mundo, do mundo novo ou deste que estamos…ohomem partilhou sempre essa sedução da errância, da deriva…quer na natureza, que r nacidade…Já Herman Hesse dizia:

    “El caminante es, en muchos aspectos un hombre primitivo,del mismo modo que el nómada es más primitivo que elcampesino. (…)

    Homem do concreto: oh! …por certo! Mas ele diz mais, ainda:“Porque soy nómada, no campesino.Soy amante de lainfidelidad, del cambio, de la fantasía. 11

    E, meus queridos amigos desta conversa, se não se importam, vou tomar um cafezinho. Já volto.

    [Aliás, saem todos de cena, tornam-nos cegos do que se passa]

    Acto III

    10 Paulo Reis, Frans Post: herança realista da pintura holandesa na paisagem brasileira , Rio de Janeiro,Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes/ Escola de Belas Artes, 2002, p.13

    11 Herman Hesse, El Caminante (1920), Barcelona, Ed. Bruguera, 1982, p.9

  • 8/18/2019 MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

    7/10

    Eu: Concordo com Herman Hesse quando, em Wanderer , assinala que “vencer o sedentarismoe depreciar as fronteiras converte as pessoas da minha classe em postes indicadores defuturo.” 12

    Homem da montanha : … porque retomas o que eu disse? Hum…enfim. Entendo.

    Gostas de dizer o dito… para que não se perca.[gera-se a expetativa da pausa]

    Eu: No Ocidente, a paisagem é breve.

    Homem do concreto : “Continuo desenhando rápido enquanto a paisagem desaparece.”

    Acto IV

    [estão todos em cena e vislumbra-se uma janela ao fundo com vista sobre uma rua]

    Eu: (…o que leio…) “A paisagem em volta esvaziada de sentido, reflectindo-se nosmeus olhos, brotava dentro de mim…” 13

    Eles: Isso significa… Trazer a paisagem para dentro: foi olhada [essa vista] através defotografias. Paisagem que entra dentro de casa: o exterior converte-se em interior,instalando-se, residindo, ainda que provisoriamente, “dentro”.

    12 Idem, ibidem13 Yukio Mishima,O templo dourado , Lisboa, Assírio & Alvim, 1985, p.148

  • 8/18/2019 MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

    8/10

    Homem do concreto : estamos a falar do processo de elaboração dos desenhos. O temaiconográfico corresponde à vista pela janela grande da Gal eria… e foi por mediação.Eu não estava ainda aqui. Tu (dirigindo-se a Eu) enviaste-me as imagens daqui. Olhaste pela janela e eu, o artista (apesar de homem do concreto) desenhei essas tomadas de vista,atribuindo-lhes uma nova identificação e caraterísticas.

    Eu: tu não és homem concreto (do concretismo…) mas do concreto…

    Homem do concreto : Falando sério. A metodologia de trabalho: para a produção dosdesenhos, vi as fotografias do lugar: ou seja, a vista direccionada (entre as muitas possíveis),dirigindo-se para a rua.

    Eu: Pois. O lugar, a vista eram-te desconhecidos, ou seja, não tinhas a vivência direta. O local,portanto, era-te “estrangeiro” (anónimo) e fixaste-o em registo.

    [parou]

    Homem do concreto: …apropriando-se de forma intermediada – pois o ângulo de tomada devista não foi decidido por ele. Era isso que ias falar a seguir?Homem da montanha: Pense-se quanto uma vista de um lugar específico – “conhecido” e/ou“nominado” – configurado na imagem fotográfica se transporta pa ra algo “mastigado” edecidido […ainda que des-conduzido … (murmurei, entre dentes)] pelo olhar do artista.

    [ouve-se uma voz off]

    Voz off: Como uma paisagem real, um excerto de natureza vocacionada pela determinação dealguém, passa a usufruir a condição de paisagem imaginada, mas não imaginária. Tratar-se-áde atos sobreposicionais. O desenho concretizado em papel e depois o desejo de alastrar pelaparede lateral da galeria: eivado de um sentido de desprendimento, despojamento…deixarficar, prescindir. E, de modo imperceptível, futuramente, ser mais uma camada dopalimpsesto.

    [de tão inesperada se ouviu a voz que os presentes entenderam retirar-se. pausa de café efatia de bolo de chocolate – caso houvesse… ]

    Acto V

  • 8/18/2019 MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

    9/10

    Eu: Regressamos. Lembrei-me daquele diálogo do Mondrian…entre o pintor naturalista e opintor abstrato…(rsrsrs) estamos a imitá -lo…Mas seja.

    Homem da montanha: Construí.

    Eu: Tu acreditavas.

    Homem da montanha: Cada pedaço de madeira e eu acreditava. Cada desenho da paisageminventada e eu acreditava.

    Homem do concreto : E eu, também. Cada caminhada na cidade, por entre aquilo que hojeestá e amanhã, não mais se vê. Acredito na paisagem, talvez. Na sua condição de não serdominada; mas tampouco que se deixe dominar, isso não.

    Homem da montanha : Por isso, vês a minha casa no lugar do coração. A cidade ou lá o que

    seja isso, está dentro. Construi a realidade da paisagem dentro de mim. Fora vêem a carne dapaisagem. Assim, viajo.

    Homem do concreto : Vês a espessura dos meus desenhos das paisagens? É a pele queengrossa nas paredes porque os dias se seguem e pousam em cima das árvores e das pedras.Quase chegava dentro das paredes, como se fosse um mar de pedra.

    Homem da montanha: eu quase chegava à ilha, talvez o Gilreu na beira da praia, em frente alinha do horizonte - que o Alexandre Rodrigues Ferreira14 atravessou…

    14 Vide Alexandre Rodrigues Ferreira,Viagem ao Brasil , São Paulo, Kapa Editorial, 2002

  • 8/18/2019 MFL.2014.MAR.a Nossa Consciência (Daniel Caballero e Pascal Ferreira)

    10/10

    Eu: ele viajou pela Amazónia, numa expedição filosófica. Era o séc. XVIII. Na Universidade que,em 1772, teve uma reforma, considerava-se que a Filosofia Natural carecia, não somente defundamentação teórica, mas crítica. Assim, os naturalistas empreenderam esse programa deexpedições, como hoje se designaria. E de lá trouxe imagens e coisas. Também ele foi umriscador. Assim os denominavam, aqueles que desenhavam o que fosse enxergado, visto.

    “Julgamos que nos libertamos dos lugares que deixamos paratrás de nós. Mas o tempo não é o espaço e é passado que estádiante de nós.” 15

    [saem de cena todos, sem justificarem ausência. não se sabe se regressam]

    Maria de Fátima LambertMarço 2014

    15 Pascal Quignard,Vida Secreta, Lisboa, Ed. Notícias, 1999, p.205