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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018 1 Meu Professor Racista : Campanhas contra o racismo acadêmico como agenda de luta de estudantes negras/os 1 Ana Luiza Monteiro Alves 2 Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ Resumo O presente artigo tem como objetivo abordar os impactos das ações afirmativas nas universidades brasileiras e observar as estratégias de comunicação de grupos de estudantes universitários negros na denúncia ao racismo institucional presente em ambientes de ensino no Brasil. O texto foca na análise das campanhas “Meu Professor Racista” e “Ah Branco, dá um tempo!”, produzidas por estudantes universitários negros e veiculadas através de sites de redes sociais. As duas campanhas dão visibilidade a vivências racistas experienciadas por estudantes negros e demonstram que, apesar das políticas de ações afirmativas terem possibilitado uma maior presença destes estudantes nas universidades brasileiras, o racismo institucional faz parte da estrutura de ambientes oficiais de educação e impacta fortemente a trajetória de estudantes negros. Palavras-chave Ações Afirmativas; Movimento de Estudantes Negros; Racismo; Campanhas na Internet; Ciberacontecimento. Introdução É notório que as universidades públicas brasileiras são historicamente um dos espaços em que as populações negras e indígenas têm mais dificuldade de acessar. Estas instituições são as mais bem conceituadas do país e desde seu princípio foram pensadas para atender as elites brasileiras. Nesse sentido, oferecem aos seus estudantes uma formação sólida, possibilitam a formação de redes de contato entre profissionais, ampliam as oportunidades no mercado de trabalho e, consequentemente, impactam na mobilidade social de seus graduados. Para garantir uma vaga em uma universidade pública brasileira, é necessário passar por avaliações que tem um nível de dificuldade muito elevado. Este cenário dificulta o acesso de estudantes de camadas menos privilegiadas da população brasileira, compostas majoritariamente por negros e indígenas, que em sua maioria 1 Trabalho apresentado no GP Comunicação para a Cidadania, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda de Comunicação do PPGCOM-UFF. E-mail: [email protected]

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Meu Professor Racista :

Campanhas contra o racismo acadêmico como agenda de luta de

estudantes negras/os1

Ana Luiza Monteiro Alves2

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ

Resumo

O presente artigo tem como objetivo abordar os impactos das ações afirmativas nas

universidades brasileiras e observar as estratégias de comunicação de grupos de

estudantes universitários negros na denúncia ao racismo institucional presente em

ambientes de ensino no Brasil. O texto foca na análise das campanhas “Meu Professor

Racista” e “Ah Branco, dá um tempo!”, produzidas por estudantes universitários negros

e veiculadas através de sites de redes sociais. As duas campanhas dão visibilidade a

vivências racistas experienciadas por estudantes negros e demonstram que, apesar das

políticas de ações afirmativas terem possibilitado uma maior presença destes estudantes

nas universidades brasileiras, o racismo institucional faz parte da estrutura de ambientes

oficiais de educação e impacta fortemente a trajetória de estudantes negros.

Palavras-chave

Ações Afirmativas; Movimento de Estudantes Negros; Racismo; Campanhas na

Internet; Ciberacontecimento.

Introdução

É notório que as universidades públicas brasileiras são historicamente um dos

espaços em que as populações negras e indígenas têm mais dificuldade de acessar. Estas

instituições são as mais bem conceituadas do país e desde seu princípio foram pensadas

para atender as elites brasileiras. Nesse sentido, oferecem aos seus estudantes uma

formação sólida, possibilitam a formação de redes de contato entre profissionais,

ampliam as oportunidades no mercado de trabalho e, consequentemente, impactam na

mobilidade social de seus graduados.

Para garantir uma vaga em uma universidade pública brasileira, é necessário

passar por avaliações que tem um nível de dificuldade muito elevado. Este cenário

dificulta o acesso de estudantes de camadas menos privilegiadas da população

brasileira, compostas majoritariamente por negros e indígenas, que em sua maioria

1 Trabalho apresentado no GP Comunicação para a Cidadania, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda de Comunicação do PPGCOM-UFF. E-mail: [email protected]

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estudam em escolas públicas no ensino básico e médio. De maneira geral, as escolas

públicas brasileiras oferecem uma educação de pouca qualidade, muitas vezes faltam

professores de algumas disciplinas e os prédios apresentam problemas em suas

estruturas. Isto, sem dúvida alguma, reflete no desempenho de seus estudantes nos testes

necessários para ingressar em uma universidade. Sendo assim, a maior parte dos

candidatos que são aprovados para cursar a graduação nas universidades públicas são

oriundos de escolas privadas, que têm mensalidades a preços inacessíveis para a maior

parte da população negra e indígena.

Este contexto é um dos exemplos de como o racismo institucional está presente

no exame de seleção para acessar as universidades públicas brasileiras. Através da

conceitualização de Rita Segato, entendemos racismo institucional como:

As práticas institucionais que produzem desvantagens para a população não-

branca. Muitas vezes, é o que inibe o acesso aos serviços e recursos oferecidos pelas instituições[...]: formulários complexos, um vocabulário

institucional desconhecido e o tratamento pouco sensíveis dos funcionários

dificultam a abordagem (SEGATO, p. 49-50, 2017. Tradução: ALVES,

A.L.M).3

Apesar desse grave cenário de exclusão de populações negras e indígenas, a partir

de 2003, isto muda um pouco. Os marcos para essas mudanças foram a implementação

de ações afirmativas4 para negros, indígenas e estudantes de escolas públicas na

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (em 2003), na Universidade de Brasília (em

2004) e a aprovação da Lei nº 12.711/20125, que “garante a reserva de 50% das

matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de

educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio

público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos”. A Lei de Cotas

também estabelece que metade das vagas reservadas sejam ocupadas por estudantes

negros e indígenas.

3Las prácticas institucionales que llevan a la reproducción de las desventajas de la población no-blanca. Muchas

veces, lo que inhibe el acceso a los servicios y recursos que las instituciones[...]: formulários complejos, un vocabulario institucional poco familiar y el trato ríspido y poco sensible de los empleados dificultan la aproximación. 4De acordo com o Estatuto da Igualdade Racial ações afirmativas são “os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades”. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm>.

Acessado em: 07/2018 5Texto completo da Lei nº 12.711/2012: Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm> . Acessado em 07/10.

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Através dessa política, o número de estudantes negros que ingressam em

universidades públicas vem crescendo e alcançando percentuais nunca antes observados

na história do país.

Segundo dados do Ministério da Educação, em 1997 o percentual de

jovens negros, entre 18 e 24 anos, que cursavam ou haviam concluído

o ensino superior era de 1,8% e o de pardos, 2,2%. Em 2013 esses

percentuais já haviam subido para 8,8% e 11%, respectivamente.6

É importante lembrar que mesmo com um salto nos números, eles ainda

expressam a desigualdade racial do Brasil, já que, segundo a Pesquisa Nacional de

Amostras de Domicílios de 2013, negros e negras correspondem a 53% do contingente

populacional do país.

Se faz necessário observar que a dificuldade de ingressar nas universidades

públicas é apenas a primeira barreira promovida por estas instituições de ensino. Mesmo

com a política pública que reserva vagas para estudantes negros e indígenas, o racismo

institucional revela suas outras faces ao longo do curso, fazendo com que o caminho de

estudantes negros e indígenas para a conclusão da graduação seja árduo e, muitas vezes

interrompido. Um dos elementos que dificulta a conclusão do curso e muitas vezes é

responsável pela evasão de estudantes negros e indígenas é a falta de assistência

estudantil. Os estudantes ingressam na universidade, porém alguns não conseguem se

manter, pois as instituições de ensino, que muitas vezes têm aulas em horário integral,

não oferecem apoio financeiro para o material didático, alimentação e transporte.

Refletindo o contexto de crescimento no número de negros e negras nas

universidades brasileiras, os espaços acadêmicos foram e estão sendo modificados com

as novas demandas destes agentes. Um dos exemplos disso é o aumento no número de

organizações de estudantes universitários e pesquisadores negros no Brasil. Ainda são

pouquíssimas as pesquisas sobre as organizações políticas de estudantes negros

universitários no país, mas este aumento ficou explícito a partir do diálogo com ativistas

e acadêmicos/as negros/as de diferentes estados e gerações, esse crescimento também

pode ser notado pelo crescimento de páginas de coletivos negros em sites de redes

sociais. Estes novos estudantes trazem olhares e questionamentos (ainda novos e

6 SEPPIR.2016.Disponível em: < http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/noticias/2016/03-marco/em-3-anos-150-mil-negros-ingressaram-em-universidades-por-meio-de-cotas>. Acessado em: 07/2018

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incômodos para academia brasileira), incidem nas políticas das universidades e utilizam

diversas ferramentas de comunicação para dar visibilidade a suas experiências, vitórias

e demandas. Alguns exemplos disso são as campanhas em sites de rede social criadas

por grupos de estudantes universitários negros, que tem como objetivo garantir políticas

públicas que aumentem a diversidade racial e possibilitem a permanência destes

estudantes nas universidades brasileiras.

Campanha Meu Professor Racista

O principal objetivo deste artigo é analisar a campanha intitulada Meu Professor

Racista, criada pelo Coletivo Ocupação Preta da USP, em 2017, que tem como objetivo

dar visibilidade a relatos de estudantes negros que passaram por situações racistas em

escolas e universidades.

Nesta investigação, compreendemos a internet como um constructo social que

afeta a ordem social econômica e política, assim como também é afetada por esses

fatores (FRAGOSO, RECUEIRO, AMARAL, 2016, p.59). O Facebook foi um dos

principais sites de rede social utilizado pelos estudantes organizadores da campanha. Os

posts selecionados foram obtidos na página do Coletivo Ocupação Preta USP e foram

feitos em abril de 2017. As amostras representativas aqui utilizadas são uma

“reconstrução reduzida, porém real, do universo que se deseja investigar”

(OSUNA,1989, p.366). Observando as amostras é possível separá-las em dois grupos:

um que traz experiências vivenciadas na Educação Básica e outro que trata sobre

experiências no Ensino Superior. Optamos por separar as amostras nestes dois grupos,

pois “o sistema de educação brasileiro é dividido em Educação Básica e Ensino

Superior”7 e porque, mesmo que exista a modalidade de ensino para jovens e adultos

(EJA), percebemos que a maior parte dos relatos sobre a Educação Básica são referentes

ao período da infância e adolescência, uma fase fundamental na construção das

subjetividades e em que há maior vulnerabilidade e menos ferramentas de defesas por

parte das crianças e adolescentes contra as violências raciais de caráter físico e

simbólico, falaremos mais sobre isso ao longo do texto.

7 Disponível em:

<http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=618>. Acessado

em: 07/2018

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No caso dos relatos de experiências racistas vividas no ensino superior,

consideramos tão graves quanto as que foram relatadas anteriormente. É notório que os

adultos não têm as mesmas vulnerabilidades que as crianças e adolescentes, mas

precisamos frisar que em muitos casos, pessoas adultas não conseguem acessar

ferramentas jurídicas e institucionais de defesa e denúncia por conta do racismo

institucional. É importante ter em mente também, que muitas vezes a violência racial

incide de maneira tão forte no cotidiano que muitos adultos/as negros/as se veem

paralisados e sem a possibilidade de se defender diante dela. Percebendo isto, a

campanha Meu Professor Racista ocupada um lugar relevante para pensar a quebra de

silêncios, a promoção do debate sobre racismo na educação e a articulação de formas de

defesa contra a discriminação racial.

Segundo integrantes do Coletivo Ocupação Preta da Universidade de São Paulo,

em entrevista8 à Revista Galileu, no dia 20 de março de 2017, “uma professora da

faculdade teria abordado com chacota assuntos como marchinhas racistas e a questão

racial na obra do escritor Monteiro Lobato”, após presenciar esta situação, os estudantes

se organizaram e tentaram promover um debate sobre isso em sala de aula. Por sua vez,

a Professora exigiu que os estudantes fossem retirados pelos seguranças do campus.

A partir desta situação, os estudantes tiveram a ideia de criar a campanha para

denunciar a situação e dar visibilidade a outros casos de racismo em ambientes voltados

para a educação. A primeira ação da campanha foi publicar uma carta em repúdio9, que

relatava a situação e convidava os leitores para compartilharem a hashtag10 “Meu

Professor Racista” (#MeuProfessorRacista) acompanhada de um relato sobre

suas vivências relacionadas ao racismo na escola ou na universidade.

8 Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/blogs/buzz/noticia/2017/04/meu-professor-racista-

campanha-denuncia-racismo-em-sala-de-aula.html> Acesasdo em 07/2018. 9 A carta publicada pelo Coletivo Ocupação Preta USP Disponível em: <http://desabafosocial.com.br/blog/2017/04/03/meuprofessorracista-nova-hashtag-relata-racismo-de-professores/>

Acessado em 07/2018. 10 Hashtags são compostas pela palavra-chave do assunto antecedida pelo símbolo cerquilha (#). As hashtags viram ligações dentro da rede e servem como mecanismos facilitador de busca.

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Imagem 3: Post da Página Ocupação Preta.11

Além da campanha “Meu professor Racista”, citaremos de forma bem pontual

outras campanhas realizadas por grupos de estudantes negros de diferentes estados

brasileiros, com o objetivo de contribuir para compreensão das questões aqui colocadas.

Os [...] casos de acontecimentos aqui tratados contêm como elemento

comum o papel de protagonista que as redes sociais tiveram na sua constituição. Eles possuem a natureza da rede e enquadram-se naquilo

que se compreende agora como ciberacontecimento. Os

acontecimentos percebidos nessa categoria não só articulam-se pelas redes sociais, como também geram uma forma de construção coletiva

inédita em processos convergentes. (Henn et al., 2012, p.114)

É interessante perceber que, apesar de situações marcadas pelo racismo

acontecerem todos os dias no cotidiano das universidades brasileiras, a forma como o

acontecimento da USP foi noticiado e construído nas páginas dos sites de redes sociais

do Coletivo Ocupação Preta USP, quebraram momentaneamente o ciclo de

silenciamento e invisibilidade sobre o racismo em espaços de educação e criaram um

momento oportuno para expor e debater essas experiências. Sendo assim, também se faz

necessário perceber que

os acontecimentos (são) portadores de elementos específicos correspondentes às mídias que lhes são contemporâneos. [...] Cada

situação midiática transforma um pouco a natureza do acontecimento,

que passa a conter nele próprio, as dinâmicas dos meios de

comunicação em que se engendra. (Henn et al., 2012, p. 102 )

Neste caso, o que marcou a campanha e a reverberação do acontecimento foi a

forma como público pôde participar contando suas próprias experiências, este elemento

foi fundamental para o sucesso da campanha. A hashtag se espalhou rapidamente e

contribuiu não somente para denunciar e dar visibilidade para o caso, como também

para expor que o racismo faz parte da experiência coletiva de estudantes negros de

11 Disponível em: <https://www.facebook.com/Ocupa%C3%A7%C3%A3o-Preta-352926291570552/>. Acessado em: 07/2018

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diferentes níveis escolares. Milhares de relatos vinculados à hashtag surgiram e sem

dúvida criaram um espaço importante de visibilidade para o problema.

Para França e Almeida (2008), o acontecimento importa por suas

consequências, pela maneira como penetra na vida social,

transformando-a. Caracteriza-se, sobretudo, pela interferência nos comportamentos e pelo atravessamento que produz na experiência

daqueles que o sofrem. Ao projetar um horizonte de sentido que lhe é

próprio, o acontecimento cria contexto institucional de sentido que convoca os indivíduos a assumirem um posicionamento. Mesmo que

individualmente haja uma experiência singular do acontecimento,

existe uma experiência coletiva que gera o ambiente interpretante em

que as possibilidades de sentido ganham contornos mais efetivos. Ao se configurar como mediação, o acontecimento passa a se instituir

como uma experiência pública.” (Henn, Höehr, Berwanger, 2012,

p.107)

Os relatos acompanhados da hashtag foram muito diversos, envolviam todas as

fases da educação e foi difícil, até para os conglomerados midiáticos, que pouco tocam

no assunto, ignorar a situação, como de costume.

Sites de Redes Sociais e discursos de ódio

No caso da campanha “Meu professor Racista”, fica explícita a contribuição da

cultura participativa para a ampliação do debate sobre racismo.

A expressão cultura participativa contrasta com noções mais antigas

sobre a passividade dos espectadores dos meios de comunicação. Em

vez de falar sobre produtos e consumidores de mídia ocupantes de

papéis separados, podemos agora considera-los como participantes

interagindo de acordo com o novo conjunto de regras, que nenhum de

nós entende por completo. (JENKINS, 2009, p 30).

Porém, é importante ressaltar que os meios de comunicação que contam com a

possibilidade de grande interação do público também são frequentemente utilizadas

como ferramentas para disseminação de discursos de ódio. Para tornar isto mais claro,

observaremos os ataques racistas direcionados à página no Facebook do Coletivo de

Estudantes Negrxs da Universidade Federal Fluminense. Em abril de 2016, este

Coletivo reproduziu em seu campus e divulgou em sites de redes sociais uma campanha

intitulada “Ah Branco, dá um tempo!”, criada por estudantes negros da Harvard

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University12. Nesta campanha os/as estudantes tiraram fotos segurando um pequeno

cartaz em que se lia uma frase racista que aquele/a estudante tinha ouvido na

universidade. Seguem duas das imagens da campanha “Ah branco, dá um tempo!”.

Imagem 1: Campanha “Ah Branco, dá um tempo!”, promovida pelo Coletivo de Estudantes

Negrxs da UFF. No quadro está escrito “O perfil dos estudantes está mudando. Agora

são pretos, pobres e feios”.13

12 Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/noticias/2014/03/07/estudantes-negros-de-harvard-

lancam-campanha-contra-o-racismo.htm>. Acessado em 07/2017. 13 Disponível em <https://www.facebook.com/Coletivo-de-Estudantes-Negrxs-da-UFF-264975437015811/r>. Acessado em: 07/2018

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Imagem 2: Campanha “Ah Branco, dá um tempo!”, promovida pelo Coletivo de Estudantes

Negrxs da UFF. No quadro está escrito “A Maioria dos cotistas são semi-analfabetos”.14

A maior parte das fotografias demonstrava o quão violenta e latente é a

reprodução de estereótipos sobre os corpos de estudantes negros/as em espaços de

educação, em muitas das imagens era possível ver que os estudantes negros/as foram

caracterizados por professores/as ou colegas como: feios, sem inteligência, com baixo

nível de educação (mesmo estando nos cursos de graduação mais elitizados).

É bom recordar que para Hall (1997), produzir estereótipos serve para

a manutenção tanto da ordem social, quanto da ordem simbólica de

nossa sociedade. As dificuldades impostas pelo seu uso se referem ao seu caráter de reduzir, essencializar, naturalizar e fixar a diferença do

Outro. [...]Estereotipar seria, portanto, “um elemento chave no

14 Disponível em: <https://www.facebook.com/264975437015811/photos/a.441518089361544.1073741834.264975437015811/441518722694814/?type=3&theater>. Acessado em: 07/2018

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exercício da violência simbólica”. (DAMACENO apud HALL. 2013.

p.3)

Inicialmente, a campanha teve uma repercussão muito interessante e uma taxa alta

de engajamento. Poucos dias após o lançamento, a página no Facebook do Coletivo de

Estudantes Negrxs da UFF recebeu um ataque, no qual centenas de comentários racistas

e que incitavam a violência foram postados nas fotos da campanha. O número foi tão

grande que os administradores da página precisaram retirar algumas das fotos da rede,

para proteger os participantes da campanha, que receberam ameaças através de

mensagens privadas no Facebook.

Campanha #MeuProfessorRacista e a “desnaturalização” do sofrimento de pessoas

negras

Observando os diferentes usos dos sites de redes sociais, percebemos que os

meios de comunicação contribuem para modificar a nossa interpretação e relação com o

mundo. Neste caso, o acontecimento e as campanhas citadas são bons exemplos de

como as mídias sociais mediam a nossa experiência e são ferramentas que podem ser

utilizadas para gerar sentimentos e sensações através de suas diversas linguagens. Os

relatos pessoais que fizeram parte da campanha “Meu Professor Racista”, além de

demonstrarem a gravidade da situação, tiveram a capacidade gerar um forte sentimento

incômodo e angústia. Para explicar isto, farei um relato da minha própria experiência no

processo de escrita deste texto e em seguida, reproduzirei algum dos relatos que

integraram a campanha. Mesmo sabendo o quanto as situações racistas são frequentes

nos espaços de educação e sendo uma mulher negra acadêmica que tem o cotidiano

marcado por isso, ler os relatos que são parte da campanha me causou grande

desconforto. O incômodo foi ainda mais intenso ao ler posts que rememoravam as

violências raciais que ocorreram durante a infância, nos primeiros anos da educação

infantil de alguns/mas estudantes negros/as.

Eu também participei da campanha expondo uma das situações racistas que

vivenciei na escola. Através do meu relato no Facebook, um dos meus professores do

ensino médio entrou em contato comigo, perguntando sobre a situação, o que acabou

por gerar uma conversa e reflexões sobre educação e racismo com um educador que não

tem acesso a essa discussão com frequência, como ele mesmo relatou.

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A quantidade e diversidade de relatos produziu uma campanha bastante

humanizada, que não trata o sofrimento e humilhação de pessoas negras como algo

natural. A campanha praticamente materializa o racismo diante dos olhos, até mesmo

daqueles que estão mais cegos sobre o assunto. Seguem alguns dos posts da Página

Ocupação Preta, com os relatos de estudantes que participaram da campanha

#MeuProfessorRacista:

Imagem 3: Post da Página Ocupação Preta15.

Imagem 4: Post da Página Ocupação Preta.16

Considerações finais

É necessário ressaltar que as mensagens que o Coletivo Ocupação Preta USP (e

outras organizações de estudantes negros/as) se esforça para reverberar, não é nova.

Desde o início do século XIX, diversos movimentos negros no Brasil denunciam o

racismo institucional e a quase ausência de negros e negros em espaços de poder através

de jornais, palestras e congressos, que ainda não tinham tanto alcance e reverberação

quanto tem atualmente. É claro que ainda não há um cenário ideal, mas sem dúvidas

15 Disponível em. <https://www.facebook.com/Ocupa%C3%A7%C3%A3o-Preta-352926291570552/>. Acessado em dezembro de 2017 16 Disponível em <https://www.facebook.com/Ocupa%C3%A7%C3%A3o-Preta-352926291570552/>. Acessado em dezembro de 2017

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houve avanços. A partir da expansão do acesso a internet e, principalmente, depois do

advento das mídias sociais, no início dos anos 2000, a forma como muitos movimentos

sociais denunciam situações ou afirmam suas demandas foi modificada e a maneira

como as pessoas e movimentos se articulam, interagem e respondem a isso, também. Os

debates sobre relações raciais no Brasil ganharam mais visibilidade a partir do uso dos

sites de redes sociais, o que vem contribuindo para alavancar os movimentos de

estudantes negros universitários, que, apesar do cenário geral de retrocesso, continuam

intensificando sua organização política, ganhando cada vez mais espaços e garantindo

direitos em diferentes estados do Brasil. Um exemplo disso foi a criação de campanhas

exitosas para a implementação de cotas raciais na Unicamp e na USP, em 2015. No

Espírito Santo, em 2016, estudantes da UFES fizeram denúncias e organizaram atos

públicos (que foram filmados e divulgados em sites de redes sociais) que levaram ao

afastamento de um professor, após ter dito em sala de aula que se pudesse escolher para

ser atendido entre um médico negro e um médico branco, escolheria o branco17. Dentre

muitos outros casos.

É nítida a dificuldade que a sociedade brasileira tem para tocar nos latentes

problemas raciais, muitas vezes isso é evitado, mas mesmo assim os esforços dos

movimentos negros contemporâneos vêm produzindo uma série de efeitos no campo das

disputas por narrativas e na garantia de direitos.

Referências: BIANCHI, Paula; VILELA, Taís Vilela 2014 “Cresce número de quem se diz 'preto' e

'pardo'; grupo chega a 53% no país” em <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-

noticias/2014/09/18/ibge-n-de-autodeclarados-pretos-e-pardos-sobe-e-negros-sao-45-no-pais.htm>. Acessado em: 07/2018.

Coletivo de Estudantes Negrxs da Universidade Federal Fluminense <https://www.facebook.com/Coletivo-de-Estudantes-Negrxs-da-UFF-264975437015811/>. Acessado em: 07/2018.

Educação Básica:

<http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=618>

Acessado em: 07/2018

DAMACENO, Janaína. O corpo do Outro. Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, 2008.

17 Disponível em < http://g1.globo.com/espirito-santo/educacao/noticia/2015/11/professor-denunciado-

por-racismo-na-ufes-diz-que-foi-afastado.html> Acesado em 07/2018

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Em 3 anos, 150 mil negros ingressaram em universidades por meio de cotas, 2015.

Disponível em:<http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/noticias/2016/03-marco/em-3-

anos-150-mil-negros-ingressaram-em-universidades-por-meio-de-cotas>. Acessado em

07/2018.

Estatuto da Igualdade Racial. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm>.Acessado em: 07/2018

Estudantes negros de Harvard lançam campanha contra o racismo, 2014 em

<https://educacao.uol.com.br/noticias/2014/03/07/estudantes-negros-de-harvard-lancam-

campanha-contra-o-racismo.htm> Acessado em: 07/2018.

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