Metrópole e memória: a origem das práticas de conservação

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  • 15

    1 Metrpole e memria: a origem das prticas de conservao

    O panorama geral

    A metrpole em sua formao configura um complexo quadro cultural

    que aproxima e potencializa fenmenos significativos para a

    definio das razes da problemtica moderna do restauro: a criao

    da esttica como disciplina filosfica e especfica, a histria da arte

    como histria do estilo, a difuso dos museus, o surgimento do

    urbanismo e da arqueologia como disciplinas autnomas, a

    iconoclastia dos sans culottes e a pronta reao das instituies

    republicanas francesas, enfim, a crena no progresso cientfico, junto

    valorizao romntica do passado.

    Este artigo trata das relaes entre o ambiente cultural de formao

    das metrpoles e o surgimento das primeiras teorias voltadas

    preservao dos bens culturais. O interesse do estudo apresentar o

    fenmeno metropolitano, com seus novos modos de convvio

    sociocultural, como um dos elementos fundamentais a desencadear

    o processo de reorganizao da memria que est implcito no

    pensamento do restauro moderno.

    O objetivo principal dessa abordagem recuperar e contextualizar a

    origem da construo de idias que contribuem para constituir o

    campo disciplinar do restauro, com base na compreenso de valores

    e prticas elaborados a partir do final do sculo XVIII e durante o

    XIX. Retomar esse momento histrico, detendo-se nas premissas

    que se apresentam para a formulao do problema da conservao e

    do restauro, propicia investigar tanto a semntica dos conceitos

    elaborados, quanto a maneira como esses temas ecoam na

    atualidade. No se trata aqui de esgotar o tema, uma vez que j foi

    amplamente abordado em inmeras publicaes. Busca-se, isto sim,

    sintetizar os aspectos essenciais desse contexto cultural,

    aproximando as interpretaes do campo especfico do restauro

    daquelas do campo mais geral da historiografia da arquitetura.

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    A idia de preservao aqui reconhecida como fruto da

    modernidade, uma noo que nasce no mesmo momento em que o

    movimento da arte moderna arrisca seus primeiros passos.

    Memria e inveno, nesse contexto, so dados entrelaados

    ainda que por vezes sejam considerados como opes incompatveis

    entre si e a cidade matriz de transformao.

    Como se sabe, as expresses do pensamento e as manifestaes

    artsticas desse perodo histrico esto intimamente ligadas ao

    quadro de transformaes profundas da ordem social, econmica e

    poltica que remonta transio do feudalismo para o capitalismo.

    Nesse panorama, o despotismo esclarecido e o iluminismo1 tm

    grande relevncia: o primeiro por mudar a concepo do Estado, o

    segundo por propiciar o desenvolvimento das correntes racionalistas

    e empiristas que constituem a base terica das revolues poltica e

    industrial.

    Paris local onde habita a Razo2, onde se prepara a Enciclopdia

    (1751-72) e a Revoluo, cidade do Homem Universal centro vital

    desse quadro e continuar a s-lo na condio de capital das

    vanguardas modernistas, no incio do sculo XX. A capital

    indiscutivelmente figura como smbolo do sculo das Luzes que,

    alis, rene condies privilegiadas tanto para a difuso do

    conhecimento, como para a criao de uma nova conscincia

    histrica. Trata-se de uma nova mentalidade que privilegia formas

    dedutivas de conhecimento como meios adequados para a

    compreenso da realidade, em detrimento da intuio, misticismo, f

    ou revelao religiosa, o que concorre de forma definitiva para o

    questionamento da tradio.

    o que Marvin Perry3 identifica como afirmao da razo e da

    liberdade, nascida no ambiente cosmopolita de Paris, capital do

    Iluminismo, e que se difunde s principais cidades da Europa

    ocidental e da Amrica do Norte. Assim explica o autor:

    1 Conforme Franco Venturi em Utopia e riforma nellilluminismo, Turim: Einaudi,

    1970, p.151. 2 Essa expresso comparece em AZEVEDO, Ricardo M. de. Metrpole e abstrao.

    So Paulo: Perspectiva, 2006, p.10, referindo-se ao discurso de Cloots na Assemblia de Paris. 3 Em: Civilizao ocidental. Uma histria concisa. So Paulo: Martins Fontes, 1985,

    p. 296.

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    Newton descobrira leis universais que explicavam os

    fenmenos fsicos. Os philosophes ento indagavam: no

    haveria tambm regras gerais que se aplicassem ao

    comportamento humano e s instituies sociais? Seria

    possvel criar uma cincia do homem que correspondesse

    cincia da natureza de Newton? (...) Ao defenderem a

    metodologia cientfica, os philosophes afirmaram o respeito

    pela capacidade da mente e pela autonomia humana (...)

    rejeitando a interveno do clero e da autoridade

    principesca, ela (a mente) conta com a sua prpria

    habilidade de pensar e confia nas evidncias de sua prpria

    experincia.

    Em tempos mais distantes predomina a prtica generalizada de se

    dispor das obras do passado para adapt-las sem restries s

    necessidades do presente. Contribui para esse comportamento

    usual, a ausncia de uma demarcao mais evidente entre passado,

    presente e futuro. [1] [2]

    [1] O antigo teatro de Marcello transformado em Palazzo Orsini por Baldassare Peruzzi no sc. XVI.

    [2] A igreja de San Lorenzo in Miranda, inserida no prtico remanescente de um antigo templo romano, projeto de Orazio Torriani, 1602. Fonte: DellOrto, 1982, p. 52 e 31.

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    Se at ento persistia uma noo de continuidade no transcurso do

    tempo, o pensamento iluminista contribui efetivamente para

    contrapor-se a essa condio. Ao negar a autoridade incontestvel

    da tradio e buscar a aplicao do mtodo cientfico ao universo

    humano, propicia uma ntida separao entre passado e presente.

    justamente a manifestao de uma atitude crtica do homem frente

    ao seu passado a configurar essa ntida separao.

    Passado e presente: dilema entre diviso e conexo

    Se, por um lado, a observao distanciada de sua vivncia permitiu

    ao indivduo uma condio mais objetiva de anlise histrica, por

    outro, a continuidade entre seu passado e o presente, antes

    propiciada pela tradio, acaba por ser restabelecida de uma nova

    forma. Por isso a necessidade de se instaurar outra espcie de ponte

    entre o ontem e o devir, agora baseada no sentimento de que o

    passado continuava a viver atravs da nostalgia4.

    Sob essa perspectiva, o sentimento romntico de apego ao passado,

    que concilia historicismo e nacionalismo e conduzir aos diversos

    revivals estilsticos do sculo XIX corresponde a um meio de

    preencher o hiato criado entre passado e presente.

    caracterstica marcante dos tempos de mudanas no se encontrar

    uma congruncia rigorosa de idias: em meio s significativas

    transformaes tcnicas e sociais, observam-se tambm importantes

    focos de resistncia s mudanas. Se h uma vertente racionalista

    que tende a cultivar o mito do desenvolvimento linear do progresso,

    mantendo sua ateno voltada a um futuro promissor para a

    humanidade, h, por outro lado, uma corrente romntica mais

    interessada em reatar os vnculos com o passado.

    A produo cultural dos sculos XVIII e XIX, portanto, traz em seu

    bojo essa oscilao entre o esprito racionalista, como expresso de

    um conhecimento universal, e o esprito romntico, enquanto

    manifestao de sentimentos nacionalistas e estmulos individuais.

    4 Paul Philippot em artigo: Restauro: filosofia, criteri, linee guida. Em revista

    Strumenti 17, 1998, p. 43.

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    A propsito de contraposio de idias, Giulio Carlo Argan5, ao tratar

    das manifestaes artsticas que antecedem a produo moderna do

    incio do sculo XX, refere-se a dois termos recorrentes: clssico e

    romntico. Designam, segundo o autor, duas vises de mundo que

    estabelecem entre si uma relao dialtica e esto presentes na

    origem da cultura artstica moderna. O clssico, explica Argan, est

    ligado arte do mundo antigo greco-romano, assim como cultura

    humanstica do sculo XV e XVI; o romntico associado arte

    crist da Idade Mdia, especialmente s manifestaes romnicas e

    gticas.

    Ao discorrer sobre essas diferentes concepes de arte, Argan

    retoma Wilhelm Wrringer (1881-1965)6, segundo o qual cada uma

    dessas vises est relacionada a uma condio cultural e geogrfica

    que sintetiza a relao entre o homem e a natureza: a clssica

    reporta ao mundo mediterrneo, onde essa relao clara e positiva;

    enquanto a romntica alude ao mundo nrdico, onde a natureza

    fora misteriosa e muitas vezes hostil.

    Cada uma dessas posies vai ser investigada por outros autores,

    sob pontos de vista diversos, a partir da criao do campo disciplinar

    da esttica. Esse , sem dvida, o momento de teorizao da arte

    sob a forma de uma filosofia da arte, a esttica, em substituio ao

    vis tratadista que vigorou desde o Renascimento. Como observa

    Argan7:

    Teorizar (sobre) perodos histricos significa transp-los da

    ordem dos fatos quela das idias ou dos modelos: de

    fato a partir da metade do sculo XVIII que aos tratados ou

    s preceptivas do Renascimento e do Barroco substitui-se, a

    um mais elevado nvel teortico, uma filosofia da arte

    (esttica).

    O autor esclarece que inicialmente o tratado da arte atendia ao

    pressuposto da arte universal, como norma a ser colocada em

    prtica, um raciocnio pertinente ao pensamento clssico. Nos novos

    5 Em: LArte moderna. Florena: Sansoni, 1988, p. 3.

    6 Em obra intitulada Abstrao e Natureza.

    7 Op. cit., p.3. (traduo da autora)

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    tempos em que a arte no mais considerada um meio de

    conhecimento da realidade, nem tampouco um meio de

    transcendncia religiosa, mas sim um modo de ser do esprito

    humano, a investigao terica toma novos rumos. Enquanto a

    noo de arte calcada no pensamento antigo pressupe o dualismo

    entre o modelo e a imitao, recorrendo mimesis, a concepo

    romntica invoca a poiesis, ou seja, o prprio fazer artstico, centrado

    agora na intencionalidade do artista, na criao propriamente dita.

    Aqui est, segundo Argan, a origem da autonomia da arte, prpria do

    movimento moderno. Refere-se compreenso da arte como uma

    experincia primria que no tem outra finalidade seno a prpria

    criao.

    Ao discorrer sobre o pensamento romntico, h autores, entre os

    quais Azevedo, que fazem uso do plural romantismos a enfatizar

    a ausncia de um programa coeso e unitrio para as vrias

    manifestaes artsticas relacionadas a esse universo peculiar. De

    todo modo, a historiografia da arte em geral destaca a predominncia

    de um sentimento que se evidencia na confluncia de correntes que

    renegam as preceptivas artsticas da tradio clssica, em favor de

    uma valorizao da capacidade ilimitada do gnio.

    O interesse pela memria

    A memria e sua prtica interessam tanto aos romnticos quanto aos

    racionalistas, se que podem ser identificados em posies

    rigorosamente contrapostas. Para os romnticos, a memria motivo

    de encantamento. Conforme explica Le Goff, o romantismo

    reencontra, de um modo mais literrio que dogmtico, a seduo

    pela memria8. Para exemplificar, recorre a Michelet que, na

    traduo da obra de Vico, De antiquissima italorum sapientia (1710),

    encontra a ligao entre memria e imaginao, memria e poesia.

    Fantasia e inveno so atributos indissociveis da produo de

    Giovanni Battista Piranesi (1720-78), figura de destaque no cenrio

    cultural da poca. Clebre por suas gravuras, entre as quais as

    Vedute di Roma (Vistas de Roma), vises panormicas das runas

    8 LE GOFF J. Memria-Histria. Enciclopdia Einaudi. Vol. I Lisboa: Imprensa

    Nacional Casa da Moeda, 1984, p. 37.

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    romanas, estimulou a imaginao dos seus contemporneos e

    inspirou com suas reconstrues fantsticas os adeptos das

    concepes neoclssicas e romnticas. Os seus Carceri dinvenzioni

    (Projetos de prises imaginrias) [3] [4] prefiguram, segundo Scully9,

    o fim do velho mundo humanista, centrado no homem, com seus

    valores fixos o comeo da era das massas da histria moderna,

    com seus ambientes enormes e continuidades precipitadas.

    Imagens de espaos ameaadores, continuam a ser fonte de

    inspirao de vrios autores do sculo XX, entre os quais o cineasta

    Serge Eisenstein e o dramaturgo Peter Weiss 10.

    Para os racionalistas, a memria importante instrumento de

    conscientizao coletiva, no s de rememorao e comemorao,

    mas tambm de reordenao e reedio de situaes e informaes

    passadas. Nesse sentido, a funo da memria no

    exclusivamente de celebrao, mas principalmente de releitura e

    reinterpretao dos acontecimentos.

    9 Em Arquitetura moderna. So Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 19.

    10 Em THOENES, C. Et al. Teoria da arquitectura. Do renascimento at nossos dias.

    Lisboa: Taschen, 2003, p. 164, comenta-se a respeito da evocao da obra de Piranesi presente em autores contemporneos.

    [3] [4] Projetos de Prises Imaginrias, 1761, G. B. Piranesi. Fonte: Argan, 1988, p. 392.

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    Por essa razo na Frana, aps a Revoluo, so criados os

    arquivos nacionais que renem os documentos da memria da

    nao. Criam-se tambm instituies responsveis pela formao de

    especialistas aptos a organizar e fazer funcionar esses arquivos. O

    mesmo acontece com os museus, como se observa na anlise a

    seguir.

    Ganha assim importncia, no contexto das principais metrpoles, a

    ao de historiadores, colecionadores, antiqurios, arquelogos,

    alm de literatos, pintores e arquitetos que se dedicam

    investigao, apreciao e conservao de obras de arte,

    documentos e runas. So intelectuais estimulados pelo projeto de

    democratizao do conhecimento que acompanha o iluminismo,

    empenhados em atividades de diversa natureza, mas que contribuem

    em conjunto para fortalecer a ligao entre memria e identidade e,

    por extenso, a noo de preservao.

    Memria e coletnea

    Nessa condio de difuso do saber, ou dos saberes, com o

    desenvolvimento de reas especficas do conhecimento, a

    arqueologia afirma-se pouco a pouco como disciplina autnoma.

    Cincia que, a partir das evidncias materiais criadas pelos homens,

    investiga os costumes e culturas dos antepassados, a arqueologia se

    estabelece como especializao do estudo da histria. Sua

    consolidao requer a adoo de mtodos sistemticos de

    levantamento e classificao, alm dos processos de coleta e

    escavao.

    O interesse pelos vestgios especficos da antigidade clssica se

    intensifica aps os trabalhos de escavao da cidade de Paestum

    (1746), na Magna Grcia, assim como das antigas cidades romanas:

    Pompia (1748) e Herculano (1755). A descoberta desses stios

    que permaneceram enterrados por muitos sculos alm de causar

    grande comoo, foi um dos fatos decisivos para confirmar o sentido

    de separao entre passado e presente. Mostrava-se evidente a

    descontinuidade entre o momento do sepultamento e o da

    descoberta: Paestum vinha desbravada; Pompia e Herculano

    voltavam, literalmente, luz.

  • 23

    A propsito da arqueologia, convm destacar o papel do historiador e

    arquelogo Johann Joachim Winckelmann (1717-68), por estabelecer

    em sua obra Histria da arte na Antigidade (1764) as bases da

    histria da arte como histria do estilo, e exercer forte influncia

    sobre o desenvolvimento da arquitetura neoclssica11.

    So, portanto, inmeros os fatores a mobilizar o interesse e a

    institucionalizar a conservao material sistemtica dos bens

    culturais. A reflexo sobre a arte, as descobertas arqueolgicas, a

    criao dos arquivos e dos museus12 destinados ao grande pblico,

    so os agentes mais significativos a interferir nesse processo.

    O museu, importante instituio desse contexto cultural, como

    observa Franoise Choay13, comea a aparecer na sua acepo

    atual, durante o sculo XVIII, seja pela ampliao e transformao

    dos espaos privados de coleo em espaos abertos visitao

    pblica, seja pela transferncia de bens da Coroa e do Clero para a

    nao, em um procedimento de expropriao comum na Frana ps-

    revolucionria.

    Memria, nomenclatura e significados

    Museu e Encyclopdie tm em comum um propsito didtico. Nas

    pginas de introduo do Dictionnaire raisonn des sciences, des

    arts e des mtiers, conforme aponta Paolo Rossi, DAlembert enfatiza

    a importncia de um trabalho continuamente iluminado pelo

    conhecimento dos princpios tericos que lhe servem de base, e de

    uma pesquisa terica capaz de ceder lugar a aplicaes prticas e

    de se reconverter em obras (...). Observa-se que os enciclopedistas

    quando se voltavam aos artesos da Frana, interrogando tcnicos

    e operrios e, a seguir, tentando definir com exatido os termos,

    mtodos e procedimentos prprios das vrias artes, para inseri-los

    11

    Paul Phillipot em artigo: Storia e attualit del restauro. Em: Strumenti 17, 1998, p.

    101 12

    Idem, p. 89. Museus criados no sc. XVIII: British Museum, Museo Pio Clementino em Roma e Louvre em Paris. 13

    Em Alegoria do patrimnio. So Paulo: Estao Liberdade: UNESP, 2001,

    especialmente nas pginas.62 e 97, a autora tece consideraes sobre a criao dos museus na Frana.

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    num corpus orgnico e sistemtico de conhecimento 14, buscavam

    estabelecer um vnculo estreito entre teoria e prtica.

    Confirmao dessa preocupao em promover os fatos da prtica,

    relegados tradicionalmente a segundo plano, prossegue Rossi, o

    prprio verbete Art da Encyclopdie, em que se critica a distino

    tradicional entre artes liberais e artes mecnicas, por reforar o

    preconceito de que a ateno aos objetos sensveis e materiais

    constitui uma renncia dignidade do esprito humano.

    Diretamente ligada ao tema deste estudo, a ampliao da

    terminologia referente anlise histrica ocorre impulsionada

    justamente pela influncia do esprito da Enciclopdia. Novos

    significados so incorporados ao vocabulrio corrente: documento,

    monumento, patrimnio, preservao, restauro. So vocbulos cujo

    emprego freqente remete aos novos mtodos da memria coletiva e

    do estudo da histria, um reflexo das preocupaes do homem de

    manter contato vivo com as obras produzidas pela cultura do

    passado.

    Documento e monumento tm primazia entre os materiais da

    memria coletiva e da histria15. O vocbulo latino documentum,

    derivado de docere, ensinar, com o tempo adquire o sentido de

    prova documental e, a partir do sculo XIX, o de testemunho

    histrico. J o termo monumento, do latim monumentum, derivado

    de monere, lembrar, rememorar, em origem indica aquilo que traz

    lembrana acontecimentos, ritos, crenas. Logo, genericamente o

    monumentum um cone do passado, enquanto obra representativa

    construda para fins simblicos e no para atender a usos

    especficos. Desde a antigidade romana, o monumento tende a

    dividir-se em dois tipos: uma obra comemorativa ou um monumento

    funerrio. Veyne16 ressalta a usual manipulao da memria coletiva

    exercida pelos imperadores romanos e a conseqente reao do

    senado contra a tirania imperial, ao criar um expediente que permite

    cancelar o nome do imperador defunto dos documentos de arquivo e

    das inscries monumentais, a damnatio memoriae. Ao poder da

    14

    Em Os filsofos e as mquinas.So Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 112. 15

    A respeito da importncia e da variao de significados, consultar LE GOFF, op. cit., pp. 95-104. 16

    Apud LE GOFF, op. cit., p. 37.

  • 25

    memria contrape-se a destruio da memria, mecanismo

    empregado por diversas vezes, no sculo XX, em circunstncias

    ligadas a regimes totalitrios. Com o transcurso do tempo, o

    monumento no s consolida o sentido de obra grandiosa construda

    com o objetivo de contribuir para a perpetuao memorialstica de

    uma pessoa ou acontecimento relevante na histria de uma

    comunidade, mas incorpora tambm uma conotao esttica.

    O monumento histrico do sculo XIX, contemporneo nomeao

    da Comisso dos Monumentos Histricos da Frana, em 1837, inclui

    trs categorias de edifcios: os remanescentes da antigidade, os

    edifcios religiosos medievais e alguns castelos. Trata-se de uma

    classificao formulada para fins de inventrio e tutela de bens que

    constituram alvos de ataques da populao contra os smbolos do

    Ancien Rgime.

    De incio, o monumento associado a um passado remoto, ao status

    de raridade e suntuosidade, aos poucos vai adquirindo um sentido

    mais abrangente, equiparvel conotao de outro vocbulo

    tambm aplicado ao universo da conservao da memria:

    patrimnio.

    Etimologicamente o sentido do termo patrimnio17, proveniente do

    latim patrimonium, corresponde ao conjunto de bens pertencente ao

    pai, o pater. O significado consolida-se como conjunto de bens

    transmitidos dos pais aos filhos por herana. Com o tempo, seu

    emprego no se limita s estruturas familiares, mas passa a ser

    aplicado s empresas e instituies pblicas. Entre os sculos XVIII

    e XIX, o termo ganha uma nova compreenso: patrimnio histrico.

    Assim explica Choay:

    A expresso designa um bem destinado ao usufruto de

    uma comunidade que se ampliou a dimenses planetrias,

    constitudo pela acumulao contnua de uma diversidade

    de objetos que se congregam por seu passado comum:

    obras e obras-primas das belas-artes e das artes-aplicadas,

    17

    COLONNA, B. Dizionario etimologico della lingua italiana. Gnova: Newton & Compton, 1997, p. 283.

  • 26

    trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos

    seres humanos.18

    Considerado suporte da memria, fonte da histria dos homens,

    portador de significado, o patrimnio - para se constituir como tal -

    pressupe o reconhecimento de valor, a adoo de critrios de

    seleo, e, implicitamente, a importncia da conservao. Sob esse

    aspecto, s a preservao possibilitar o usufruto do legado recebido

    do passado e a sua conseqente transmisso s geraes futuras.

    Memria, preservao e restauro

    Pode-se afirmar que antes da revoluo, na Frana, a idia de

    conservao nasce a partir da viso crtica da histria. No perodo

    sucessivo, entre 1790 e 1820, no entanto, a preservao passa a ser

    uma ao necessria e imprescindvel para evitar o cancelamento do

    passado. Trata-se de impedir a destruio provocada pela onda de

    vandalismo por parte da populao perigosa, a turba19, que atinge os

    monumentos considerados smbolos do antigo regime e de suas

    classes dominantes: o clero e a nobreza.

    Processos histricos emblemticos, a Revoluo Francesa e a

    Revoluo Industrial, da mesma forma que apontam para o futuro,

    para transformaes de ordem prtica e conceitual, reconstroem o

    vnculo com o passado.

    Na Inglaterra, dois aspectos contribuem especialmente para

    despertar o interesse pela conservao: a indignao provocada pela

    lembrana do vandalismo religioso da Reforma; a reao s rpidas

    e radicais transformaes causadas pela revoluo industrial, seja na

    forma de produo artstica, seja no ambiente urbano.

    Frana, Inglaterra e Itlia, no por acaso, so palco dos primeiros

    debates e aes voltadas preservao do patrimnio cultural. As

    condutas so diferenciadas pela prpria condio de cada pas:

    Frana e Inglaterra envolvidas com os respectivos processos

    18

    CHOAY, op. cit., p. 11. 19

    Expresso corrente com que se designa a multido exaltada na poca da Revoluo. Cf. AZEVEDO, op. cit., p.7.

  • 27

    histricos revolucionrios e a Itlia diretamente relacionada

    afirmao da arqueologia.

    As teorias formuladas pelos pioneiros o francs Eugne Viollet-le-

    Duc e o ingls John Ruskin apesar de assumirem posies

    antagnicas, tm uma origem comum: a correlao com o esprito

    nostlgico dominante no perodo. A posio dos italianos, por sua

    vez, reflete a conduta sistemtica que acompanha os trabalhos j

    mencionados de escavao arqueolgica.

    Viollet-le-Duc (1814-1879), historiador, terico e restaurador, atua

    num momento em que a ao do Estado francs faz-se necessria

    para impedir a continuidade da escalada de vandalismo que se

    desenvolve aps a Revoluo Francesa.

    Aps integrar uma comisso que elaborou um levantamento

    criterioso das edificaes de interesse patrimonial e das condies

    de conservao, passou a participar das primeiras iniciativas de

    restaurao, entre as quais, as catedrais de Paris, Chartres e

    Amiens. Estabeleceu ento uma conduta de interveno, aps

    dedicar-se atentamente ao estudo das tcnicas construtivas,

    especialmente das catedrais gticas. [5] [6]

    Ao propor a recuperao dos edifcios, reporta-se ao conceito de

    estilo, entendido como uma realidade histrico-formal unitria e

    coerente circunscrita no tempo e bem definida nas suas

    caractersticas fsicas. O estilo seria uma expresso direta de uma

    poca, de um momento histrico, o que autorizaria a hiptese da

    reconstruo de partes no mais existentes. Com base nesse

    conceito, a posio de Viollet-le-Duc, que se torna conhecida como

    restauro estilstico, autoriza a restabelecer o estado primitivo

    unitrio do edifcio. Em outras palavras, legitima as livres

    experincias de reconstruo e de livre composio em nome da

    exaltao de uma hipottica unidade estilstica.

    No Dictionnaire raisonn de larchitecture franaise du XI au XVI

    sicle (editado entre 1854 e 1868), de Viollet-le-Duc, assim diz o

    verbete restaurao20: restaurar um edifcio no mant-lo, repar-

    20

    O verbete foi traduzido para o portugus por Beatriz M. Khl e publicado em 2000, na coleo Artes&Ofcios da editora Ateli Editorial, que tm reunido relevantes

  • 28

    lo ou refaz-lo, restabelec-lo em um estado completo que pode

    no ter existido nunca em um dado momento. 21

    Giovanni Carbonara22 comenta que a postura de Viollet-le-Duc

    parece mudar com a continuidade de suas aes. Passa de uma

    interveno mais cautelosa, de carter conservativo, para uma

    atuao mais livre e radical de recomposio e reconstruo. Como

    se fosse possvel inferir a ocorrncia de uma maior liberdade de

    ao, a partir da prtica mais intensa.

    contribuies de autores estrangeiros, importantes alicerces das teorias da conservao. 21

    Em KHL, B. M. Apresentao e traduo.Restaurao. E. E. Viollet-le-Duc. Cotia: Ateli Editorial, 2000, p. 17. 22

    Arquiteto e terico italiano, autor de vrias publicaes sobre o tema da conservao, atualmente diretor da Scuola di Specializzazione per lo Studio ed il Restauro dei Monumenti da Universidade La Sapienza de Roma. A afirmao comparece em Avvicinamento al restauro. Teoria, storia, monumenti,1997, p. 141.

    [5] A catedral ideal de Viollet-le-Duc.

    [6] Corte do coro da Catedral de Beauvais. Desenho de Viollet-le-Duc interessado em investigar as razes do desmoronamento em 1284. Fonte: Thoenes et. al., 2003, p. 347 e 348.

  • 29

    Enquanto, na Frana, Viollet-le-Duc defendia o restauro estilstico,

    Ruskin (1819-1900), figura notvel da Inglaterra vitoriana, posiciona-

    se contra aquela conduta. Sustenta o absoluto e religioso respeito ao

    monumento, traduzido por uma admirao contemplativa, como

    nica forma possvel de reverncia aos objetos dos antepassados

    advindos ao presente.

    Voltado para uma posio que concilia a experincia esttica e

    moral, Ruskin23 concebe a exigncia de preservao da produo

    humana a partir de uma viso bastante abrangente que coincide com

    a idia de abnegao por amor da posteridade e que, ao mesmo

    tempo, renega a ao de restauro:

    Nem o pblico, nem aqueles a quem confiada a tutela dos

    monumentos pbicos compreendem o verdadeiro significado

    da palavra restauro. Essa significa a mais total destruio a

    que um edifcio possa submeter-se: uma destruio que ao

    final no permanece nem mesmo um resto autntico a ser

    recolhido, uma destruio acompanhada da falsa descrio

    da coisa que destrumos (falso entendido aqui como

    pardia). No enganemos a ns mesmos em uma questo

    to importante; impossvel em arquitetura restaurar, como

    impossvel ressuscitar os mortos, por mais grandes e

    belos que tenham sido. 24

    Tal concepo deriva da atitude literria que confere ao passado e s

    obras antigas, um valor exclusivo frente ao presente. Ao reconhecer

    a singularidade e a autenticidade (hinc et nunc) como valores

    fundamentais da preexistncia de carter monumental, Ruskin

    desautoriza no apenas a reconstruo nos moldes do restauro

    estilstico, mas toda e qualquer interveno do homem. [7]

    Na Itlia, por outro lado, as descobertas dos stios arqueolgicos

    anteriormente mencionados foram decisivas para o incio de uma

    atuao prtica criteriosa de conservao, reconstituio e

    consolidao dos componentes redescobertos. O trabalho

    23

    Em ensaio intitulado The seven Lampsof architecture (As sete lmpadas da arquitetura) de 1849. As referncias aqui mencionadas foram extradas da publicao italiana da obra de Ruskin, Le sette lampade dellarchitettura. Milo: Jaca

    Book, 1997 (traduo da autora). 24

    Idem, p. 226.

  • 30

    desenvolvido contribui para a conduta sistemtica de inventrio,

    coleo e classificao das peas. Alm disso, realiza-se a

    anastilose e a recomposio das partes originais, desde que se

    diferenciem os elementos preexistentes das partes de recomposio.

    Esse procedimento, chamado restauro arqueolgico, tem como

    principais protagonistas Raffaele Stern e Giuseppe Valadier. [8] [9]

    Na transio do sculo XIX para o XX, Camillo Boito25 (1835-1914)

    pe fim aporia criada pelas posies de Viollet-le-Duc e Ruskin, ao

    colher contribuies de cada um deles, para compor uma sntese

    mais equilibrada.

    25

    Arquiteto, crtico, professor e restaurador italiano. Formulou em linhas gerais o conceito de restauro cientfico posteriormente aprofundado por Gustavo Giovannoni. A esse respeito, consultar a obra Os restauradores. Conferncia feita na Exposio de Turim de 1884. Trad. Beatriz M. Khl. Cotia: Ateli Editorial, 2002.

    [7] Colunatas do claustro Catedral de Ferrara. Um dos quatorze desenhos presentes no livro As sete lmpadas da arquitetura (4 Ed. Londres, 1894), elaborados por Ruskin para ilustrar a

    riqueza formal da arquitetura por ele admirada. Fonte: Thoenes, et. al., 2003, p. 469.

  • 31

    A partir de Ruskin, considera o reconhecimento e respeito

    autenticidade e materialidade de que feita a obra, o que implica

    em dois procedimentos fundamentais: a diferenciao das partes

    recuperadas em relao s partes originais e a preservao dos

    acrscimos estratificados ao longo do tempo.

    Em relao posio de Viollet-le-Duc, ope-se reconstruo de

    partes desaparecidas com base no conceito de estilo, por defender a

    singularidade de cada obra; por outro lado, acolhe sua conduta de

    valorizar o presente frente ao passado, legitimando o restauro, em

    oposio postura anti-intervencionista de Ruskin.

    Uma concepo moderna de restauro

    Uma oposio de idias de natureza diferente daquela observada

    entre Viollet-le-Duc e Ruskin pode ser identificada ao analisarem-se

    as posturas de dois urbanistas do sculo XIX: Camillo Sitte e

    George-Eugne Haussmann.

    [8] Arco de Tito no Frum Romano em gravura de Piranesi que ilustra a condio precedente ao restauro. Fonte: Carbonara, 1997, ilustrao n. 36.

    [9] Foto do Arco de Tito na configurao aps os trabalhos de recomposio realizados por Valadier (1818-34). Um exemplo de diferenciao de materiais e formas simplificadas adotados nas extremidades, em comparao com os elementos originais situados na parte central. Fonte:

    DellOrto, 1982, p. 30

  • 32

    Essas posies delineiam um primeiro confronto entre as duas

    vises contrastantes que iro reermergir no contexto de consolidao

    do movimento moderno, a partir da dcada de 1930: de um lado, a

    observao atenta do patrimnio arquitetnico construdo no

    passado, associada apreciao esttica da paisagem urbana; de

    outro, a necessidade de modernizao urbana e, portanto, a

    exigncia de transformao das cidades antigas, pr-industriais.

    O arquiteto e urbanista austraco Camillo Sitte (1843-1903) reflete

    uma viso culturalista ao criticar a rigidez e simetria dos projetos

    urbansticos contemporneos e destacar as qualidades das cidades

    antigas. No outro extremo, Georges-Eugne Haussmann (1809-91),

    responsvel pelas propostas de remodelao do centro antigo de

    Paris, expressa o ideal de renovao do cenrio urbano.

    O concomitante surgimento do urbanismo, como disciplina

    autnoma, fortalece a convico de que necessrio elaborar um

    novo modelo de cidade mais eficiente e mais saudvel, segundo

    parmetros daquele momento histrico: um novo desenho e uma

    nova escala com condies satisfatrias de circulao do trfego das

    mercadorias, do transporte pblico de massa e, ao mesmo tempo, a

    proposio de uma cidade dotada de equipamentos coletivos e de

    infra-estrutura adequada aos novos padres sanitrios.

    Como se sabe, Georges-Eugne Haussmann conhecido como um

    dos mais emblemticos e polmicos protagonistas dessa tendncia

    de renovao das cidades. Prefeito do Departamento do Senna em

    Paris, entre 1853 e 1870, encarregado por Napoleo III de

    implantar as diretrizes de urbanismo fixadas por Henrique IV e

    desenvolvidas por Lus XIV, atravs do chamado Plano dos

    Artistas, criado em 1797.26

    Os principais elementos desse plano urbanstico so os boulevards

    amplos e retilneos que confluem para os round-points estelares.

    Dois aspectos principais orientam esse redesenho da malha urbana

    parisiense. Primeiramente aqueles ligados ordem pblica, ou seja,

    impedir a formao de barricadas, alm de conter as revoltas

    26

    PEVSNER et. al. Dizionario di architettura. Turim: Einaudi, 1992, p. 306.

  • 33

    populares27. Em segundo lugar os de natureza tcnica, ditados pelas

    necessidades de melhorar as condies de higiene principalmente

    quanto iluminao natural e ventilao dos edifcios e de

    circulao do trfego nas reas centrais. [10] [11]

    A postura de Haussmann pontua, portanto, um vis tecnicista e

    higienista que determina a destruio do tecido urbano histrico, para

    dar lugar nova configurao espacial definida pelos largos e longos

    boulevards, ladeados por corpos de construo de gabarito

    homogneo e fisionomia uniforme. Cria-se ento um conjunto

    construdo unitrio, ao qual se relaciona, em posio de destaque, o

    monumento (ou edifcio de carter monumental) que desponta na

    perspectiva regular.

    27

    As revoltas mencionadas referem-se aos eventos ligados Revoluo Francesa, s rebelies da populao exaltada, a turba, que assaltava as ruas e criava as barricadas, ou seja, obstculos para a ao da polcia.

    [10] Planta do traado e desapropriaes para a abertura da avenida diante da pera de Paris, definida pelo plano de Haussmann,

    1876.

    [11] Foto da avenida j realizada. Fonte: Gamarra (2008), em www.bifurcaciones.007.Gamarra.htm. Acesso em 03/10/08.

    http://www.bifurcaciones.007.gamarra.htm/

  • 34

    As rotatrias de circulao do origem a pontos focais de conjuno

    de vrias vias em disposio radial que favorecem a condio de

    isolamento e de destaque do monumento situado na ilha central.

    As gravuras do artista Charles Meyron retratam Paris nas vsperas

    das demolies promovidas por Haussmann. Essas imagens foram

    admiradas por Baudelaire28 pelo cunho de documentao que

    contm e pela capacidade de representar o carter fugaz daqueles

    tempos de modernidade.

    Walter Benjamin29 diz a respeito dessa produo que, ao realizar

    esses registros, o artista transforma casas comuns em monumentos.

    Observa-se aqui no s a compreenso de que indiscutivelmente as

    transformaes comportam significativos cancelamentos, mas,

    sobretudo, a percepo do poder de evocao do passado contido

    na arquitetura do cotidiano. [12] [13]

    Camillo Sitte colabora para concretizar a compreenso da cidade

    como conjunto orgnico detentor de um forte carter artstico,

    impossvel de ser reduzido a episdios isolados. Diretor da Escola de

    Salisburg e posteriormente da de Viena, obtm notoriedade com a

    obra Der Stdtebau nach seinen knstlerischen grundstzen (A

    reforma urbana para sua valorizao artstica), 1889, um ensaio

    sobre a imagem e o desenho urbanos. Com a ajuda de vrios

    diagramas, o autor analisa espaos urbanos abertos e destaca os

    efeitos positivos e atraentes obtidos pela irregularidade dos tecidos

    urbanos. Sitte observa a riqueza da composio mais livre e irregular

    dos traados das cidades histricas. Reconhece, portanto, na cidade

    antiga, a dignidade de objeto histrico que de um lado inspira

    reverncia, e de outro instiga a investigao. Da a valorizao da

    sua obra pelos tericos da preservao e restauro, pois passa a ser

    referncia importante e uma das bases para a elaborao do

    conceito de patrimnio que se amplia do edifcio ao territrio urbano.

    28

    Apud GAMARRA, G. "Benjamn y Paris: de las ciudades a las barricadas ". Em bifurcaciones [online]. n. 7, 2008. 29

    Idem. Esse texto cita Benjamin ao discorrer sobre a relao entre o plano urbanstico de Haussmann e os mecanismos de controle ligados represso das revoltas populares. Sua obra inaugura uma rica abordagem sobre Paris do sculo XIX e a cultura cosmopolita das metrpoles, sobre os instrumentos de controle e os comportamentos de desvio s regras estabelecidas.

  • 35

    Colocar lado a lado as vises de Sitte e Haussmann permite

    identificar claramente os dois posicionamentos antagnicos contidos

    em suas propostas: um procedimento de anlise e reconhecimento

    favorvel valorizao de uma memria materializada nas formas e

    propores das cidades pr-industriais; uma conduta de valorizao

    de um novo modelo esttico para a cidade ps-industrial, apoiado no

    tecnicismo e higienismo que concorrem, sobretudo, para a eficiente

    circulao do trfego e a afirmao de novas normas sanitrias.

    Cabe aqui destacar que a posio de Sitte, como aponta Franoise

    Choay, reflete a plena conscincia de que essas cidades do passado

    esto fadadas ao desaparecimento, e de conseqncia ao

    esquecimento, se no houver uma ao deliberada de resgate

    cultural.

    [12] Le Petit Pont, Charles Meyron, 1854.

    [13] Le Pont Neuf, Charles Meyron, 1854. Fonte: GAMARRA, Garikoitz. "Benjamn y Paris: de las ciudades a las barricadas ". Em bifurcaciones [online]. n. 7, 2008.

    . Acesso 03/10/08.

  • 36

    Haussmann, conforme relata Choay, refuta as crticas recebidas por

    ter destrudo a velha Paris e desafia seus opositores a apontar um

    nico monumento antigo digno de interesse, ou edifcio de valor

    artstico, que tenha sido destrudo em sua administrao. Afirma, em

    favor de sua ao, ter demolido exclusivamente, em nome da sade

    pblica e do progresso, construes degradadas, ruelas insalubres.

    Relembra a autora:

    O prprio Victor Hugo, poeta da Paris medieval, que

    escarneceu cruelmente dos largos espaos

    haussmannianos e da monotonia das novas avenidas da

    capital, nunca critica em seus artigos ou em suas

    intervenes na Comisso dos Monumentos Histricos a

    transformao geral da malha das velhas cidades (...) ele

    limita-se, se for o caso, a propor algum desvio das vias

    projetadas, a fim de poupar no a continuidade do conjunto

    urbano, mas de um monumento (...) 30

    A partir de Sitte, pode se desenvolver outra compreenso de

    patrimnio que incorpora o espao urbano, superando a seleo

    exclusiva dos edifcios de carter monumental de reconhecido valor

    artstico, para considerar a prpria morfologia da cidade, o conjunto

    construdo, suas relaes espaciais, seu gabarito, sua fisionomia,

    seu traado.

    Uma concepo moderna de restauro

    Sabe-se que em tempos remotos os homens intervieram em obras

    construdas pelos seus antecessores para adapt-las vida e aos

    usos do seu tempo. Era o presente que contava e no a

    preexistncia, raros foram os casos em que as intervenes se

    voltavam conservao de edifcios de pocas precedentes. Os

    sculos XV e XVI trouxeram algumas mudanas, dado o interesse e

    respeito pela cultura antiga, no entanto, as aes de conservao

    ainda eram parciais e espordicas. [14] [15]

    30

    CHOAY, op. cit. p. 176.

  • 37

    O restauro arquitetnico afirma-se, de fato, como uma concepo

    moderna que consiste em um modo novo de considerar e de intervir

    sobre os bens do passado.

    O austraco Alois Riegl (1858-1905) representa, no incio do sculo

    XX, uma original contribuio para a reconduo das primeiras

    iniciativas na formulao do conceito de restauro. Uma posio que

    se sobrepe reviso de Camillo Boito e que assinala, no momento

    em que nasce a arte moderna, a transitoriedade dos critrios de

    valorao de um objeto material. Diz no haver o valor perene da

    obra de arte em si, ao contrrio, declara existir, isto sim, um valor

    relativo, um valor contemporneo, de natureza subjetiva conferido

    pelo observador moderno.

    [14] Interior. Alteraes nas decoraes dos muros internos foram realizadas por Vanvitelli, em 1749.

    [15] Planta com destaque para os recintos do tepidario das Termas de Diocleciano, transformados na igreja de Santa Maria degli Angeli (1561-68), aps interveno sutil de Michelangelo. Fonte:

    Boner, 2002, p.72 e p.74.

  • 38

    Historiador e crtico de arte de formao jurdica encarregado de

    elaborar uma reforma tcnica e poltico-administrativa de

    salvaguarda dos edifcios histricos. Sua experincia pessoal na

    institucionalizao da histria da arte como disciplina autnoma, em

    relao histria geral, o credencia para ocupar-se dessa tarefa.

    Estabelece como prioridade a definio de uma nova competncia, a

    tutela dos monumentos, com base em um valor do antigo, fundado

    em uma percepo intuitiva, prpria da cultura de massa.

    Como destaca Sandro Scarrocchia31, Riegl distingue diferentes

    atribuies de valores calcadas em apreenses psicolgicas,

    sensoriais. Com isso quer sinalizar que o cidado da metrpole,

    apesar de ignorar o conhecimento aprofundado dos especialistas,

    no deixa de manifestar ateno e interesse pelos artefatos

    produzidos pelo homem em outros tempos.

    Entre as categorias de valor definidas esto: valor de antiguidade,

    valor de historicidade, e valor de novidade (resultante da

    Kunstwollen, vontade artstica32). Vale ressaltar que, na viso de

    Riegl, essas atribuies de valor no dizem respeito to somente ao

    indivduo singular, nem exclusivamente aos meios eruditos, mas sim

    a uma coletividade, e relaciona-se diretamente com a fruio da

    produo artstica, em um contexto de cultura de massa.

    O valor de antiguidade refere-se, portanto, a uma satisfao

    psicolgica emanada por uma identificao de qualidade dos

    edifcios mais antigos, associada capacidade de sobreviver ao

    do tempo e eroso da histria. Desse modo, indica uma nova

    apreenso, ditada no apenas pela observao da forma, do estilo

    do passado, mas especialmente por uma apreciao da aparncia

    consumada da produo humana.

    O valor de historicidade ou valor histrico consiste no fato de

    representar um estgio particular do desenvolvimento criativo da

    atividade humana.

    31

    Em artigo intitulado Lautonomia della conservazione in forma di colloquio con Alois Riegl na revista Casabella n.584, p.29-33. 32

    Tambm traduzido por volio da arte em nota de esclarecimento sobre o conceito em Khl, 2008, p.64.

  • 39

    Ao valor de antigidade contrape-se o valor de novidade,

    decorrente de uma nova sensibilidade do sculo XX, o Kunstwollen,

    vontade artstica, que se estabelece em contraposio s noes de

    desenvolvimento linear da produo artstica calcada na sucesso ou

    evoluo de estilos.

    Importante destacar que Riegl realiza uma rigorosa anlise das

    razes da conservao, embora no chegue a criar uma nova

    normativa para as aes prticas. Sua importncia deve-se

    essencialmente ao fato de acenar complexidade do tema e sugerir

    inmeras possibilidades de interveno, de pertinncia relativa, mas

    devidamente amparadas por critrios de valores.

    Conforme assinala Renato Bonelli33 em uma anlise retrospectiva:

    o princpio fundamental do restauro, mantido

    constantemente nas bases das doutrinas que se sucederam

    no curso do sculo XIX, aquele de restituir a obra

    arquitetnica ao seu mundo historicamente determinado,

    recolocando-a idealmente no ambiente onde surgiu e

    considerando as relaes com a cultura e o gosto do seu

    tempo; e contemporaneamente aquele de operar sobre essa

    (obra) para torn-la viva e atual, qual parte vlida e

    integrante do mundo moderno.

    Esto implcitos nessa reflexo dois aspectos essenciais: o primeiro

    o entendimento de que a atribuio de valor artstico se estabelece

    a partir da compreenso das relaes entre a obra e a cultura do seu

    tempo; o segundo a conscincia de que o restauro uma ao do

    presente, condicionada pela interpretao e releitura da prpria obra

    a ser submetida a essa interveno.

    A aproximao entre metrpole e memria permite, em sntese,

    identificar uma associao entre as transformaes do mundo

    moderno e a necessidade de se conservar, ordenar, rever e atualizar

    experincias passadas e conhecimentos adquiridos.

    33

    Renato Bonelli, arquiteto e terico italiano que, junto com Roberto Pane e Agnoldomenico Pica, desenvolve nos anos 1940-50 o conceito de restauro crtico, superando o enfoque positivista do chamado restauro cientfico. Em verbete restauro architettonico da Enciclopedia Universale dellArte, v. XI, 1983, p. 344.

    (Traduo da autora). Essa vertente analisada no captulo referente atuao de Lina Bo Bardi.

  • 40

    A ativao da memria, implcita nos movimentos preservacionistas,

    nestes tempos de transformaes e de acelerao da Histria, diante

    da perspectiva da perda, do esquecimento, configura-se como uma

    necessidade premente de reconstruo da prpria identidade do

    indivduo no seio da nascente sociedade de massa.

    A idia de patrimnio desponta como elemento de cultura associado

    ao seu contexto de produo, atravs do qual o homem afirma sua

    identidade, articula a noo de si mesmo, e, ao mesmo tempo,

    organiza sua prtica social e a representao de sua linguagem

    simblica. O tema do patrimnio construdo envolve, portanto, uma

    conscincia coletiva de apropriao do passado pelo presente e,

    necessariamente, a perspectiva de transmisso ao futuro, garantida

    pela idia de preservao.