MÉTODO DE TREINAMENTO E CRIAÇÃO CÊNICA: O SISTEMA DE MOVIMENTO DE NINA VERCHININA
description
Transcript of MÉTODO DE TREINAMENTO E CRIAÇÃO CÊNICA: O SISTEMA DE MOVIMENTO DE NINA VERCHININA
-
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
A abordagem do Sistema de
movimento de Verchinina e sua dana
moderno-expressionista enquanto objeto
de estudo visou no somente resgatar a
artista e sua inquestionvel contribuio
dana brasileira e internacional, mas
tambm rastrear a genealogia, a linhagem
de um pensamento e prtica sobre a arte
do movimento qual estou vinculada
enquanto intrprete e criadora, no campo
das artes cnicas, h aproximadamente 10
anos.
Tratou-se, portanto, de pensar
tambm em termos mais acadmicos a
minha trajetria artstica bastante
influenciada pelos princpios da dana
moderna de Nina Verchinina e pelo teatro,
e elucidar para as novas geraes o
porqu de trazer para a cena, hoje, a
pesquisa de Nina Verchinina. Essa
perspectiva e inquietao vm
acompanhando meu trabalho mais
diretamente desde o ano 2000 quando
comecei a desenvolver meus prprios
trabalhos cnicos solos como criadora-
intrprete. Portanto, essa reflexo une
teoria e prtica, na busca por novas
perspectivas para o treinamento e a
criao cnica do intrprete
contemporneo, partindo das minhas
prprias influncias artsticas.
Assim, o trabalho pretendeu
recuperar a paternidade, ou melhor, a
maternidade do legado da inovadora
pesquisa de movimento de Nina
Verchinina no Brasil e seu
desdobramento para o que veio a se
constituir nos anos 90 como dana
contempornea, e tambm revelar as
MTODO DE TREINAMENTO E CRIAO CNICA: O SISTEMA DE MOVIMENTO
DE NINA VERCHININA METHOD OF TRAINING AND SCENIC CREATION: THE NINA VERCHININAS SYSTEM
OF MOVEMENT
Cludia Petrina Leite da Silva Doutoranda em Artes Cnicas do Programa de Ps Graduao em Artes Cnicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO
Resumo: Diante das necessidades do intrprete contemporneo e seu corpo multifacetado, esse
texto pretende fazer uma reflexo sobre as possibilidades do Sistema de Movimento de Nina
Verchinina, enquanto um mtodo de treinamento, um instrumento tcnico-metodolgico
disposio desse intrprete e de sua criao cnica.
Palavras-chaves: Mtodo, treinamento, criao cnica
Abstract: In face of the needs of the contemporary interpreter and his/her multifaceted body, this
text presents considerations on the potentialities of Nina Verchinina's Movement System as a
training method, or a technical and methodological instrument to serve the interpreter and his/her
scenic creation.
Keywords: Method, training, scenic creation
-
Cludia Silva
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
potencialidades dessa pesquisa e
expresso cnica na atualidade.
A grande linha do tempo que une
os desbravadores de novos caminhos
para a cena, os pioneiros da dana e do
teatro modernos no mundo, revela que no
presente, por mais que se tente fugir de
nossa ancestralidade artstica, sempre
seremos filhos de algum, como bem
colocou Grotowski (1986). Sempre
estaremos inspirados pelos
encantamentos dos longnquos
descobridores, mesmo que seja para
neg-los ou para ir alm do ponto aonde
chegaram. Trata-se neste caso, no
apenas de uma abordagem histrica, mas
de um resgate de memrias vividas, no
as registradas apenas nos livros, mas a
impressa nos corpos, uma memria
afetivo-corporal daqueles que viveram as
concepes de movimento e de dana de
Verchinina, direta ou indiretamente. Tal
perspectiva, alm de preencher lacunas
histricas, recupera memrias vivas e por
isso ainda potentes de atos criativos.
Cabe esclarecer que existe pouca
bibliografia sobre o Sistema de
Verchinina. Ela no chegou a publicar sua
longa e profunda pesquisa de movimento,
apesar de ter deixado vrias notaes de
aulas, registradas em numerosos
cadernos, que vieram a se estruturar
numa publicao de Esther Piragibe1, em
2004. Muitas das reflexes aqui expostas
surgiram de depoimentos da prpria
criadora, de profissionais que
trabalharam com ela e da minha
experincia pessoal enquanto artista com
o seu Sistema.
O percurso da pesquisa levou
afirmao de algumas premissas e a
descobertas surpreendentes, a novas
conexes a partir do resgate do passado.
O sistema de movimento de Verchinina e
alguns dos possveis dilogos
estabelecidos com outras concepes
revelaram, que o mesmo outro. Ou
seja, Verchinina Verchinina, mas
tambm Nijinska, Duncan, Massine,
Delsarte, Graham, Laban, etc. Verchinina
passado, presente e futuro, por isso
clssica, moderna e contempornea.
Suas concepes artsticas formalizadas
atravs de seu sistema e dana ou vice-
versa, no importa o que veio primeiro,
pois seus princpios norteiam ambos,
sntese de muitos pensamentos e
experimentos, que vieram antes, durante
e aps os dela. Eles dialogam mesmo em
segredo com muitos outros: Meierhold,
Decroux, Grotowski, Barba, etc.
1 Esther Piragibe trabalhou com Verchinina por mais de 30 anos, era seu brao direito. Foi a primeira a aprender sua notao de movimentos, danou inmeras coreografias criadas por Verchinina, inclusive vrios solos criados especialmente para ela, e danou tambm sua ltima coreografia As Trombetas do apocalipse, em 1995.
-
O SISTEMA DE MOVIMENTO DE NINA VERCHININA
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
Relacionam-se com todos aqueles que
tomaram o corpo do intrprete como
ponto de partida da expresso cnica,
como eixo da cena. Por isso a sua
atualidade, tanto para o treinamento
corporal do intrprete (na dana ou no
teatro) quanto para sua criao cnica,
pois o sistema de Verchinina aberto em
seus princpios norteadores, apesar de
suas complexas e codificadas metodologia
e tcnica.
Os depoimentos daqueles que
experimentaram seu sistema e sua dana
revelam a profundidade e seriedade desse
trabalho, do ponto de vista de uma
transformao interna e externa
percebida por eles, a partir de um
encontro coerente, lgico com as vrias
faces do movimento de cada um e de tudo
que o mobiliza: a vida e sua constante
transformao. A dana de Verchinina
(mu)dana, deslocamento,
transferncia, oposio, conflito,
superao. Dentre suas obras, a
coreografia Metstasis foi uma sntese
de todos esses elementos.
Nina Verchinina jamais foi uma
unanimidade. H quem goste de seu
trabalho. H quem no goste. H quem a
ame em alguns momentos. H quem a
odeie em outros. o conflito intrnseco
sua forte personalidade. Mas todos
reconhecem sua importncia e inovao
na histria da dana nacional e
internacional. Por sua escola e/ou
companhia de dana passaram muitos
profissionais do movimento que
continuam criando cenicamente ou
formando bailarinos e/ou atores, como
Angel Vianna, Klauss Vianna, Dbora
Colker, Regina Miranda, Dalal Achcar e
Dcio Otero, entre tantos.
As origens do Sistema na
trajetria de Nina Verchinina
A trajetria artstica de
Verchinina, internacionalmente conhecida
no mundo da dana, percorreu um
caminho multifacetado que vai da dana
acadmica, com os Ballets Russes em suas
experincias inovadoras com coregrafos
como Bronislava Nijinska e Lonide
Massine, s influncias modernas de
Isadora Duncan, Martha Graham, Rudolf
Laban e o Expressionismo alemo.
Ao chegar ao Brasil em 1946 e
assumir a direo do Corpo de Baile e da
Escola de Dana do Theatro Municipal do
Rio de Janeiro, ela traz toda essa bagagem
para o pas, estabelecendo um divisor de
guas, uma verdadeira revoluo no
aprendizado e na prtica da dana da
poca. Ela oferece um novo olhar sobre o
movimento, novas formas de
-
Cludia Silva
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
experiment-lo e express-lo, novas
tcnicas, enfim um corpo pulsante de
modernidade, que custou a se impor
diante do conservadorismo e da dana
acadmica do perodo. Essa nova viso
sobre o corpo comporia um ncleo de
elementos a serem exaustivamente
pesquisados e sistematizados por ela
durante toda sua vida.
Esse Sistema pode ser entendido
como um conjunto articulado de
princpios, mtodo e tcnicas de
movimento, integrado no sentido de
atingir um treinamento completo na
preparao do corpo do intrprete para a
cena. Nina Verchinina desenvolveu no
Brasil por quase 50 anos seu complexo
sistema, com uma gramtica prpria de
movimentos. A partir da anlise de alguns
elementos desse Sistema, estabelecemos
possveis dilogos deste com outros
sistemas e abordagens corporais,
herdeiros de um longo processo de
transformao pelo qual passaram tanto a
dana quanto o teatro no incio do sculo
XX, como, por exemplo, o Sistema Laban e
alguns princpios da Antropologia Teatral
de Eugenio Barba.
O Sistema e a dana de Verchinina
trazem elementos que dialogam com
muitas das inquietaes dos pensadores e
criadores da dana moderna americana e
do Expressionismo europeu, sintetizadas
na seguinte questo: como levar o
impulso criador a uma conexo orgnica e
imediata com o movimento, buscando a
integrao e o aprimoramento na sua
realizao?
A resposta de Verchinina a essa
questo pode ser encontrada no
pensamento que norteia todo o seu
Sistema: a busca por desenvolver um
corpo sensvel, capaz de perceber o
movimento, se apropriar dele e express-
lo com verdade. O Sistema de Verchinina
foi desenvolvido a partir de sua
experincia como bailarina e coregrafa.
Portanto, suas prprias vivncias
enquanto artista suscitavam questes
corporais, cnicas e estticas que ela
pesquisou intensamente em sua escola,
dos anos de 1950 a 1995, com suas
alunas, bailarinas e professoras
assistentes, elaborando suas possveis e
variadas respostas na procura por um
movimento essencial, expressivo e lgico.
Assim, mtodo de treinamento e
criao cnica deveriam estar juntos,
como dois aspectos de uma mesma
questo para Verchinina: construir no
corpo uma dana que possa refletir
aquilo que se vive, que acontece no
mundo e por dentro de cada ser
(VERCHININA apud PORTINARI, 1972).
Tal pensamento nortear toda a
construo deste Sistema, que ao
mesmo tempo um conjunto de princpios,
uma tcnica e um mtodo. Seu Sistema e
-
O SISTEMA DE MOVIMENTO DE NINA VERCHININA
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
dana esto em sintonia com a esttica da
modernidade, onde os procedimentos
tcnicos buscam a exploso dramtica
atravs do domnio dos fatores de
construo da linguagem do movimento
expressivo. (GUINSBURG, 2002, p.287-
288)
Poderemos visualizar tambm em
suas criaes coreogrficas muitos dos
princpios estticos e filosficos contidos
em seu Sistema, em seus constantes jogos
de oposies e conflitos. As coreografias
Zuimaaluti (1960), Metstasis (1967) e
Sute Barroca (1973) evidenciavam
fortemente sua escrita coreogrfica no
que havia de mais inovador na
modernidade brasileira da poca.
Metstasis foi considerada pela crtica
especializada sua obra-prima e sua
coreografia de vanguarda. Nessa
coreografia parte e todo, conflito e
transformao so binmios recorrentes,
formalizados esteticamente num
constante jogo de oposies,
deslocamentos e transies. (SILVA,
2008)
A Estrutura do Sistema:
metodologia e tcnica
A necessidade e a urgncia de
desenvolver um corpo capaz de
responder esteticamente s solicitaes
do mundo moderno nortearam as
pesquisas de movimento de Verchinina,
tanto em suas criaes coreogrficas
quanto na estruturao de seu sistema.
Este sistema ser o instrumento forjador
dessa nova corporeidade cnica solicitada
a partir da modernidade.
Em sua escola de dana no Rio de
Janeiro, Verchinina desenvolveu seu
trabalho corporal sistematizado em
diferentes tipos de aula: cho, barra,
centro, joelhos, paralelas e cadas. Essas
aulas se completavam, trabalhando o
corpo no sentido do aquecimento,
alongamento, do fortalecimento muscular
e tonicidade, alinhamento postural e da
dinmica e possibilidades expressivas do
movimento.
O trabalho de cho considerado
o mais importante para aqueles que se
iniciam no mtodo, e representa a busca
da relao com o solo, t-lo como partner.
Todo o trabalho de cho desenvolvido
de forma integrada entre a unidade
superior e a inferior, atravs de
movimentos simultneos. O trabalho de
barra clssica era feito sem sapatilhas,
para disciplinar as pernas e fortalecer os
ps. Eram usados movimentos
elementares do bal. A barra (moderna)
prepara para o centro e para o mtodo
como um todo, so usados exerccios com
plis, com extenso e contrao do tronco
-
Cludia Silva
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
e battemants. Na barra podem ser
ensinados os exerccios decompostos,
onde se tem a oportunidade de execut-
los melhor e com mais segurana,
adquirindo o controle do corpo, a
harmonia dos movimentos e o equilbrio.
O trabalho de joelhos foi criado
pioneiramente no Brasil por Verchinina.
Os joelhos atuam como base (auxiliando o
encaixe do quadril e alinhamento da
bacia) fixando-se no solo, estabelecendo
uma constante oposio entre a unidade
superior (que se alonga para cima) e a
inferior (que puxada para baixo).
Desenvolve-se assim um controle de eixo,
equilbrio e um fortalecimento e
flexibilizao do tronco, juntamente com
os braos, em seus constantes
movimentos de contrao e extenso, em
vrias direes. No trabalho de centro
desenvolvem-se exerccios onde o corpo
(o tronco) ora se flexiona em movimentos
de contrao e extenso, ora fica na
posio vertical, ora na horizontal.
Acrescenta-se ainda a movimentao
diagonal e lateral do tronco. Os braos
acompanham geralmente a direo do
tronco, em suas variadas ligaes,
desenhando linhas de tenses (oposies)
no espao. Cada movimento nesta etapa
executado pelo menos de duas formas:
para dentro e para fora. No centro
trabalha-se simultaneamente e de forma
coordenada: mudanas de eixo e de
direes e nveis no espao, transferncia
de peso e deslocamento espacial. O
trabalho de paralelas tem como foco a
resistncia ao encontro com o solo. um
jogo de foras contrapostas com a
gravidade. As Cadas so seqncias de
movimentos que se desenvolvem num
fluxo controlado do nvel alto para o baixo
e vice-versa, refletindo o paradoxo, a
constante oposio, o conflito fsico e
filosfico humano expresso no binmio
corporal entre a unidade superior (que
puxa para cima/cu) e a unidade inferior
(que pende para baixo/terra). um
trabalho de constante deslocamento no
espao, apoio, mudanas de eixo, nveis e
direes espaciais. Essa etapa integra e
articula coordenadamente as etapas
anteriores do mtodo. Pode-se consider-
la como a sntese do sistema e de suas
influncias, j que as etapas anteriores
esto contidas nesta. Portanto, s os
alunos de nveis mais adiantados podem
pratic-la, dada a complexidade de suas
seqncias de movimento e a forte
exigncia muscular de sua execuo.
Esses variados trabalhos
corporais eram desenvolvidos em aulas
divididas ao longo da semana por turmas
de trs diferentes nveis: iniciante,
intermedirio e adiantado. A dinmica de
evoluo natural do aluno no mtodo era
geralmente a seguinte: o aluno, aps
passar por esses trs nveis tendo aulas
com as professoras-assistentes de
-
O SISTEMA DE MOVIMENTO DE NINA VERCHININA
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
Verchinina, era ento encaminhado para a
turma iniciante de Verchinina. As aulas
seguiam geralmente uma progresso
lgica, iniciando-se a semana com aulas
de cho e joelho, em seguida centro, e
depois barra, paralelas e cadas. Mas,
dependendo da necessidade e do nvel de
cada turma, essa seqncia poderia sofrer
alteraes.
[...] Essas modalidades podem vir
combinadas ou podem se
desenvolver sozinhas durante uma
[aula] inteira. Assim pode-se ter
uma aula composta de cho e barra,
por exemplo, ou de cho e joelho, ou
ainda de joelho e centro, como se
pode ter uma aula s de centro, ou
s de cho ou s de barra, etc. [...] As
combinaes vo depender muito
dos objetivos a serem alcanados e
do adiantamento de cada turma.
(ZEZ, 2000)
Geralmente, a parte referente ao
aquecimento de cada tipo de aula era
igual para todos os nveis, variando
apenas o nmero de repeties e o tempo
do movimento (sua decomposio). As
aulas de paralelas e cadas eram feitas
apenas pelas turmas adiantadas. O nvel
intermedirio fazia as paralelas na barra e
seqncias mais simples fora da barra. As
aulas de cho, barra e joelho eram feitas
por todos os nveis, mas com as devidas
adequaes, dentro da progresso do
mtodo que se complexificava em termos
de seqncias e ligaes de movimentos.
preciso relembrar que o
Sistema de Verchinina foi desenvolvido
durante aproximadamente quarenta anos.
Logo, os diferentes tipos de aula citados
no surgiram simultaneamente, mas
foram desenvolvidos ao longo dessas
quatro dcadas, numa conjuno entre o
material humano com o qual Verchinina
trabalhava, as especificidades corporais
de seus alunos e as prprias inquietaes
interiores da mestra e sua necessidade de
express-las.
[...] Foi partindo das cinco posies
bsicas deste estilo [o bal clssico]
e de suas pesquisas sobre pintura,
escultura e formas arquitetnicas,
que ela [Verchinina] descobriu o
que procurava: algo que no
deformasse o homem, que o
colocasse de acordo com sua
anatomia, com seu bem-estar e com
o seu espao [...] Para Verchinina
necessrio um trabalho consciente,
metdico e disciplinado sobre o
corpo. Os movimentos devem ser
sentidos e h que se desenvolver a
sensibilidade para faz-la passar
atravs do corpo em movimento,
um corpo fortemente treinado.
(ZEZ, 2000).
A concepo e desenvolvimento
do Sistema de Verchinina surgiram de
-
Cludia Silva
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
uma intensa e mltipla vivncia e
pesquisa artstica sobre o movimento na
dana, na pintura, na escultura e na
msica, desde suas experincias na dana
acadmica at sua descoberta da
modernidade do movimento e sua
esttica expressionista. Portanto, dana e
movimento se aproximam no incio da
elaborao de seu Sistema. Como ponto
de partida tem-se algumas seqncias
coreogrficas, como estmulo ao trabalho
desse novo corpo que ela pretendia
desenvolver com seus alunos. Mas dana
e movimento distanciaram-se
posteriormente, quando o interesse da
criadora tomou como foco a busca da raiz,
dos princpios norteadores de seu Sistema
e mtodo e de como formaliz-lo. Nesse
momento ela volta-se para a pesquisa do
movimento pr-expressivo, sem fins
coreogrficos, e de suas mltiplas
possibilidades quanto forma e s
transies.
Elementos e princpios do
sistema e seus possveis dilogos
Nina Verchinina, desde a infncia,
j se ocupava em observar atentamente o
movimento da natureza, dos animais e
das pessoas em seus cotidianos. Essa
preocupao se manteve presente quando
da construo da raiz e princpios do seu
Sistema, sempre buscando uma coerncia,
uma lgica.
Eu observava o modo como o vento
fazia as rvores se moverem, o
modo como os galhos se inclinavam
[...] Eu comecei a observar o mundo
minha volta. Vendo, realmente
vendo como as coisas se moviam.
Como uma folha caa. O modo como
ela desenhava espirais e se retorcia
no espao. De onde o movimento
estava vindo. (BRENNAN, 1995)
A relao do corpo com o espao
ser uma preocupao constante nas
elaboraes de movimento de Verchinina.
O bailarino, em sua concepo, precisa
desenhar o espao, rompendo com a
resistncia imposta pelo ar (o bailarino
dentro de uma grande bolha, a kinesfera2
de Laban). Segundo ela, seria exaurindo
os limites desta bolha que o bailarino
encontraria outras possibilidades de
movimento, como os que levam
distoro (por exemplo, a 4a. posio
cruzada em toro). Novos tipos de
movimento (para a poca) so
incorporados ao trabalho de Verchinina,
como os de puxar, empurrar, procurar,
esconder e libertar. Podendo ser
executados de vrias maneiras: jogados,
controlados, ondulados, quebrados,
fragmentados (PIRAGIBE, 2004). Eles
podem ser centrfugos ou centrpetos,
partindo do centro do corpo para a
periferia ou ao contrrio. Podemos
2 Cinesfera ou Kinesfera a esfera dentro da qual acontece o movimento [...] a esfera de espao em volta do corpo do agente na qual e com a qual ele se move. (RENGEL, 2003, p.32)
-
O SISTEMA DE MOVIMENTO DE NINA VERCHININA
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
destacar algumas Aes Bsicas de
Esforo3 pesquisadas por Laban, que so
usadas com freqncia na realizao dos
movimentos do Sistema de Verchinina:
socar, pressionar, torcer e deslizar.
A viso filosfica de Verchinina
sobre o paradoxo humano justifica os
binmios em oposio constantes na
construo e expresso de seus
movimentos, em suas variadas
possibilidades de estruturao de foras
contrapostas no corpo: o homem vive o
paradoxo da transcendncia a que aspira
e a irremedivel atrao terrena qual
est submetido (PIRAGIBE, 2004, p.32).
nesse paradoxo da natureza humana,
nessa oposio complementar, que seu
Sistema e sua dana se desenvolvem. O
princpio da oposio constante em seu
Sistema. Teremos ento o
desenvolvimento de movimentos lgicos
(opostos complementares) ligados
natureza fsica e humana
(contrao/extenso, pequeno/grande, 3 Ao bsica de esforo a ao na qual
fica evidente uma atitude do agente
perante os fatores de movimento
espao, peso e tempo. A produo desta
ao se d na ordenao dentre as
possveis combinaes e integrao
harmoniosa das qualidades de esforo
que so imprimidas ao(s) movimento(s).
(RENGEL, 2003, p.23 e 24)
para dentro/para fora, circular/angular)
como nas Cadas, que so seqncias de
movimento que se desenvolvem do nvel
alto para o baixo, refletindo o paradoxo, o
conflito humano. O centro do movimento
para Verchinina est localizado no tronco,
de onde partem e para onde se dirigem
todos os movimentos, criando a partir
dele inmeras ligaes de movimentos,
geralmente oscilando sua dinmica entre
o fluxo contnuo e o controlado, numa
constante transio.
Observamos em Verchinina a
construo de uma gramtica prpria de
movimentos, um tratamento aplicado na
codificao dos movimentos cotidianos e
da natureza, que pode ser lido atravs do
princpio de equivalncia e o princpio da
incoerncia coerente, segundo as
concepes de Eugenio Barba. Essa
codificao ocorre da seguinte forma:
Verchinina observa o movimento humano
cotidiano e o da natureza, e o reconstri
aplicando sobre ele deslocamentos de
tenses, oposies e esforos,
intensificando assim este movimento.
Assim, a partir de um movimento
cotidiano e/ou natural ela codifica o seu
equivalente extracotidiano, tornando-o
artificial. Mas este movimento
extracotidiano torna-se coerente atravs
de repeties, detalhamentos e ligaes,
fruto de uma lgica prpria que segue
-
Cludia Silva
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
determinados princpios na sua
elaborao, diferenciados do
comportamento cotidiano. Assim, torna-
se coerente o movimento equivalente que
primeira vista parecia incoerente.
Com a estruturao continuada de
seu Sistema, a preocupao com a lgica
do processo (a construo de um mtodo
de movimento para o treinamento
corporal anterior cena) e no apenas
com a lgica do resultado (a criao e
expresso coreogrfica) passa a nortear
sua pesquisa. Portanto, o movimento, e
no mais a dana propriamente dita,
passa a ser o centro de sua investigao.
Dessa forma todos poderiam se beneficiar
desse aprendizado: bailarinos, atores,
terapeutas, enfim, todos aqueles que
tivessem o movimento e o corpo como
foco de interesse.
Verchinina percebe que o corpo
precisa primeiro tornar-se apto para estar
em cena, para entrar no estado de dana.
Ela passa a ocupar-se intensamente do
que Eugenio Barba denomina de trabalho
sobre a pr-expressividade, ou seja, a
construo de uma presena corporal, um
corpo vivo anterior expresso cnica.
Os trabalhos de Laban e
Verchinina na dana estabeleceram um
divisor de guas, um novo paradigma
artstico profundamente conectado com
as ressonncias das transformaes
polticas e sociais ocorridas com o
advento da Modernidade, e com todos os
movimentos que este perodo
desencadeou na contracorrente do
Naturalismo, dominante no campo das
artes at ento. Por sua vez, as
elaboraes posteriores de Barba no
teatro iriam se aproximar tambm desse
fluxo de concepes.
Vrios estudos foram e continuam
sendo feitos sobre o legado artstico de
Laban e Barba. Talvez a abrangncia de
suas idias esteja ligada a estruturas
abertas, seja atravs da Antropologia
Teatral4, em Barba, ou do Sistema, em
Laban, que por seus princpios
norteadores estaro sempre abertos a
novas leituras e experimentos. No caso de
Verchinina poucos estudos foram
desenvolvidos at aqui, mas os princpios
balizadores de seu Sistema ainda so um
terreno frtil para novas investigaes.
Seja como for, os princpios
orientadores do trabalho de Verchinina,
Laban e Barba partem de uma
preocupao comum: o corpo. Talvez, por
isso mesmo, este caminho seja to amplo
4 Antropologia Teatral o estudo do comportamento cnico pr-expressivo que est na base dos diferentes gneros, estilos, papis e das tradies pessoais ou coletivas [...] A Antropologia Teatral indica um novo campo de investigao: o estudo do comportamento pr-expressivo do ser humano em situao de representao organizada. (BARBA apud BONFITTO, 2002, p.76)
-
O SISTEMA DE MOVIMENTO DE NINA VERCHININA
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
na possibilidade de novas conexes e
leituras, uma vez que o corpo e suas
idiossincrasias remetem a um estado de
constante transformao, atravs de suas
interaes e contgios com o mundo.
As diferentes dramaturgias
escritas no corpo por essa trade artstica
se aproximam, no que se refere ao
trabalho sobre si mesmo, a uma
preocupao e compromisso com a
lgica do processo e no somente com a
do resultado, ou seja, ao estado essencial
que o corpo precisa forjar antes da
expresso cnica propriamente dita. Por
isso, esses artistas-pesquisadores se
afinam em suas investigaes no que
concerne ao campo da pr-expressividade
que cria a presena, o bios cnico, a
energia necessria para o estado de
representao.
Parece que a grande contribuio
deixada pelo exerccio do sistema de
movimento de Nina Verchinina foi a unio
corpo e mente, emoo, fora e disciplina.
Um sistema que congrega elementos, em
um entrosamento completo e integrado,
unindo arte e vida, promovendo a
presena, o estar ali de corpo e alma.
Certas pessoas se sentem perdidas, vazias, porque
ignoram o prprio potencial. A
dana ajuda a encontr-lo. [...]
uma questo de conscientizao, de
perceber o que se passa dentro de
si, de canalizar a energia [...] Tudo
que eu fao ensinar uma disciplina
para o corpo. Se essa disciplina
tambm funciona para a mente, em
alguns casos, tanto melhor.
(VERCHININA apud PORTINARI,
1985)
O caminho que percorremos no
Sistema de movimento de Verchinina
indica direes possveis de apropriao
de seus princpios e concepes na
atualidade, nos sinaliza para adequaes,
dilogos e ajustes necessrios pulsao
e ao corpo multifacetado do intrprete
contemporneo. Portanto, cabe o desafio
queles que entrarem em contato com
este Sistema, reinventar, criar seus
prprios e surpreendentes dilogos e
conexes, na tentativa de ampliao de
mais um instrumento tcnico-
metodolgico para o treinamento do
intrprete e para sua criao cnica.
Artigo recebido em 30/04/2012
Aprovado em 28/10/2012
-
Cludia Silva
Joo Pessoa, V. 3 N. 2 jul-dez/2012
Referncias bibliogrficas
BARBA, Eugenio. A Canoa de Papel
tratado de Antropologia Teatral. So
Paulo: Hucitec, 1994.
______________e SAVARESE, Nicola. A Arte
Secreta do Ator Dicionrio de
Antropologia Teatral. So Paulo-
Campinas: HUCITEC/UNICAMP, 1995.
BONFITTO, Matteo. O ator-compositor.
So Paulo: Perspectiva, 2002.
BRENNAN, Mary. Free spirit of dance.
Scotland: The Herald, June 10, 1995.
GROTOWSKI, Jerzy. Voc filho de
algum. In: Revista Mscara, 1986.
GUINSBURG, J. O Expressionismo. So
Paulo: Perspectiva, 2002.
PIRAGIBE, Esther. O Esprito Livre da
Dana A dana moderna expressionista.
So Paulo, Carthago Editorial, 2004.
PORTINARI, Maribel. Nos Passos da Dana.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
___________, Maribel. Verchinina: a dana
sem limites. Rio de Janeiro: O Globo,
Segundo Caderno, pgina 14, colunas
1,2,3,4 e 5, 18 de novembro, 1972.
RENGEL, Lenira. Dicionrio Laban. So
Paulo: Annablume, 2003.
SILVA, Cludia Petrina Leite da.
Movimento-Vida: O Sistema de Movimento
de Nina Verchinina e suas projees. Rio de
Janeiro: RioArte. 2001.
___________________________. O Sistema de
Movimento de Nina Verchinina e seus
dilogos: princpios para o treinamento e a
criao cnica do intrprete. Rio de
Janeiro: UNIRIO, 2008. (digitalizado)
SILVA, Soraia Maria. O Expressionismo e
a Dana. In: GUINSBURG, J. O
Expressionismo. So Paulo: Perspectiva,
2002.
Entrevista realizada pelo pesquisador:
ZEZ, Vera Jamaina. Rio de Janeiro, 2000.
1 fita cassete (60 min.)