MERHY - A perda da dimensão cuidadora na produção da saúde

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    Emerson Elias Merhy - Prof. do DMPS/FCM/UNICAMP

    Chico de Oliveira

    A produo deste texto tem vrias razes e compromissos. O maior destes

    com a reforma do modo de se produzir sade, no Brasil, ao se reconhecer que

    os modelos atuais de ordenamento das prticas clnicas e sanitrias j perderam

    seu rumo maior: o da defesa radical da vida individual e coletiva. E, exatamente,

    por isso as fontes que alimentam as reflexes nele contidas so de lugares muito

    distintos, porm articulados.

    Em destaque anotamos trs grandes contribuies: a experincia vivida

    junto a rede municipal de Belo Horizonte, entre os anos 93 e 96 o trabalho

    coletivo que se desenvolve no LAPA/DMPS/UNICAMP, em particular no Servio

    de Sade Cndido Ferreira e, as solicitaes da militncia junto aos movimentos

    sociais de sade, em particular do Sindicato dos Mdicos de Campinas.

    Deste ltimo fica um esboo no qual a reflexo central era entender o

    trabalho mdico como um paradoxo: tanto como um dispositivo estratgico para

    implantar um modelo de ateno sade descompromissada com o usurio e

    procedimento centrado, quanto como uma ferramenta a desarm-lo e produzir

    um novo modo de agir em sade.

    Do LAPA, e em particular do Cndido, a possibilidade de olhar outros

    experimentos em torno do projeto em defesa da vida que se constituem em

    peas de dilogos obrigatrios e que inspiram novas prticas, ficando sempre

    como um devedor do coletivo que ali se constitui. Neste sentido, as propostas deao que este texto apresenta so reconhecidos como produtos de um ns, que

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    mesmo em suas diferenas tm produzido instigantes projetos de agir em sade,

    que reconhecemos como fontes de inspirao1.

    Entretanto, na experincia vivida em Belo Horizonte com o conjunto dos

    trabalhadores de sade e com os dirigentes governamentais do perodo de 92 a

    96, que temos a nossa maior dvida e os instigamentos principais.

    A necessidade de construir uma nova maneira de se produzir sade em

    uma ampla rede de servios pblicos, que procurasse enfrentar o tema do

    acolhimento dos usurios nos estabelecimentos de sade, tentando construir um

    agir cumpliciado do trabalhador com a vida individual e coletiva, estimulou um

    conjunto de reflexes tericas que nos permitissem constituir um modo

    competente de realizar a mudana de um modelo de ateno corporativo centrado

    para um usurio centrado.Neste vivenciar com o coletivo dos trabalhadores desta rede este desafio,

    fomos aprofundando nosso entendimento conceitual sobre o trabalho em sade e

    as possibilidades de suas mudanas, sem cair no canto da sereia dos projetos

    neoliberais, que em nome de uma cidadania negada e de uma cesta bsica de

    sade, tem ofertado quase que como panacia um mdico de famlia, que a tudo

    vem resolver, como um milagreiro. Desprezando a complexidade do atuar em

    sade e a necessria multidisciplinareidade deste agir.

    Vamos ao texto.

    A situao mais comum, hoje em dia, lermos sobre a existncia de uma

    crise no atual modo de organizao do sistema de sade, porm quando so

    catalogadas as causas ou solues, vemos como esta constatao e mesmo a

    discusso em torno dela, no to simples.

    Entretanto, se olharmos do ponto de vista do usurio do sistema, podemos

    dizer que o conjunto dos servios de sade, pblicos ou privados, com raras

    1 Lembramos como textos referncias os livros Sade Pblica em Defesa da Vida e Reforma da Reforma de

    Gasto Wagner de Sousa Campos Inventando a Mudana na Sade de Luiz Carlos de Oliveira Ceclio e,

    Agir em Sade de Emerson Elias Merhy e Rosana Onocko. Todos editados pela Editora Hucitec, So Paulo.

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    excees, no so adequados para resolverem os seus problemas de sade,

    tanto no plano individual, quanto coletivo.

    Uma pequena olhada nas reportagens da grande imprensa mostra que o

    tema sade muito lembrado pelos brasileiros como uma das questes mais

    fundamentais da sua vida, ao mesmo tempo que tambm podemos registrar que

    na rea de prestao de servios, onde o cidado se sente mais desprotegido.

    O paradoxal desta histria toda, que no so raros os estudos e

    reportagens que mostram os avanos cientficos - tanto em termos de

    conhecimentos, quanto de solues - em torno dos problemas que afetam a sade

    das pessoas e das comunidades, e a existncia de servios altamente equipados

    para suas intervenes, o que nos estimula a perguntar, ento, que crise esta

    que no encontra sua base de sustentao na falta de conhecimentostecnolgicos sobre os principais problemas de sade, ou mesmo na possibilidade

    material de se atuar diante do problema apresentado.

    Ao ficarmos atento, do ponto de vista do usurio, sobre as queixas que

    estes tm em relao aos servios de sade, podemos entender um pouco esta

    situao. E, desde j, achamos que este ponto de vista no necessariamente

    coincidente com os dos governantes ou dirigentes dos servios, tanto os pblicos

    quanto os privados, que como regra falam da crise do setor, privilegiadamente do

    ngulo financeiro, tentando mostrar que no possvel se oferecer boa

    assistncia com o que se tem de recursos - alis, argumento mundialmente usado,

    tanto em pases como o EEUU que gasta 1 trilho de dlares no setor sade,

    quanto no Brasil que deve gastar em torno de 35 bilhes, no total.

    Voltando ao ponto de vista do usurio, podemos dizer que, em geral, este

    reclama no da falta de conhecimento tecnolgico no seu atendimento, mas sim

    da falta de interesse e de responsabilizao dos diferentes servios em torno de si

    e do seu problema. Os usurios, como regra, sentem-se inseguros,

    desinformados, desamparados, desprotegidos, desrespeitados, desprezados.

    Ora, que tipo de crise tecnolgica e assistencial esta? Ser que ela atinge

    s um tipo especfico de abordagem dos problemas de sade, como a expressa

    pelo trabalho mdico, ou uma caracterstica global do setor? possvel a partir

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    desta crise, diagnosticada em torno do usurio, propor um modo diferente de se

    produzir aes de sade?

    frente, tentaremos mostrar como esta questo est colocada para os

    processos de trabalho em sade. Imaginemos, em primeiro lugar, que o conjunto

    dos trabalhos em sade produzem um produto, os atos de sade, e que estes so

    considerados como capazes de intervir no mundo do que denominado de

    problema de sade, provocando uma alterao do mesmo em torno da produo

    de um resultado: a satisfao de uma necessidade/direito, do usurio final.

    Supomos que este processo permita a produo da sade, o que no

    necessariamente verdadeiro, pois nem sempre este processo produtivo impacta

    ganhos dos graus de autonomia no modo do usurio andar na sua vida, que o

    que entendemos como sade em ltima instncia, pois aquele processo deproduo de atos de sade pode simplesmente ser procedimento centrada e no

    usuria centrada, e a finalidade ltima pela qual ela se realiza se esgota na

    produo de um paciente operado e ponto final, ou em um paciente diagnosticado

    organicamente e ponto final, o que no estranho a ningum que usa servios de

    sade no Brasil. Ns enquanto usurios podemos ser operados, examinados, etc,,

    sem que com isso tenhamos necessidades/direitos satisfeitos. Vejamos isto no

    desenho e textos adiante.

    produz que produz

    A viso j muito comum de que tecnologia uma mquina moderna, tem

    dificultado bastante a nossa compreenso de que: quando falamos em trabalho

    trabalho em

    sade

    atos de sade, como:

    procedimentos,acolhimentos,

    responsabilizaes

    interveno em

    sade

    que atua

    sobreproblemas

    de sade

    que se supe que

    impacta direitos dosusurios finais tidos

    como necessidades de

    sade

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    em sade no se est se referindo s ao conjunto das mquinas, que so usadas

    nas aes de interveno realizadas, por exemplo, sobre os pacientes.

    Ao olharmos com ateno os processos de trabalho realizados no conjunto

    das intervenes assistenciais vamos ver que - alm das vrias ferramentas-

    mquinas que usamos, como: raio-x, instrumentos para fazer exames de

    laboratrios, instrumentos para examinar o paciente, ou mesmo, fichrios para

    anotar dados do usurio -, mobilizamos intensamente conhecimentos sobre a

    forma de saberes profissionais, bem estruturados, como a clnica do mdico, a

    clnica do dentista, o saber da enfermagem, do psiclogo, etc. O que nos permite

    dizer, que h uma tecnologia menos dura, do que os aparelhos e as ferramentas

    de trabalho, e que est sempre presente nas atividades de sade, que

    denominamos de leve-dura. leve ao ser um saber que as pessoas adquiriram eest inscrita na sua forma de pensar os casos de sade e na maneira de organizar

    uma atuao sobre eles, mas dura na medida que um saber-fazer bem

    estruturado, bem organizado, bem protocolado, normalizvel e normalizado.

    Entretanto, quando reparamos com maior ateno ainda, vamos ver que,

    alm destas duas situaes tecnolgicas, h uma terceira, que denominamos de

    leve.

    Qualquer abordagem assistencial de um trabalhador de sade junto a um

    usurio-paciente, produz-se atravs de um trabalho vivo em ato, em um processo

    de relaes, isto , h um encontro entre duas pessoas, que atuam uma sobre a

    outra, e no qual opera um jogo de expectativas e produes, criando-se inter-

    subjetivamente alguns momentos interessantes, como os seguintes: momentos de

    falas, escutas e interpretaes, no qual h a produo de uma acolhida ou no

    das intenes que estas pessoas colocam neste encontro momentos de

    cumplicidades, nos quais h a produo de uma responsabilizao em torno do

    problema que vai ser enfrentado momentos de confiabilidade e esperana, nos

    quais se produzem relaes de vnculo e aceitao.

    Diante desta complexa configurao tecnolgica do trabalho em sade,

    advogamos a noo de que s uma conformao adequada da relao entre os

    trs tipos que pode produzir qualidade no sistema, expressa em termos de

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    resultados, como: maior defesa possvel da vida do usurio, maior controle dos

    seus riscos de adoecer ou agravar seu problema, e desenvolvimento de aes

    que permitam a produo de um maior grau de autonomia da relao do usurio

    no seu modo de estar no mundo.

    Partindo desta viso que temos de tecnologias em sade, podemos afirmar

    que de uma maneira ou de outra, todos os trabalhadores de sade fazem clnica,

    sendo esta o campo principal no qual operam as tecnologias leves, como

    articuladoras das outras configuraes tecnolgicas. E, afirmamos isto, mesmo

    para aqueles que no so entendidos classicamente como prprios da sade,

    como o caso de um porteiro de um estabelecimento de sade.

    Por qu podemos fazer esta afirmao?

    Primeiro, porque entendemos que os usurios buscam nos seus encontros

    com os trabalhadores de sade, particularmente nos estabelecimentos de sade,

    a produo de espaos de acolhimento, responsabilizao e vnculo.

    Segundo, porque entendemos que a clnica no s o saber diagnosticar,

    prognosticar e curar os problemas de sade como uma disfuno biolgica, mas

    tambm um processo e um espao de produo de relaes e intervenes, que

    se d de modo partilhado, e no qual h um jogo entre necessidades e modostecnolgicos de agir.

    Terceiro, porque no h produo de espaos de trocas de falas e escutas,

    de cumplicidades e responsabilizaes, de vnculos e aceitaes, se no houver

    um trabalho clinicamente implicado.

    Mas, entendemos que apesar de todos fazerem clnica, h focos de aes

    entre os profissionais que lhe do marcas nestes modos de trabalhar as distintas

    conformaes das tecnologias em sade, marcando suas competncias em

    responder aos problemas colocados.

    Assim, no basta existir um servio com um excelente acolhimento, se no

    conseguir responder, com os exames necessrios para esclarecer um certo

    problema de sade, ou mesmo sua gravidade. Deste modo, necessrio, mas

    no suficiente, que um mdico esteja totalmente comprometido e envolvido com a

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    maneira como ela comandante ou comandada, das (pelas) outras

    tecnologias, na mediao entre a leve-dura e as duras, com um sentido

    nitidamente marcado pela busca da resoluo do problema e da conquista de

    autonomias.

    Acreditamos que a profunda crise do paradigma que estruturou o modo

    atual do mdico trabalhar marcada, entre outras coisas, pelo: distanciamento

    que ele teve dos interesses dos usurios isolamento que produziu na sua relao

    com os outros trabalhadores de sade desconhecimento da importncia das

    prticas de sade dos outros profissionais e, predomnio das modalidades de

    interveno centradas nas tecnologias duras, a partir de um saber estruturado

    reduzido produo de procedimentos.

    Quando h domnio dos interesses organizados em torno das tecnologiasduras, os processos de trabalho esto mais comprometidos com o uso desta

    forma de tecnologia, do que com os problemas de sade que devem enfrentar.

    Desta maneira, que falamos que hoje o modelo assistencial todo voltado para

    a produo de procedimentos, que consome intensamente tecnologia dura,

    gerando mais necessidade ainda de produo de procedimentos.

    O trabalho mdico orientado por este modelo se isola dos outros trabalhos

    em sade, vai se especializando introduo de cada novo tipo de associao

    entre procedimentos e mquinas, vai necessitando de uma autonomia que o

    separa das outras modalidades de abordagem em sade, e alimenta-se de uma

    organizao corporativa poderosa voltada, eticamente, para si mesma.

    Este modo de operar o trabalho mdico produz permanentemente a morte

    das tecnologias leves inscritas nos seus processos clnicos, o que gera

    sistematicamente uma relao usurio-trabalhador marcada por um processo de

    alienao, des-responsabilizao, custosa e ocasionalmente resolutiva.

    Um aspecto interessante, deste modo de trabalhar, a mediocrizao da

    prtica clnica, inclusive no sentido dos saberes estruturados que incorpora, pois

    so to restritos os seus horizontes que no d conta de que atua sobre seres

    humanos, vivos, subjetivamente produtores de necessidades.

    2 veja mais adiante esta discusso ao tratarmos das prticas cuidadoras dos profissionais de sade.

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    Desta maneira, estas intenes que comandam o trabalho mdico

    comprometido com a produo de procedimentos, esto articuladas a um

    exerccio da autonomia no trabalho clnico totalmente voltado para interesses

    privados estranhos aos dos usurios, e isolado de um trabalho mais coletivo

    multiprofissional, no interior das equipes de sade, fechado e protegido no espao

    fsico dos consultrios, em nome de uma eficcia e de uma tica que no se

    sustentam em nenhum outro dado objetivo, em termos da produo da sade.

    Ao mediocrizar a tecnologia leve, submetendo-a lgica da dura e de uma

    leve-dura empobrecida, encarece substancialmente as aes de sade, tanto por

    incorporar servios caros sem necessidades, quanto por ser um sistema pouco

    resolutivo.

    Assim, imperativo apontar que o trabalho mdico, em um modeloassistencial centrado no usurio, deve ser tecnologia leve dependente,

    comprometido com uma gesto mais coletiva dos processos de trabalho no interior

    das equipes de sade, de uma maneira multiprofissional e interdisciplinar, pautado

    por resultados em termos de benefcios gerados para os seus usurios.

    E, neste sentido, os recursos tecnolgicos com que conta so praticamente

    inesgotvel, pois centrado no trabalho vivo que enquanto tecnologia leve produz

    um compromisso permanente com a tarefa de

    .

    A servio destas novas perspectivas, o paradigma clnico que permitir a

    incorporao de tecnologias duras, ser sempre marcado pelo ritmo da produo

    das tecnologias leves, pela gesto partilhada e mais pblica dos processos de

    trabalho, e pelo compromisso efetivo com a defesa da vida do usurio.

    Os modelos assistenciais desenhados desta forma sero cada vez mais

    dependentes de uma clnica muito mais profunda e rica.

    Por isso, entendemos que o enfrentamento da crise atual passa

    necessariamente pela ampliao do prprio conceito de clnica, com implicaes

    significativas no seu modo de atuar. E, de acordo com esta perspectiva,

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    advogamos que o trabalho mdico um dos instrumentos mais poderosos para

    esta qualificao,

    De acordo com a idia de que a qualificao de um novo modelo

    assistencial, centrado no usurio e na defesa radical da vida, passa pelo

    reordenamento das relaes entre as tecnologias leves e duras, mediadas pelas

    leve-duras, e considerando que o territrio das tecnologias leves no campo

    especfico de nenhum profissional, mas base para a atuao de todos, temos na

    mediao que os saberes estruturados realizam para incorporar estratgias de

    intervenes, como no caso de profisses tipicamente de sade, um elemento

    vital para a ao dos diferentes profissionais de sade.Nesta situao, o saber mdico - subordinado lgica das tecnologias

    leves - tem se mostrado uma fonte muito eficaz de ao sobre os sofrimentos

    humanos representados como doenas.

    No estamos desconsiderando os campos especficos de todos os outros

    profissionais de sade, como por exemplo o da enfermagem que em termos

    assistenciais tem mostrado toda sua vocao em torno do cuidado do doente e

    no da doena, e que devido exatamente a isto tem implicaes muito positivas na

    sua relao com o trabalho mdico, principalmente se tambm comandada pelo

    campo das tecnologias leves que lhe fazem referncia, e se no se reduzir s

    lgicas mdico centradas.

    Entretanto, na sua especificidade, expressa pelos seus saberes

    estruturados, e na sua generalidade, pelas aes que compem o seu universo de

    tecnologias leves, o trabalho mdico ocupa um lugar estratgico no interior da

    conformao de qualquer modelo assistencial, podendo portanto ser usado como

    analisador privilegiado para a compreenso do que estamos tratando neste texto.

    Na constituio desta nova lgica, pretendemos provocar sua des-

    privatizao deste seu modo de se alienar do usurio como seu foco central de

    perspectivas, fazendo uma rotao de 180 no seu direcionamento e provocando

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    sua publicizao, no interior da equipe multiprofissional e interdisciplinar, nos

    seus processos de produo de relaes e intervenes assistenciais.

    Nisto, apontamos como necessrio e possvel a criao de dispositivos que

    atuam no dia a dia dos servios de sade, que agem nos espaos de interao

    entre as distintas configuraes tecnolgicas, imprimindo mudanas no modo de

    operar as relaes trabalhadores-usurios, que exponham o conjunto dos modos

    de atuar dos vrios profissionais de sade, nas suas respectivas competncias.

    Neste caminho temos proposto a criao de mecanismos, no interior dos

    servios de sade, que procuram tanto impactar o modo cotidiano de se acolher

    os usurios, quanto o de se produzir responsabilizaes entre as equipes e os

    profissionais, e destes com os usurios, em um movimento combinado de

    singularizao da ateno e publicizao da gesto organizacional e do processode trabalho.

    Nas experincias que temos assistido, as apostas realizadas para modificar

    as prticas de acolhimento e de produo de vnculos, mesmo em situaes no

    totalmente assumidas politicamente pelos gestores dos servios de sade, tm

    provocado impactos positivos nestes processos que buscam novos formatos

    assistenciais, no setor sade.

    Um produto interessante destes processos a evidenciao de que se

    produzem novas modalidades de assistncia, trabalho vivo dependente, centradas

    nos usurios e marcadas por novas combinaes entre as tecnologias leves e as

    leve-duras que, diga-se de passagem, uma combinao geradora de

    modalidades assistenciais que operam com recursos de custos muito mais

    controlveis e baratos, dos que os articulados as modalidades assistenciais

    produtos de uma combinao marcada pelas tecnologias leve-duras e duras.

    Alis, a discusso dos mdicos de famlia tem sido produtiva por atuar

    neste campo, mas infelizmente em vez de ser compreendido como uma das

    modalidades que expressam esta nova possibilidade, acabou sendo, no Brasil,

    parceira de um debate muito ideolgico, tanto pelos que esto a favor, quanto os

    que esto contra, ao mesmo tempo que aparece no seio da proposta dos

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    governos neoliberais, por se constituir em uma modalidade barata de garantia de

    acesso das populaes marginais, a atos de sade, por si.

    Este movimento, inevitavelmente, coloca a discusso sobre a necessidade

    de que, um modelo assistencial de novo tipo, deve estar calcado em uma forte

    rede bsica de servios, que busca efetivamente uma outra combinao entre as

    tecnologias em sade, como j vimos, que permita produzir uma relao de

    confiabilidade e de responsabilizao do trabalhador com o usurio, e que busca

    um timo na resolutividade das intervenes, promovendo coletivamente um

    controle dos riscos de adoecer, mas garantindo um acesso universal aos distintos

    nveis do sistema.

    S um modelo assistencial que produza modalidades tecnolgicas de

    assistncia, na base do sistema de sade, comandadas pelo universo dastecnologias leves e que tenham abrangncia individual e coletiva, que pode

    responder a esta situao, e isto implica em uma deciso poltica clara, pelos

    gestores do setor sade, em investir na qualificao clnica das redes bsicas de

    servios, ao mesmo tempo que se aposte na produo de intervenes sobre os

    fatores de riscos coletivos de adoecer.

    S assim, possvel construir um modelo assistencial com mais qualidade

    e mais barato, que respeita os direitos dos cidados na sade, e que tenha a

    abrangncia das aes individuais e coletivas.

    MODELO DE ATENO - MISSO DO ESTABELECIMENTO - DIRETRIZES OPERACIONAIS

    4 cons. md.por hora

    imunizar 80%dosmenores de 1ano

    ser gil nodiagnstico

    acolher todousurio noestabeleci/o

    responsabilizar a equipepelo usurios

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    leves boa escuta escutar,articularredes deconversas

    acolher,vincular,redes deconversas

    leve-duras saberestecnolgicosde controlede procprodutivos

    saberesclnicos epide sociodemogrficos

    saberes cln,epid, sociais,psicolgicos

    operartecnologiasde relaes

    operartecnologiasde relaes

    duras rea fsica, RH

    tcnicas devacin.Insumos,rea detrabalho

    rede de apoiodiagn., RH

    porta aberta,RH

    RH,

    TECNOLOGIAS

    Consideramos como vital neste caminhar apontado at agora, compreender

    que o conjunto dos trabalhadores de sade apresentam potenciais de

    intervenes nos processos de produo da sade e da doena marcados pela

    relao entre seus ncleos de competncia especficos, associados dimenso

    de cuidador que qualquer profissional de sade detm, seja mdico, enfermeiro ouum guarda da porta de um estabelecimento de sade.

    Cremos que uma das implicaes mais srias do atual modelo mdico

    hegemnico neoliberal a de diminuir muito esta dimenso tecnolgica do

    trabalho em sade, em particular do prprio mdico. H autores, que h muito

    vem advogando a noo de que a baixa incorporao do saber clnico no ato

    mdico vem comprometendo seriamente a eficcia desta interveno, e

    parodiando-os podemos dizer que a morte da ao cuidadora dos vrios

    profissionais de sade tem construdo modelos de ateno irresponsveis perante

    a vida dos cidados.

    Entendemos, que os modelos de ateno comprometidos com a vida

    devem saber explorar positivamente as relaes entre as diferentes dimenses

    tecnolgicas que comporta o conjunto das aes de sade.

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    Imaginamos que um profissional de sade, quando vai atuar, mobiliza ao

    mesmo tempo os seus saberes e modos de agir, definidos em primeiro lugar pela

    existncia de um saber muito especfico sobre o problema que vai enfrentar, sobre

    o qual coloca-se em jogo um saber territorializado no seu campo profissional de

    ao, mas ambos cobertos por um territrio que marca a dimenso cuidadora

    sobre qualquer tipo de ao profissional.

    Com o esquema abaixo tentaremos mostrar o que estamos dizendo:

    n. das ativida- ncleo ncleo

    des cuidado- profissional especif. por probl.

    ras de sade especfico

    Na produo de um ato de sade coexistem os vrios ncleos, como o

    ncleo especfico definido pela interseco entre o problema concreto que se tem

    diante de si e o recorte profissional do problema. Por exemplo, diante de um

    indivduo que est desenvolvendo um quadro de tuberculose pulmonar o recorte

    passa necessariamente pelo modo como o ncleo profissional mdico, ou da

    enfermagem, ou da assistente social, entre outras, recorta este problema

    concreto, portado pelo indivduo, e que so ncleos nos quais operam

    centralmente as tecnologias duras e leve-duras. Mas, seja qual for a interseco

    produzida, haver sempre um outro ncleo operando a produo dos atos de

    sade, que o cuidador, no qual atuam os processos relacionais do campo das

    tecnologias leves, e que pertence a todos os trabalhadores em suas relaes

    interseoras com os usurios.

    Porm, como a conformao tecnolgica concreta a ser operada pelos

    modelos de ateno sempre um processo que representa aes instituintes de

    foras reais e socialmente interessadas, em certos aspectos da realidade, dentro

    de um maneira muito particular de valorizar o mundo para si, entendemos que o

    territrio tecnolgico expresso nas 3 dimenses apontadas acima, so nos

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    servios concretos, antes de tudo, produtos das disputas entre os vrios atores

    interessados neste de ao social.

    Ento, podemos dizer que o modelo assistencial que opera hoje nos nossos

    servios centralmente organizado a partir dos problemas especficos, dentro da

    tica hegemnica do modelo mdico neoliberal, e que subordina claramente a

    dimenso cuidadora a um papel irrelevante e complementar. Alm disso, podemos

    tambm afirmar que neste modelo assistencial a ao dos outros profissionais de

    uma equipe de sade so subjugadas a esta lgica dominante, tendo seus

    ncleos especficos e profissionais subsumidos lgica mdica, com o seu ncleo

    cuidador tambm empobrecido.

    Com isso, devemos entender que so foras sociais, que tem interesses e

    os disputam com as outras foras, que esto definindo as conformaestecnolgicas. Isto , estes processos de definio do para que se organizam

    certos modos tecnolgicos de atuar em sade, so sempre implicados social e

    politicamente, por agrupamentos de foras que tm interesses colocados no que

    se est produzindo no setor sade, impondo suas finalidades nestes processos de

    produo. Deste modo, o modelo mdico-hegemnico neoliberal expressa um

    grupo de interesses sociais que desenham um certo modo tecnolgico de operar a

    produo do ato em sade, que empobrece uma certa dimenso deste ato em prol

    de outro, que expressaria melhor os interesses impostos para este setor de

    produo de servios, na sociedade concreta onde o mesmo esta de realizando.

    Vamos propor agora uma reflexo sobre os estabelecimentos de sade,

    suas distintas misses e possveis perfis tecnolgicos, dentro deste esquema

    analtico que estamos utilizando, para verificar de que maneira aqueles 3 ncleos

    se comportam nos distintos servios de sade e como possvel operarmos com

    dispositivos de mudanas do atual modelo mdico hegemnico, na direo de um

    outro que se paute pelo usurio e pela defesa da vida.

    Vejamos o esquema abaixo, desenhado a partir dos recortes que um

    mdico, uma enfermeira e uma assistente social, fazem de um certo usurio de

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    um servio, para em seguida analisarmos como sero os distintos recortes em

    diferentes tipos de estabelecimentos e que tenses eles comportam, que nos

    permitem atuar na direo da mudana dos modelos de ateno sade, o que a

    nosso ver implica em reconstruir: o modo de se fazer a poltica de sade no

    servio a maneira como o mesmo opera enquanto uma organizao e, a

    cotidianeidade dos processos de trabalho que efetivam um certo modo de

    produo dos atos de sade, desenhando os reais modelos de ateno.

    este circulo representa um certoindivduo submetida a abordagensprodutoras de atos em sade

    este circulorepresenta a aborda

    gem mdica

    n.e.m.

    n.e.e. ab.enf.

    n.e.a.s.

    ab.assist. social

    este retngulo representa o ncleoda dimenso cuidadora comum

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    a qualquer abordagem que produzaatos em sade

    Vamos entender o diagrama acima analisando, inicialmente, uma penso

    protegida experimentada por alguns servios que ousaram organizar alternativas

    aos manicmios psiquitricos, para depois usar do esquema explicativo para

    entender um hospital geral, na busca de possibilidades de intervenes que

    mudem os modos de produzir atos de sade.

    Em primeiro lugar, temos que entender qual a misso que esperada parauma penso protegida. E, isto, s pode ser resolvido ao perguntarmos sobre o

    modelo de ateno que se est querendo imprimir e o que se espera deste

    equipamento assistencial, pois cada tipo de modelo cria misses diferenciadas

    para estabelecimentos aparentemente semelhantes, que se traduzem em

    diretrizes operacionais bem definidas.

    Podemos, tanto esperar de uma penso protegida que ela seja organizada

    de tal modo que os seus moradores no tenham mais crises agudas, quanto que

    seja organizada como um equipamento que deve viabilizar uma ampliao da

    socializao, com ganhos nos graus de autonomia para tocar a vida diria, e com

    um enriquecimento das redes de compromissos de seus moradores com um

    mundo no-protegido, extra-muro das instituies mais fechadas.

    Do ponto de vista da nossa anlise, podemos dizer que um modelo que

    espera da penso protegida um papel vital para impedir crises, impe no dia a dia

    do funcionamento do estabelecimento, uma relao entre os ncleos que operam

    na produo dos atos de sade, uma articulao que possibilita um agir sobre adimenso especfica do problema, a partir de certos recortes profissionais,

    efetivamente mais eficazes no manejo das crises, por exemplo, de usurios

    psicticos, e que favorece um jogo de potncias em direo a certos processos

    instituintes.

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    Tendencialmente, pelo modo como operam as lgicas de poderes

    (polticos, tcnicos e administrativos) na sociedade contempornea, estes ncleos

    vinculados as tecnologias duras e leve-duras, encontram um processo favorvel

    para acabarem se impondo sobre os outros ncleos, favorecendo um processo de

    dominao psiquitrica diante dos outros recortes profissionais. E, o interessante a

    observar, que isto ocorre mesmo que no haja comprovao de que este

    processo de conformao tecnolgica ir ou no obter bons resultados, pois esta

    imposio de misso e de desenhos tecnolgicos dada pelos interesses sociais

    que no momento so mais poderosos e considerados legtimos.

    Superar esta conformao exige operar com alguns dispositivos que

    possibilitam redefinir os espaos de relaes entre os vrios atores envolvidos

    nestes processos, alterando as misses do estabelecimento, ampliando os modosde produzir os atos em sade, sem perder as eficcias de interveno dos

    distintos ncleos de ao. Deve-se apontar para um modo de articular e

    contaminar o ncleo mais estruturado, o especfico, pelo ncleo mais em ato, o

    cuidador, publicizando este processo no interior de uma equipe de trabalhadores.

    Entretanto, diante de uma misso j a priori distinta, este processo se

    impe como que mais naturalmente. o que ocorre se o que se espera da penso

    a segunda alternativa, ou seja: viabilizar uma ampliao da socializao, com

    ganhos nos graus de autonomia para tocar a vida diria, e com um enriquecimento

    das redes de compromissos de seus moradores com um mundo no-protegido

    Neste caso, vemos que o ncleo cuidador o que dever se impor, o que

    favorecer inclusive a diminuio das relaes de dominao que se estabelecem

    entre os vrios profissionais, como representantes de certos interesses e modos

    de oper-los no interior dos modelos de ateno. E, mais ainda, pode-se abrir a

    partir deste ncleo em comum, o cuidador, um espao semelhante e equivalente

    de trabalho na equipe, que explore a cooperao entre os diferentes saberes e o

    partilhamento decisrio.

    Devemos ficar atento, ento, neste tipo de processo a pelo menos duas

    questes bsicas: a de que todo profissional de sade, independente do papel que

    desempenha, como produtor de atos de sade sempre um operador do cuidado,

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    isto , sempre atua clinicamente, e como tal deveria ser capacitado, pelo menos,

    para atuar no terreno especfico das tecnologias leves, modos de produzir

    acolhimento, responsabilizaes e vnculos e, ao ser identificado como o

    responsvel pelo projeto teraputico, estar sempre sendo um operador do

    cuidado, ao mesmo tempo que um administrador das relaes com os vrios

    ncleos de saberes profissionais que atuam nesta interveno, ocupando um

    papel de mediador na gesto dos processos multiprofissionais e disciplinares que

    permitem agir em sade, diante do caso concreto apresentado, o que nos obriga

    a pens-lo como um agente institucional que tenha que ter poder burocrtico-

    administrativo na organizao.

    Vive, deste modo, a tenso de fazer este papel sempre em um sentido

    duo: como um clnico por travar relaes interseoras com o usurio produtorasde processos de acolhimento, responsabilizaes e vnculos, e como um gerente

    do processo de cuidar atravs da administrao de toda uma rede necessria para

    a realizao do projeto teraputico, como procuramos expressar no diagrama

    abaixo:

    OPERADORD

    em ao clnica e em ao gestora

    Cremos, que um modelo em defesa da vida est mais baseado nestas

    possibilidades, mas isto no deve nos levar a desconhecer a importncia dos

    modos especficos de se produzir profissionalmente os atos em sade, pois o que

    temos que almejar esta nova possibilidade de explorar melhor este territrio

    comum para ampliar a prpria clnica de cada territrio em particular, o que levar

    sem dvida a ampliar a prpria eficcia do ncleo especfico de ao.

    OPERADOR DOCUIDADO GERENTE DOP.T.I.

    PONTO DEINTERSECO

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    De posse destas reflexes, se estivssemos analisando um outro

    estabelecimento que no uma penso protegida, mas um hospital geral de clnica,

    a nossa anlise seria semelhante, mas sofreria certos deslocamentos.

    Nestes estabelecimentos, esperam-se atualmente em termos de misses

    que os mesmos tenham compromisso com a garantia da eficcia dos ncleos

    especficos de interveno profissional, particularmente o mdico e de

    enfermagem, s que isto feito hoje pelo domnio que o agir mdico impe

    hegemonicamente para os outros recortes, e o que pior, dentro de um modelo

    de ao clnica do mdico empobrecedora ou mesmo anuladora do ncleo

    cuidador.

    Um modelo em defesa da vida, para um estabelecimento deste tipo, deveria

    pensar como ampliar a dimenso do ncleo cuidador e sua relao positiva, tantopara desencadear processos mais conjuntos e partilhados no interior da equipe,

    quanto para melhorar a eficcia e adequabilidade da ao especfica com os

    processos usurios centrados, assumindo e reconhecendo que certas abordagens

    profissionais, em certas circunstncias so, de fato, mais eficazes que outras.

    Mas, sem fazer disso uma lgica de poder na qual uma profisso se imponha

    sobre as outras.

    Este modelo deve tambm estar atento aos processos organizacionais, que

    nestas novas articulaes do ncleo cuidador, possibilitam ampliar os espaos de

    ao em comum e mesmo a cooperao entre os profissionais, levando a um

    enriquecimento do conjunto das intervenes em sade, tornando-as mais

    pblicas e comprometidas com os interesses dos usurios, acima de tudo, e mais

    transparentes para processos de avaliaes coletivas.

    Cremos que s a criao institucional da responsabilizao dos

    profissionais e das equipes por estes atos cuidadores que poder redesenhar o

    modo de trabalhar em servios de sade, como um todo, atravs por exemplo de

    dispositivos como a amarrao referencial entre equipes e usurios, por

    processos teraputicos individuais. S que para isso, devemos operar no conjunto

    dos processos institucionais, por isso acreditamos ser necessrio pensar e

    articular intervenes complementares: no modo de se produzir e fazer a poltica

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    nos estabelecimentos de sade na maneira de se organizar as relaes de

    produo de compromissos e suas prestaes de contas, entre os agentes

    institucionais e, nos processos de produo dos atos de sade.

    Com o esquema abaixo, vamos tentar mostrar as possibilidades de ao

    nesta direo, imaginando como certos dispositivos criados no interior dos

    estabelecimentos, ou do sistema de sade, implicam em intervenes positivas na

    direo que apontamos at agora. E mesmo, sugerir que isto seja pensado de

    modo conjunto e articulado pelo coletivo dos trabalhadores de um servio, junto

    com os vrios grupos interessados em seu trabalho de produo de atos desade.

    No quadro abaixo, vamos descrever algumas das relaes entre os campos

    da poltica, da organizao e do processo de trabalho, que traduzem aquelas trs

    dimenses no interior dos estabelecimentos de sade que destacamos atrs, e

    tentar cruz-los com a ao de certos dispositivos de interveno nestes

    estabelecimentos, que atuam nos focos do gerir e do agir, a cada um dos nveis

    pretendidos e que podem como resultante final alterar a lgica do cuidado

    sade, e consequentemente do modelo de ateno a partir do prprio interior dos

    estabelecimentos.

    o foco do gerir o foco do agir

    o campo da poltica Conselho local de sadeColegiado de direodecidindo por votao

    Grupos de trabalhoUm plano de ao

    o campo da organizao Grupo de Avaliao e

    Controle

    Uma planilha de avaliao do

    cotidiano dos servioso campo do processo detrabalho em sade

    Rede de Petio eCompromissoFluxograma analisadorGrupos de referncia

    Avaliao mensal da produodos atos de sadeProjeto Teraputico IndividualGestores do cuidado assistencial

    CADA CAMPO SE REALIZA NA PRODUO DE CERTOS PRODUTOS: POR EX., O DAPOLTICA EM UM PLANO DE AO DE IMPLANTAO DE UMA GESTOPARTILHADA, O DA ORGANIZAO EM UM NOVO ORDENAMENTO INSTITUCIONAL

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    DE AVALIAO E DESEMPENHO, E O DO PROCESSO DE TRABALHO EM UMA NOVAFORMA DE PRODUZIR ATOS DE SADE QUE GARANTA UM OUTRO TIPO DEACESSO E VNCULO DOS USURIOS AOS TRABALHADORES DOSESTABELECIMENTOS.

    - campo da poltica: representa o lugar institucional onde ocorrem as formulaes e decises sobreos fazeres dos servios, e que ser mais ou menos amplo conforme a natureza mais democrtica ecooperante dos projetos de sade e das mquinas organizacionais que os implementam. A rigor,todo o territrio do sistema de sade campo da poltica, i., se disputam projetos em qualquernvel das organizaes e das relaes institucionais.- campo da organizao: representa o modo como se relacionam os vrios agentes institucionaisenvolvidos, produzindo contratualidades entre si, nos vrios nveis e instncias de uma mquina

    institucional, e conforme certas lgicas de exerccios do poder (poltico, administrativo e tcnico). Arigor, todos os nveis de uma organizao operam com formulaes, decises e produo decompromissos, e o maior ou menor envolvimento dos vrios agentes est marcado pelas lgicasde partilhamento dos contratos produzidos e das possibilidades de neles atuarem os conjuntosinteressados.- campo dos processos de trabalho: representa o lugar da produo dos atos de sade na suacotidianeidade, e portanto um espao privilegiado de percepo e identificao dos outros doiscampos, de seus modos de gesto e de agires, e de anlise das aes protagonistas dostrabalhadores na construo dos modelos.- gerir: expressa o modo como cada ator real governa os processos a eles referentes, agindo comoinstituintes do campo, e que se apresenta como uma dobra com o agir.- agir: expressa o modo como em cada campo se produz o que se almeja, como por exemplo, umanormativa, uma diretriz no campo da poltica uma avaliao ou um acordo de trabalho no campoda organizao e, uma interveno assistencial no campo do processo de trabalho.

    Os dispositivos, que aqui sugerimos a ttulo de exemplos, s so

    interessantes se puderem impactar o modo como cotidianamente produzido o

    cuidado em sade junto aos usurios de um estabelecimento, almejando

    resultados naquilo que j tomamos como pressupostos de uma proposta usuria

    centrada, impactando os modos de: ACOLHER, RESPONSABILIZAR,

    RESOLVER, AUTONOMIZAR.

    Por exemplo, podemos perceber que em um hospital geral de clnicas paraatingir estes resultados ltimos, devemos mudar o modo como no interior do

    estabelecimento feita a gesto do cuidado. Para isto, seria necessrio mexer em

    toda a lgica de construo das equipes, procurando vincul-las aos usurios. A

    pergunta que nos fica, : como fazer isto?

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    H vrias experincias que podem mostrar estas possibilidades, e

    acreditamos que um modo de realizar este intento seria adscrever um nmero

    definido de leitos a uma equipe horizontalizada e responsvel por eles, ao mesmo

    tempo que esta equipe seria perante o servio a autoridade mxima a formular e

    decidir os projetos teraputicos individuais de cada caso, com a funo de ser

    como o gestor do cuidado o responsvel sobre as relaes com os outros servios

    necessrios para implementar o projeto teraputico, ao mesmo tempo que exerce

    atividade clnica vinculante junto ao usurio, sendo quem responderia pelos

    resultados produzidos perante o estabelecimento, e por isso com autoridade

    suficiente para dar governabilidade sobre o conjunto dos processos de

    interveno, e para conquistar, ou mesmo impor, aos outros nveis de ao em

    sade, a sua cooperao e prestao de contas.Insistimos aqui com o leitor para que veja, como neste pequeno exemplo,

    temos a necessidade de atuar nos vrios campos e focos do sistema, com certos

    dispositivos, para dar conta do que almejamos. E, aproveitando esta pequena

    descrio, propomos como exerccio que o mesmo organize um quadro

    semelhante, junto com os seus pares no trabalho, para o estabelecimento no qual

    atua. Boa sorte.