MERCADO DE HABITAÇÃO EM PORTUGAL MUDANÇA...
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MERCADO DE HABITAÇÃO EM PORTUGAL – MUDANÇA DE PARADIGMA
Francisco Moreira Braga *
Introdução
Ao falarmos de uma mudança de paradigma no mercado de habitação estamos
claramente a afirmar que, em determinadas épocas, um conjunto de circunstâncias terá
condicionado as escolhas dos portugueses na opção entre arrendamento ou aquisição da sua
própria habitação e que, no momento presente, um outro conjunto de circunstâncias, diversas
das anteriores, estará novamente a condicionar as escolhas dos portugueses, no que se refere a
essa mesma opção, mas levando-os agora a decidir noutro sentido.
Sendo as condicionantes diferentes, certamente as escolhas serão igualmente
diferentes. Procuraremos caracterizar a evolução do mercado de habitação em Portugal no
passado recente e a encontrar os motivos que nos trouxeram à situação atual, os quais não só
nos condicionaram, como ao longo de décadas nos levaram a assumir como dados adquiridos,
como dogmas, alguns pressupostos que entretanto deixaram de ter correspondência com a
realidade.
Uma das características mais marcantes da realidade portuguesa atual no mercado de
habitação é a elevadíssima percentagem de proprietários da sua própria habitação sendo uma
das origens deste facto o progressivo desaparecimento do mercado de arrendamento ao longo
das últimas décadas motivado por decisões políticas que enviesaram as mais elementares
regras da livre iniciativa, de que resultou o desinteresse dos investidores por este mercado,
enquanto, paralelamente se fomentava a opção pela aquisição de habitação própria.
Este panorama levou-nos a estudar o mercado da habitação em Portugal, a sua
evolução recente que veio influenciar de forma decisiva as suas atuais características, assentes
numa notória distorção das regras de mercado do sector do arrendamento, e da existência de
uma elevadíssima percentagem de proprietários da sua própria habitação.
* Solicitador, mestre em solicitadoria (ISCAD) e docente universitário. Ex-diretor de risco de crédito do
Barclays Bank Plc - Sucursal em Portugal.
Analisaremos igualmente as perspetivas futuras, que nos apontam um rumo que se
veio a revelar na mesma linha de resolução do Conselho de Ministros1 no sentido da
necessidade de uma revitalização do mercado de arrendamento.
Pretende-se com este trabalho, não um estudo exaustivo, mas caracterizar em traços
gerais o mercado de habitação em Portugal, bem como a evolução que o mesmo tem sofrido
no passado recente, resultado de decisões políticas e sua consequente tradução legislativa, da
forma como as condições proporcionadas pelo sistema financeiro português e respetivas
opções em termos de política de crédito o têm vindo a condicionar e influenciar e, mais
recentemente, talvez de forma ainda não totalmente consciente, da mudança de paradigma em
curso no mercado de emprego que cada vez mais levará, sobretudo os mais jovens, a ponderar
as vantagens proporcionadas, quando a opção é o arrendamento, no que à mobilidade diz
respeito, em contraposição às limitações impostas pela opção por aquisição de habitação
própria no que se refere à disponibilidade para aceitação de ofertas de emprego.
Com efeito, essa necessidade de disponibilidade para aceitação de ofertas de emprego,
cada vez em locais mais distantes, no país ou mesmo no estrangeiro, bem como a
instabilidade e precariedade muitas das vezes associadas a esses possíveis postos de trabalho,
obrigam a que estejamos sempre, mentalmente disponíveis e fisicamente preparados a
rapidamente nos podermos deslocar de uma cidade para outra, de um país para outro,
necessidade, essa, que é manifestamente incompatível com a opção por aquisição da própria
habitação, que, em regra, nos amarra a um local determinado, um ativo cuja liquidez é, nos
tempos que correm, muito reduzida, mas também a um empréstimo de longa duração e a uma
hipoteca;
1 Resolução do Conselho de Ministros nº20/2011, de 17 de Março, publicada no Diário da República, 1.ª série —
N.º 58 — 23 de Março de 2011. Posteriormente veio a ser publicada a Lei 31/2012 de 14 de Agosto que entrou
em vigor a 12 de Novembro de 2012 e que procede à revisão do regime jurídico do arrendamento urbano.
1. O congelamento das rendas e a degradação do parque habitacional
Comecemos então por tentar perceber o motivo do enviesamento da situação existente
em Portugal, traduzido no facto de uma percentagem elevada da população ser proprietária da
sua própria habitação.
Há quem afirme existirem duas formas de destruir uma cidade, a primeira por via de
bombardeamento, a segunda por via do congelamento das rendas.
E se, nem Lisboa nem o Porto foram sujeitas a bombardeamentos, foi precisamente
pela instabilidade social causada pelas grandes guerras ocorridas na Europa que ambas foram
sujeitas ao congelamento das rendas nos termos do art.48º da Lei 2030 de 22 de junho de
1948. Previa esta Lei a possibilidade de atualização das rendas, que corresponderiam no
máximo a um duodécimo do valor tributável dos imóveis, excepto nas cidades de Lisboa e
Porto, enquanto ao senhorio não se facultasse a avaliação. Na verdade, não foram as rendas
que foram congeladas, mas sim as avaliações de imóveis que deixaram de ser levadas a cabo,
o que implicou, na prática, uma impossibilidade para os senhorios de procederem à
atualização das rendas.
Basta passearmo-nos pelas zonas históricas daquelas duas magníficas cidades para, em
ambas, nos ser dado constatar o grau de abandono e de degradação a que chegaram, e cujos
esforços de recuperação por parte dos municípios não conseguem fazer reduzir a frequência
com que notícias de derrocadas de prédios e de famílias desalojadas são disputadas pelas
diferentes estações televisivas para os “diretos” de abertura dos noticiários.
Não podemos deixar de fazer uma alusão, neste momento, pela sua peculiaridade, a
diversas disposições constantes no Decreto-Lei nº157/2006 de 8 de agosto2, que aprova o
regime jurídico das obras em prédios arrendados, ao preverem a possibilidade de realização
de obras coercivas por parte dos municípios, ou mesmo por parte dos inquilinos, e respetivo
ressarcimento do seu custo através do recebimento das rendas. Não pela previsão dessa
possibilidade em si mesma, que parece perfeitamente aceitável e pacífica, mesmo
2 Entretanto alterado pela Lei 30/2012 de 14 de agosto.
recomendável, mas pelo facto de a legislação que recentemente tem vindo a lume, parecer
fazer crer, aos olhos dos cidadãos, serem os senhorios os únicos responsáveis pelo estado de
degradação a que chegaram os imóveis de que são proprietários, sem que o próprio Estado
reconheça a sua quase exclusiva responsabilidade nessa matéria.
Com efeito, tem sido à custa do património dos senhorios, por via legislativa, e ao
longo de décadas, que a estes últimos tem vindo a ser imposto subsidiarem as rendas das
habitações, não só às famílias eventualmente mais desfavorecidas, mas da população em geral
sem que, em ocasião alguma, o Estado tenha vindo reconhecer a sua quase exclusiva
responsabilidade nessa matéria, o que veio coartar a muitos senhorios a capacidade financeira
necessária para procederem à manutenção dos seus prédios.
O congelamento das rendas prolongou-se ao longo dos anos, de décadas mesmo,
prevendo o Decreto-Lei nº47.334, de 25 de novembro de 1966, no seu art.10º a suspensão das
avaliações fiscais prescritas em 1948 apenas para Lisboa e para o Porto. A esse propósito,
transcrevemos parte do preâmbulo do Decreto-Lei nº321-B/90 de 15 de outubro, que por seu
lado se referia a declarações proferidas pelo Ministro da Justiça em 1966, as quais
reconheciam as implicações que tal opção (congelamento das rendas) poderia vir a provocar
na deterioração do património imobiliário:
“ (...) como foi afirmado em 1966 pelo então Ministro da Justiça, em comunicação à
Assembleia Nacional, "da inalterabilidade das rendas, no mercado em permanente evolução,
há-de resultar por força a progressiva deterioração de uma parcela não despicienda do
património imobiliário nacional, fenómeno a que os poderes públicos não devem assistir
impassíveis".
Na senda da anterior legislação, também a revolução que ocorreu em 1974, e desta
feita, quiçá, influenciada pelas correntes ideológicas preponderantes à época, numa torrente
de sucessivos Decretos-Lei, de que Pinto Furtado3 destaca o DL 445/74, de 12 de setembro e
que tentaram de alguma forma por cobro a diversos fenómenos sociais que então se
3 Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, pag. 231, Manual de Arrendamento Urbano, Volume I, 4ª Edição, 2007,
Edições Almedina SA.
verificavam, não só manteve em Lisboa e Porto mas veio alargar a todos os concelhos do País
a suspensão das avaliações fiscais para atualização de rendas4.
Apesar de mais recentemente, desde a publicação de diversas normas como o Decreto-
Lei 148/81, de 4 de Junho e a Lei nº 46/85, de 20 de Setembro e, sobretudo, da publicação do
Regime do Arrendamento Urbano pelo Decreto-Lei 321-B/90 de 15 de Outubro, se ter
permitido a celebração de contratos de arrendamento urbano de renda livre, já no que se refere
aos contratos vigentes à data da entrada em vigor da lei nova, cujas rendas se encontravam e
mantêm muito desfasadas relativamente ao que seria uma renda normal de mercado, apenas
medidas muito tímidas foram adotadas no que se refere à sua atualização. A este propósito,
referem os respetivos autores em nota prévia, em obra recentemente publicada, que “(...) a Lei
nº31/2012, de 14 de agosto (...) introduz profundas e significativas alterações aos vários
diplomas que, em conjunto, constituem o Regime Jurídico do Arrendamento Urbano (...)” 5.
E se, até ao início da década de 1970, as taxas de inflação eram baixas e estáveis, pelo
que, mesmo sem atualizações, as rendas se iam mantendo relativamente próximas do seu
valor real de mercado, no período seguinte, sobretudo no pós 25 de Abril de 1974, como
veremos mais à frente6, as taxas de inflação disparam, chegando na primeira metade da
década de 1980 a atingir valores próximos de 30%, o custo de vida aumenta
significativamente, e o valor real das rendas sofre uma desvalorização progressiva e
acelerada.
É necessário chegarmos à década de 1990 depois de um período prolongado de
elevadas taxas de inflação e consequentemente numa época em que o valor médio das rendas
já é totalmente desfasado da realidade, para assistirmos à publicação do RAU7 (Regime de
Arrendamento Urbano) que entra em vigor em 1991 e que vem tornar possível a celebração de
contratos de arrendamento urbano de renda livre, mas que, no que se refere aos contratos
vigentes à data da sua entrada em vigor – os denominados contratos do tipo vinculístico - pelo
facto de os senhorios deles não se poderem desvincular, as rendas mantêm-se inalteradas
4 O que, tendo em linha de conta as taxas de inflação anuais à época (ver quadro III), facilmente se depreende a
rapidez e a dimensão da degradação do valor das rendas de casa. 5 MARTINS, Manteigas; FREIRE, Carla Santos; NABAIS, Carlos; RAIMUNDO, José M., Novo Regime do
Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, Vida Económica, 2012. 6 Vidé Quadro V – Taxa de inflação.
7 RAU – Regime do Arrendamento urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90 de 15 de Outubro.
continuando-se assim, a assistir à degradação contínua do valor real dessas rendas e,
consequentemente, das zonas históricas das principais cidades.
A própria Lei 6/2006 de 27 de fevereiro que aprovou o NRAU – Novo Regime de
Arrendamento Urbano e vem revogar o RAU, que tinha como objetivo mais publicitado a
implementação de um sistema de atualização das rendas antigas, em virtude da sua
complexidade e da manutenção do legislador numa preocupação centrada nos baixos
rendimentos dos arrendatários, acabou por não produzir os efeitos alegadamente pretendidos,
uma vez mais, à custa do património dos senhorios.
Considerando ser seu propósito a atualização das rendas mais antigas, mas prevendo a
própria lei, nos seus artigos nºs 37º e 38º, no caso de arrendatários com mais de 65 anos de
idade - porventura a maioria do segmento das rendas mais baixas – mas de forma cega e
independentemente do rendimento auferido por estes, que esse mesmo aumento seria
processado de forma faseada ao longo de 10 anos e que a nova renda não poderia nunca
exceder o valor correspondente a 4% do valor patrimonial atualizado, e isto apenas se o
estado da habitação fosse classificado de bom ou de excelente, poderemos concluir, pese
embora a bondade da iniciativa, da timidez da solução apresentada.
Um breve exemplo de um caso concreto é disso uma prova. Aplicando a nova
legislação aprovada e seguindo todos os preceitos legais, que levaram o processo a arrastar-se
por cerca de um ano, uma renda de €60,00 referente a um apartamento do tipo T2, localizado
na cidade da Amadora, foi possível ser atualizada para um novo valor de €260,00 que, sendo
sem dúvida, em termos percentuais, muito significativo, não deixa de continuar a ser uma
renda desfasada da realidade ditada pelo mercado. Sucedeu que, pelo facto de a inquilina ter
mais de 65 anos de idade, a referida renda, independente do rendimento auferido pela
arrendatária, tem vindo a ser paulatinamente atualizada, grosso modo ao ritmo de €20,00 por
ano, apenas vindo a atingir o seu novo valor ao fim de um período de 10 anos.
Mesmo com as mais recentes alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14 de
Agosto, claramente, e como vem sucedendo desde há décadas, o Estado, novamente, alijando
a sua responsabilidade à custa do património dos senhorios, impõe a estes a manutenção de
um subsídio direto às famílias com rendas mais antigas. Referimo-nos ao regime de
salvaguarda para agregados familiares de baixos rendimentos, estatuído pelo art.35º da Lei
6/2006 de 27 de fevereiro, já com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14 de agosto,
que mantém o conceito de baixos rendimentos para os agregados familiares, cujo RABC
(Rendimento Anual Bruto Corrigido), seja inferior a cinco RMNA (Retribuição Mínimas
Nacionais Anuais)8.
Convenhamos que, no atual panorama da economia portuguesa, estabelecer o conceito
de rendimento baixo a este nível, será no mínimo, pouco consistente com as diversas medidas
anunciadas pelo governo de cortes nas reformas dos pensionistas do Estado, cujo valor exceda
os €1.500,00 mensais.
Para que não subsistam dúvidas, é óbvio que chegados ao ponto em que estamos, é
forçoso, cada vez mais, salvaguardar as famílias de menores rendimentos assegurando-lhes
uma habitação condigna. Ao que nos opomos, é que o Estado imponha a privados, neste caso
os senhorios, que se substituam ao próprio Estado nas suas obrigações de carácter social.
Mas já que assim é, então, para minimizar os danos, que seja permitido aos senhorios
deduzir ao rendimento coletável da categoria “F” (rendimentos prediais) ou mesmo
diretamente à coleta, em sede de IRS, como custo, o prejuízo resultante do diferencial entre o
que seria o rendimento máximo permitido por uma renda anual correspondente a 1/15 do VPT
(valor patrimonial tributário) e aquele que lhes é permitido auferir em resultado do RABC
(Rendimento Anual Bruto Corrigido) declarado pelo arrendatário9.
Outro aspeto fortemente desmotivador da opção pelo investimento, no mercado de
arrendamento, tem sido a deficiente proteção jurídica oferecida aos senhorios, que, mesmo
perante arrendatários faltosos, através de um procedimento imperativo previsto nos artigos
1079º a 1090º do Código Civil, os obrigava a aguardar pela ocorrência de mora superior a três
8 O sítio https://www.portaldahabitacao.pt/pt/portal/legislacao/rmna.html informava, em consulta efetuada a 29
de Dezembro de 2012 que em 2011, cinco RMNA correspondiam à quantia de €33.950,00. 9 Vidé artigos 30º e seguintes da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012,
de 14 de Agosto, segundo os quais, nos contratos para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, a
nova renda máxima anual permitida corresponderá a um valor igual a 1/15 do valor patrimonial tributário do
arrendado, determinado pelos serviços de finanças segundo as regras dos artigos 38º e seguintes do CIMI, valor
este excecionado para arrendatários cujo RABC do seu agregado familiar seja inferior a cinco RMNA
(Remunerações Mínimas Nacionais Anuais).
meses no pagamento da renda para que lhes fosse permitida a resolução do contrato, e que,
mesmo após a comunicação ao inquilino faltoso, teriam de aguardar novo período de três
meses até poderem entrar com um procedimento executivo para entrega de coisa certa
referente ao arrendado e um outro para pagamento de quantia certa referente às rendas
vencidas e não pagas, além do que, ainda assistia ao arrendatário faltoso o direito a invocar
todo um conjunto de situações previstas nos artigos 930º-A e seguintes do CPC, e aqui
enxertados pela mesma Lei que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano que lhe
permitiriam, em certas circunstâncias, dilatar ainda mais os prazos acima referidos.10
Salvo melhor opinião, esta perspetiva de excessiva preocupação de protecionismo dos
arrendatários faltosos, contribui, não para a dinamização, que carece de urgência, de um
verdadeiro mercado de arrendamento, mas para o prejuízo dos arrendatários cumpridores.
Estes, em virtude da escassez de oferta de habitações para arrendar, quantas vezes são
compelidos a pagar rendas de valor excessivo e aceitar práticas ilegais por parte de senhorios
sem escrúpulos que, aproveitando quantas das vezes a ignorância ou inexperiência dos
inquilinos, se recusam a celebrar contratos e a emitir recibos, chegando mesmo ao ponto de
publicitar nos media esta prática, o que, com a crescente procura, nomeadamente por parte de
comunidades imigrantes, se tem vindo a generalizar.11
10 A Lei 31/2012, de 14 de agosto, veio introduzir alterações significativas aos Códigos Civil e do Processo Civil
sobre esta matéria. Como referem os autores na obra referida na anotação 5, pag.123, “O nº3 deste artigo (1083º
CC) contém uma situação objetiva de incumprimento grave por parte do inquilino e que justifica a resolução do
contrato de arrendamento, consistente na mora quanto ao pagamento da renda por um prazo superior a dois
meses, prazo que anteriormente à alteração introduzida pela Lei nº31/2012, de 14 de agosto, era de três meses.”
Realçam também os autores, entre outras, duas medidas introduzidas no Código Civil cujo objetivo será, sem
dúvida, agilizar o processo de resolução do contrato de arrendamento: “A redação introduzida pelo nº4 (art.1083º
CC) cria um novo fundamento de resolução do contrato de arrendamento e que consiste em o arrendatário se
constituir em mora superior a 8 dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes seguidas ou interpoladas
(ou seja, pelo menos 5 vezes) durante 12 meses.” Na mesma obra (pag.124) referem-se os autores ao
encurtamento de um outro prazo importante ao sublinharem que “A alteração constante do nº3 (art.1084º CC)
reduz de três meses para um mês o prazo de que o inquilino, a quem foi resolvido o contrato por mora no
pagamento da renda, dispõe para poder considerar sem efeito a resolução, através do pagamento das rendas em
mora acrescidas de 50%.” De referir ainda a criação do denominado BNA (Balcão Nacional de Arrendamento)
pelo Decreto-Lei 1/2013, de 7 de Janeiro, dentro do mesmo objetivo de agilização do processo de despejo de
inquilinos incumpridores e da desjudicialização deste procedimento que ficará a cargo de agentes de execução e
de notários, mas cujo alcance prático é ainda cedo para se perceber.
11 Sobre este tema, de referir as intenções já demonstradas pelo anterior executivo (do 1º Ministro José Sócrates)
em resolução do Conselho de Ministros já citada, segundo a qual se previa, por parte do senhorio, o recurso a
procedimento mais célere com vista ao despejo e restituição do imóvel, em caso de não pagamento de rendas, o
qual ficaria, contudo, reservado apenas a senhorios que tivessem, quando da celebração de contratos de
arrendamento, observado e cumprido, todos os preceitos legais nomeadamente o registo do contrato nos serviços
Essas opções políticas e legislativas acabaram afinal por fomentar e manter a
possibilidade de existência de uma verdadeira “economia subterrânea” no mercado de
arrendamento, onde muitos senhorios deixam de declarar este tipo de rendimentos e de pagar
os respetivos impostos, e muitos inquilinos ficam impossibilitados da dedução à coleta, em
sede de IRS, até ao respetivo limite, o valor das rendas pagas12
.
A este propósito, vejamos a título ilustrativo o quadro que abaixo se reproduz,
segundo o qual nos é dado constatar a distorção existente no mercado de arrendamento e a sua
evolução nas duas últimas décadas do Séc. XX. Com efeito, em 1981, cerca de 90% dos cerca
de 1,07 milhões de contratos de arrendamento existentes mantinham rendas abaixo dos €15,00
e que menos de 1% se situava acima dos €60,00. Duas décadas mais tarde, de acordo com o
censo 2001, esta relação evoluía passando aproximadamente 16% dos cerca de 740 mil
contratos então existentes a contar com rendas abaixo dos €15,00 e 52% acima dos €60,00.
Quadro I: Distribuição das rendas por escalões (1981 2001).
Entretanto o Censo 2011 veio atualizar a informação no que se refere à
distribuição das rendas por escalões, como nos mostra o Quadro II, onde é nos é dado
constatar, por um lado um ligeiro crescimento do número de contratos de arrendamento,
de finanças. De referir ainda na mesma resolução, a previsão de algumas medidas de carácter fiscal,
nomeadamente a fixação de uma taxa autónoma em sede de IRS para os rendimentos prediais semelhante à taxa
que em sede do mesmo imposto é aplicada em regra, às aplicações financeiras, o que poderia também, por via do
efeito fiscal, vir a incentivar o investimento no mercado do arrendamento, para além de outras especialmente
destinadas a incentivar a reabilitação urbana, processo este, que como sabemos, reveste carácter urgente em
zonas históricas das principais cidades, podendo também ele contribuir para contrariar a desertificação que nas
referidas zonas é tantas vezes referida pelas autoridades locais.
12 O art.85º do CIRS, na alínea a) do nº1, prevê com referência aos rendimentos auferidos em 2012, a dedução à
coleta até ao limite de €591,00 do valor das rendas pagas para habitação permanente do sujeito passivo.
Anos
Escalões de renda
Total de
contratos
Menos
de €15,00
De €15,00
a €35,00€
De €35,00
a €60,00
Mais de
€60,00
1981 1.074.590 957.498 95.747 16.582 4.763
1991 545.710 173.482 148.807 81.721 141.700
2001 740.425 117.330 138.803 101.369 382.923
Fonte de Dados:
INE - II a IV Recenseamentos Gerais da Habitação
tendência esta que já se vinha fazendo sentir desde 1991, e por outro lado a tendência para
uma redução progressiva do número de contratos nos escalões de rendas mais baixas,
verificando-se uma evolução de sentido contrário nos escalões de rendas mais altas.
Quadro II: Distribuição das rendas por escalões (2001 2011).
Ano
Escalões de renda
Total Menos
de €100
De €100
a €200
De €200
a €300
De €300
a €400
De 400
a €500
Mais de
€500
2001 740.425 439.844 128.001 91.447 49.611 17.334 14.188
2011 794.465 257.299 123.900 136.883 152.797 58.345 65.241
Fonte: Pordata / INE – Censo 2011
No que se refere ao valor das rendas podemos igualmente constatar uma evolução com
um decréscimo contínuo do número de contratos de rendas mais baixas, celebrados antes da
entrada em vigor do RAU13
, o que resultará provavelmente do facto de estas rendas se
referirem a inquilinos de idade mais avançada e que progressivamente, pela ordem natural da
vida, vão deixando as habitações livres facto do qual poderá ter resultado uma transferência
direta das mesmas habitações, dos escalões de rendas mais baixas para os de rendas mais
elevadas.
Com efeito, partimos de 2001 com cerca de 440 Mil contratos de renda inferior a €100
e 81 Mil contratos de renda superior a €300 e chegamos a 2011 com 257 Mil contratos de
renda inferior a €100 (menos 183 Mil) e 276 Mil contratos de renda superiores a €300 (mais
195 Mil).
13 RAU - Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº321-B/1990 de 15 de Outubro.
2. De um mercado de arrendamento à massificação da propriedade da habitação.
Como vimos anteriormente, a conjugação de diversos acontecimentos como a Segunda
Grande Guerra que devastou a Europa e, mais recentemente, o processo revolucionário que
ocorreu em 1974 em Portugal, vieram condicionar algumas decisões políticas com grande
impacto no mercado de arrendamento, não só contribuindo fortemente para uma progressiva
degradação do parque imobiliário já existente vocacionado para esse mercado, mas, mais do
que isso, vieram desincentivar potenciais investidores de entrar no mercado, contribuindo
também para uma cada vez maior escassez de oferta de casas para arrendar, e, ao mesmo
tempo, originando um incremento significativo na pressão do lado da procura no mercado de
aquisição de habitação própria assistindo-se, por essa via, a uma transferência continuada e
crescente da procura de um mercado para o outro facto a que não alheio, por um lado a falta
de alternativas mas também, a opção por uma política de incentivos fiscais à aquisição da
própria habitação.
Poderemos constatar no Quadro III abaixo, que o número de alojamentos ocupados
por inquilinos (linha azul) apresenta uma curva descendente contínua sendo em 1970 já
idêntico o número de alojamentos familiares ocupados por inquilinos e por proprietários
(linha verde), tendência que se veio a acentuar drasticamente nos anos seguintes, não tanto
por um decréscimo no número de arrendados pelo acentuado crescimento da opção pela
aquisição.
Quadro III: Alojamentos familiares clássicos de residência habitual segundo os censos:
total por ocupantes proprietários e inquilinos.
Fonte: PORDATA – INE, Censos ( Recenseamentos Gerais da Habitação).
Nos primeiros anos do Séc. XXI, atinge-se o pico do número de prédios urbanos
vendidos (vide Quadro IV) e desde aí temos vindo a assistir a uma curva descendente deste
tipo de transações, tendo em 2008 sido vendidos sensivelmente menos 100.000 prédios
urbanos que em 1999).
De acordo com o censo realizado em 2001 (vide Quadro III), o desequilíbrio atingia já
a enorme desproporção de quase 2,7 Milhões de proprietários para menos de 0,9 Milhões de
inquilinos enquanto quatro décadas antes, em 1960, esta proporção era de pouco menos de 1
Milhão de proprietários para quase 1,6 Milhões de inquilinos. Segundo o censo de 2011,
apesar de se ter mantido a tendência de crescimento na opção pela aquisição da própria
habitação, este crescimento é já mais lento, verificando-se por outro lado, uma tendência para
algum crescimento no mercado de arrendamento, atingindo-se em 2011 um total superior a
2.9 milhões de proprietários e pouco mais de 1 milhão de inquilinos.
Quadro IV: Número de prédios urbanos vendidos e respetivo valor médio.
Fonte: Anuário Estatístico de Portugal 2009, INE, Edição 2010.
Mas o pico do número de venda de habitações ocorrido no início do Séc. XXI não
sucede por acaso. Localizemo-nos na história. Encontramo-nos na fase que antecede a adesão
de Portugal ao Euro, são fixadas irrevogavelmente as paridades das várias moedas, a taxa de
inflação (Quadro V) apresenta dos valores mais baixos de sempre até à data (2,3%):
Quadro V: Taxa de inflação – Portugal.
Fonte: PORDATA (dados INE).
A taxa de desemprego (Quadro VI) é das mais baixas registadas (cerca de 4%),
verificando-se uma situação de quase pleno emprego, o que se por um lado significa em
termos absolutos maior poder de compra, por outro tem ainda implicações na subida do valor
médio dos salários por influência da pressão do lado da procura, sobretudo no caso do
emprego mais especializado.
Quadro VI – Taxa de desemprego (total por sexo):
Fonte: Pordata / INE – Censo 2011
Adicionalmente a taxa de referência para os empréstimos à habitação (Quadro VII)
vem a decrescer acompanhando a taxa de inflação, sendo já igualmente baixa sobretudo para
os parâmetros a que estávamos habituados em Portugal atingindo na época em análise o valor
de 2,2%.
Quadro VII: Taxas de juro - Euribor 6 meses.
Fonte: http://pt.global-rates.com/taxa-de-juros/euribor/2000.aspx
Poderemos então afirmar que estavam reunidas todas as condições para que se
registassem máximos de vendas no mercado imobiliário as quais eram ainda influenciadas por
uma política de incentivos fiscais à aquisição da própria habitação e por uma postura por parte
dos bancos de apelo ao crédito, que lançam sucessivas campanhas agressivas de crédito à
habitação.
Mas, como tentaremos demonstrar no ponto seguinte, para além dos motivos
explanados, outros porém podem influenciar a decisão pela opção de aquisição de habitação
própria em detrimento do arrendamento.
2.1 Influência dos níveis de inflação e de taxas de juro na opção pela aquisição de
habitação própria.
Se no passado recente apontámos as reduzidas taxas de juro como sendo um dos
motivos para o maior recurso ao crédito e a consequente apetência pela aquisição de habitação
própria, não nos poderemos esquecer que taxas de juro baixas existem em períodos de
reduzida inflação, e que taxas de juro elevadas existem em períodos de inflação elevada.
O fenómeno referido tem, como é por demais conhecido, implicações diretas quer na
evolução positiva do valor de um imóvel adquirido em períodos de grande inflação, quer na
evolução negativa do valor real do dinheiro que permaneça nos bancos em aplicações
financeiras nesses mesmos períodos, pelo que, como tentaremos expor mais à frente, em
ambas as situações, de inflação baixa ou elevada, poderá haver razões lógicas conducentes à
opção pela aquisição em detrimento do arrendamento.
No Quadro V acima reproduzido, é-nos dado constatar o comportamento da taxa de
inflação em Portugal, que no final da primeira metade da década de oitenta do séc. XX veio a
atingir um valor próximo de 30%, o que revela bem a velocidade a que o dinheiro parado no
banco perdia o seu valor real ano após ano.
A opção pela aquisição de habitação nesta época, se por um lado implicava a
contratação de empréstimos bancários a taxas de juro elevadíssimas e consequentemente a
prestações também elas de elevado valor, tinha por outro lado a grande vantagem de permitir
aos agregados familiares conseguir, em poucos anos, uma redução significativa do peso das
despesas com a prestação do empréstimo para habitação no respetivo rendimento.
Com efeito, os incrementos salariais anuais nominais concedidos nos referidos anos,
tal como a taxa de inflação, ascendiam a valores da ordem dos 20% a 25%, o mesmo é dizer,
que num período relativamente curto, sobretudo na primeira metade da década de oitenta, em
alguns casos, os salários mais do que duplicavam em valor nominal.
A opção pela aquisição de habitação própria era assim uma forma segura de garantir
um investimento num bem durável cujo valor real tendia a manter-se ou mesmo a valorizar-
se, em contraposição com a manutenção de poupanças em dinheiro, cujo valor real
rapidamente se degradava. Numa primeira fase, o valor da prestação a pagar pelo
financiamento contraído poderia, em alguns casos, pelas elevadíssimas taxas de juro
praticadas, absorver 50% ou mais do orçamento de alguns agregados familiares, mas, em face
das elevadas taxas de inflação e das correspondentes atualizações salariais, mantendo-se fixo
o valor nominal inicial do capital mutuado, a proporção do peso da prestação pelo pagamento
dos empréstimos no total do orçamento familiar (a denominada taxa de esforço) rapidamente
se diluía, enquanto por outro lado, simultaneamente, o valor real do imóvel adquirido se ia
mantendo ou mesmo incrementando.
No entanto, se pela conjugação destes dois fatores, se afigurava a opção pela aquisição
de habitação como a mais interessante, do ponto de vista financeiro, em épocas de inflação
elevada, não deveremos deixar de referir que o valor do encargo mensal com a prestação dos
empréstimos contraídos restringia significativamente o número de agregados familiares com a
capacidade necessária para o efeito.
Aos motivos acima expostos, acresce outro não menos importante que também
contribui para a evolução do preço dos imóveis. Se em época de taxas de inflação elevadas e
consequentemente de altas taxas de juro, os promotores imobiliários teriam uma menor
margem de manobra, pois caso elevassem demasiado os preços de venda, reduziriam o
número de potenciais clientes pela relativamente reduzida capacidade de endividamento, já o
efeito nos preços do mercado imobiliário provocado pela significativa redução das taxas de
juro que, sobretudo a partir da segunda metade da década de noventa, se veio a verificar,
acabou por ser, diríamos, perverso, como poderemos constatar no Quadro IV abaixo que, a
título ilustrativo utilizamos de novo, mas, desta feita, para nos referirmos à evolução do valor
médio dos prédios vendidos.
Quadro IV: Número de prédios urbanos vendidos e respetivo valor médio.
Fonte: Anuário Estatístico de Portugal 2009, INE, Edição 2010.
Como já atrás referido, o número máximo de prédios urbanos vendidos em Portugal
(linha a azul), que ascendeu a perto de 300 Mil nos primeiros anos do Século XXI, foi
atingido precisamente um dos anos em que a inflação apresentou um dos seus pontos mais
baixos (2,3%), e que coincidiu com a fase que antecedeu a adesão de Portugal à moeda única
Europeia.
Mas podemos concluir igualmente que foi precisamente a partir desse momento, que a
grande pressão por parte da procura resultante da maior capacidade de endividamento das
famílias, decorrente das baixas taxas de juro, que o preço médio dos prédios urbanos vendidos
em Portugal mais cresceu, tendo evoluído, em termos médios nacionais, de pouco mais de 50
Mil Euros em 1998, para mais de 100 Mil Euros em 2004, vindo a atingir o seu valor máximo
em 2008 ultrapassando os 125 Mil Euros. A partir dessa data, com o eclodir da grave crise
financeira que atravessamos, tem vindo sempre a decrescer até aos dias de hoje, chegando,
segundo o Censo 2011 a um valor próximo dos 100 Mil Euros.
Como já referimos, mas queremos realçar, o fenómeno de grande crescimento do valor
médio dos prédios urbanos vendidos, deu-se precisamente em período de reduzido nível de
inflação, sem a ocorrência de aumento do preço dos fatores de produção para os construtores,
nomeadamente o custo do financiamento que terá sido dos mais baixos alguma vez alcançado,
pelo que se afigura pertinente questionar o motivo deste abrupto crescimento.
Pesem embora as leis de mercado e a relação entre a oferta e a procura que não deverá
ser menosprezada, em nossa opinião o período de baixas taxas de juro acompanhado por uma
maior agressividade da generalidade dos bancos na oferta de crédito à habitação com redução
das suas margens de lucro, e a influência destes fatores no valor médio das prestações pelos
empréstimos hipotecários para aquisição de habitação própria, vieram permitir que os
promotores imobiliários, tomando em conta estes dados, passassem a definir o nível de preços
de venda das habitações em função da capacidade de endividamento das famílias, isto é, do
valor até ao qual as famílias poderiam suportar a prestação do empréstimo bancário.
Como já acima referido, o número máximo de prédios vendido num só ano em
Portugal, foi atingido nos primeiros anos do Século XXI, tendo a partir daí vindo a decair
sempre até aos dias de hoje, no entanto, apesar do cada vez menor número de prédios
vendidos anualmente, o volume global do crédito concedido para habitação, como poderemos
observar no Quadro VIII abaixo, manteve-se sempre em linha ascendente até 2007, passando
de um pouco mais de 13 Mil Milhões de Euros em 2003 para vir a atingir um máximo de
cerca de 20 Mil Milhões de Euros em 2007, iniciando também este indicador, a partir dessa
data, uma tendência acentuadamente decrescente, chegando ao ano de 2012, com um total de
1,9 Mil Milhões de Euros de crédito concedido, o que se pode considerar, em termos
comparativos, um valor residual e que corresponde a aproximadamente 10% do máximo
atingido poucos anos antes, em 2007.
Quadro VIII: Crédito hipotecário concedido a particulares.
Fonte: Pordata / INE – Censo 2011.
O mesmo é dizer que nos anos que vão sensivelmente de 2004 a 2007, as famílias se
permitiram passar a contrair empréstimos de valor cada vez mais elevado, olhando, não ao
nível de responsabilidades assumido, mas apenas ao valor da prestação mensal que teriam de
suportar, o que, como referido, foi aproveitado pelos promotores imobiliários, enquanto por
sua vez, os bancos, indo ao encontro dos ensejos dos seus clientes e simultaneamente com o
objetivo de aumentar os seus lucros no curto prazo, aceitaram que a qualidade do risco de
crédito da sua carteira se degradasse, chegando, em alguns casos, a financiar, não só o
correspondente ao valor total do imóvel, mas mesmo acima desse valor para outros custos e
despesas associados à aquisição, como impostos, aquisição de mobiliário, etc., política esta,
cujos efeitos, no denominado crédito mal parado, se vão verificando com cada vez maior
acuidade.
2.2 O sector financeiro, o novo paradigma do mercado de trabalho, e a sua influência no
aumento da procura no mercado de arrendamento.
Se o sistema financeiro, as baixas taxas de juro e as condições de crédito oferecidas
nos anos que se seguiram ao momento da fixação irreversível das taxas de câmbio das moedas
da zona euro, tiveram grande influência no acentuado crescimento do mercado da habitação
própria, este mesmo sistema financeiro tem também sido no passado mais recente, sobretudo
desde o eclodir da crise financeira que se iniciou em 2008, como já referido, um dos grandes
responsáveis pela acentuada quebra nas vendas de habitação própria.
E desta feita, não pela existência de taxas de juro elevadas, dado que, apesar de a
Euribor a 6 meses, principal indexante utilizado no crédito à habitação, ter atingido um
máximo de 4,727% em 2008, este mesmo indexante voltou a cair até ao seu valor mais baixo
de sempre, para próximo de 1%, tanto em 2009 como em 2010, mantendo-se atualmente em
patamares ainda mais baixos. Os motivos terão sido diversos, por um lado o aumento do nível
de risco de crédito associado às operações de financiamento hipotecário em resultado da
instabilidade social que se verifica e, por outro, pela dificuldade por parte das instituições de
crédito em obterem financiamento, elas próprias, para a sua atividade.
Face a uma situação de crise que começou por ser financeira, com origem
precisamente no mercado de crédito à habitação nos EUA, mas que rapidamente se
transformou em crise económica e em crise social, os bancos, se por um lado passaram a ter
mais dificuldade em se financiarem, logo em disporem dos recursos necessários para poderem
financiar os seus clientes, por outro, em face da crise económica e da maior probabilidade de
os seus clientes poderem vir a encontrar-se em situação de desemprego pela instabilidade
económica que originou uma verdadeira crise social, rapidamente se adaptaram a uma nova
realidade apertando os critérios de análise de risco “fechando a torneira do crédito” tanto a
promotores imobiliários como a clientes particulares potenciais compradores de habitação
própria.
Esta nova postura por parte dos bancos veio não só restringir o acesso ao crédito mas
simultaneamente torná-lo mais caro, não pelas taxas de juro mas pelos “spreads”14
praticados,
provocando numa primeira fase uma quebra acentuada da procura no mercado de aquisição de
habitação e, subsequentemente, de forma progressiva, um acréscimo da procura no mercado
de arrendamento.
Em 6 de Julho de 2010, podia ler-se num despacho da Agência Lusa publicado no
Jornal Público “online” o seguinte título: O mercado de arrendamento em Lisboa cresceu 40
por cento em 2009 em termos anuais, disse à Lusa o director do Confidencial Imobiliário
(CI), entidade que produz estatísticas sobre o mercado residencial. E mais à frente referia a
mesma notícia que (...) o mercado de arrendamento tem vindo a crescer, sobretudo por se
constituir como uma resposta a uma necessidade de rentabilizar um ativo que se tinha em
mente vender”, (...) pelo que (...) o aumento da oferta no mercado imobiliário teve como
consequência a redução das rendas de habitação.
Deparamo-nos então com uma nova realidade onde diversos fatores e os diversos
agentes económicos, condicionados pela conjuntura que teve origem numa crise financeira
mundial, se conjugam para que o mercado de arrendamento volte a ser, para quem procura
habitação, a sua primeira opção, e, para os promotores imobiliários, uma verdadeira solução
de recurso, com vista à rentabilização dos seus ativos.
Estarão criadas as condições para o ressurgimento de um verdadeiro mercado de
arrendamento? Em nossa opinião estão de facto reunidas as condições, ditadas pelas leis de
mercado, o qual tende sempre a adaptar-se a cada nova situação que vai surgindo.
A maior dificuldade no acesso ao crédito por parte de potenciais compradores,
motivada essencialmente por dois factores - menor capacidade por parte dos bancos no
financiamento da sua atividade e a maior instabilidade no emprego que incrementa o risco de
crédito e torna os bancos mais seletivos - tem vindo a contribuir para uma forte restrição na
14 Termo anglo-saxónico muito utilizado no jargão bancário, que significa, grosso modo, a margem de lucro que
o banco financiador adiciona à taxa de juro nominal à qual, o próprio banco se poderá financiar no mercado
monetário interbancário. De entre outras variáveis, o risco de crédito associado à operação de financiamento tem
ele próprio influência significativa no “spread” a praticar pelo banco.
concessão de crédito e, consequentemente, num significativo decréscimo na procura pela
aquisição de habitação própria junto dos promotores imobiliários.
Por outro lado, os promotores imobiliários, para fazerem face aos compromissos
assumidos e tendo absoluta necessidade de rentabilizar os seus activos, em alternativa à
venda, optam, cada vez mais, pela colocação dos seus imóveis no mercado de arrendamento,
fenómeno este que tem vindo, também ele, a contribuir progressivamente para um aumento da
oferta de casas para arrendar o que virá a contribuir para balancear o mercado.
Pela exposição acima, poderíamos ser levados a concluir que esta nova tendência no
mercado da habitação existe apenas porque o mercado a impõe àqueles que procuram uma
habitação para viver. Mas será este o único motivo?
Não estaremos no limiar, ou provavelmente mesmo já na presença, de um novo
paradigma do mercado do emprego em Portugal e não só, cujas características influenciarão,
também elas, a opção pelo arrendamento?
Não deveremos considerar, em face da realidade atual e da denominada precariedade
do emprego ser a mobilidade uma vantagem competitiva no mercado de trabalho?
Provavelmente, um número significativo das famílias que neste momento optam por arrendar,
em alternativa a adquirir, ainda não terão esta perceção.
Face aos elevados custos iniciais com despesas de processo e de avaliação junto dos
bancos, imposto municipal de transacções e imposto do selo aplicáveis, escritura e registos, a
aquisição apenas é vantajosa quando possa ser encarada como um investimento de longo
prazo que permita diluir todos estes encargos ao longo dos anos da sua duração.
Sucede que a realidade do mercado nos tem ditado novas regras, nos tem levado a
reequacionar os dogmas por que temos pautado o nosso raciocínio no que à habitação diz
respeito, e como tal, todas essas questões deverão ser questionadas. Considerando a incerteza
ditada pela conjuntura que atravessamos, cada vez será maior a necessidade de estarmos
mentalmente disponíveis e fisicamente preparados para a mobilidade num mercado de
emprego geograficamente disperso. Contudo, tal apenas será possível para aqueles que não se
tenham “amarrado” à âncora de uma habitação própria, de um empréstimo e de uma hipoteca.
Embora não totalmente apreendidas, por muitas décadas de convivência com um
mercado habitacional distorcido por regras impostas pelo poder político, as vantagens do
arrendamento sobre a aquisição, sobretudo para as camadas mais jovens da população na
entrada para o mercado de trabalho, serão também elas, sem dúvida, sobretudo no médio
longo prazo, um dos fatores de maior peso a considerar numa tendência crescente da procura
no mercado de arrendamento.
Neste âmbito, de realçar também pelo seu significado, alguns dos objetivos delineados
no acordo de entendimento celebrado entre o Estado Português e a Troika, que no seu ponto 6
– Mercado de Habitação, prevê, por um lado, medidas tendentes a quase eliminar os isentivos
fiscais à aquisição da própria habitação, e, por outro, a flexibilizar a legislação sobre
arrendamento urbano, medidas às quais não é certamente alheio o elevado nível de
endividamento a que as famílias chegaram e cuja tendência se pretende agora inverter e que
passamos a referir:
- A revisão e flexibilização da legislação que suporta o Regime do Arrendamento
Urbano;
- A redução dos incentivos ao endividamento das famílias;
- Redução dos limites de dedução à coleta referentes a juros de empréstimos para
habitação;
- Eliminação da dedução de encargos com amortizações de capital com efeitos a 1 de
Janeiro de 2012;
- A redução considerável dos períodos de isenção de IMI na aquisição de habitação
própria e permanente;
- Agravamento dos custos fiscais de prédios devolutos ou não arrendados;
- O nivelamento dos incentivos ao arrendamento com os da aquisição de habitação
própria;
- A simplificação dos procedimentos administrativos inerentes à reabilitação urbana;
Conclusão
O estudo do mercado da habitação em Portugal no passado recente permite-nos
perceber as causas que levaram a uma distorção do equilíbrio entre o número de proprietários
e de arrendatários, distorção essa que resultou primordialmente de medidas que levaram ao
congelamento das rendas, primeiro nas cidades de Lisboa e do Porto no final da década de 40
do século passado como consequência direta da Segunda Grande Guerra Mundial que
devastou a Europa entre 1939 e 1945, efeito esse, que no período revolucionário que se
sucedeu após 25 de Abril de 1974, se estendeu ao resto do país.
Na realidade, o Estado, por via destas medidas, vem ao longo de já muitas décadas
atribuindo à generalidade das famílias portuguesas titulares de contratos de arrendamento do
denominado tipo “vinculístico” 15
sem distinção do respectivo nível de rendimentos, e à custa
do património dos respectivos senhorios, um verdadeiro subsídio de renda que resulta da
conjugação de dois fenómenos, por um lado a imposição da renovação automática dos
referidos contratos de arrendamento, independentemente do prazo convencionado pelas
partes16
e, por outro, pelo já mencionado congelamento das rendas, este último, que, em
virtude de períodos alargados de elevadas taxas de inflação ocorridos no passado, veio
originar um acelerado processo de desfasamento progressivo entre o valor normal de mercado
para uma renda de um determinado imóvel, e o valor efetivamente pago pelo arrendatário, do
que veio a resultar a incapacidade financeira por parte dos respectivos proprietários para a
manutenção dos imóveis, o que teve como consequência direta a visível atual degradação a
que chegou o parque habitacional nas zonas históricas das principais cidades.
Os factos referidos, desmotivadores do investimento no mercado de arrendamento,
associado à promoção de medidas incentivadoras da concessão de crédito para aquisição de
habitação própria, bem como um conjunto de incentivos fiscais, vieram originar um
crescimento acentuado da opção por “adquirir em vez de arrendar”.
15 - Pinto Furtado, Jorge Henrique da Cruz, pag.184, Manual de Arrendamento Urbano, Volume I, 4ª Edição,
2007, Edições Almedina SA. 16 A Lei 31/2012 de 14 de Agosto vem introduzir alterações significativas a este nível, prevendo-se um período
de transição (ou de salvaguarda para os inquilinos) pelo prazo de 5 anos, após o que os contratos do chamado
tipo vinculístico poderão transitar para o NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano).
Esta opção, que como acima mencionado, veio contribuir para uma verdadeira
massificação da habitação própria em Portugal, está já a sofrer uma inflexão de sentido
contrário decorrente de alterações profundas no sistema financeiro, através de uma forte
restrição à concessão de crédito em todos os setores ligados à habitação, desde a construção à
aquisição e, por outro lado, na opção por parte dos promotores imobiliários, em colocarem no
mercado de arrendamento habitações cujo destino inicial seria o da venda, o que, pelo
aumento da oferta, irá tendencialmente criar um equilíbrio de mercado no sentido do
ajustamento do valor das rendas e, por último, pela alteração de paradigma no mercado de
emprego face ao que, a capacidade de mobilidade passou a ser não só uma vantagem
competitiva, mas uma verdadeira necessidade.
Como pudemos constatar, o enquadramento histórico temporal caracterizado por uma
acelerada desvalorização da moeda e acentuada especulação imobiliária, que condicionou
num determinado sentido o espírito do legislador de então, sofreu profundas alterações
sobretudo desde os anos que antecederam a adesão de Portugal à moeda única Europeia e,
mais recentemente, desde o estalar da crise financeira, económica e social em 2008 cujo auge
é ainda imprevisível no momento em que escrevemos estas linhas. Assim assistimos no tempo
presente a um mercado de habitação depressivo, com sérias dificuldades de financiamento, e,
em consequência, a um decréscimo generalizado e progressivo dos preços dos imóveis.
Em virtude de tudo o exposto, poderemos então esquematizar os argumentos nos quais
nos baseamos para sustentar a defesa de uma alteração de paradigma no mercado da
habitação, nos termos seguintes:
1. Ponto de partida:
- Os empregos eram seguros, estáveis e para toda a vida (a taxa de desemprego em
Portugal era historicamente baixa);
- Ao longo de décadas pelos motivos longamente expostos o mercado de arrendamento
foi quase desprezado e consequentemente desaparecendo;
- Com a redução das taxas de juro, a prestação do empréstimo para habitação passou a
ser semelhante ao valor de uma renda;
- O investimento com aquisição da própria habitação era tido como seguro, as
habitações valorizavam-se sempre;
- Mesmo que o encargo inicial fosse um pouco elevado, com os aumentos anuais dos
salários assumidos como naturais, o seu peso no orçamento familiar ia-se diluindo;
- Os bancos emprestavam a quase toda a gente muitas vezes acima do valor das
próprias habitações, guerreavam-se para captar empréstimos uns dos outros,
descurando muitas vezes elementares regras de análise de risco de crédito.
- Os elevados custos iniciais com os empréstimos à habitação (comissões bancárias,
avaliação, IMT, escritura, registo), eram diluídos ao longo da vida dos empréstimos os
quais tinham uma duração da ordem dos 30 anos.
- O Estado seguia uma política de incentivos fiscais à aquisição de habitação própria.
- A legislação sobre o arrendamento era pouco flexível e a proteção dos senhorios no
caso de arrendatários incumpridores era reduzida;
2. Ponto de chegada:
- Ausência de emprego estável e elevadas taxas de desemprego;
- A capacidade de mobilidade constante passa a ser uma necessidade na busca de
emprego;
- A capacidade de endividamento das famílias decresce abruptamente;
- O risco de crédito associado aos empréstimos, sobretudo de longa duração dispara;
- Os bancos restringem o crédito, tornam-se muito seletivos e exigem garantias
acrescidas, nomeadamente através de uma redução significativa da relação entre o
valor do imóvel e o capital mutuado, e as margens dos bancos aumentam;
- A evolução do valor do imobiliário é uma incógnita e deixa de se considerar
garantida a valorização das habitações adquiridas;
- As construtoras colocam no mercado de arrendamento habitações que anteriormente
se destinavam a venda, contribuindo para uma maior oferta no sector e para o seu
equilíbrio.
- O mercado imobiliário perde a sua liquidez do passado. A confrontação com a
necessidade de vender a habitação passa a ser um pesadelo.
- Parte significativa das habitações desvalorizam-se e muitas das vezes o seu valor não
chega para cobrir a dívida ao banco.
- A aquisição da própria habitação que representa uma ancoragem a uma habitação, a
um local, a um empréstimo e a uma hipoteca, passam a ser um entrave à necessidade
de mobilidade imposta pelo mercado de trabalho.
- Os incentivos fiscais à aquisição de habitação tendem a reduzir-se
significativamente;
- A legislação sobre arrendamento torna-se mais flexível e existe a previsão de maior
proteção aos senhorios em caso de incumprimento pelos arrendatários.
3. Opções:
3.1 Para quem procura habitação:
a) Opção por aquisição:
- Dificuldade em obter financiamento, que é mais caro e com exigência de mais
garantias;
- Perspetiva de valorização do imóvel é incerta;
- Reduzida liquidez no mercado dificulta venda em caso de necessidade;
- Empréstimos para habitação apenas fazem sentido numa perspetiva de longo prazo,
para diluição dos elevados custos iniciais, mas por outro lado, o longo prazo é
incompatível com o mercado de trabalho atual;
- Mercado de trabalho é incerto e incompatível com entraves à capacidade de
mobilidade;
b) Opção por arrendamento:
- Mercado tenderá para equilíbrio entre oferta e procura que implica normalização de
preços das rendas com redução das mesmas;
- Disponibilidade para mobilidade sempre que o mercado de trabalho ou a dimensão
do agregado familiar o imponham sem risco de perdas potenciais;
- Inexistência de elevado investimento inicial na aquisição de habitação;
- Incentivos fiscais com tendência a uniformização na opção de aquisição de habitação
própria.
- Flexibilidade na contratação do arrendamento em conformidade com as necessidades
das partes;
3.2 Na perspetiva dos investidores:
- Reduzida rentabilidade das aplicações financeiras sem risco;
- Sensação de insegurança em manter dinheiro nos bancos;
- Baixa generalizada dos preços no mercado imobiliário;
- Possibilidade de obtenção de maior rentabilidade e com menor risco do que em
aplicações financeiras;
- Tendência para aumento da procura no mercado de arrendamento;
- Flexibilidade na legislação que permite contratação do arrendamento em
conformidade com as necessidades das partes;
- Previsibilidade de maior proteção em caso de incumprimento pelos arrendatários;
Em face do exposto defendemos que no momento presente nos encontramos perante uma
nova realidade, uma verdadeira mudança de paradigma claramente já instalada no mercado de
habitação, em que, contrariamente ao que se tem verificado sobretudo nos últimos 30 anos
(mais do que uma geração), a opção pelo arrendamento em detrimento da aquisição da própria
habitação é já uma realidade.
Lisboa, Abril de 2013.