MENDES, Maria; SÁ, Teresa - AUGIs
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Per fis e traject r ias dos residentes e utilizadores dos espa os das ` reas
Urbanas de Gnese I legal na ` rea Metropol itana de L isboa
Mar ia Manuela Mendes1
Teresa S2
Notas preliminares
Esta discusso versa sobre a componente qualitativa deste trabalho de pesquisa3 e tem
como suporte emprico o corpus de 37 entrevistas pouco directivas realizadas aos
moradores das ` reas Urbanas de Gnese I legal em alguns concelhos da ` rea
Metropolitana de Lisboa, mais concretamente em Odivelas, Loures e Amadora (margem
norte), Palmela, Almada, Setbal, Moita e Seixal (margem sul). A entrevista foi
utilizada num momento circunscrito e delimitado deste projecto de investiga o e com o
fim de completar outras tcnicas e formas de recolha de informa o, como a
observa o, a anlise cartogrfica, o inqurito por questionrio entre outras recursos
tcnicos mobilizados pela equipa de investiga o. Assim, a sua utiliza o tem um
estatuto de complementaridade e os resultados que aqui se do conta servem
essencialmente para aprofundar dimens es de anlise que no foram recobertas (ou de
forma insuficiente) pelas outras tcnicas, servem ainda para contextualizar os resultados
obtidos previamente por meio da utiliza o de outras tcnicas.
Na selec o dos entrevistados procurou-se delimitar uma amostra qualitativa e
diversificada, atendendo a um duplo constrangimento e a um duplo compromisso: a
necessidade de diversificar/contrastar, ao mximo os indivduos e as situa es e,
simultaneamente, obter unidades de anlise suficientes para serem significativas.
Na selec o dos informadores-privilegiados procurou-se escolher aqueles que
concentravam de forma cruzada alguns dos seguintes critrios:
- regime de propriedade do lote e da habita o (proprietrio residente e no residente;
inquilino; sub-inquilino )
1 CIAUD-FA-UTL; CIES-ISCTE e IS-FLUP, e-mail: [email protected] 2 CIAUD-FA-UTL, e-mail: [email protected] 3 A anlise aqui apresentada alvo de um maior aprofundamento e desenvolvimento na contribui o produzido pelas autoras e com o ttulo: Perfis, traject rias e percep es face ao espa o dos residentes e utilizadores dos espa os das ` reas Urbanas de Gnese Ilegal na ` rea Metropolitana de Lisboa, Lisboa, FA-UTL, 2010.
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- tipo de habita o (moradia, parte de casa, habita o precria, etc.)
- uso (habitacional, comrcio, indstria, servi o)
- grupo de idades/posi o no ciclo de vida (jovem; activos adultos e idosos)
- grau de escol. (sem escol.- 2 Ciclo EB; 3 Ciclo-Sec; Sup.)
- nacionalidade (portugus; estrangeiro)
- participa o nas associa es e comiss es Comisso de Administra o Conjunta.
No acesso aos entrevistados contamos com a colabora o da Comisso de Proprietrios
e de algumas institui es locais. A dura o das entrevistas oscilou entre 1-2 horas,
tendo sido realizadas nas imedia es ou no domiclio dos entrevistados.
Os objectivos que presidiram elabora o do guio da entrevista foram relativamente
ambiciosos e abrangentes, como se poder atestar:
a) conhecer quem so os residentes nos bairros de gnese ilegal e tra ar o perfil
s ciogrfico
b) verificar se existe uma rela o entre caractersticas s cio-habitacionais dos
bairros de gnese ilegal e a rapidez no processo de reconverso.
c) apreender as suas traject rias de vida e de que modo estas condicionam a
produ o do fen meno
d) identificar e caracterizar situa es de maior precariedade socio-habitacional
e estratgias familiares e comunitrias para lhes fazer face
e) identificar e caracterizar tipos habitacionais significativos dos diferentes
grupos sociais, suas varia es no tempo e no espa o e sua inser o na
morfologia urbana
f) identificar as posi es, as racionalidades as prticas, as estratgias e os
interesses dos residentes face ao fen meno de loteamento de gnese ilegal;
face reconverso urbanstica e jurdica e qualifica o do bairro e do lote;
e face legaliza o da sua habita o.
Sociografia dos residentes
As cidades foram e so caracterizadas pela diviso social dos territ rios e muito
raramente as classes populares residem nos bairros das classes burguesas (Olberti in
Paugam, 1996). Nas cidades hodiernas deparamo-nos com um espa o urbano, pontuado
de ilhas ou fragmentos mais ou menos dispersos e desarticulados do tecido urbano,
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configurando-se este ltimo como uma espcie de arquiplago (e que pode assumir
mltiplas faces, como zonas residenciais de habita o social, como bairros populares,
como zonas de habita o clandestina e ainda como zonas residenciais em condomnio
fechado, entre outras) (Mendes, 2003). Aqui, neste lugar, ocupar-nos-emos dos
loteamentos e da constru o designada de clandestina, ilegal, selvagem, informal,
oculta, camuflada, marginal, processos marcados pela opacidade e por estarem fora da
lei ; mas na verdade trata-se de fen menos visveis, manifestos, acontecendo no na
penumbra ou nos bastidores da vida social mas s claras .
Esta anlise pretende dar um novo alento ao estudo da especificidade em contexto
nacional do fen meno das reas urbanas de gnese ilegal4. Depois de na dcada de 80
do sculo passado se terem multiplicado os estudos sobre o fen meno do clandestino,
ap s os anos 90 pouco se sabe sobre a evolu o e recomposi o do fen meno e dos
protagonistas sociais que intervm nesse fen meno.
Um dos objectivos centrais passa por averiguar se so perceptveis processos de
recomposi o social do perfil social do residente nas Augis.
Em sintonia com as conclus es de vrias pesquisas realizadas nos anos 80 (Ferreira,
Ant nio Fonseca et al 1985; Gaspar, (coord.) 1989; Matos, 1989), bvio que hoje
tambm no h uma homogeneidade e linearidade de situa es, de protagonistas, de
traject rias de vida, de motiva es e de representa es sociais.
Se olharmos para o Quadro 1, possvel depreender que cerca de dois ter os, dos
entrevistados so mulheres, por outro lado, na sua maioria os residentes entrevistados
tm mais de 50 anos, sendo poucos os que tm menos de 40 anos.
4 Em outros pases europeus e fora do continente europeu possvel encontrar este fen meno, mesmo em pases to diversos como o Brasil (S. Paulo) e a ` frica do Sul (Joanesburgo). Sobre estes 2 pases, Roger Few et al. (2004), referem que: In terms of informal housing, the key contrasts between the cities relate to scale and history. Of the two cities, Sao Paulo has the larger informal housing sector, accounting for an estimated half of all inhabitants (Kirby, 2001 p. 211). In Johannesburg, a conservatively estimated 18% of the population are living in informal dwellings (GJMC, 1999), in Informal sub-division of residential and commercial buildings in Sao Paulo and Johannesburg: living conditions and policy implications (p. 429), Habitat International, 28, pp. 427 442. Na Turquia os Gecekondus tm muitas similaridades com as AUGIS, sendo definidos como dwellings that are illegal because they are either: (a) built on public land usually belonging to the Treasury; (b) constructed on private property not belonging to the home owner; (c) built on shared-title land; and/or (d) constructed without occupancy or construction permits. The word "gecekondu" in Turkish means "built overnight. , in Deniz Baharoglu & Josef Leitman (1998), Coping Strategies for Infrastructure: How Turkey's Spontaneous Settlements Operate in the Absence of Formal Rules , HABITAT ITNL., Vol. 22, No. 2, pp. 115-135.
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Quadro 1. Elementos de caracter iza o sociodemogrfica
Sexo N
Mulheres 23
Homens 14
Idade
< 40 anos 3
40-49 4
50-59 10
60-69 5
>=70 8
NS 7
Estado civil
casado 23
solteiro 4
vivo 4
Sep./divorciado 3
NS 3
Total 37
assim perceptvel uma clara tendncia para o envelhecimento demogrfico dos
habitantes das Augis, sendo na sua grande parte moradores da primeira gera o de
clandestinos , tendo na maioria dos casos uma inser o temporal no bairro que
ultrapassa os 20 anos.
No conjunto dos entrevistados prevalecem os indivduos casados e com 2 ou mais filhos
(13 tm 2 filhos e 8 tm 3 ou mais filhos). Verifica-se assim entre os entrevistados, o
claro predomnio de famlias urbanas (Isabel et al. 1996), ou seja, famlias nucleares
casais com filhos (13 casos). Os entrevistados tendem a viver em casal (11 casos),
havendo apenas 3 casos de famlias monoparentais e uma pessoa que vive s .
O nvel de escolaridade muito baixo, principalmente entre os residentes mais velhos,
predominando os que tm o 1 ciclo do EB (14 entrevistados), embora se registe
paralelamente a presen a de 5 indivduos com escolaridade superior. A posse de um
baixo capital cultural era j em 1985 um tra o estruturante salientado por Ferreira et al.
no clebre estudo Perfil Social e Estratgias dos clandestinos : Estudo sociol gico da
habita o clandestina na ` rea Metropolitana de Lisboa (p. 30), bem como, em outras
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micro-anlises como no Bairro do Pico e na Madalena em V ila Nova de Gaia
(Loureiro, 1989) e na Escarpa da Serra do Pilar no mesmo concelho (CM de Gaia e
Sousa e Mendes, 1989). Sendo nesta altura comum a presen a de um nmero
significativo de residentes que no tinham completado o ensino primrio. De real ar que
alguns dos entrevistados na presente pesquisa completaram a escolaridade bsica ou
continuaram os seus estudos j em idade adulta. Um dos residentes no concelho de
Loures d conta da difcil concilia o entre estudos e trabalho, j em idade adulta:
Eu entrava s 9 da manha no trabalho e saia praticamente todos os dias s 9 da noite e depois que ia... Era pesado? Sim... depois fiz o primeiro ciclo, deixei depois de uns tempos a distribui o de gs e passei a administrativo, empregado de escrit rio e depois continuei. E foi assim... E tirou engenharia electrotcnica? Sim, engenheiro tcnico, no engenheiro. No licenciatura bacharelato, foi bacharelato em engenharia electrotcnica mas isso j em 80 e tal... porque isso depois eu tive que ir fazendo, o 5 ano do liceu... Pois aos poucos, porque o tempo no dava para tudo. (Alfredo, 70 anos, Portela)
Quadro 2. Grau de escolar idade dos entrevistados
Grau de escolar idade N
S/ grau de ensino 2
1 ciclo compl. 14
1 ciclo Inc. 3
2 ciclo compl. 2
2 ciclo inc. 1
3 ciclo compl. o 3
Ens. Secundrio compl. 2
Ens. Secundrio inc. 1
Ens. Superior compl. 5
Ens. Superior inc. 1
NS 3
No passado os vrios estudos j citados (Ferreira et. al,, 1985 e Loureiro, 1989)
mencionam a ascendncia rural dos residentes dos bairros clandestinos, a presente
anlise confirma a presen a de vrias tendncias: h um grupo significativo que nasceu
em Lisboa, alguns dos quais so descendentes dos primeiros residentes; continua a
registar-se uma presen a expressiva de entrevistados oriundos de aldeias e de pequenas
vilas e cidades do interior norte e centro (sobretudo os mais velhos) e a presen a de
alguns naturais de outros pases.
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Quadro 3. Locais de or igem
Distritos N Lisboa 10 Leiria 1 Setbal 1 Santarm 1 Guarda 2 Viseu 2 Castelo Branco 2 Vila Real 2 Bragan a 2 Coimbra 1 Braga 1 Portalegre 2 Beja 1 Fora do pas 6 NS 3 Total 37
Assim, existem 6 pessoas que nasceram fora do pas, mais concretamente em
Mo ambique (1), em Angola (1), em Cabo Verde (2), na Alemanha (1) e na Ucr nia (1).
Os que nasceram em territ rio nacional provm sobretudo do distrito de Lisboa e do
Norte e Centro Interior, nomeadamente de V ila Nova de Paiva e Tondela (V iseu),
Louri al do Campo e Oleiros (Castelo Branco), Castelo de V ide e Alter do Cho
(Portalegre), V ila Pouca de Aguiar (V ila Real), Trancoso (Guarda), Alf ndega da F e
Freixo de Espada Cinta (Bragan a.
Cerca de 12 entrevistados expressam de forma veemente que vieram de aldeias ,
reiterando ainda que casaram na terra , na verdade, alguns vieram para Lisboa logo
ap s o casamento ou quando vieram cumprir o servi o militar obrigat rio,
protagonizando assim movimentos migrat rios motivados em grande medida por
aspira es de ascenso social e pela procura de melhores condi es de vida. Apesar da
dist ncia temporal, entre estes entrevistados (2009) e os moradores clandestinos
estudados por Isabel Guerra et al. (1996) parece haver mais similaridades do que
distintividades, verificando esta autora que os moradores eram essencialmente oriundos
de aldeias (60%) ou de locais isolados (13,8%) tendo cerca de 1/4 (25,7%) nascido
em aglomerados urbanos (vilas). Por outro lado, os seus progenitores tinham actividades
ligadas ao trabalho agrcola maioritariamente como camponeses ou assalariados. Para
Isabel Guerra et al. (1996) a origem rural est quase sempre associada a uma
ascendncia camponesa ou de (semi)proletariado rural, o que tambm se reflecte numa
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inicia o precoce ao trabalho e em particular ao trabalho agrcola. Os residentes nas
Augis que foram entrevistados deixam transparecer nos seus depoimentos uma certa
tenso entre o rural-urbano e um certo dualismo que oscila entre a nostalgia/saudosismo
versus a priva o/sacrficio:
( ) a vida l era maravilhosa, a gente trabalhava no campo, era uma vida saudvel (Esposa do Senhor Serafim, 74 anos, Marquesa II) E ento prontos eu vim para ali assim, comprei depois um andar em Odivelas mas depois eu passei to mal na provncia, tanto sacrifcio na provncia. (Toms, 73 anos, Espinhal)
Difcil, difcil. Vocs no acreditam a maior parte do que era a vida no campo antes do 25 de Abril, mas eu at falo antes do 25 de Abril porque era o meu tempo porque se for h 20 ou 30 anos atrs que ningum acredita. Posso-lhe dizer que o meu pai chegou a dizer que andou trs dias para ir buscar um carro de lenha para o patro, para o todo dos terrenos que ele fazia, alm de lhe dar trs partes e ficar com um, andou trs dias para lhe arranjar um carro de lenha e nem um copo de vinho lhe deu quando chegou a casa. Est ver? Portanto era vida escravos, escravido totalmente, no havia dinheiro em lado nenhum. (Simo, 55 anos, Portela).
Os entrevistados subdividem-se entre os empregados (18) e os reformados (12), sendo
pouco expressivo o nmero de desempregados e de outros inactivos.
Entre os entrevistados parece haver uma clivagem clara ao nvel da sua inser o
socioprof issional, com efeito, cerca de 1/3 inscreve-se na categoria dos Quadros Superiores da
Administra o Pblica, Dirigentes e Quadros Superiores de Empresa (12 residentes) e um outro
segmento significativo dos residentes insere-se no Operariado, mais concretamente nos
Trabalhadores No Qualif icados (6), nos Operrios, Artf ices e Trabalhadores Similares (4) e
nos Operadores de Instala es e Mquinas e Trabalhadores da Montagem (3). De sublinhar que
os entrevistados apresentam um perfil profissional relativamente contrastante face ao perfil
evidenciado nos trabalhos de Ferreira et al. (1985), Guerra et. al (1996) e Loureiro (1989) sendo
que no primeiro estudo, predominam os operrios, no segundo, 78,3% dos residentes inserem-se
em prof iss es manuais; enquanto, Loureiro nota que apesar das diversidades existentes nos
bairros estudados em Vila Nova de Gaia, a maioria dos residentes so operrios, nomeadamente
da constru o civil e trabalhadores dos servi os (pouco ou nada qualif icados).
Nos contextos em anlise, de destacar a presen a entre os entrevistados de empresrios de
pequenas e mdias empresas de comrcio, indstria e servi os (como por exemplo, of icina de
autom veis, atelier de arquitectura, supermercado, caf, empresa de camionagem, empresa de
equipamento hospitalar entre outras actividades). A esmagadora maioria desenvolve a sua
actividade econ mica no bairro, por vezes em terrenos adjacentes habita o, em anexos ou at
numa parte do prdio com uso predominantemente residencial.
Trata-se de situa es prof issionais protagonizadas de uma forma geral por indivduos oriundos
das classes populares e que numa fase mais avan ada do seu ciclo de vida e da sua traject ria
profissional ascendem socialmente por via do exerccio de uma actividade profissional por conta
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pr pria ou como patro. Parece esbo ar-se assim processos de emburguesamento de alguns
segmentos dos residentes nas Augis. Bruno nasceu em Viseu veio para Lisboa com 14 anos,
comprou um terreno na Quinta da Lobateira apenas em 1995 e antes de abrir uma loja no bairro
foi empregado comercial e at chegou a ser proprietrio de uma loja em Almada.
Mas quando veio para Lisboa, veio com os seus pais ou veio sozinho? No vim sozinho. Veio procura de trabalho? Exactamente, sim senhora. E veio trabalhar para qu? Eu vim trabalhar para comrcio logo. Mas abriu logo um neg cio seu? No, no, empregado. Tive em Lisboa, em Algs, na Musgueira, tive em muitos lados. Ento veio para c viver primeiro, antes de abrir o comrcio? Foi, foi. ( ) sim o comrcio abri em 2003, v em 2005. (Bruno, 61 anos, 1 Ciclo EB)
A autonomia e a independncia em termos de modelo de habitat vo a par de uma certa
tendncia para a autonomia s cio-profissional destes residentes, reveladora de uma
traject ria marcada por aspira es e projectos de ascenso social.
J em 1985 Ferreira et al. (p. 33) sublinhavam a import ncia dos que utilizavam as
condi es geradas no pr prio bairro para se estabelecerem por contra pr pria, quer
como comerciantes, quer como construtores civis.
Quadro 4. Grupos s cio-profissionais em que se inserem os entrevistados
Grupos s cio-profissionais N 1 - Quadros Superiores da Administra o Pblica, Dirigentes e Quadros Superiores de Empresa
12
2 - Especialistas das Profiss es Intelectuais e Cientf icas 2
3 - Tcnicos e Profissionais de Nvel Intermdio -
4 - Pessoal Administrativo e Similares 2
5 - Pessoal dos Servi os e Vendedores 4
6 - Agricultores e Trabalhadores Qualif icados da Agricultura e Pescas 1
7 - Operrios, Artfices e Trabalhadores Similares 4
8 - Operadores de Instala es e Mquinas e Trabalhadores da Montagem 3
9 - Trabalhadores No Qualificados 6
Domsticas e s/informa o 3 Total 37
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Traject r ias e Casa
O indivduo o produto de uma hist ria da qual ele vai procurar tornar-se sujeito.
(Gaulejac, 1987, 1999). Quem compra um lote clandestino e a constr i a sua casa? essa a questo que vamos
procurar perceber neste ponto do trabalho.
Na sequncia da anlise realizada no ponto anterior podemos afirmar que os habitantes
dos bairros clandestinos tm diversas origens geogrficas (aldeias do interior, Lisboa,
Ex-col nias, Europa de Leste, Oriente) e na sua grande maioria, tm um capital cultural
e social muito baixo.
Quanto situa o relativamente propriedade, encontramos os senhorios, que so
habitualmente proprietrios de mais do que um lote e que em muitos casos tambm
habitam no bairro, e os inquilinos. Assim sendo, existem por um lado, situa es
comp sitas (9 so proprietrios e senhorios; 1 simultaneamente proprietrio e
inquilino) e situa es simples (20 pessoas so apenas proprietrios e 4 so apenas
inquilinos).
Os inquilinos correspondem em grande nmero a uma popula o imigrante recente, que
provm das ex-col nias, dos pases de Leste e do Oriente, sendo as ` reas Urbanas de
Gnese I legal um dos lugares procurados por estas popula es, Portugal deixou de ser
um pas de onde se sai (emigra o) para passar a ser tambm um pas de acolhimento de
fluxos migrat rios de origens diversas: de ` frica, do Brasil, da Europa Central e de
Leste e do Oriente. (Peixoto in Freire, 2008, p. 12-13). Mas, tambm existem inquilinos
que so portugueses, e que tm habitualmente uma permanncia mais longa nas casas,
acabando por vezes por compr-las. Os inquilinos imigrantes tendem a aumentar e
apresentam certas caractersticas que vo alterar a homogeneidade especfica de alguns
bairros criando novas situa es de clivagem e at de tenso e conflito5.
Em rela o aos senhorios, muitas vezes o que acontece os entrevistados terem a
possibilidade de comprar outro lote, onde constroem uma casa maior pensando j nos
filhos, e acabarem por arrendar a sua casa antiga, ou andares do novo edifcio. H outras
situa es, em que se transformam eles pr prios em agentes imobilirios, construindo e
comprando casas velhas com o objectivo de as arrendar:
Depois fizemos esta, fizemos aquela... Fizeram estas com inten o de alugar isso?
5 Aspectos que iro ser desenvolvidos noutro ponto do artigo.
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Claro! Est nas finan as, est tudo legal. (Isaura, 75 anos, Faralho) Quando os entrevistados falam sobre o estado de conserva o das suas casas deparamo-nos com discursos antag nicos marcados sobretudo pela situa o do entrevistado face propriedade: os senhorios, que de um modo geral referem a boa conserva o das casas Sabe que no aluguer as pessoas destroem muito e quem constr i quer se ver livre, no quer esses compromissos (Maria dos Anjos, 64 anos, Pinhal do General) e os inquilinos, que pelo contrrio chamam a aten o para as ms condi es de habitabilidade Humidade. Posso passar a mo na parede que ela fica toda molhada, por isso, muito mau. Depois perto da Primavera fica tudo preto, tudo preto, muitas vezes eu tenho que limpar e tratar, eu falo isso faz mal para a minha sade, depois estrago as minhas coisas, faz mal para a minha sade. Susana voc no pode ligar o aquecedor Porqu que eu no posso? Voc no pode ligar, no pode gastar energia elctrica. Est bem, eu pagava um bocado mais mas no. (Susana, Serra da Luz)
Centrar-nos-emos aqui no processo de aquisi o do lote clandestino e na constru o da
casa. A deciso que corresponde compra de um lote clandestino est directamente
relacionada com todo um percurso de vida, onde as traject rias de cada um se vo
construindo num contexto social-econ mico da sociedade portuguesa.
Analisar uma situa o social tendo como elemento central as traject rias dos actores,
metodologia que vamos seguir neste ponto, significa termos como pressuposto que os
indivduos so capazes de construir a sua vida num determinado contexto e tendo
obviamente em conta as contingncias sociais que existem: O indivduo o produto de
uma hist ria da qual ele vai procurar tornar-se sujeito. (Gaulejac 1987 e 1999).
Entre os habitantes dos bairros clandestinos que a construram uma casa (ou vrias
casas), encontramos um grupo com caractersticas muito semelhantes que corresponde
aos indivduos que nasceram em zonas rurais (habitualmente aldeias do interior), e que
ainda adolescentes ou j adultos abandonam o seu espa o e famlia e vm para a
Cidade. Trata-se de um grupo social muito estudado nos anos 806, e que est na origem
desses bairros.
A partir da anlise das entrevistas realizadas, que se referem a uma popula o que nasce
nos anos 40/50, possvel desenhar um percurso tipo, assinalando alguns momentos de
ruptura:
O homem: muitas vezes no completa a escolaridade obrigat ria (ento a 4classe): No,
no tinha motiva o os meus pais tambm no sabem ler, pronto no sei Depois ou por arrasto ou no
sei (Gustavo, 55 anos, Quinta do Z Lus) e come a a trabalhar no campo (nas terras dos pais
ou como assalariado agrcola, ou em ambas as situa es). Uns, partem muito novos,
para a cidade procura de um trabalho: eu quando vim para Lisboa aos 16 anos nem um lanche 6 Ver Sociedade e Territ rio nmeros 1 e 3, e particularmente o excelente trabalho Perfil social e estratgias do clandestino de Ant nio Fonseca Ferreira et al. (1985), publicado pelo Centro de Estudos de Sociologia, ISCTE.
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tinha e nem nunca tive, e sapatos tinha uns para o Domingo e no podia andar com eles todo o dia seno
rompia-os, andava descal o. (Jos Ant nio, 56 anos, Serra da Luz). A ficam uns tempos em casa
de famlia, em casas ou quartos arrendados numa penso ou numa barraca: Vim l para
uma barraquinha, ramos 3 numa barraca, aquilo devia ter uns 10 m2 ramos 3 l dentro a fazer comer a
dormir. (Jos Ant nio, 56 anos, Serra da Luz)
Fazem a tropa e casam muitas vezes com algum da terra; outros, abandonam a sua terra
para irem para a tropa, passando a maior parte das vezes por uma experincia em
` frica: Tentei emigrar mas no consegui, porque na altura era difcil. E ofereci-me como voluntrio
para a tropa foi a maneira de fugir daquela vida difcil. (Ant nio, 61 anos, Casal Branco)
A mulher: Come a tambm muito cedo a trabalhar no campo Era muito longe e eu tambm no
tinha transportes. Era uma terra que no tinha transportes, no tinha nada. (Ant nia, 71 anos, Pinhal do
general)
o casamento que as leva para a cidade. Assim, saem da terra logo que se casam, ou mais tarde:
Porque o meu marido j estava c e eu resolvi vir para c com ele porque realmente a vida no interior tambm no era fcil. E o sonho de qualquer pessoa no interior era melhorar um bocadinho a vida e saimos l do interior e vir para aqui. N s estamos na fase da emigra o, da nossa altura quase no ficou l ningum. E aqueles que l ficaram e tiveram filhos, os filhos hoje tambm l no esto todos sairam no ? (Ana, 58 anos, Casal da Mira)
Em muitas situa es, a sua vida prof issional funciona como complemento da situa o
profissional do marido. Quando se trata do pequeno comrcio, actividade muito frequente na
popula o dos bairros clandestinos, a mulher tem um papel muito importante no apoio ao
trabalho do marido, abandonando por vezes a sua anterior profisso:
Era o ramo dele eu tive de optar pelo ramo dele porque pronto. Tambm ao fim de sete meses nasceu o meu filho mais velho. Que nasceu prematuro. E para ir trabalhar para outro stio, com uma crian a prematura, naquele tempo no se usavam as creches em os infantrios. Podia entregar uma ama, nunca quis. Nunca tive op o para amas. (Maria dos Anjos, 64 anos, Pinhal do General)
A fuga do campo
A situa o de ruptura com o lugar e a famlia tem como razo principal a falta de
trabalho na agricultura, associada ausncia de perspectivas futuras, e dureza do
trabalho do campo: Porque a minha aldeia no tinha as condi es de vida que eu achava que merecia,
para poder fazer uma vida melhor, l no dava ( ) J tinha planeado antes de ir para a tropa, disse para
os meus pais eu quando chegar da tropa, se chegar a vir eu vou para Lisboa, no fico aqui que isto aqui
no d nada. (Ant nio, 61 anos, Casal Branco)
Alguns dos entrevistados come aram a trabalhar muito cedo nas actividades agrcolas,
deixando para trs a escola, assim:
J tinha trabalhado no Crato como lhe expliquei, naquele tempo come vamos a trabalhar logo cedo. Andei a guardar gado no campo porque o meu pai morreu tinha 6 anos. Ento nessa altura parou os estudos?
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Parei e s voltei aos 25 anos. Parei, andei a guardar gado, j no do vosso tempo, tirei o exame da 4 classe com admisso, na altura era assim. (Alcino, 65 anos, Lobateira)
A vida no campo era sin nimo de misria, de destitui o, quase de escravido , da terem estes
entrevistados protagonizado uma fuga para a cidade de Lisboa e sua periferia: j na altura era
difcil qualquer jovem viver no campo e logo que a gente pudesse fugir l am eles para as grandes
cidades (Simo, 55 anos, natural de Cabeceiras de Basto, reside na Portela da Az ia).
Nesse movimento de fuga, sem dvida muito doloroso, que acompanhou a hist ria dos
trabalhadores portugueses, h duas experincias cruciais: a tropa (para os homens) e o
casamento (sobretudo para as mulheres). Neste processo, joga-se o dilema entre
permanecer e mudar (Velho, 1987, p.108). Permanecer, mantendo-se no seio da
famlia e do lugar, aceitando o peso conservador do passado, ou mudar, optando pela
constru o da sua biografia, numa luta aventurosa entre o indivduo e a sociedade. E
no contexto deste dilema, que a experincia da tropa aparece como um factor importante
que vai favorecer a mobilidade espacial e social. Com efeito, em doze anos, mais de
um milho de jovens teve de se deslocar, mudar de vida e de residncia, mesmo
temporariamente. Foi talvez a maior fuso de popula es, em to curto espa o de
tempo, que Portugal conheceu na sua hist ria. Todos os anos, entre 50.000 e 200.000
soldados circulavam, de Norte a Sul, dentro do pas, e entre a metr pole e o Ultramar,
como nunca tinha acontecido. (Barreto, 1996, p. 15).
A tropa permite novos processos de socializa o que passam pela descoberta de outras
realidades, pela aprendizagem de novos ofcios, melhoria do nvel escolar, e sobretudo
novos contactos num mundo que deixou de ser o espa o fechado da aldeia, deixou de
ser uma comunidade:
Portanto sai de Freixo de Espada Cinta fui para a tropa par Vila Real, com 18 anos j tinha 19 meses de tropa cumprido e depois em vila Real tive l cerca de 2 meses e vim para aqui, para Lisboa. Fiz o resto da minha tropa e depois fiquei por aqui, tenho aqui mais 3 irmos somos 4 aqui. Aqui em Lisboa, um em Odivelas, outro na Povoa de Sto Adrio e o outro em Queluz. Portanto a vida l era dificil, complicada como vocs sabem, so meios pequenos. (Gustavo, 55 anos, Quinta do Z Lus)
Como refere Barreto, o servi o militar e a guerra em ` frica foram, nos anos sessenta e
princpios de setenta, um dos mais poderosos factores de socializa o dos jovens
portugueses e de reorganiza o das redes familiares e comerciais. (1996, p. 15).
A vida na cidade
As migra es internas dos campos para as cidades (sobretudo Lisboa e Porto), que
conheceram nos anos 60 um forte impulso (Barreto, p.12), originaram em termos de
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ocupa o do espa o dois movimentos opostos: uma desertifica o do espa o rural e um
aumento da popula o urbana, acompanhada do crescimento dos bairros de barracas e
bairros clandestinos. Muitos dos terrenos que mais tarde se vo urbanizar, atravs da
constru o de casas clandestinas, eram tambm zonas rurais que rodeavam a cidade de
Lisboa, onde vivia uma popula o com um modo de vida rural. Duas entrevistadas, com
respectivamente 75 e 84 anos, contam-nos como era a sua vida no bairro quando eram
novas:
e ento a gente aqui antigamente isto era tudo semeado de comer, de milho, as lavras do arroz onde n s trabalhvamos onde fomos criadas. Fomos para as lavras do arroz em crian a, fomos guardar pardais no sei se vocs sabem o que ? Os passarinhos comiam o arroz, eu comecei nisso tinha a os meus 8 anos, em vez de ir para a escola... ( ) ali junto aos eucaliptos havia os canteiros, chamam canteiros, de arroz e os pardais iam para cima dos eucaliptos e iam para baixo toca a comer e a mim calhou-me aquele bocado ali. Pronto andei ali a trabalhar a guardar pardais, a assobiar, a gritar e a bater palmas. (Isaura, 75 anos, Faralho)
Tinha um burro com umas cangalhas enchia as cangalhas em cima punha outra parte, e eu era favas, ervilhas, feijo verdes, era tomate, pepinos, pimentos, era o que havia era o que a Maria levava para a Amadora para vender. (Amlia, 84 anos, Casal da Mira)
No havia uma oferta de habita es que pudesse alojar a popula o que acabava de
chegar cidade. O parque habitacional aumentou muito pouco at aos anos 60. Como
confirma Barreto: Segundo os dados do ltimo Censo (1991), 62% dos alojamentos
foram construdos depois de 1961, apenas 24% antes de 1945, e cerca de 14% entre
1946 e 1960. (p.54). Os bairros de barracas e os bairros clandestinos, so assim, o
resultado de hist rias individuais que constroem uma determinada realidade social: Da
mesma maneira que o indivduo produzido pela hist ria dos outros a sua hist ria
contribui para produzir a sociedade na qual ele se inscreve. (Gaulejac, 1999).
Na cidade tudo se centra volta do trabalho e na procura de uma vida melhor, Mas essa
vida melhor corresponde a um tempo futuro, o presente, esse, passado a trabalhar, a
trabalhar muito, procurando a todo o custo poupar dinheiro:
Eu no me lembro de passar frias, nunca passei frias. ( ) Ai! Infelizmente, antigamente as minhas frias era apanhar azeitonas, tinha sempre de tirar as frias para ir apanhar azeitonas na terra do meu marido. (Jlia, Pinhal do General)
Trata-se de uma popula o que come a a trabalhar muito cedo e tem um fraco capital
escolar. Os homens trocam o trabalho do campo pelo trabalho na constru o civil, onde
a dureza muito semelhante: ( ) e eu fui pedir trabalho, era um prdio que andavam a fazer e que
l est, dessa oficina que lhes chamavam os patos bravos , uns irmos de Santarm que acartavam tudo
s costas e aos ombros. (Ant nio, 61 anos, Casal Branco)
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As mulheres, algumas fazem trabalhos de costura Fui aprender a costura. Trabalhei sempre
at aos 18 anos na costura (Maria dos Anjos, 64 anos, Pinhal do General) outras, passam do
trabalho do campo e da lida da casa para o de empregadas domsticas. Mas com o
nascimento dos filhos, dividem-se entre ajudar o marido (sobretudo quando se trata do
comrcio), e trabalhos que ocupem apenas uma parte do dia (limpezas, porteira, etc.)
Nos anos sessenta, vive-se em Portugal um perodo quase de pleno emprego as
estatsticas oficiais revelam valores de 2% e 3% de desempregados ao longo desse
perodo. Verificam-se algumas altera es face situa o na profisso, o que est de
certo modo de acordo com a grande migra o do campo para a cidade, o nmero de
patr es conheceu, globalmente, um aumento, passando de cerca de 2% para 7% da
popula o empregada. ( ) Os trabalhadores por conta de outrem aumentaram
gradualmente, de pouco mais de 60% at cerca de 73%. Finalmente, os trabalhadores
familiares viram a sua parte na popula o total reduzir-se drasticamente, de quase 20%
para cerca de 2%. (Barreto, 1996, p. 28-29).
Os percursos dos indivduos diferenciam-se a partir de algum tempo depois da chegada
cidade. Uns tornam-se pequenos comerciantes (cafs, restaurantes, mercearias,
pequenos supermercados), ou pequenos empresrios (oficinas de autom veis); outros,
operrios especializados, funcionrios pblicos (trabalhadores da carris, metro, policias
de seguran a pblica). O que significa que, em muitos casos, o capital econ mico vai
aumentando ao longo dos percursos de vida de cada um. Mas o que parece interessante
salientar por um lado a facilidade em se conseguir trabalho:
Depois entretanto um dia disse para a mulher, olha no fa as o jantar para as 11 horas da noite que eu hoje no vou para a noite, hoje vou ver se arranjo trabalho noutro lado, de dia. E ento assim foi, eu sa do metropolitano e fui pedir trabalho, andava-se a fazer a Avenida e entretanto depois eu depois saio do hospital e vou arranjar trabalho, saltei ali por cima do entulho e vim ter ao Rego, estava ali uma oficina e ento a primeira que eu encontrei foi a MOCAR, mas eu nem sabia que era a Mocar, vi aquela oficina aberta fui l pedir trabalho. E ento mandaram-me entrar, mandaram-me ir l falar com o director, ele l falou comigo fez-me a inscri o e diz-me ele assim. Ah primeiro mandou vir o encarregado para falar comigo. Eu falei da minha e vida e tal, e pergunta-me ele de onde que voc ? Porque naquele tempo e voltando um bocadinho atrs as empresas tinham o hbito de perguntar s pessoa de onde eram. Tanto que onde eu chegava perguntavam voc de onde? Ah sou daquela parte assim, assim , venha trabalhar amanha ou venha trabalhar segunda feira se era um sbado. ( ) e agora com esta hist ria da crise em Maio mandaram uma porrada deles embora e tambm me tocou a mim, a empresa no tinha trabalho para tanta gente. (Ant nio, 61 anos, Casal Branco)7
E, por outro, a disponibilidade e a capacidade para fazer qualquer tipo de trabalho, seja
mais complicado no mbito dos servi os, seja mais duro no mbito do trabalho manual.
7 Da anlise de todas as entrevistas encontramos recentemente muitas situa es de trabalho precrio, de despedimentos e de reformas antecipadas.
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Se percorrermos os vrios trabalhos que cada entrevistado teve, verificamos que
estamos face a uma mo-de-obra bem flexvel . verdade que se trata de uma mo-de-
obra no qualificada, mas com uma capacidade de diversifica o enorme:
antes de vir para aqui passei. Trabalhei numas bombas de gasolina, enfim j fiz de tudo um pouco . ( ) assim eu fiz 4 empresas 2 no eram minhas, ou seja, 3 A ver se eu consigo explicar 2 pessoas amigas e famlia que come mos e fizmos, mas eu no fazia parte da gerncia de nenhuma delas, era empregado. Nasceu o projecto e tal e pronto. (Gustavo, 55 anos, Quinta do Z Lus)
Em muitas situa es encontramos entrevistados que tm um segundo emprego, e que
fazem biscates em casa criando a pequenas oficinas de trabalho:
Trabalhava noite no metro e saia s 7 da manh j com o pequeno almo o tomado e depois ia logo s 8 horas para o hospital de Palhav at s 5, andei assim uns tempos, muito tempo. ( ) Para alm dos 2 empregos fazia em casa trabalhos de serralharia para fora. (Ant nio, 61 anos, Casal Branco)
A anlise que fizemos at agora centra-se numa popula o que migrou dos campos para
a cidade nos anos 60/70, que compra um lote clandestino a a constr i a sua casa. Mas
nem todos os habitantes dos bairros clandestinos tm essa provenincia. Encontramos
assim, a partir da anlise das entrevistas, uma certa homogeneidade quanto perten a
de classe destas popula es mas uma grande diversidade relativamente origem
geogrfica, e ao percurso de vida dos indivduos. No entanto, a op o pela compra de
um lote clandestino e a constru o de uma casa, faz com que todos tenham que passar
por um conjunto de experincias comuns, de certas maneiras de fazer (Certeau, 1990).
Notas conclusivas
Os perfis sociogrficos dos moradores das AUGIS apresentam similaridades (a baixa
escolaridade, a origem rural, a predomin ncia das famlias nucleares) mas tambm
distintividades (o envelhecimento demogrfico, predomnio do operariado e da pequena
burguesia, a import ncia dos inactivos, nomeadamente reformados, o emburguesamento
de alguns segmentos sociais) face aos perfis sociais dos clandestinos das dcadas de 80
e 90 do sculo passado.
Em sntese, os moradores podem ser agrupados em quatro perfis: a) os moradores
antigos e provenientes da provncia (primeiras gera es de residentes); b) os
moradores nascidos no bairro (filhos e netos dos moradores mais antigos; c) os
residentes flutuantes (2 habita o) e d) os moradores imigrantes ou de origem
imigrante.
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Ter uma casa neste tipo de loteamentos traduz uma melhoria clara da situa o
habitacional anterior (barracas, partes de casa, quartos, espa os sobrelotados) dos
residentes.
Os processos de recomposi o social e os sinais de mudan a social nestes espa os
revelam a presen a de novos habitantes , sobretudo de novos inquilinos e de origem
imigrante. Estas mudan as aparecem associadas a din micas que indiciam uma maior
flutua o entre a popula o residente, bem como, uma maior instabilidade, diversidade,
heterogeneidade e at inseguran a. Em face da falta e escassez de resposta quantitativa e
qualitativa por parte dos operadores que intervm no mercado de solos e de habita o,
os actores sociais que so aqui analisados revelam capacidades de adaptabilidade e de
criatividade na medida em que foram capazes de procurar solu es e respostas
compatveis com as suas capacidades econ micos e/ou com as suas aspira es (AAVV,
1983, p. 9)
Uma pergunta parece subsistir: Onde esto os clandestinos hoje?
Verifica-se actualmente uma melhoria geral das condi es de habitabilidade na
sociedade portuguesa (Pinto, Guerra e all, 2010). Esta melhoria reflecte-se na pesquisa
referida atravs da existncia de um pequeno nmero de casas abarracadas (2,5%), e da
utiliza o do quarto ou parte de casa (1,5%) (p.157).
Quando perguntamos onde esto os clandestinos hoje? Queremos saber onde esto os
filhos destas famlias que hoje em dia tm que resolver o problema da habita o, numa
sociedade diferente com uma maior oferta de habita o, onde a possibilidade de se
comprar uma casa passa sobretudo pelo acesso ao crdito bancrio.
Um caminho para responder a esta pergunta seria analisar as traject rias dos filhos dos
moradores nos bairros clandestinos. Nesta investiga o no temos informa o para ir
muito longe, mas podemos chamar a aten o para alguns aspectos. Mais uma vez,
possvel encontrar situa es muito dspares: os filhos que se casam e permanecem num
andar que se acrescenta ou numa nova casa que se constr i, ou que compram lotes e
casas no bairro:
Em rela o ao anexo que agora construiu para a sua filha, tem boas condi es? Fiz os possveis. Mas est grande, tem o qu dois quartos? No, no s tem um, mas tambm entretanto quando ela pensar em ter filhos ponho-a no primeiro andar e vou para l eu. Pois... a gente chega a um ponto que qualquer canto me chega. Se tivesse oportunidade era capaz de investir num lote para a sua filha? Ela tem um lote. Mas no pode construir?
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Pronto, por isso. L est o tal problema, ela tem um lote se os deixassem construir. (Toms, 55 anos, Portela da Az ia)
Os filhos que se separam e voltam para casa dos pais e os que nunca saram de casa dos
Pais.
Paulo tem 31 anos e vive com os pais no Bairro Casal da M ira. Diz que se mudaria quando casasse, Porque casamento apartamento, sempre aquele ditado, ento como os meus pais moram aqui tambm sempre aquela coisa. No entanto, refere que gostaria de ficar a morar no bairro porque gosta da zona e diz que tem boas acessibilidades,
Sim gostava, imagine que agora com o plano vamos dedicar a uma zona a habita o jovem, dedicar uma zona para algumas pessoas porque h aqui problemas, barracas e mais no sei o qu, acho que isto deve ser resolvido. Imagine que dedicamos uma parte aqui que realojamento e habita o jovem, eu se calhar sou das primeiras pessoas a ter iniciativa e ficar aqui com um apartamento para mim porque no? Eu gosto da zona, acho que a nvel de acessos estamos muito bem servidos CRIL, CREL, autoestrada do norte, Cascais n s estamos numa zona central.
Mas um grande nmero de jovens deixa a casa dos pais, no momento em que
constituem famlia, vivendo muitas vezes em apartamentos perto do bairro:
Tem quantos filhos? Ah um casal. a Mariazinha que est aqui no rs-do-cho e o Joo que comprou um andar ali na Apela o, ao p da Quinta da Fonte. Aquela estrada que vem ali parar ao moinho ao nosso lado esquerdo no est l umas casinhas, um bairrozinho? Mas mais aqui para o Catujal, ento ele comprou a um andar e a minha filha ficou aqui com a gente. (Alfredo, 70 anos, Portela da Az ia)
Estes sofrem as dificuldades de uma classe mdia com graves problemas de
endividamento: O expressivo peso do endividamento nos or amentos familiares: em
primeiro lugar a habita o 65,8%, segundo a compra de autom vel 35%, e terceiro
electrodomsticos e outros equipamentos para casa 10%. (Pinto, Guerra et. all, 2010,
pp.149-150).
O problema econ mico da compra de uma casa clandestina que ficava resolvido sob o
ponto e vista financeiro, ao longo de 1 a 5 anos, transforma-se agora numa dvida, que
muitas vezes corresponde ao perodo de vida activa do casal.
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