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1 MEMÓRIAS FEMININAS: O COTIDIANO DE MULHERES NEGRAS E QUILOMBOLAS NA CHAPADA DIAMANTINA KARLA DIAS DE LIMA 1 O advento de uma “História das mulheres” é parte de uma construção assaz contemporânea, fruto das inquietações que marcaram os estudos de gênero e o feminismo no decorrer do século XX. Expoente internacional da pesquisa sobre a história das mulheres, Michelle Perrot (2007) observa que a forma de escrever sobre elas passa por uma mudança essencial à medida que estas deixam os seus lugares de silenciamento e assumem o papel de “sujeitos e objetos de seu próprio relato”. Michelle Perrot (1989) constata que o silêncio sobre elas dava-se não por falta de fontes, mas sim nos discursos, quase sempre masculinos, que não retratavam o cotidiano e os anseios reais dessas mulheres que não possuíam o direito a fala. Essa invisibilidade era ainda maior se acrescida ao fato de que os discursos masculinos preponderavam e as escassas fontes que pudessem mapear a trajetória de mulheres do povo eram sobrepujadas por um exclusivismo político, econômico e social masculino no qual a produção histórica acerca de personalidades femininas era volta às mulheres da realeza ou as mulheres das elites, pensadas sob uma ótica masculina. Na esfera do cotidiano familiar e elitista, a mulher, enquanto entidade coletiva e abstrata seguia os rumos determinados pela dominação masculina, ornatos da riqueza dos maridos, à margem da participação política. Conforme a historiadora Maria Odila Dias (1995), o cotidiano é definido como um campo marcado pela dualidade de definições e conceitos que permeiam as relações sociais, as questões biológicas e psicológicas, a cultura, os sujeitos e os conceitos que se contrapõem; nesse ínterim as relações de gênero são determinadas e sofrem transformações e resignificações frutos dessa dualidade que marca as relações cotidianas. As obras de Michelle Perrot, Arlette Farge, Natalie Zemon Davis, Rachel Soihet, Marina Maluf, Mary Del Priore e Maria Odila da Silva Dias são de extrema importância para a compreensão dos estudos sobre as mulheres no século XX. Tais estudos buscam reconstruir o papel das mulheres na historiografia, analisando pistas, fontes e relatos que permitam a reflexão sobre a trajetória feminina nos diversos âmbitos da sociedade e em sua relação 1 É graduada em História pela UNEB – Campus VI e atualmente é aluna do Mestrado em História regional e Local da UNEB – Campus V, orientanda da Profa. Dra. Maria das Graças de Andrade Leal. Email: [email protected]

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MEMÓRIAS FEMININAS: O COTIDIANO DE MULHERES NEGRAS E QUILOMBOLAS NA CHAPADA DIAMANTINA

KARLA DIAS DE LIMA1

O advento de uma “História das mulheres” é parte de uma construção assaz

contemporânea, fruto das inquietações que marcaram os estudos de gênero e o feminismo no

decorrer do século XX. Expoente internacional da pesquisa sobre a história das mulheres,

Michelle Perrot (2007) observa que a forma de escrever sobre elas passa por uma mudança

essencial à medida que estas deixam os seus lugares de silenciamento e assumem o papel de

“sujeitos e objetos de seu próprio relato”. Michelle Perrot (1989) constata que o silêncio sobre

elas dava-se não por falta de fontes, mas sim nos discursos, quase sempre masculinos, que não

retratavam o cotidiano e os anseios reais dessas mulheres que não possuíam o direito a fala.

Essa invisibilidade era ainda maior se acrescida ao fato de que os discursos masculinos

preponderavam e as escassas fontes que pudessem mapear a trajetória de mulheres do povo

eram sobrepujadas por um exclusivismo político, econômico e social masculino no qual a

produção histórica acerca de personalidades femininas era volta às mulheres da realeza ou as

mulheres das elites, pensadas sob uma ótica masculina. Na esfera do cotidiano familiar e

elitista, a mulher, enquanto entidade coletiva e abstrata seguia os rumos determinados pela

dominação masculina, ornatos da riqueza dos maridos, à margem da participação política.

Conforme a historiadora Maria Odila Dias (1995), o cotidiano é definido como um campo

marcado pela dualidade de definições e conceitos que permeiam as relações sociais, as

questões biológicas e psicológicas, a cultura, os sujeitos e os conceitos que se contrapõem;

nesse ínterim as relações de gênero são determinadas e sofrem transformações e

resignificações frutos dessa dualidade que marca as relações cotidianas.

As obras de Michelle Perrot, Arlette Farge, Natalie Zemon Davis, Rachel Soihet,

Marina Maluf, Mary Del Priore e Maria Odila da Silva Dias são de extrema importância para

a compreensão dos estudos sobre as mulheres no século XX. Tais estudos buscam reconstruir

o papel das mulheres na historiografia, analisando pistas, fontes e relatos que permitam a

reflexão sobre a trajetória feminina nos diversos âmbitos da sociedade e em sua relação

1 É graduada em História pela UNEB – Campus VI e atualmente é aluna do Mestrado em História regional e

Local da UNEB – Campus V, orientanda da Profa. Dra. Maria das Graças de Andrade Leal. Email: [email protected]

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complexa com o mundo masculino, apontando os rumos e as reflexões sobre as muitas

histórias de mulheres, sejam elas brancas, negras, da elite, operárias, mães ou quilombolas.

Nas “histórias” das mulheres do Tucum, comunidade quilombola reconhecida pela

Fundação Palmares em 2006, há muitos anseios em torno de sua identidade, vivências,

relações familiares e pertença ao território e a coletividade. A comunidade está situada entre

os municípios de Tanhaçu e Ituaçu, na entrada sul para a Chapada Diamantina, onde viveu um

número significativo de escravos no século XIX, fato constatado na documentação de época.2

Segundo Washington Nascimento (2008), o povoamento da região ocorreu em função das

entradas pelo sertão em meados do século XVIII, por conta dos metais preciosos e da

pecuária. Neste contexto, a descoberta do ouro na região de Rio de Contas foi o que levou ao

desbravamento da região, ocupada pelo Bandeirante André da Rocha Pinto por volta de 1720.

As fazendas encontradas na região eram produtoras de gêneros agrícolas para o abastecimento

regional, que cresceu por conta da mineração.

A comunidade do Tucum faz parte desse processo histórico, estando localizada entre

os municípios de Laços (atual Tanhaçu) e Brejo Grande (atual Ituaçu), as moradoras falam

sobre a origem da terra a partir de sua memória geracional, apesar das lacunas visíveis: [...]

“Essa terra, elas foram mesmo de moradores que foram passando de pais para filho. Tem

algumas terra que eram, que os moradores já foram escravos e as outras a gente não passou a

saber.” (Maria do Carmo Oliveira, 2012). Ainda que nos relatos das mulheres sobre a origem

do Tucum não se constate uma linhagem matrilinear, são essas mulheres que hoje vão tecendo

os fios da memória local tentando manter as tradições do grupo e seus valores. O papel das

mulheres na manutenção da tradição oral é observado por Philippe Joutard (2000) como parte

do protagonismo que a história oral oferece aos excluídos da história:

A força da história oral, todos sabemos, é dar voz àqueles que normalmente não a têm: os esquecidos, os excluídos ou, retomando a bela expressão de um pioneiro da história oral, Nuno Revelli, os "derrotados". Que ela continue a fazê-lo amplamente, mostrando que cada indivíduo é ator da história. Já conhecemos o papel representado pela história oral no desenvolvimento de uma verdadeira

história das mulheres, (...) Não tenho preocupação quanto a este ponto: o lugar e a importância das mulheres no progresso da história oral representam uma garantia. (JOUTARD apud FERREIRA, 2000 :32 grifos nossos)

2 De acordo com Washington Nascimento (2007), o Arraial do Brejo Grande possuía um número significativo de

escravos, superando outras regiões como Lençóis e Caetité, levando-o a pesquisar a existência de famílias escravas na região. Sua análise é baseada na documentação de um censo solicitado pelas autoridades imperiais em 1870. “Este censo registrava no Arraial do Brejo Grande 1.638 escravos, ou seja, 20,48% da população — percentual maior do que muitas cidades próximas, como Lençóis, onde 10,62% eram escravos, e Vila Nova do Príncipe e Santana (atual Caetité), com 5,25%. Estas, em períodos anteriores, detinham uma grande quantidade de escravos ligados principalmente à mineração.” (NASCIMENTO, 2007, p.146)

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Michelle Perrot (1988) observa que, ainda que multiplamente excluídas das narrativas

históricas masculinas, as mulheres possuíam poderes “difusos e periféricos” que se estendiam

do público ao privado. As vivências cotidianas das mulheres da comunidade do Tucum

perpassam por questões de poder e, segundo Michel Foucault (2009), as relações humanas são

relações de poder que se consolidam através do discurso. Michel Foucault observa que o

discurso não apenas traduz as lutas e as dominações, mas é também aquilo pelo que se luta; as

sociedades e diversos grupos lutam pela manutenção de variados discursos sejam eles sociais,

religiosos, políticos ou econômicos. O poder feminino se estende por vários âmbitos como

observa Rachel Soihet: “Apesar da dominação masculina, a atuação feminina não deixa de se

fazer sentir, através de complexos contrapoderes: poder maternal, poder social, poder sobre

outras mulheres e “compensações” no jogo da sedução e do reinado feminino. (SOIHET,

1998, p.81)

Neste artigo, procuramos nos centrar nas percepções que as mulheres do Tucum têm

sobre o mundo e a comunidade, suas noções de identidade e em suas relações com os outros

moradores da comunidade. No decorrer da escrita, baseada nos relatos orais coletados na

comunidade, buscaremos demonstrar como elas articulam a sua identidade negra e

quilombola e em que âmbitos assumem os papeis de protagonistas femininas. O papel das

mulheres aqui apresentadas será delimitado a partir de suas falas, relações e percepções

coletadas em entrevistas.

Debruçar-se sobre as histórias do Tucum nos remetem as impressões de suas

moradoras acerca do seu passado e do que vem a ser uma mulher quilombola nos tempos

atuais. Segundo Jacques Le Goff (2003) a memória permite preservar informações,

atualizando os conceitos e representações que o sujeito considera ser parte de um passado.

Essas e outras reflexões são necessárias para a compreensão dos relatos orais das mulheres do

Tucum. A busca pelo seu passado, as reflexões sobre a identidade local e o

autorreconhecimento como remanescentes de quilombolas são partes de um processo no qual

Maria do Carmo Oliveira Silva, moradora do Tucum esteve fortemente envolvida. Ela é uma

senhora negra, vivaz, sorridente, baixinha, com cerca de um metro e meio, e com cinquenta e

poucos anos. De acordo com seus relatos, em 2005 quando era presidente da Associação dos

Trabalhadores Rurais do Tucum e frequentava cursos regionais da Diocese da cidade de

Livramento de Nossa Senhora, entrou em contato com algumas comunidades quilombolas da

região de Rio de Contas e começou a perceber e refletir sobre as semelhanças entre essas

comunidades e o Tucum. O resgate da memória foi importante para o fortalecimento do

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sentimento de identidade dos moradores da comunidade. A memória como observa Michael

Pollak (1989) assume esse papel de integração e reforço do sentimento de pertença a um

grupo:

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. (POLLAK, 1989: 9)

Numa comunidade quilombola, a percepção de identidade étnica é importante para

definir as fronteiras do que é inerente da comunidade e o que é influência externa e pode ou

não ser relevante. Na comunidade do Tucum, a palavra quilombo e o ser quilombola, mesmo

se passando quase oito anos, ainda são fatos novos a serem apreendidos por seus moradores e

cada um vai construindo suas definições a partir de suas vivências, como podem ser

percebidas na fala de Maria do Carmo:

Olha, ser quilombola, no início a gente achava que era ser de uma comunidade que tinha e ainda tem o maior número de pessoas que são negras e que elas tão buscando, resgatando os direitos devidos, que não tiveram e também as histórias, não só buscar projetos, mas também tem as tradições que foram acabando, acabando e a gente quer trazer de volta. (Maria do Carmo Oliveira Silva, 2012)

Ela conta que já sabia na época que eram descendentes de escravos, - segundo seus

pais, seu bisavô Cândido Pinto veio da África traficado como escravo — mas não tinha

consciência de serem descendentes de quilombolas. Assim, foi iniciado o levantamento de

informações sobre a origem da comunidade; Maria do Carmo procurou as pessoas mais

velhas, estabelecendo um critério de seleção centrou-se nos que tivessem mais de 80 anos e

através das informações coletadas foi elaborado o texto enviado a Fundação Cultural

Palmares em 2006. Esse texto não foi uma produção apenas de Maria do Carmo, mas teve

ajuda de agentes externos, do Ibama e da Prefeitura de Tanhaçu.

Eu fui perguntando aos meus tios, que eram os mais velhos da comunidade e eles foram falando, mas tinha coisa que a gente ainda não tinha a certeza, encontramos também com seu Zé, que é Zé Pinto é o pai de…Seu José Pinto, ele também, a família dele trabalhava e morava com algumas pessoas da minha família, aí ele começou a contar também o que ele sabia da história e aí gente foi fazendo algumas reuniões e tal e foi fundada a Comunidade do Tucum como quilombola.(Maria do Carmo Oliveira Silva, 2012)

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As falas de Maria do Carmo evidenciam muito de sua vivência pessoal e anseios pela

manutenção das “tradições” locais. Assim, o ser quilombola engloba um conjunto de valores e

crenças individuais e coletivas, que perpassam desde a vivência coletiva ao contato com

agentes externos. Sobre estas tradições cabe pensar, como o fez o historiador Eric Hobsbawm

ao tratar das “tradições inventadas”:

O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo - às vezes coisa de poucos anos apenas - e se estabeleceram com enorme rapidez. (HOBSBAWM, 1984:9)

Eric Hobsbawm (1984) compreende dentro desta invenção das tradições, o conjunto

de práticas, crenças e valores, que regulados por regras de natureza ritual ou simbólica

estabelecem uma continuidade em relação a um evento do passado. Essa continuidade dá-se a

partir do presente, pois ao trabalhar com a memória de pessoas vivas não há uma

desvinculação entre estas e seus relatos, estando ambos (as pessoas e a rememoração) situados

no presente. Para Maurice Halbwachs (1990) recordar não significar reviver o acontecido,

neste processo as lembranças são reconstruídas, repensadas e as próprias narrativas tentam

refazer as experiências do vivido, mas o fazem com as imagens e ideias do presente. Os

moradores dos quilombos contemporâneos também constroem e reelaboram suas tradições,

vivências e lugares da memória. Nesta perspectiva a memória coletiva nos oferece uma gama

de opções para o estudo dessas comunidades, um conceito que abarca muitas especificidades

como pode ser notado na definição de memória por Ana Maria Mauad:

Memória é um campo que estuda os processos e procedimentos de rememoração das sociedades históricas. Entre seus objetos de estudos encontram-se os rituais, as tradições (inventadas ou não), as políticas de identidade; e a definição dos regimes de historicidade; mas também, os usos políticos do passado pelo presente. No cerne do debate teórico desse está a discussão sobre a multiplicidade do tempo histórico e a problemática das temporalidades da História. O seu método de pesquisa define-se pela interdisciplinaridade, aproximando-se da antropologia, da história visual, da história oral. No entanto, é importante ressaltar que toda a metodologia de trabalho histórica é tributária do seu objeto de estudo. (BARROSO JÚNIOR apud MAUAD, 2009:1)

As falas dos moradores do Tucum podem ser relacionadas com o que Leila Teixeira

(2010) define como memória geracional. A memória geracional é baseada nos relatos

passados de pai para filho e remontam a fundação de uma localidade. Com a passagem do

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tempo, a transmissão geracional permite uma relação entre passado e presente, ao mesmo

tempo em que interfere nas representações da atualidade. Michael Pollak (1992), falando

sobre o conceito de memória coletiva de Maurice Halbwachs, diz:

Se destacarmos essa característica flutuante, mutável, da memória, tanto individual como coletiva, devemos lembrar também que na maioria das memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes, imutáveis.(…) Quais são portanto os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva? Em primeiro lugar são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. (POLLAK, 1992: 201)

Algumas das senhoras entrevistadas por Maria do Carmo em 2006 já vieram a falecer,

inclusive sua avó Maria Jesus Santos, nascida em 1908 e falecida em 2008, com a idade de

cem anos. Para Carmem, como gosta de ser chamada, a história de sua gente é importante, faz

com que valorize sua comunidade e que tenha uma noção de onde vieram, quais as suas

origens, sua identidade. Para Jacques Le Goff, citando Bomcompagno da Signa, “A memória

é um glorioso e admirável dom da natureza, através do qual revocamos as coisas passadas,

abraçamos as presentes e contemplamos as futuras, graças à sua semelhança com as passadas”

(LE GOFF, 2003, p.447).

É a partir dessas construções identitárias ainda recentes que um pouco do ser

quilombola vai se registrando no cotidiano dessas mulheres, mesmo com certo estranhamento,

como se pode observar nas falas de Madalena Oliveira Novais e de sua mãe Dona Anísia

Oliveira: “A calombola? Eu achei bom né? Pelo menos o lugar tem um registro agora, nunca

tinha um nome né? E agora tá bom, porque tem a Calombola a gente sabe que tem esse nome

no lugar né? (Madalena Oliveira Novais, 2012 ). “Calombola? Já que tá fazendo né? Tudo que

fais tem que a gente gostar, ou queira ou não queira tem que aceitar né? (Dona Anísia, 2012).

As falas demonstram o quão estranha é ainda a identidade quilombola para essas mulheres,

nas falas de Maria do Carmo e de Rosa da Silva, uma paneleira da região, há um quê de

familiaridade que talvez se deva as posturas assumidas pelas mesmas, uma liderança feminina

que chama atenção nos contatos com a comunidade. Essa afirmação dá-se a partir das

entrevistas e da observação da comunidade.

As entrevistas envolvem acordos e percepções não verbalizadas entre entrevistador e

entrevistado, cabendo ao pesquisador mediar e fazer uma leitura minuciosa das narrativas,

sabendo que muito do que é dito perpassa por questões sociais, econômicas e políticas, que na

maioria das vezes influi na forma como o entrevistado pensa sobre o que está falando.

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Antônio Torres Montenegro (2007) observa que o ato de rememorar e entrevistar um sujeito

histórico aproxima-se da maiêutica socrática que traria as melhores qualidades do indivíduo à

tona. O pesquisador que utiliza a História oral como fonte deve assumir os riscos e as posturas

necessárias na coleta das entrevistas, observando as peculiaridades das narrativas que se dão

no presente, onde todas as pessoas entrevistadas representam um “amálgama” de histórias

relevantes em potencial e para isso são necessários cuidados, não só com o manuseio dos

relatos, mas com os princípios éticos essenciais a este trabalho. Sobre a relação entre memória

e história oral, Alessandro Portelli (1997), diz:

A essencialidade do individuo é salientada pelo fato de a História Oral dizer respeito as versões do passado, ou seja, a memória. Ainda que seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em última análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. (...) se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de dados,poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas (PORTELLI, 1997: 16, grifos nossos).

Jacques Le Goff (2003) também acredita que a memória tem uma função social,

pautada em um “comportamento narrativo” em que os fatos são vividos, ou as informações

sobre eles são repassadas as pessoas sem que as mesmas tenham vivenciado o acontecimento

e mesmo assim esta se apropriam desta narrativa. Sobre a importância da memória coletiva no

resgate de relatos do passado Marina Maluf (1995) diz: “O recurso a contribuições exteriores

ou a memória coletiva é essencial para a reconstrução pessoal de imagens de outro tempo.

Para que a memória individual se realize ela sempre se socorre da memória alheia, que

funciona como um repositório de pontos de contato”. (MALUF, 1995, p.36). Nas entrevistas

realizadas com os moradores da comunidade está evidente que a oralidade foi a principal

forma de manutenção das tradições da região.

Entre as mulheres entrevistadas pode-se perceber que estas sofrem as aflições

cotidianas de todas as mulheres, na lida com a casa, no trabalho com o barro e com o futuro

dos filhos e dos jovens da comunidade. Assumem parte do sustento do lar, fabricam panelas,

vassouras, esteiras e trabalham na colheita do café. A região é inóspita e não oferece muitas

alternativas para o trabalhador rural, sendo a colheita do café uma solução escolhida para os

que precisam sustentar suas famílias.

As concepções acerca da história das mulheres e da liderança feminina nos segmentos

populares colaboram para a análise das especificidades acerca da liderança feminina no

cotidiano das mulheres negras e quilombolas do Tucum. A peculiaridade do estudo da mulher

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negra dá-se por conta da atuação conjunta do racismo e do sexismo nos discursos e fontes que

tratam de sua trajetória histórica, tornando-se premente a necessidade de estudos que

contradigam e refutem esses discursos. Nesse ínterim a compreensão dos papéis assumidos

pelas mulheres negras do período colonial até as comunidades remanescentes da atualidade

possibilita a coexistência de diferentes modelos de relações sociais, culminando em processos

interculturais e no diálogo entre culturas. Carmélia Miranda (2007) ao falar sobre as mulheres

da comunidade quilombola de Tijuaçu/BA constata que:

A reconstrução dos papéis sociais femininos, como mediações que possibilitem a sua integração na globalidade das experiências históricas do seu tempo, parece um

modo promissor de lutar contra o plano dos mitos, normas e estereótipos. (MIRANDA, 2007: 42 grifos nossos)

Pode-se a partir da análise destas questões, pensar num possível diálogo entre a

história das mulheres e os estudos das mulheres negras, principalmente nas reflexões sobre a

opressão masculina. Nesse ínterim, a mulher (na categoria genérica: branca) é vista como

sujeito histórico pela via da família e da natalidade, enquanto que a mulher negra ganha

visibilidade pela luta por espaço e afirmação. É notório que as mulheres do povo só

figurassem nos discursos masculinos, por ocasião de uma insurreição contra a ordem, os

preços e determinações políticas e sociais.

O ativismo das mulheres do Tucum coaduna com a de muitas mulheres negras,

militantes ou não, que resistem a calar-se frente à oposição branca, machista e elitista. Esse

papel de liderança se reflete no cotidiano dessas mulheres que se mantém em um universo

demarcadamente masculino, resguardando a memória e agregando valores que somados

reforçam o sentimento de pertença e identidade étnica na localidade. Ao tratar da identidade

feminina Maria Rosália Dias considera “ a identidade como um fenômeno psicossocial que

proporciona significado as ações cotidianas de cada ser humano”. (DIAS, 2003, p. 29). No

Tucum, as mulheres se organizam politicamente e em outros âmbitos, desde a Associação de

Trabalhadores Rurais do Tucum, a igreja, na manutenção das tradições locais e no trabalho

com o barro, feito exclusivamente por mulheres, por meio do qual elas sustentam suas

famílias.

Dona Anísia Oliveira, tinha 96 anos por ocasião da entrevista em 2012, é uma das

matriarcas da comunidade, teve 10 filhos, dos quais sete ainda estão vivos e estavam com ela,

por ocasião da entrevista, suas filhas Madalena e Maria. A elas passou tudo que sabia de sua

vivência - trabalhar na roça e fazer panelas de barro - e as criou colhendo algodão e fazendo

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farinha para vender na feira de Tanhaçu. A princípio, por timidez, ela diz não saber mais as

histórias, mas aos poucos vai tecendo suas práticas e vivências. Dona Anísia tem grande

influência na religiosidade local. Até recentemente, ela realizava a reza de São Roque no dia

16 de agosto, tradição passada de mãe para filha, a ladainha tem trechos rezados num latim

rudimentar.

A religiosidade é um traço marcante na comunidade do Tucum, herança secular de

uma região demarcadamente católica, onde ainda se encontram as manifestações do

sincretismo religioso. A questão religiosa foi importante para o fortalecimento da identidade

quilombola, existindo um entrelaçamento entre as manifestações culturais e religiosas, difícil

de distinguir, mas que também é um espaço de poder feminino. A identidade, quando

construída através do regaste da memória local, influi concisamente no coletivo e no

individual. Uma rede de relações que se entrelaça a questões políticas, econômicas, religiosas

e sociais ou como melhor observado, nos espaços de poder local.

As comunidades remanescentes de quilombos, ou comunidades negras dentre outras terminologias utilizadas, ao longo dos séculos construíram processos de relações sociais e de articulações que possibilitaram a construção de uma significativa rede de relações socioeconômicas e políticas que podem contribuir para o seu desenvolvimento e despontar potencialidades para uma melhor qualidade de vida dessas comunidades. (SILVA, 2012: 58-59)

Sabe-se que a inserção das mulheres na luta pelo reconhecimento da comunidade, deu-

se pelo histórico de embates que já vinham sendo travados anteriormente na lida de uma

comunidade rural. A isso devemos acrescenta-se que o reconhecimento contribuiu para o

fortalecimento desta liderança. Elas se posicionam contra a omissão dos homens, demarcação

da terra, as dificuldades de emprego e renda para a família, e principalmente, nos desafios que

enfrentam para afirmarem-se como mulheres negras e quilombolas. Notadamente, elas

utilizam estratégias de sobrevivência e militância em suas práticas cotidianas, como uma

possibilidade de reconstruir vivências, afetividades, ancestralidades, memórias e identidades

de gênero.

As observações acerca da memória e das narrativas da comunidade estão entremeadas

de percepções adquiridas no contato com os moradores da comunidade, em especial as

mulheres. Nesta comunidade, o processo de autorreconhecimento partiu de fatores externos e

a própria construção da identidade do grupo, precisou ser repensada à luz das tradições que

mantinham há muito tempo. A figura marcante de Maria do Carmo Oliveira, sua luta e

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determinação, representa todas as mulheres e homens do Tucum que diariamente reconstroem

suas origens étnicas, seus laços de pertença e afetividade.

REFERÊNCIAS:

BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos Santos. VERAS, Rogério Carvalho. Entrevista com a professora Ana Maria Mauad, da Universidade Federal Fluminense, Coordenadora do GGH / Pesquisadora do LABHOI e do CNPq. Revista Outros Tempos. Volume 6, número 7, julho de 2009 - Dossiê História e Memória. DIAS, Maria Odila. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. DIAS, Maria Rosália Correia. Por uma compreensão do conceito de gênero. In FAGUNDES, Tereza Cristina P. C. (Org.). Ensaios sobre identidade e gênero. Salvador: Helvécia, 2003. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula Inaugural no Cóllege de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 18ª Ed. São Paulo: Edições Louyola, 2009. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 1990

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SILVA, Maria do Carmo Oliveira. Entrevista concedida a Karla Dias de Lima. Tanhaçu, 04 ago. 2012.