MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO...
Transcript of MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO...
1
MEMOacuteRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALE
HISTOacuteRICO DO RIO PARAIacuteBA DO SUL ndash SAtildeO PAULO1
Diego da Costa Vitorino (Fundaccedilatildeo da UFSCar)
Dulce Consuelo Andreatta Whitaker (UNESP ndash FCL-Ar e UNIARA)
Introduccedilatildeo
Esta pesquisa feita atraveacutes de observaccedilatildeo direta e contato proacuteximo com os sujeitos
participantes foi uma tentativa de captar a forccedila e a persistecircncia da cultura afrobrasileira que
permanece na memoacuteria como marca de identidade Para isso noacutes desenvolvemos uma
etnografia que teve como loacutecus a educaccedilatildeo na escola e na comunidade de uma pequena cidade
chamada Bananal localizada no Estado de Satildeo Paulo2
Nesse sentido natildeo nos interessa aqui evocar a contribuiccedilatildeo dos negros agrave cultura
hegemocircnica como seria portanto trazer para a discussatildeo os grandes intelectuais negros que
apesar de importantes sem duacutevida se ocidentalizaram e alguns podem chegar a ser
literalmente branqueados como foi o caso de Machado de Assis em algumas reproduccedilotildees
fotograacuteficas
Tambeacutem natildeo interessou-nos a contribuiccedilatildeo afroamericana e africana que necessitou do
sincretismo para sobreviver dentro da cultura hegemocircnica tal foi o caso da religiatildeo e da
muacutesica popular Satildeo aspectos importantes mas bastante enfatizados ndash e natildeo soacute no senso
comum como tambeacutem em trabalhos cientiacuteficos ndash e se apresentam como as ldquocontribuiccedilotildeesrdquo
afrobrasileira que ldquodesaparecemrdquo no turbilhatildeo histoacuterico que acelera a cultura Procuramos a
resistecircncia e neste contexto Bananal situada no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul se
apresentou como um cenaacuterio possiacutevel
Uma hipoacutetese testada nesta pesquisa estaacute expressa no tiacutetulo de minha tese de
doutoramento ldquoUm Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um ldquolaboratoacuteriordquo a
ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sulrdquo (VITORINO 2014) desenvolvida sob a
orientaccedilatildeo de Dulce Whitaker A hipoacutetese acabou se tornando uma questatildeo de tese o que nos
levou a identificaacute-la pela noccedilatildeo do divoacutercio entre a instituiccedilatildeo escolar e a comunidade
1 V ENADIR GT 8 ndash Festejos rituais e a salvaguarda dos direitos culturais
2 Segundo dados do Censo Populacional de IBGE (2010) a populaccedilatildeo de Bananal era de 10223 habitantes na
eacutepoca Estaacute situada como cidade da Regiatildeo Administrativa de Satildeo Joseacute dos Campos Estado de Satildeo Paulo Disponiacutevel em httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=350490ampsearch=sao-paulo|bananal (Acesso em 030817)
2
Poderiacuteamos afirmar que existiria na escola de Bananal como na maioria dos sistemas
de ensino a ideia de que ela deva romper com os saberes populares Seraacute que a escola
tambeacutem acreditaria na ideia de que a construccedilatildeo do conhecimento socialmente valorizado se
encontra apenas nos livros e na cultura dita ldquoeruditardquo e que se constroacutei somente atraveacutes da
leitura dos claacutessicos Entender a relaccedilatildeo escola e comunidade foi fundamental para a
elaboraccedilatildeo do estudo realizado
Romper com a cultura popular eacute o que propotildeem alguns pedagogos brasileiros de
renome entendendo que a escola deveria fornecer aos filhos das camadas de trabalhadores
todos os conteuacutedos que estatildeo no alcance das classes abastadas o que facilitaria (em suas
concepccedilotildees) a integraccedilatildeo dessas camadas na sociedade de classes
Diante de tais dilemas haacute outras correntes teoacutericas sobretudo a pedagogia
revolucionaacuteria de Paulo Freire que colocou em questatildeo o processo de alfabetizaccedilatildeo dos
grupos subalternos na Ameacuterica Latina e em alguns paiacuteses Africanos e ainda hoje se
apresenta como uma pedagogia capaz de desvelar as contradiccedilotildees apresentadas pela dialeacutetica
opressor X oprimido
O que se observa eacute que inserida em uma realidade riquiacutessima tanto pelo ponto de
vista da natureza preservada como pelas memoacuterias subalternas como as dos negros a
educaccedilatildeo escolar de Bananal (formal e puacuteblica) se apresenta distante burocratizada e alheia
aos elementos da comunidade que poderiam formar um curriacuteculo atraente e eficiente no
ensino-aprendizagem das crianccedilas
As praacuteticas tradicionais presentes na comunidade satildeo sistematicamente ignoradas
pela escola no processo de ensino-aprendizagem de seus estudantes aleacutem de algumas vezes
serem consideradas como crendices mitos folclore ou saberes inexpressivos para a
escolarizaccedilatildeo As memoacuterias sociais dos negros e dos povos da floresta (como os da Serra da
Bocaina) satildeo muitas vezes descartadas pela escola de ensino fundamental em Bananal
As memoacuterias do cativeiro
Inicialmente para entendermos como essas memoacuterias do cativeiro se constituiacuteram
precisamos compreender os desdobramentos decorrentes das rotas do traacutefico negreiro Sul
Atlacircntica na formaccedilatildeo demograacutefica e cultural desta parte do Estado de Satildeo Paulo Apesar dos
historiadores admitirem que os dados sobre o traacutefico de africanos para o Brasil entre os
seacuteculos XVI e XVII satildeo pouco consistentes haacute que reconhecer a relaccedilatildeo profunda entre a
Aacutefrica Central Ocidental (e quem sabe a Aacutefrica Central Oriental) e o nosso paiacutes
(ALENCASTRO 2000 SLENES 2007 KNIGHT 2011 VANSINA 2011)
3
Como se pode constatar no iniacutecio da obra de Alencastro (2000) a formaccedilatildeo do Brasil
ocorrou fora do territoacuterio nacional mais precisamente no eixo Sul Atlacircntico
Desde o final do seacuteculo XVI surge um espaccedilo aterritorial um arquipeacutelago
lusoacutefono composto dos enclaves da Ameacuterica portuguesa e das feitorias de
Angola Eacute daiacute que emerge o Brasil no seacuteculo XVIII Natildeo se trata ao longo
dos capiacutetulos de estudar de forma comparativa as colocircnias portuguesas no
Atlacircntico O que se quer ao contraacuterio eacute mostrar como essas duas partes
unidas pelo oceano se completam num soacute sistema de exploraccedilatildeo colonial
cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contemporacircneo
(ALENCASTRO 2000 paacuteg 9) (Grifo meu)
Com isso queremos estabelecer as conexotildees mais especiacuteficas da Aacutefrica central
ocidental e a formaccedilatildeo de uma cosmogonia negra no Brasil As historiografias aqui
referenciadas satildeo o alicerce para a compreensatildeo de histoacuterias que se formaram a partir da
tradiccedilatildeo oral dos grupos africanos traficados pelas rotas oceacircnicas em direccedilatildeo agrave Ameacuterica
Vansina (2011) afirma que os brasileiros passaram a dominar totalmente o comeacutercio
de escravos em Angola de 1648 a 1730 Aleacutem do tracircnsito de pessoas e ideias da Aacutefrica para o
Novo Mundo muitas plantas saiacuteam da Ameacuterica para a Aacutefrica confirma o autor milho
amendoim mandioca feijatildeo e tabaco Estabelecia-se portanto uma lucrativa rota comercial
e sobretudo criava-se entre o Brasil e a Aacutefrica central ocidental uma dependecircncia econocircmica
e social sem igual
Segundo o autor desde o fim do seacuteculo XVII a coroa portuguesa jaacute natildeo possuiacutea o
controle do comeacutercio de escravos que ficou na matildeo de quimbares ovimbares (melhor
identificados como afro-portugueses) aleacutem do domiacutenio dos brasileiros em Luanda e
Benguela
Com o decliacutenio dos Estados africanos no seacuteculo XVIII houve o fortalecimento das
redes comerciais o que possibilitou o traacutefico de mais de 6 milhotildees de africanos para outros
continentes somente neste seacuteculo ndash dos quais 18 milhatildeo vieram para o Brasil ou seja 313
(VANSINA 2011)
O mesmo autor considera que a mortalidade atingia de 10 a 15 dos que embarcavam
rumo ao Novo Mundo ndash a oscilaccedilatildeo do percentual estaacute atrelada ao grau de amontoamento em
que os africanos eram transportados Com base nesses dados sobre o traacutefico o autor eacute enfaacutetico
ao afirmar que Angola dependia economicamente do Brasil e por volta de 1800 88 dos
rendimentos desta naccedilatildeo africana provinham do traacutefico de pessoas para o territoacuterio brasileiro
Jaacute Knight (2011) um africanista que estudou a diaacutespora nos explica que sendo
escravos ou homens livres os africanos e afro-americanos contribuiacuteram para domesticar
grande parte de toda a extensatildeo selvagem do continente americano chegando a afirmar
4
ldquoQualquer que tenha sido o nuacutemero de africanos em tal ou qual paiacutes a Aacutefrica imprimiu na
Ameacuterica a sua marca profunda e indeleacutevelrdquo (KNIGHT 2011 877) (Grifo meu)
Satildeo estas as marcas que sobrevivem em Bananal-SP Para Knight (2011) a diaacutespora
africana foi muito maior na Ameacuterica que na Europa e na Aacutesia Na Ameacuterica no iniacutecio do
seacuteculo XIX a populaccedilatildeo de afro-americanos chegava a 85 milhotildees entre homens livres e
escravos Desses dois milhotildees encontravam-se nos EUA outros dois milhotildees nas Antilhas
E segundo o mesmo autor o Brasil abrigava 25 milhotildees no seacuteculo XIX e na Ameacuterica
espanhola continental o montante chegava a 13 milhatildeo de afro-americanos Para Knight
(2011) os africanos influenciaram fortemente as regiotildees rurais de grande latifuacutendio e toda a
margem atlacircntica da Ameacuterica desenvolvendo os mais variados tipos de produccedilatildeo e
desempenharam todos os papeacuteis sociais
Eles foram pioneiros e conquistadores piratas e bucaneiros gauacutechos
llaneros bandeirantes proprietaacuterios de escravos negociantes domeacutesticos e
escravos Eles melhor se distinguiram em certos ofiacutecios comparativamente a
outros mas no entanto o acesso agraves mais elevadas posiccedilotildees sociais lhes fora
interditado pela lei Apoacutes o seacuteculo XVII entretanto os africanos eram os
uacutenicos escravos legais nas duas Ameacutericas e as populaccedilotildees africanas no seio
das sociedades americanas estariam predestinadas a carregar durante
longo periacuteodo os estigmas desta condiccedilatildeo Antes da aboliccedilatildeo definitiva da
escravatura no Brasil em 1888 a maioria dos africanos das Ameacutericas era
escrava e eram eles quem cumpriam a maior parte dos trabalhos manuais e
dos serviccedilos que exigiam um esforccedilo fiacutesico frequentemente estafante sem os
quais as colocircnias possessotildees e naccedilotildees natildeo teriam sido capazes de alcanccedilar
a prosperidade econocircmica (KNIGHT 2011 877)
Como jaacute afirmamos os dados da escravidatildeo que abasteceram a Ameacuterica satildeo bastante
controversos entretanto Knight (2011) afirma que P D Curtin eacute quem melhor oferece uma
imagem global deste fluxo chegando a uma cifra de 10 milhotildees de escravizados Retificando
este total haacute a pesquisa de E D Genovese entre outros pesquisadores que aumentou esta
estimativa para 2 a 3 ou seja cerca de 12 a 13 milhotildees
Independente do total o Brasil foi o maior importador chegando a 38 dos africanos
escravizados vindos para a Ameacuterica Poreacutem antes da introduccedilatildeo de parte desses africanos
escravizados na cidade de Bananal e em toda parte leste do Estado de Satildeo Paulo para o
trabalho na lavoura de cafeacute a demografia na regiatildeo era bastante diferente
Bananal e o Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul (Silveiras Areias Arapeiacute Satildeo Joseacute
do Barreiro) foi a primeira regiatildeo a produzir cafeacute no Estado de Satildeo Paulo afirma Motta
(1999) No fim do seacuteculo XVIII eram poucas as propriedades que produziam cafeacute na regiatildeo e
a agricultura desenvolvida era para subsistecircncia produzia-se milho mandioca galinhas e
5
porcos Antes no seacuteculo XVI essa regiatildeo era ocupada por iacutendios Puris de liacutengua Jecirc
(MOTTA 1999 GRACcedilA 2006)
Foi nas lavouras de cafeacute que muitos agricultores descendentes de pobres habitantes
que povoaram o Vale do Paraiacuteba paulista no seacuteculo XVII enriqueceram entre as deacutecadas de
1800 a 1830 formando algumas das principais fortunas da eacutepoca ndash chegando alguns a se
tornarem barotildees no periacuteodo da histoacuteria Imperial do Brasil cujos tiacutetulos foram outorgados por
Dom Pedro II
Foi atraveacutes da anaacutelise dos dados sobre a vida na senzala que possibilitou Motta (1999)
criar a noccedilatildeo de corpos escravos Segundo o autor ndash pautando-se na lista nominativa de 1801
ndash a cidade de Bananal natildeo contava com grandes planteacuteis no iniacutecio do seacuteculo XIX Para ele a
evoluccedilatildeo dos padrotildees de propriedade de cativos seguiu os efeitos da maior produtividade do
cafeacute que ocorrera no iniacutecio da segunda metade do seacuteculo XIX (MOTTA 1999 109)
Os dados do autor colocam em relaccedilatildeo economia e a demografia da cidade no periacuteodo
De 1830 a 1850 Motta (1999) afirma ser o apogeu da produtividade de cafeacute e do poder
econocircmico dos cafeicultores de Bananal E esses dados nos levaram a um argumento de tese
importante a grande presenccedila de famiacutelias negras em Bananal (maior que a de outras cidades
da regiatildeo como Lorena) foi o que possibilitou com que as memoacuterias do cativeiro e do Jongo
ainda permanecessem guardadas nas memoacuterias de seus habitantes
Na contramatildeo da histoacuteria oficial que ilustra a vida da elite cafeeira no seacuteculo XIX a
bibliografia utilizada aqui tem como objetivo situar a vida daqueles que foram excluiacutedos de
educaccedilatildeo melhores condiccedilotildees de vida e dos salotildees de baile imperial As memoacuterias do
cativeiro e do Jongo trazem agrave tona a cosmogonia trazida pelos negros na diaacutespora a partir do
prisma da musicalidade e dos saberes que nos remete sempre ao contexto da senzala no
seacuteculo XIX
A senzala e o terreiro de cafeacute foram os locais onde a visatildeo de mundo desses corpos
escravizados foi transmitida atraveacutes da oralidade3 Por isso ao inveacutes de analisar a vida nos
salotildees nobres construiacutedos para o baile das elites do Impeacuterio propomos o inverso analisar a
vida da comunidade pobre e negra ontem e hoje
A famiacutelia negra e a manutenccedilatildeo da memoacuteria social
Para conhecermos mais sobre as memoacuterias do cativeiro recorri agrave histoacuteria oral relatada
pela histoacuteria de vida de alguns interlocutores descendentes de famiacutelias negras de Bananal
3 As religiotildees afrobrasileiras natildeo foram analisadas na tese de Vitorino (2014) O terreiro que se analisou foi o
quintal da propriedade rural cenaacuterio de festejos e da cultura popular e natildeo o Terreiro de Umbanda ou de Candombleacute
6
cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na
memoacuteria
Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-
nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu
aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao
trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as
memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a
cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute
As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da
comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se
resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o
periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe
dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos
Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos
de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal
Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego
aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas
em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente
Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel
de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta
muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza
conta como foi o final da vida de sua bisavoacute
Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros
Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona
Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi
o final da vida de sua bisavoacute
Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha
bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito
tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo
queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No
outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia
trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que
vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi
Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou
laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim
ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees
dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como
ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem
7
uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que
enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar
dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e
tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse
menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha
avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)
Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras
pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de
Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma
dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles
A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir
dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de
manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos
castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma
simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a
referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm
correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social
(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria
obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo
dialeacutetica
Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu
status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da
realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de
protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores
rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de
transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio
Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade
tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e
afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura
popular
O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os
corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de
construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do
latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor
que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande
8
Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais
passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a
estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade
Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas
assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados
qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a
seguir
Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como
Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio
desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de
Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as
memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores
O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio
eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []
E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor
antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na
hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela
acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele
chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha
nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai
natildeo deixou ele ensinar
Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que
seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento
das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja
eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com
os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu
trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo
Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento
da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa
que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da
interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele
tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a
reza proibida
Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de
inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas
vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com
a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou
correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute
9
verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai
tinha medo
O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e
frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo
era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber
mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo
Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta
(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por
onde ou como comeccedilar
Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem
numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de
longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os
homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho
onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens
chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu
siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc
todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias
estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na
beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram
ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava
Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele
[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os
homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei
quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu
pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele
nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele
(Grifos meus)
Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc
benzia muitas pessoas
Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou
muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele
era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem
para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal
do vizinho comer umas galinhas [Risos]
Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo
Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos
Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A
gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos
amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que
ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava
sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele
casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho
da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz
Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se
ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser
10
amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele
naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda
que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma
causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam
mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha
cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma
rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou
a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso
muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e
foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado
Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia
acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava
com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha
avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)
A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza
pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos
de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir
das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo
Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os
entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a
construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de
dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de
organizaccedilatildeo social e poliacutetica
Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e
afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as
memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura
tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria
no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias
As memoacuterias do Jongo em Bananal
A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por
homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima
a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de
bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de
candongueiro
Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre
jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados
pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E
o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar
11
danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato
entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores
Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma
uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos
terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da
aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros
disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo
O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo
da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto
entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem
que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa
conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine
dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em
Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes
O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns
pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)
Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de
pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio
imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura
PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o
Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4
Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde
ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que
em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens
cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo
Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do
Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical
negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela
identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de
praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001
166-167)
4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)
httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
2
Poderiacuteamos afirmar que existiria na escola de Bananal como na maioria dos sistemas
de ensino a ideia de que ela deva romper com os saberes populares Seraacute que a escola
tambeacutem acreditaria na ideia de que a construccedilatildeo do conhecimento socialmente valorizado se
encontra apenas nos livros e na cultura dita ldquoeruditardquo e que se constroacutei somente atraveacutes da
leitura dos claacutessicos Entender a relaccedilatildeo escola e comunidade foi fundamental para a
elaboraccedilatildeo do estudo realizado
Romper com a cultura popular eacute o que propotildeem alguns pedagogos brasileiros de
renome entendendo que a escola deveria fornecer aos filhos das camadas de trabalhadores
todos os conteuacutedos que estatildeo no alcance das classes abastadas o que facilitaria (em suas
concepccedilotildees) a integraccedilatildeo dessas camadas na sociedade de classes
Diante de tais dilemas haacute outras correntes teoacutericas sobretudo a pedagogia
revolucionaacuteria de Paulo Freire que colocou em questatildeo o processo de alfabetizaccedilatildeo dos
grupos subalternos na Ameacuterica Latina e em alguns paiacuteses Africanos e ainda hoje se
apresenta como uma pedagogia capaz de desvelar as contradiccedilotildees apresentadas pela dialeacutetica
opressor X oprimido
O que se observa eacute que inserida em uma realidade riquiacutessima tanto pelo ponto de
vista da natureza preservada como pelas memoacuterias subalternas como as dos negros a
educaccedilatildeo escolar de Bananal (formal e puacuteblica) se apresenta distante burocratizada e alheia
aos elementos da comunidade que poderiam formar um curriacuteculo atraente e eficiente no
ensino-aprendizagem das crianccedilas
As praacuteticas tradicionais presentes na comunidade satildeo sistematicamente ignoradas
pela escola no processo de ensino-aprendizagem de seus estudantes aleacutem de algumas vezes
serem consideradas como crendices mitos folclore ou saberes inexpressivos para a
escolarizaccedilatildeo As memoacuterias sociais dos negros e dos povos da floresta (como os da Serra da
Bocaina) satildeo muitas vezes descartadas pela escola de ensino fundamental em Bananal
As memoacuterias do cativeiro
Inicialmente para entendermos como essas memoacuterias do cativeiro se constituiacuteram
precisamos compreender os desdobramentos decorrentes das rotas do traacutefico negreiro Sul
Atlacircntica na formaccedilatildeo demograacutefica e cultural desta parte do Estado de Satildeo Paulo Apesar dos
historiadores admitirem que os dados sobre o traacutefico de africanos para o Brasil entre os
seacuteculos XVI e XVII satildeo pouco consistentes haacute que reconhecer a relaccedilatildeo profunda entre a
Aacutefrica Central Ocidental (e quem sabe a Aacutefrica Central Oriental) e o nosso paiacutes
(ALENCASTRO 2000 SLENES 2007 KNIGHT 2011 VANSINA 2011)
3
Como se pode constatar no iniacutecio da obra de Alencastro (2000) a formaccedilatildeo do Brasil
ocorrou fora do territoacuterio nacional mais precisamente no eixo Sul Atlacircntico
Desde o final do seacuteculo XVI surge um espaccedilo aterritorial um arquipeacutelago
lusoacutefono composto dos enclaves da Ameacuterica portuguesa e das feitorias de
Angola Eacute daiacute que emerge o Brasil no seacuteculo XVIII Natildeo se trata ao longo
dos capiacutetulos de estudar de forma comparativa as colocircnias portuguesas no
Atlacircntico O que se quer ao contraacuterio eacute mostrar como essas duas partes
unidas pelo oceano se completam num soacute sistema de exploraccedilatildeo colonial
cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contemporacircneo
(ALENCASTRO 2000 paacuteg 9) (Grifo meu)
Com isso queremos estabelecer as conexotildees mais especiacuteficas da Aacutefrica central
ocidental e a formaccedilatildeo de uma cosmogonia negra no Brasil As historiografias aqui
referenciadas satildeo o alicerce para a compreensatildeo de histoacuterias que se formaram a partir da
tradiccedilatildeo oral dos grupos africanos traficados pelas rotas oceacircnicas em direccedilatildeo agrave Ameacuterica
Vansina (2011) afirma que os brasileiros passaram a dominar totalmente o comeacutercio
de escravos em Angola de 1648 a 1730 Aleacutem do tracircnsito de pessoas e ideias da Aacutefrica para o
Novo Mundo muitas plantas saiacuteam da Ameacuterica para a Aacutefrica confirma o autor milho
amendoim mandioca feijatildeo e tabaco Estabelecia-se portanto uma lucrativa rota comercial
e sobretudo criava-se entre o Brasil e a Aacutefrica central ocidental uma dependecircncia econocircmica
e social sem igual
Segundo o autor desde o fim do seacuteculo XVII a coroa portuguesa jaacute natildeo possuiacutea o
controle do comeacutercio de escravos que ficou na matildeo de quimbares ovimbares (melhor
identificados como afro-portugueses) aleacutem do domiacutenio dos brasileiros em Luanda e
Benguela
Com o decliacutenio dos Estados africanos no seacuteculo XVIII houve o fortalecimento das
redes comerciais o que possibilitou o traacutefico de mais de 6 milhotildees de africanos para outros
continentes somente neste seacuteculo ndash dos quais 18 milhatildeo vieram para o Brasil ou seja 313
(VANSINA 2011)
O mesmo autor considera que a mortalidade atingia de 10 a 15 dos que embarcavam
rumo ao Novo Mundo ndash a oscilaccedilatildeo do percentual estaacute atrelada ao grau de amontoamento em
que os africanos eram transportados Com base nesses dados sobre o traacutefico o autor eacute enfaacutetico
ao afirmar que Angola dependia economicamente do Brasil e por volta de 1800 88 dos
rendimentos desta naccedilatildeo africana provinham do traacutefico de pessoas para o territoacuterio brasileiro
Jaacute Knight (2011) um africanista que estudou a diaacutespora nos explica que sendo
escravos ou homens livres os africanos e afro-americanos contribuiacuteram para domesticar
grande parte de toda a extensatildeo selvagem do continente americano chegando a afirmar
4
ldquoQualquer que tenha sido o nuacutemero de africanos em tal ou qual paiacutes a Aacutefrica imprimiu na
Ameacuterica a sua marca profunda e indeleacutevelrdquo (KNIGHT 2011 877) (Grifo meu)
Satildeo estas as marcas que sobrevivem em Bananal-SP Para Knight (2011) a diaacutespora
africana foi muito maior na Ameacuterica que na Europa e na Aacutesia Na Ameacuterica no iniacutecio do
seacuteculo XIX a populaccedilatildeo de afro-americanos chegava a 85 milhotildees entre homens livres e
escravos Desses dois milhotildees encontravam-se nos EUA outros dois milhotildees nas Antilhas
E segundo o mesmo autor o Brasil abrigava 25 milhotildees no seacuteculo XIX e na Ameacuterica
espanhola continental o montante chegava a 13 milhatildeo de afro-americanos Para Knight
(2011) os africanos influenciaram fortemente as regiotildees rurais de grande latifuacutendio e toda a
margem atlacircntica da Ameacuterica desenvolvendo os mais variados tipos de produccedilatildeo e
desempenharam todos os papeacuteis sociais
Eles foram pioneiros e conquistadores piratas e bucaneiros gauacutechos
llaneros bandeirantes proprietaacuterios de escravos negociantes domeacutesticos e
escravos Eles melhor se distinguiram em certos ofiacutecios comparativamente a
outros mas no entanto o acesso agraves mais elevadas posiccedilotildees sociais lhes fora
interditado pela lei Apoacutes o seacuteculo XVII entretanto os africanos eram os
uacutenicos escravos legais nas duas Ameacutericas e as populaccedilotildees africanas no seio
das sociedades americanas estariam predestinadas a carregar durante
longo periacuteodo os estigmas desta condiccedilatildeo Antes da aboliccedilatildeo definitiva da
escravatura no Brasil em 1888 a maioria dos africanos das Ameacutericas era
escrava e eram eles quem cumpriam a maior parte dos trabalhos manuais e
dos serviccedilos que exigiam um esforccedilo fiacutesico frequentemente estafante sem os
quais as colocircnias possessotildees e naccedilotildees natildeo teriam sido capazes de alcanccedilar
a prosperidade econocircmica (KNIGHT 2011 877)
Como jaacute afirmamos os dados da escravidatildeo que abasteceram a Ameacuterica satildeo bastante
controversos entretanto Knight (2011) afirma que P D Curtin eacute quem melhor oferece uma
imagem global deste fluxo chegando a uma cifra de 10 milhotildees de escravizados Retificando
este total haacute a pesquisa de E D Genovese entre outros pesquisadores que aumentou esta
estimativa para 2 a 3 ou seja cerca de 12 a 13 milhotildees
Independente do total o Brasil foi o maior importador chegando a 38 dos africanos
escravizados vindos para a Ameacuterica Poreacutem antes da introduccedilatildeo de parte desses africanos
escravizados na cidade de Bananal e em toda parte leste do Estado de Satildeo Paulo para o
trabalho na lavoura de cafeacute a demografia na regiatildeo era bastante diferente
Bananal e o Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul (Silveiras Areias Arapeiacute Satildeo Joseacute
do Barreiro) foi a primeira regiatildeo a produzir cafeacute no Estado de Satildeo Paulo afirma Motta
(1999) No fim do seacuteculo XVIII eram poucas as propriedades que produziam cafeacute na regiatildeo e
a agricultura desenvolvida era para subsistecircncia produzia-se milho mandioca galinhas e
5
porcos Antes no seacuteculo XVI essa regiatildeo era ocupada por iacutendios Puris de liacutengua Jecirc
(MOTTA 1999 GRACcedilA 2006)
Foi nas lavouras de cafeacute que muitos agricultores descendentes de pobres habitantes
que povoaram o Vale do Paraiacuteba paulista no seacuteculo XVII enriqueceram entre as deacutecadas de
1800 a 1830 formando algumas das principais fortunas da eacutepoca ndash chegando alguns a se
tornarem barotildees no periacuteodo da histoacuteria Imperial do Brasil cujos tiacutetulos foram outorgados por
Dom Pedro II
Foi atraveacutes da anaacutelise dos dados sobre a vida na senzala que possibilitou Motta (1999)
criar a noccedilatildeo de corpos escravos Segundo o autor ndash pautando-se na lista nominativa de 1801
ndash a cidade de Bananal natildeo contava com grandes planteacuteis no iniacutecio do seacuteculo XIX Para ele a
evoluccedilatildeo dos padrotildees de propriedade de cativos seguiu os efeitos da maior produtividade do
cafeacute que ocorrera no iniacutecio da segunda metade do seacuteculo XIX (MOTTA 1999 109)
Os dados do autor colocam em relaccedilatildeo economia e a demografia da cidade no periacuteodo
De 1830 a 1850 Motta (1999) afirma ser o apogeu da produtividade de cafeacute e do poder
econocircmico dos cafeicultores de Bananal E esses dados nos levaram a um argumento de tese
importante a grande presenccedila de famiacutelias negras em Bananal (maior que a de outras cidades
da regiatildeo como Lorena) foi o que possibilitou com que as memoacuterias do cativeiro e do Jongo
ainda permanecessem guardadas nas memoacuterias de seus habitantes
Na contramatildeo da histoacuteria oficial que ilustra a vida da elite cafeeira no seacuteculo XIX a
bibliografia utilizada aqui tem como objetivo situar a vida daqueles que foram excluiacutedos de
educaccedilatildeo melhores condiccedilotildees de vida e dos salotildees de baile imperial As memoacuterias do
cativeiro e do Jongo trazem agrave tona a cosmogonia trazida pelos negros na diaacutespora a partir do
prisma da musicalidade e dos saberes que nos remete sempre ao contexto da senzala no
seacuteculo XIX
A senzala e o terreiro de cafeacute foram os locais onde a visatildeo de mundo desses corpos
escravizados foi transmitida atraveacutes da oralidade3 Por isso ao inveacutes de analisar a vida nos
salotildees nobres construiacutedos para o baile das elites do Impeacuterio propomos o inverso analisar a
vida da comunidade pobre e negra ontem e hoje
A famiacutelia negra e a manutenccedilatildeo da memoacuteria social
Para conhecermos mais sobre as memoacuterias do cativeiro recorri agrave histoacuteria oral relatada
pela histoacuteria de vida de alguns interlocutores descendentes de famiacutelias negras de Bananal
3 As religiotildees afrobrasileiras natildeo foram analisadas na tese de Vitorino (2014) O terreiro que se analisou foi o
quintal da propriedade rural cenaacuterio de festejos e da cultura popular e natildeo o Terreiro de Umbanda ou de Candombleacute
6
cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na
memoacuteria
Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-
nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu
aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao
trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as
memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a
cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute
As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da
comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se
resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o
periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe
dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos
Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos
de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal
Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego
aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas
em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente
Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel
de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta
muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza
conta como foi o final da vida de sua bisavoacute
Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros
Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona
Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi
o final da vida de sua bisavoacute
Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha
bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito
tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo
queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No
outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia
trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que
vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi
Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou
laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim
ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees
dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como
ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem
7
uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que
enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar
dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e
tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse
menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha
avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)
Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras
pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de
Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma
dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles
A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir
dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de
manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos
castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma
simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a
referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm
correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social
(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria
obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo
dialeacutetica
Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu
status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da
realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de
protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores
rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de
transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio
Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade
tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e
afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura
popular
O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os
corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de
construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do
latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor
que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande
8
Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais
passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a
estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade
Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas
assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados
qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a
seguir
Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como
Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio
desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de
Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as
memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores
O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio
eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []
E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor
antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na
hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela
acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele
chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha
nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai
natildeo deixou ele ensinar
Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que
seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento
das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja
eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com
os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu
trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo
Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento
da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa
que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da
interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele
tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a
reza proibida
Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de
inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas
vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com
a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou
correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute
9
verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai
tinha medo
O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e
frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo
era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber
mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo
Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta
(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por
onde ou como comeccedilar
Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem
numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de
longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os
homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho
onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens
chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu
siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc
todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias
estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na
beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram
ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava
Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele
[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os
homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei
quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu
pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele
nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele
(Grifos meus)
Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc
benzia muitas pessoas
Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou
muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele
era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem
para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal
do vizinho comer umas galinhas [Risos]
Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo
Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos
Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A
gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos
amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que
ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava
sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele
casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho
da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz
Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se
ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser
10
amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele
naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda
que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma
causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam
mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha
cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma
rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou
a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso
muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e
foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado
Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia
acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava
com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha
avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)
A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza
pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos
de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir
das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo
Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os
entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a
construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de
dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de
organizaccedilatildeo social e poliacutetica
Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e
afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as
memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura
tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria
no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias
As memoacuterias do Jongo em Bananal
A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por
homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima
a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de
bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de
candongueiro
Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre
jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados
pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E
o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar
11
danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato
entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores
Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma
uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos
terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da
aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros
disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo
O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo
da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto
entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem
que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa
conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine
dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em
Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes
O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns
pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)
Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de
pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio
imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura
PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o
Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4
Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde
ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que
em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens
cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo
Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do
Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical
negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela
identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de
praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001
166-167)
4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)
httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
3
Como se pode constatar no iniacutecio da obra de Alencastro (2000) a formaccedilatildeo do Brasil
ocorrou fora do territoacuterio nacional mais precisamente no eixo Sul Atlacircntico
Desde o final do seacuteculo XVI surge um espaccedilo aterritorial um arquipeacutelago
lusoacutefono composto dos enclaves da Ameacuterica portuguesa e das feitorias de
Angola Eacute daiacute que emerge o Brasil no seacuteculo XVIII Natildeo se trata ao longo
dos capiacutetulos de estudar de forma comparativa as colocircnias portuguesas no
Atlacircntico O que se quer ao contraacuterio eacute mostrar como essas duas partes
unidas pelo oceano se completam num soacute sistema de exploraccedilatildeo colonial
cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contemporacircneo
(ALENCASTRO 2000 paacuteg 9) (Grifo meu)
Com isso queremos estabelecer as conexotildees mais especiacuteficas da Aacutefrica central
ocidental e a formaccedilatildeo de uma cosmogonia negra no Brasil As historiografias aqui
referenciadas satildeo o alicerce para a compreensatildeo de histoacuterias que se formaram a partir da
tradiccedilatildeo oral dos grupos africanos traficados pelas rotas oceacircnicas em direccedilatildeo agrave Ameacuterica
Vansina (2011) afirma que os brasileiros passaram a dominar totalmente o comeacutercio
de escravos em Angola de 1648 a 1730 Aleacutem do tracircnsito de pessoas e ideias da Aacutefrica para o
Novo Mundo muitas plantas saiacuteam da Ameacuterica para a Aacutefrica confirma o autor milho
amendoim mandioca feijatildeo e tabaco Estabelecia-se portanto uma lucrativa rota comercial
e sobretudo criava-se entre o Brasil e a Aacutefrica central ocidental uma dependecircncia econocircmica
e social sem igual
Segundo o autor desde o fim do seacuteculo XVII a coroa portuguesa jaacute natildeo possuiacutea o
controle do comeacutercio de escravos que ficou na matildeo de quimbares ovimbares (melhor
identificados como afro-portugueses) aleacutem do domiacutenio dos brasileiros em Luanda e
Benguela
Com o decliacutenio dos Estados africanos no seacuteculo XVIII houve o fortalecimento das
redes comerciais o que possibilitou o traacutefico de mais de 6 milhotildees de africanos para outros
continentes somente neste seacuteculo ndash dos quais 18 milhatildeo vieram para o Brasil ou seja 313
(VANSINA 2011)
O mesmo autor considera que a mortalidade atingia de 10 a 15 dos que embarcavam
rumo ao Novo Mundo ndash a oscilaccedilatildeo do percentual estaacute atrelada ao grau de amontoamento em
que os africanos eram transportados Com base nesses dados sobre o traacutefico o autor eacute enfaacutetico
ao afirmar que Angola dependia economicamente do Brasil e por volta de 1800 88 dos
rendimentos desta naccedilatildeo africana provinham do traacutefico de pessoas para o territoacuterio brasileiro
Jaacute Knight (2011) um africanista que estudou a diaacutespora nos explica que sendo
escravos ou homens livres os africanos e afro-americanos contribuiacuteram para domesticar
grande parte de toda a extensatildeo selvagem do continente americano chegando a afirmar
4
ldquoQualquer que tenha sido o nuacutemero de africanos em tal ou qual paiacutes a Aacutefrica imprimiu na
Ameacuterica a sua marca profunda e indeleacutevelrdquo (KNIGHT 2011 877) (Grifo meu)
Satildeo estas as marcas que sobrevivem em Bananal-SP Para Knight (2011) a diaacutespora
africana foi muito maior na Ameacuterica que na Europa e na Aacutesia Na Ameacuterica no iniacutecio do
seacuteculo XIX a populaccedilatildeo de afro-americanos chegava a 85 milhotildees entre homens livres e
escravos Desses dois milhotildees encontravam-se nos EUA outros dois milhotildees nas Antilhas
E segundo o mesmo autor o Brasil abrigava 25 milhotildees no seacuteculo XIX e na Ameacuterica
espanhola continental o montante chegava a 13 milhatildeo de afro-americanos Para Knight
(2011) os africanos influenciaram fortemente as regiotildees rurais de grande latifuacutendio e toda a
margem atlacircntica da Ameacuterica desenvolvendo os mais variados tipos de produccedilatildeo e
desempenharam todos os papeacuteis sociais
Eles foram pioneiros e conquistadores piratas e bucaneiros gauacutechos
llaneros bandeirantes proprietaacuterios de escravos negociantes domeacutesticos e
escravos Eles melhor se distinguiram em certos ofiacutecios comparativamente a
outros mas no entanto o acesso agraves mais elevadas posiccedilotildees sociais lhes fora
interditado pela lei Apoacutes o seacuteculo XVII entretanto os africanos eram os
uacutenicos escravos legais nas duas Ameacutericas e as populaccedilotildees africanas no seio
das sociedades americanas estariam predestinadas a carregar durante
longo periacuteodo os estigmas desta condiccedilatildeo Antes da aboliccedilatildeo definitiva da
escravatura no Brasil em 1888 a maioria dos africanos das Ameacutericas era
escrava e eram eles quem cumpriam a maior parte dos trabalhos manuais e
dos serviccedilos que exigiam um esforccedilo fiacutesico frequentemente estafante sem os
quais as colocircnias possessotildees e naccedilotildees natildeo teriam sido capazes de alcanccedilar
a prosperidade econocircmica (KNIGHT 2011 877)
Como jaacute afirmamos os dados da escravidatildeo que abasteceram a Ameacuterica satildeo bastante
controversos entretanto Knight (2011) afirma que P D Curtin eacute quem melhor oferece uma
imagem global deste fluxo chegando a uma cifra de 10 milhotildees de escravizados Retificando
este total haacute a pesquisa de E D Genovese entre outros pesquisadores que aumentou esta
estimativa para 2 a 3 ou seja cerca de 12 a 13 milhotildees
Independente do total o Brasil foi o maior importador chegando a 38 dos africanos
escravizados vindos para a Ameacuterica Poreacutem antes da introduccedilatildeo de parte desses africanos
escravizados na cidade de Bananal e em toda parte leste do Estado de Satildeo Paulo para o
trabalho na lavoura de cafeacute a demografia na regiatildeo era bastante diferente
Bananal e o Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul (Silveiras Areias Arapeiacute Satildeo Joseacute
do Barreiro) foi a primeira regiatildeo a produzir cafeacute no Estado de Satildeo Paulo afirma Motta
(1999) No fim do seacuteculo XVIII eram poucas as propriedades que produziam cafeacute na regiatildeo e
a agricultura desenvolvida era para subsistecircncia produzia-se milho mandioca galinhas e
5
porcos Antes no seacuteculo XVI essa regiatildeo era ocupada por iacutendios Puris de liacutengua Jecirc
(MOTTA 1999 GRACcedilA 2006)
Foi nas lavouras de cafeacute que muitos agricultores descendentes de pobres habitantes
que povoaram o Vale do Paraiacuteba paulista no seacuteculo XVII enriqueceram entre as deacutecadas de
1800 a 1830 formando algumas das principais fortunas da eacutepoca ndash chegando alguns a se
tornarem barotildees no periacuteodo da histoacuteria Imperial do Brasil cujos tiacutetulos foram outorgados por
Dom Pedro II
Foi atraveacutes da anaacutelise dos dados sobre a vida na senzala que possibilitou Motta (1999)
criar a noccedilatildeo de corpos escravos Segundo o autor ndash pautando-se na lista nominativa de 1801
ndash a cidade de Bananal natildeo contava com grandes planteacuteis no iniacutecio do seacuteculo XIX Para ele a
evoluccedilatildeo dos padrotildees de propriedade de cativos seguiu os efeitos da maior produtividade do
cafeacute que ocorrera no iniacutecio da segunda metade do seacuteculo XIX (MOTTA 1999 109)
Os dados do autor colocam em relaccedilatildeo economia e a demografia da cidade no periacuteodo
De 1830 a 1850 Motta (1999) afirma ser o apogeu da produtividade de cafeacute e do poder
econocircmico dos cafeicultores de Bananal E esses dados nos levaram a um argumento de tese
importante a grande presenccedila de famiacutelias negras em Bananal (maior que a de outras cidades
da regiatildeo como Lorena) foi o que possibilitou com que as memoacuterias do cativeiro e do Jongo
ainda permanecessem guardadas nas memoacuterias de seus habitantes
Na contramatildeo da histoacuteria oficial que ilustra a vida da elite cafeeira no seacuteculo XIX a
bibliografia utilizada aqui tem como objetivo situar a vida daqueles que foram excluiacutedos de
educaccedilatildeo melhores condiccedilotildees de vida e dos salotildees de baile imperial As memoacuterias do
cativeiro e do Jongo trazem agrave tona a cosmogonia trazida pelos negros na diaacutespora a partir do
prisma da musicalidade e dos saberes que nos remete sempre ao contexto da senzala no
seacuteculo XIX
A senzala e o terreiro de cafeacute foram os locais onde a visatildeo de mundo desses corpos
escravizados foi transmitida atraveacutes da oralidade3 Por isso ao inveacutes de analisar a vida nos
salotildees nobres construiacutedos para o baile das elites do Impeacuterio propomos o inverso analisar a
vida da comunidade pobre e negra ontem e hoje
A famiacutelia negra e a manutenccedilatildeo da memoacuteria social
Para conhecermos mais sobre as memoacuterias do cativeiro recorri agrave histoacuteria oral relatada
pela histoacuteria de vida de alguns interlocutores descendentes de famiacutelias negras de Bananal
3 As religiotildees afrobrasileiras natildeo foram analisadas na tese de Vitorino (2014) O terreiro que se analisou foi o
quintal da propriedade rural cenaacuterio de festejos e da cultura popular e natildeo o Terreiro de Umbanda ou de Candombleacute
6
cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na
memoacuteria
Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-
nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu
aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao
trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as
memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a
cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute
As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da
comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se
resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o
periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe
dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos
Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos
de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal
Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego
aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas
em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente
Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel
de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta
muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza
conta como foi o final da vida de sua bisavoacute
Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros
Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona
Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi
o final da vida de sua bisavoacute
Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha
bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito
tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo
queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No
outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia
trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que
vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi
Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou
laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim
ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees
dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como
ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem
7
uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que
enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar
dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e
tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse
menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha
avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)
Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras
pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de
Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma
dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles
A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir
dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de
manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos
castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma
simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a
referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm
correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social
(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria
obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo
dialeacutetica
Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu
status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da
realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de
protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores
rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de
transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio
Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade
tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e
afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura
popular
O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os
corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de
construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do
latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor
que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande
8
Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais
passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a
estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade
Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas
assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados
qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a
seguir
Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como
Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio
desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de
Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as
memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores
O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio
eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []
E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor
antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na
hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela
acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele
chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha
nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai
natildeo deixou ele ensinar
Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que
seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento
das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja
eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com
os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu
trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo
Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento
da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa
que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da
interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele
tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a
reza proibida
Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de
inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas
vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com
a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou
correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute
9
verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai
tinha medo
O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e
frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo
era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber
mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo
Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta
(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por
onde ou como comeccedilar
Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem
numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de
longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os
homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho
onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens
chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu
siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc
todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias
estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na
beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram
ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava
Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele
[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os
homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei
quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu
pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele
nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele
(Grifos meus)
Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc
benzia muitas pessoas
Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou
muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele
era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem
para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal
do vizinho comer umas galinhas [Risos]
Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo
Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos
Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A
gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos
amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que
ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava
sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele
casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho
da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz
Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se
ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser
10
amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele
naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda
que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma
causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam
mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha
cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma
rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou
a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso
muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e
foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado
Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia
acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava
com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha
avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)
A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza
pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos
de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir
das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo
Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os
entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a
construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de
dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de
organizaccedilatildeo social e poliacutetica
Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e
afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as
memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura
tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria
no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias
As memoacuterias do Jongo em Bananal
A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por
homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima
a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de
bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de
candongueiro
Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre
jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados
pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E
o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar
11
danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato
entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores
Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma
uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos
terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da
aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros
disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo
O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo
da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto
entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem
que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa
conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine
dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em
Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes
O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns
pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)
Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de
pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio
imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura
PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o
Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4
Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde
ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que
em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens
cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo
Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do
Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical
negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela
identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de
praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001
166-167)
4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)
httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
4
ldquoQualquer que tenha sido o nuacutemero de africanos em tal ou qual paiacutes a Aacutefrica imprimiu na
Ameacuterica a sua marca profunda e indeleacutevelrdquo (KNIGHT 2011 877) (Grifo meu)
Satildeo estas as marcas que sobrevivem em Bananal-SP Para Knight (2011) a diaacutespora
africana foi muito maior na Ameacuterica que na Europa e na Aacutesia Na Ameacuterica no iniacutecio do
seacuteculo XIX a populaccedilatildeo de afro-americanos chegava a 85 milhotildees entre homens livres e
escravos Desses dois milhotildees encontravam-se nos EUA outros dois milhotildees nas Antilhas
E segundo o mesmo autor o Brasil abrigava 25 milhotildees no seacuteculo XIX e na Ameacuterica
espanhola continental o montante chegava a 13 milhatildeo de afro-americanos Para Knight
(2011) os africanos influenciaram fortemente as regiotildees rurais de grande latifuacutendio e toda a
margem atlacircntica da Ameacuterica desenvolvendo os mais variados tipos de produccedilatildeo e
desempenharam todos os papeacuteis sociais
Eles foram pioneiros e conquistadores piratas e bucaneiros gauacutechos
llaneros bandeirantes proprietaacuterios de escravos negociantes domeacutesticos e
escravos Eles melhor se distinguiram em certos ofiacutecios comparativamente a
outros mas no entanto o acesso agraves mais elevadas posiccedilotildees sociais lhes fora
interditado pela lei Apoacutes o seacuteculo XVII entretanto os africanos eram os
uacutenicos escravos legais nas duas Ameacutericas e as populaccedilotildees africanas no seio
das sociedades americanas estariam predestinadas a carregar durante
longo periacuteodo os estigmas desta condiccedilatildeo Antes da aboliccedilatildeo definitiva da
escravatura no Brasil em 1888 a maioria dos africanos das Ameacutericas era
escrava e eram eles quem cumpriam a maior parte dos trabalhos manuais e
dos serviccedilos que exigiam um esforccedilo fiacutesico frequentemente estafante sem os
quais as colocircnias possessotildees e naccedilotildees natildeo teriam sido capazes de alcanccedilar
a prosperidade econocircmica (KNIGHT 2011 877)
Como jaacute afirmamos os dados da escravidatildeo que abasteceram a Ameacuterica satildeo bastante
controversos entretanto Knight (2011) afirma que P D Curtin eacute quem melhor oferece uma
imagem global deste fluxo chegando a uma cifra de 10 milhotildees de escravizados Retificando
este total haacute a pesquisa de E D Genovese entre outros pesquisadores que aumentou esta
estimativa para 2 a 3 ou seja cerca de 12 a 13 milhotildees
Independente do total o Brasil foi o maior importador chegando a 38 dos africanos
escravizados vindos para a Ameacuterica Poreacutem antes da introduccedilatildeo de parte desses africanos
escravizados na cidade de Bananal e em toda parte leste do Estado de Satildeo Paulo para o
trabalho na lavoura de cafeacute a demografia na regiatildeo era bastante diferente
Bananal e o Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul (Silveiras Areias Arapeiacute Satildeo Joseacute
do Barreiro) foi a primeira regiatildeo a produzir cafeacute no Estado de Satildeo Paulo afirma Motta
(1999) No fim do seacuteculo XVIII eram poucas as propriedades que produziam cafeacute na regiatildeo e
a agricultura desenvolvida era para subsistecircncia produzia-se milho mandioca galinhas e
5
porcos Antes no seacuteculo XVI essa regiatildeo era ocupada por iacutendios Puris de liacutengua Jecirc
(MOTTA 1999 GRACcedilA 2006)
Foi nas lavouras de cafeacute que muitos agricultores descendentes de pobres habitantes
que povoaram o Vale do Paraiacuteba paulista no seacuteculo XVII enriqueceram entre as deacutecadas de
1800 a 1830 formando algumas das principais fortunas da eacutepoca ndash chegando alguns a se
tornarem barotildees no periacuteodo da histoacuteria Imperial do Brasil cujos tiacutetulos foram outorgados por
Dom Pedro II
Foi atraveacutes da anaacutelise dos dados sobre a vida na senzala que possibilitou Motta (1999)
criar a noccedilatildeo de corpos escravos Segundo o autor ndash pautando-se na lista nominativa de 1801
ndash a cidade de Bananal natildeo contava com grandes planteacuteis no iniacutecio do seacuteculo XIX Para ele a
evoluccedilatildeo dos padrotildees de propriedade de cativos seguiu os efeitos da maior produtividade do
cafeacute que ocorrera no iniacutecio da segunda metade do seacuteculo XIX (MOTTA 1999 109)
Os dados do autor colocam em relaccedilatildeo economia e a demografia da cidade no periacuteodo
De 1830 a 1850 Motta (1999) afirma ser o apogeu da produtividade de cafeacute e do poder
econocircmico dos cafeicultores de Bananal E esses dados nos levaram a um argumento de tese
importante a grande presenccedila de famiacutelias negras em Bananal (maior que a de outras cidades
da regiatildeo como Lorena) foi o que possibilitou com que as memoacuterias do cativeiro e do Jongo
ainda permanecessem guardadas nas memoacuterias de seus habitantes
Na contramatildeo da histoacuteria oficial que ilustra a vida da elite cafeeira no seacuteculo XIX a
bibliografia utilizada aqui tem como objetivo situar a vida daqueles que foram excluiacutedos de
educaccedilatildeo melhores condiccedilotildees de vida e dos salotildees de baile imperial As memoacuterias do
cativeiro e do Jongo trazem agrave tona a cosmogonia trazida pelos negros na diaacutespora a partir do
prisma da musicalidade e dos saberes que nos remete sempre ao contexto da senzala no
seacuteculo XIX
A senzala e o terreiro de cafeacute foram os locais onde a visatildeo de mundo desses corpos
escravizados foi transmitida atraveacutes da oralidade3 Por isso ao inveacutes de analisar a vida nos
salotildees nobres construiacutedos para o baile das elites do Impeacuterio propomos o inverso analisar a
vida da comunidade pobre e negra ontem e hoje
A famiacutelia negra e a manutenccedilatildeo da memoacuteria social
Para conhecermos mais sobre as memoacuterias do cativeiro recorri agrave histoacuteria oral relatada
pela histoacuteria de vida de alguns interlocutores descendentes de famiacutelias negras de Bananal
3 As religiotildees afrobrasileiras natildeo foram analisadas na tese de Vitorino (2014) O terreiro que se analisou foi o
quintal da propriedade rural cenaacuterio de festejos e da cultura popular e natildeo o Terreiro de Umbanda ou de Candombleacute
6
cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na
memoacuteria
Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-
nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu
aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao
trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as
memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a
cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute
As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da
comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se
resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o
periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe
dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos
Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos
de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal
Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego
aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas
em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente
Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel
de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta
muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza
conta como foi o final da vida de sua bisavoacute
Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros
Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona
Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi
o final da vida de sua bisavoacute
Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha
bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito
tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo
queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No
outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia
trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que
vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi
Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou
laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim
ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees
dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como
ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem
7
uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que
enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar
dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e
tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse
menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha
avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)
Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras
pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de
Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma
dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles
A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir
dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de
manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos
castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma
simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a
referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm
correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social
(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria
obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo
dialeacutetica
Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu
status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da
realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de
protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores
rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de
transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio
Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade
tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e
afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura
popular
O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os
corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de
construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do
latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor
que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande
8
Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais
passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a
estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade
Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas
assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados
qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a
seguir
Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como
Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio
desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de
Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as
memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores
O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio
eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []
E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor
antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na
hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela
acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele
chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha
nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai
natildeo deixou ele ensinar
Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que
seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento
das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja
eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com
os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu
trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo
Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento
da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa
que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da
interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele
tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a
reza proibida
Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de
inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas
vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com
a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou
correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute
9
verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai
tinha medo
O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e
frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo
era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber
mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo
Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta
(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por
onde ou como comeccedilar
Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem
numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de
longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os
homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho
onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens
chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu
siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc
todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias
estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na
beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram
ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava
Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele
[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os
homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei
quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu
pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele
nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele
(Grifos meus)
Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc
benzia muitas pessoas
Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou
muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele
era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem
para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal
do vizinho comer umas galinhas [Risos]
Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo
Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos
Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A
gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos
amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que
ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava
sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele
casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho
da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz
Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se
ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser
10
amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele
naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda
que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma
causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam
mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha
cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma
rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou
a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso
muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e
foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado
Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia
acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava
com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha
avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)
A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza
pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos
de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir
das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo
Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os
entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a
construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de
dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de
organizaccedilatildeo social e poliacutetica
Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e
afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as
memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura
tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria
no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias
As memoacuterias do Jongo em Bananal
A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por
homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima
a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de
bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de
candongueiro
Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre
jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados
pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E
o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar
11
danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato
entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores
Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma
uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos
terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da
aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros
disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo
O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo
da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto
entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem
que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa
conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine
dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em
Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes
O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns
pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)
Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de
pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio
imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura
PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o
Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4
Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde
ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que
em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens
cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo
Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do
Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical
negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela
identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de
praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001
166-167)
4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)
httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
5
porcos Antes no seacuteculo XVI essa regiatildeo era ocupada por iacutendios Puris de liacutengua Jecirc
(MOTTA 1999 GRACcedilA 2006)
Foi nas lavouras de cafeacute que muitos agricultores descendentes de pobres habitantes
que povoaram o Vale do Paraiacuteba paulista no seacuteculo XVII enriqueceram entre as deacutecadas de
1800 a 1830 formando algumas das principais fortunas da eacutepoca ndash chegando alguns a se
tornarem barotildees no periacuteodo da histoacuteria Imperial do Brasil cujos tiacutetulos foram outorgados por
Dom Pedro II
Foi atraveacutes da anaacutelise dos dados sobre a vida na senzala que possibilitou Motta (1999)
criar a noccedilatildeo de corpos escravos Segundo o autor ndash pautando-se na lista nominativa de 1801
ndash a cidade de Bananal natildeo contava com grandes planteacuteis no iniacutecio do seacuteculo XIX Para ele a
evoluccedilatildeo dos padrotildees de propriedade de cativos seguiu os efeitos da maior produtividade do
cafeacute que ocorrera no iniacutecio da segunda metade do seacuteculo XIX (MOTTA 1999 109)
Os dados do autor colocam em relaccedilatildeo economia e a demografia da cidade no periacuteodo
De 1830 a 1850 Motta (1999) afirma ser o apogeu da produtividade de cafeacute e do poder
econocircmico dos cafeicultores de Bananal E esses dados nos levaram a um argumento de tese
importante a grande presenccedila de famiacutelias negras em Bananal (maior que a de outras cidades
da regiatildeo como Lorena) foi o que possibilitou com que as memoacuterias do cativeiro e do Jongo
ainda permanecessem guardadas nas memoacuterias de seus habitantes
Na contramatildeo da histoacuteria oficial que ilustra a vida da elite cafeeira no seacuteculo XIX a
bibliografia utilizada aqui tem como objetivo situar a vida daqueles que foram excluiacutedos de
educaccedilatildeo melhores condiccedilotildees de vida e dos salotildees de baile imperial As memoacuterias do
cativeiro e do Jongo trazem agrave tona a cosmogonia trazida pelos negros na diaacutespora a partir do
prisma da musicalidade e dos saberes que nos remete sempre ao contexto da senzala no
seacuteculo XIX
A senzala e o terreiro de cafeacute foram os locais onde a visatildeo de mundo desses corpos
escravizados foi transmitida atraveacutes da oralidade3 Por isso ao inveacutes de analisar a vida nos
salotildees nobres construiacutedos para o baile das elites do Impeacuterio propomos o inverso analisar a
vida da comunidade pobre e negra ontem e hoje
A famiacutelia negra e a manutenccedilatildeo da memoacuteria social
Para conhecermos mais sobre as memoacuterias do cativeiro recorri agrave histoacuteria oral relatada
pela histoacuteria de vida de alguns interlocutores descendentes de famiacutelias negras de Bananal
3 As religiotildees afrobrasileiras natildeo foram analisadas na tese de Vitorino (2014) O terreiro que se analisou foi o
quintal da propriedade rural cenaacuterio de festejos e da cultura popular e natildeo o Terreiro de Umbanda ou de Candombleacute
6
cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na
memoacuteria
Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-
nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu
aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao
trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as
memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a
cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute
As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da
comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se
resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o
periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe
dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos
Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos
de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal
Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego
aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas
em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente
Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel
de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta
muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza
conta como foi o final da vida de sua bisavoacute
Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros
Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona
Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi
o final da vida de sua bisavoacute
Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha
bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito
tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo
queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No
outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia
trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que
vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi
Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou
laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim
ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees
dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como
ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem
7
uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que
enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar
dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e
tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse
menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha
avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)
Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras
pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de
Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma
dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles
A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir
dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de
manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos
castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma
simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a
referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm
correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social
(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria
obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo
dialeacutetica
Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu
status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da
realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de
protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores
rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de
transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio
Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade
tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e
afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura
popular
O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os
corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de
construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do
latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor
que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande
8
Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais
passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a
estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade
Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas
assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados
qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a
seguir
Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como
Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio
desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de
Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as
memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores
O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio
eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []
E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor
antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na
hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela
acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele
chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha
nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai
natildeo deixou ele ensinar
Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que
seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento
das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja
eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com
os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu
trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo
Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento
da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa
que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da
interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele
tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a
reza proibida
Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de
inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas
vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com
a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou
correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute
9
verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai
tinha medo
O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e
frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo
era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber
mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo
Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta
(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por
onde ou como comeccedilar
Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem
numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de
longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os
homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho
onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens
chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu
siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc
todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias
estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na
beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram
ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava
Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele
[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os
homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei
quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu
pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele
nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele
(Grifos meus)
Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc
benzia muitas pessoas
Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou
muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele
era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem
para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal
do vizinho comer umas galinhas [Risos]
Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo
Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos
Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A
gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos
amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que
ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava
sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele
casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho
da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz
Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se
ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser
10
amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele
naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda
que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma
causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam
mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha
cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma
rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou
a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso
muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e
foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado
Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia
acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava
com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha
avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)
A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza
pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos
de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir
das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo
Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os
entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a
construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de
dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de
organizaccedilatildeo social e poliacutetica
Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e
afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as
memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura
tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria
no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias
As memoacuterias do Jongo em Bananal
A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por
homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima
a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de
bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de
candongueiro
Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre
jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados
pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E
o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar
11
danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato
entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores
Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma
uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos
terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da
aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros
disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo
O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo
da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto
entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem
que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa
conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine
dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em
Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes
O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns
pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)
Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de
pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio
imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura
PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o
Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4
Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde
ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que
em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens
cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo
Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do
Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical
negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela
identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de
praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001
166-167)
4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)
httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
6
cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na
memoacuteria
Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-
nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu
aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao
trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as
memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a
cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute
As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da
comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se
resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o
periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe
dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos
Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos
de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal
Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego
aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas
em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente
Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel
de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta
muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza
conta como foi o final da vida de sua bisavoacute
Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros
Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona
Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi
o final da vida de sua bisavoacute
Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha
bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito
tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo
queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No
outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia
trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que
vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi
Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou
laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim
ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees
dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como
ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem
7
uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que
enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar
dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e
tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse
menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha
avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)
Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras
pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de
Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma
dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles
A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir
dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de
manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos
castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma
simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a
referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm
correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social
(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria
obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo
dialeacutetica
Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu
status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da
realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de
protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores
rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de
transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio
Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade
tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e
afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura
popular
O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os
corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de
construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do
latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor
que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande
8
Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais
passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a
estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade
Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas
assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados
qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a
seguir
Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como
Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio
desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de
Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as
memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores
O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio
eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []
E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor
antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na
hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela
acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele
chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha
nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai
natildeo deixou ele ensinar
Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que
seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento
das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja
eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com
os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu
trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo
Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento
da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa
que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da
interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele
tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a
reza proibida
Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de
inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas
vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com
a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou
correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute
9
verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai
tinha medo
O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e
frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo
era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber
mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo
Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta
(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por
onde ou como comeccedilar
Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem
numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de
longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os
homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho
onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens
chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu
siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc
todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias
estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na
beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram
ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava
Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele
[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os
homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei
quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu
pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele
nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele
(Grifos meus)
Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc
benzia muitas pessoas
Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou
muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele
era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem
para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal
do vizinho comer umas galinhas [Risos]
Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo
Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos
Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A
gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos
amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que
ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava
sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele
casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho
da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz
Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se
ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser
10
amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele
naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda
que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma
causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam
mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha
cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma
rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou
a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso
muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e
foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado
Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia
acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava
com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha
avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)
A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza
pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos
de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir
das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo
Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os
entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a
construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de
dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de
organizaccedilatildeo social e poliacutetica
Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e
afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as
memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura
tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria
no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias
As memoacuterias do Jongo em Bananal
A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por
homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima
a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de
bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de
candongueiro
Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre
jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados
pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E
o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar
11
danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato
entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores
Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma
uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos
terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da
aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros
disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo
O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo
da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto
entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem
que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa
conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine
dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em
Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes
O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns
pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)
Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de
pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio
imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura
PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o
Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4
Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde
ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que
em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens
cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo
Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do
Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical
negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela
identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de
praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001
166-167)
4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)
httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
7
uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que
enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar
dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e
tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse
menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha
avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)
Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras
pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de
Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma
dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles
A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir
dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de
manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos
castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma
simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a
referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm
correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social
(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria
obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo
dialeacutetica
Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu
status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da
realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de
protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores
rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de
transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio
Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade
tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e
afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura
popular
O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os
corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de
construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do
latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor
que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande
8
Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais
passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a
estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade
Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas
assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados
qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a
seguir
Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como
Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio
desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de
Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as
memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores
O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio
eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []
E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor
antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na
hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela
acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele
chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha
nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai
natildeo deixou ele ensinar
Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que
seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento
das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja
eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com
os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu
trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo
Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento
da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa
que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da
interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele
tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a
reza proibida
Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de
inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas
vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com
a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou
correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute
9
verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai
tinha medo
O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e
frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo
era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber
mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo
Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta
(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por
onde ou como comeccedilar
Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem
numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de
longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os
homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho
onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens
chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu
siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc
todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias
estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na
beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram
ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava
Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele
[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os
homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei
quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu
pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele
nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele
(Grifos meus)
Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc
benzia muitas pessoas
Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou
muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele
era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem
para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal
do vizinho comer umas galinhas [Risos]
Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo
Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos
Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A
gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos
amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que
ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava
sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele
casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho
da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz
Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se
ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser
10
amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele
naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda
que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma
causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam
mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha
cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma
rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou
a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso
muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e
foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado
Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia
acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava
com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha
avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)
A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza
pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos
de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir
das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo
Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os
entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a
construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de
dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de
organizaccedilatildeo social e poliacutetica
Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e
afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as
memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura
tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria
no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias
As memoacuterias do Jongo em Bananal
A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por
homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima
a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de
bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de
candongueiro
Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre
jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados
pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E
o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar
11
danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato
entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores
Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma
uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos
terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da
aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros
disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo
O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo
da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto
entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem
que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa
conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine
dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em
Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes
O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns
pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)
Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de
pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio
imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura
PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o
Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4
Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde
ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que
em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens
cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo
Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do
Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical
negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela
identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de
praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001
166-167)
4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)
httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
8
Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais
passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a
estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade
Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas
assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados
qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a
seguir
Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como
Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio
desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de
Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as
memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores
O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio
eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []
E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor
antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na
hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela
acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele
chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha
nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai
natildeo deixou ele ensinar
Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que
seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento
das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja
eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com
os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu
trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo
Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento
da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa
que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da
interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele
tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a
reza proibida
Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de
inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas
vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com
a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou
correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute
9
verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai
tinha medo
O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e
frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo
era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber
mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo
Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta
(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por
onde ou como comeccedilar
Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem
numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de
longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os
homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho
onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens
chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu
siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc
todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias
estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na
beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram
ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava
Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele
[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os
homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei
quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu
pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele
nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele
(Grifos meus)
Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc
benzia muitas pessoas
Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou
muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele
era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem
para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal
do vizinho comer umas galinhas [Risos]
Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo
Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos
Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A
gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos
amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que
ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava
sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele
casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho
da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz
Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se
ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser
10
amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele
naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda
que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma
causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam
mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha
cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma
rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou
a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso
muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e
foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado
Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia
acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava
com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha
avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)
A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza
pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos
de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir
das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo
Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os
entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a
construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de
dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de
organizaccedilatildeo social e poliacutetica
Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e
afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as
memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura
tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria
no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias
As memoacuterias do Jongo em Bananal
A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por
homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima
a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de
bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de
candongueiro
Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre
jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados
pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E
o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar
11
danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato
entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores
Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma
uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos
terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da
aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros
disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo
O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo
da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto
entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem
que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa
conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine
dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em
Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes
O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns
pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)
Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de
pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio
imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura
PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o
Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4
Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde
ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que
em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens
cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo
Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do
Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical
negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela
identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de
praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001
166-167)
4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)
httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
9
verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai
tinha medo
O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e
frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo
era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber
mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo
Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta
(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por
onde ou como comeccedilar
Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem
numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de
longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os
homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho
onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens
chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu
siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc
todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias
estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na
beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram
ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava
Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele
[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os
homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei
quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu
pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele
nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele
(Grifos meus)
Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc
benzia muitas pessoas
Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou
muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele
era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem
para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal
do vizinho comer umas galinhas [Risos]
Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo
Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos
Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A
gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos
amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que
ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava
sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele
casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho
da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz
Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se
ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser
10
amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele
naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda
que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma
causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam
mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha
cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma
rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou
a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso
muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e
foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado
Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia
acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava
com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha
avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)
A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza
pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos
de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir
das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo
Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os
entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a
construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de
dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de
organizaccedilatildeo social e poliacutetica
Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e
afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as
memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura
tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria
no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias
As memoacuterias do Jongo em Bananal
A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por
homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima
a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de
bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de
candongueiro
Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre
jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados
pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E
o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar
11
danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato
entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores
Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma
uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos
terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da
aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros
disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo
O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo
da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto
entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem
que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa
conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine
dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em
Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes
O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns
pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)
Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de
pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio
imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura
PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o
Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4
Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde
ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que
em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens
cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo
Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do
Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical
negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela
identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de
praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001
166-167)
4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)
httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
10
amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele
naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda
que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma
causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam
mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha
cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma
rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou
a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso
muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e
foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado
Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia
acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava
com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha
avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)
A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza
pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos
de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir
das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo
Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os
entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a
construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de
dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de
organizaccedilatildeo social e poliacutetica
Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e
afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as
memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura
tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria
no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias
As memoacuterias do Jongo em Bananal
A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por
homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima
a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de
bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de
candongueiro
Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre
jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados
pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E
o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar
11
danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato
entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores
Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma
uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos
terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da
aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros
disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo
O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo
da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto
entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem
que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa
conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine
dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em
Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes
O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns
pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)
Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de
pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio
imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura
PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o
Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4
Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde
ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que
em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens
cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo
Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do
Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical
negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela
identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de
praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001
166-167)
4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)
httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
11
danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato
entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores
Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma
uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos
terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da
aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros
disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo
O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo
da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto
entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem
que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa
conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine
dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em
Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes
O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns
pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)
Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de
pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio
imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura
PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o
Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4
Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde
ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que
em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens
cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo
Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do
Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical
negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela
identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de
praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001
166-167)
4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)
httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
12
O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de
Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que
desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza
e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra
Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)
Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de
consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a
forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre
o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5
Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas
rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa
interlocutora canta um ponto
Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute
estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto
Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por
exemplo
Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo
Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]
E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando
outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens
era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando
Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando
das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A
entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como
algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se
recordar do segundo ponto
[cantando]
ldquoBate tambor grande
Repilica o candongueiro
Tambor grande eacute minha cama
O pequeno eacute meu travesseirordquo
Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela
arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto
5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como
o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
13
para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito
para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas
As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)
memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem
de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre
1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das
manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros
das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central
Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde
aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do
periacuteodo
Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres
tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim
Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia
pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu
natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque
tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas
noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito
O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de
subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos
espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas
tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados
do seacuteculo XIX
O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que
compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a
senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se
oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil
Imperial (1808 ndash 1889)
Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES
2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de
Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos
santos catoacutelicos como afirma dona Tereza
Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento
da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que
satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase
igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
14
uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra
significava uma coisardquo
Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este
autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de
contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no
momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave
prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)
Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos
variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute
o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no
momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu
pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)
[cantando]
No meio de tanto pau
Embauacuteba eacute coronel
[Damas] Embauacuteba eacute coronel7
Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que
quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou
dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica
social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um
ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica
Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia
Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no
dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade
desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes
Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de
ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e
da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo
que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas
das relaccedilotildees de poder
6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo
no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente
quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014
15
Referecircncias
ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2000
CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de
Janeiro Topbooks 1995
GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34
Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos
2001
GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo
Paulo Noovha Ameacuterica 2006
KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave
Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria
Geral da Aacutefrica) 2011
LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley
Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007
MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em
Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999
SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala
centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As
gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca
2007
STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense
1961
VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo
XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral
da Aacutefrica) 2011
VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um
ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP
Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014