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MEMÓRIAS DE DOROTEIA Marcus Vinicius Filgueira de Medeiros Personagens: Dorinha ................................. Cega musicista Romana ................................. Beata cozinheira Themis .................................. Tecelã costureira. Iara ......................................... Maria Molambo, entidade. Carpideiras ............................ Coro. Linhas gerais: Doroteia é a representação de carpideiras viúvas, cada uma com suas dores, amarguras, reclamações. No final choram a morte de cada uma. São irmãs de tragédia, filhas da mesma dor. Encantadas, desencantadas com a dureza da vida, unidas pelo mesmo laço, amantes do mesmo homem embora tudo seja uma grande farsa, um grande ensaio da morte. Cada uma num surto como se estivessem encenando o enterro delas. A música é a composição da marcha fúnebre do enterro das três. A costureira une as partes da mortalha de todas e a outra faz a comida que quer ver servida no dia do velório. Uma reflexão acerca da condição da mulher que ama, se entrega, envelhece e diante da vida percebe que somente a lembrança de tempos em tempos que a torna viva. Dorinha é a cega musicista, Romana a beata cozinheira e Themis é a tecelã costureira. Figurino todas de roupas pretas, luto fechado, na cabeça lenço, roupas iguais.

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MEMÓRIAS DE DOROTEIA

Marcus Vinicius Filgueira de Medeiros

Personagens:

Dorinha ................................. Cega musicista

Romana ................................. Beata cozinheira

Themis .................................. Tecelã costureira.

Iara ......................................... Maria Molambo, entidade.

Carpideiras ............................ Coro.

Linhas gerais:

Doroteia é a representação de carpideiras viúvas, cada uma com suas dores, amarguras,

reclamações. No final choram a morte de cada uma. São irmãs de tragédia, filhas da

mesma dor. Encantadas, desencantadas com a dureza da vida, unidas pelo mesmo laço,

amantes do mesmo homem embora tudo seja uma grande farsa, um grande ensaio da

morte. Cada uma num surto como se estivessem encenando o enterro delas. A música é

a composição da marcha fúnebre do enterro das três. A costureira une as partes da

mortalha de todas e a outra faz a comida que quer ver servida no dia do velório. Uma

reflexão acerca da condição da mulher que ama, se entrega, envelhece e diante da vida

percebe que somente a lembrança de tempos em tempos que a torna viva. Dorinha é a

cega musicista, Romana a beata cozinheira e Themis é a tecelã costureira.

Figurino – todas de roupas pretas, luto fechado, na cabeça lenço, roupas iguais.

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MEMÓRIAS DE DOROTEIA

Marcus Vinicius Filgueira de Medeiros

I ato

CENÁRIO: (um quadro de São Jorge, um quadro de Iemanjá. Uma imagem de santa

Barbara. Um caixão, bancos, velas de tamanhos variados, uma cadeira de balanço, um

fogão à lenha, um violino ou rabeca, coro de carpideiras).

CENA INICIAL:

A beata cantando excelência e acendendo velas, a musicista tocando no violino, a

tecelã enfeitando o caixão com flores. Em seguida, a que está acendendo vela pega uma

laranja, corta em quatro (4) pedaços e a coloca sobre as mãos do morto. A que estava

colocando as flores no caixão acende um turíbulo com incenso e começa a incensar ao

redor do caixão. A beata vai descobrir a santa Bárbara enquanto a tecelã deixa o

incenso debaixo do caixão e passa a arrumar as coroas de flores. A musicista puxa uma

ladainha no mesmo momento que a beata e a tecelã vestem o véu, pegam os terços e se

posicionam como se estivessem em oração. Cada uma vai, lentamente, assumindo sua

posição. A costureira senta-se na cadeira de balanço, religiosa senta-se em um

tamborete e a musicista permanece no mesmo lugar, sentada num banco grande de

madeira. SILÊNCIO TOTAL. Depois de alguns minutos, a beata pega um pilão de

madeira e começa a pila gradativamente. A costureira passa a se balançar na cadeira

que faz imenso barulho e a musicista a bater com o pé...

Cena 1

DORINHA: (largando o violino em cima do banco) Não sei se acordei ou se permaneço

dormindo. Não sei se o relógio parou ou se o tempo nunca passou. Não sei se o dia é dia

ou se a noite é noite porque na verdade desde que comecei a pensar que já me disseram

que era assim e pronto, nunca na verdade quis correr o risco de ir à procura da verdade e

faço verdade, as verdades dos outros... Não sei se é tempo de sorrir ou de chorar, se o

gás acabou ou se nunca existiu. Não sei nem se as coisas saíram do lugar ou se sou eu

que nunca estive aqui, não sei se é cedo ou tarde ou o que é cedo ou tarde ou se já vou

cedo ou tarde ou se o cedo é tarde ou se o tarde é cedo... Sei que a noite chegou em mim

e uma escuridão me apavora, seguida de tempestade e hoje, logo hoje que já cumpri

todas as obrigações: Troquei a água dos vasos das rosas, colhi rosas novas, as rosas da

roseira do oitão da casa, na esquerda, quina, logo ali onde o sol começa a se por.

Amarelas. Somente. Colhi as rosas amarelas, da roseira do quintal, pus no vaso com

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água nova e nem sei ao certo o que é certo ou errado, verdade ou mentira, se durmo ou

se já estou acordada... Tenho sede em saber, necessidade de conhecer a mim e pego

carona nas asas da borboleta, veja, vou até o infinito e me delicio com a música do

universo. Um copo de água vai, um pouco de água que mate essa sede. Ao menos molhe

a ponta do pano e humedeça os meus beiços rachados. A saliva secou e o gosto de seca

está em mim, de terra seca remoendo em minha língua, misturado com o gosto de rosas

e daqui a pouco nem posso mais tirar a roupa do varal, pus para quarar por insistência,

apenas para tirar o cheiro de barata e de coisa guardada assim como também tenho

cheiro de barata e de coisa guardada. Só queria aproveitar o dia de sol, o sabão e toda a

espuma produzida. Lavei no cacete e dei cacetada em minha dor: pegue danada, pegue,

pegue para aprender... Cada peça do meu enxoval guardado há tanto tempo, e o bordado

continua o mesmo, feito por mim, pelas minhas mãos. Agora não tem mais sentido, não

há mais sentido, não quero que tenha nem seja herança para ninguém. Herança tem

malícia, é gananciosa e me lembro bem do dia de sua morte. Era noite, noite de natal, na

noite do nascimento do menino que Deus o levou para longe de mim e nunca mais tive

motivo de celebrar tal sereno. Todos se dividiram porque cada um queria uma parte na

botija; meu corpo está morno, alguém tem um cachete? Se ao menos tivesse colhido

algumas folhas da laranjeira, agora poderia fazer um chá, mas fiz música e deixei

guardada aqui (pega na cabeça). É segredo e não posso contar como é segredo toda

existência e as cores de minha dor, mas se ao menos conseguisse lembrar o meu nome,

como me chamavam, mas não, a cabeça já não serve mais pra nada, está fraca, apenas

uma névoa de tempo e tempo... Desculpa, saiu sem querer. Saiu assim, na cacetada, na

jogada da água com a mão e entre uma esfregada e o suor que escorria no meu rosto,

fiquei de braços mortos, cansados, brincava de bolhas de sabão e nem pude brincar com

o meu violino... Peidaram. Alguém peidou, estou sentindo o aroma e nem escuto o

cachorro, afinal de contas, onde tem cachorro, adulto não libera flatulências, não é feliz,

nem pode dizer do prazer que liberou pelo rabo. Também não tenho o olfato tão sensível

como meu ouvido. Não sei se é odor de fígado ou se o ovo estava goro, mas que fede,

fede e arde minha narina. Caso tivesse ouvido o som, poderia dizer se foi agudo ou

grave, afinado ou saiu por opressão. É feio, proibido. (dirige-se ao violino e começa a

ensaiar algumas notas) Está aqui minha música, só minha, a saga de uma existência.

Não digo, não vou dar a ninguém. Será a minha obra prima. Essa é especial porque me

revela de outra forma, por outro lado que não me quero ser vista, tateada, enrugada,

marcada pelo tempo que passa, que passou e cansei a vista e nem pude levar o comer

aos porcos; enquanto a minha carne estiver morna, ainda me pertence, mas depois que

estiver tudo frio, pronto, perco o direito, perco minha identidade e quem quiser que

tome de conta, me mutile, me rasgue, deixe-me estendida, quarando, carcomida pelos

vermes... Era uma vez e eu não me lembro. Era outra vez e eu não estava lá. Eram tantas

às vezes e em nenhuma descobri o que estava por trás do seu olhar. Era a vez de sempre

e sempre existia a distância e eu tonta com o seu cheiro me embriagava a vagar pelo

nada. Mergulhada. Absorta. Presa a uma realidade que era só minha, mas existia a

gaivota, existia a devoção, existia o céu e toda a dimensão do infinito. Também existia a

dureza da vida e toda uma angústia latifundiária a me oprimir. Sorrir sem vontade,

aceitar ingratidão, ser cega sem ser, não ser nada por falta de opção e as marcas no rosto

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me denunciando, e o desgosto no peito a me enforcar (chora, chora copiosamente como

se estivesse a lamentar). Meus braços não se aguentam erguidos, quase não consigo

mais os acordes perfeito e feito mosca me vejo corcunda, não aguento mais o peso.

Meu grito. Minha paz. (ríspida) É preciso a higiene diária, todos os dias varrer a casa e

não por a poeira para debaixo do tapete. Não podemos acumular lixo nos depósitos nem

depositar lixo em lugares incabíveis, desnecessários... Pôr água nas plantas e também

ser planta, exalar cheiro, ter espinhos, raiz, ser sombra; assombrar-se a todo instante e

fazer dos instantes momentos de euforia... A higiene diária perpassa em não roer as

unhas, pentear os cabelos e saber a essência do sabonete que lhe percorre o corpo, ser

corpo e estar no corpo presente como passarinho que alça voo a cada momento que se

sente acuado. Acuado não se pode ter receio de buscar abrigo, ser abrigado em lugar

limpo e se contaminar com as vivências, experiências, convivências... Fechar os olhos e

se atirar no escuro incerto de cada dia, ser dia claro. Limpo. Higienizado. Sem poeira,

sem pó, sem eira, sem ira, semiárido de si na faxina cotidiana... É preciso, muito precisa

a higiene diária. A existência e você obscuros como as notas musicais que nunca pude

reproduzir, nunca pude, ora, não sei, não tive tempo de parar e pensar e saber e enfim,

depois de amanhã é domingo, dia de pegar a galinha e torcê-la pelo pescoço até sangrar,

esquentar a água e depená-la, pena por pena e não ter pena de si. Almoçá-la

acompanhada de pirão e sentir-se também depenada, sangrenta, cabidela de si mesma...

Não sei se digo ou me engasgo. Não sei se relato ou guardo para mim. A condição de

não saber é cômoda e eu me acho perdida nesse estado de desconhecido. Oráculo. Déjà

vu (faz som, uma melodia de tango). Solidão. Caça de si. Esquadros e tantos outros

laços de nós cegos, eca, engoli uma mosca. Puta que pariu, puta que pariu. E se ela tiver

pousado na bosta do porco aqui ao lado da casa? Vinda de lá fazer morada eterna em

mim. Mosca. Morta em mim. Agora serei túmulo de uma coisa inútil (riso

descontrolado) já não bastava ter engolido um peido, agora uma mosca cheia de bosta

de porco? Privada propriedade (ríspida) Não digo, pronto, minha boca é um túmulo.

Meu corpo é um túmulo. Não sei se despertei ou se permaneço caída no sono. Não sei

se o registrador de tempo acuou ou se a estação nunca se adiantou (canta canção de

ninar). Não sei se o dia é noite ou se a noite é dia porque já me disseram que era assim e

pronto, nunca quis correr o risco como sempre foi. Não há necesidade de exposição.

Pertenço ao tempo findado e enquanto o dado é lançado eu me consumo em

interrogações. Gosto da nota dó, de toda escala e odeio explicação. É o meu dia e esse é

o meu presente, sempre soube que não iria ficar para semente, azia, nossa, estou em

brasa, a visão embaçada... Chegaria o dia de descansar em paz e na paz repouso eterno,

a grande viagem como é uma viagem estar lúcida e se fazer partida, defunta de si rumo

à morada eterna. Quem pôs algodão no meu nariz? Vou agora, nesse momento,

embriagar a mim mesma calculando respostas que não chegam a ter resultados

concretos, como nunca tive, nunca tive resposta nem direito de perguntar. Tida como

um nada, um zero a esquerda, pronta para servir. E nem precisava de palavras enfeitadas

para marcar qualquer ato, preciso, pois, só preciso mesmo de descanso e um banho frio

de água de tanque, ao menos lavar as mãos com água fria e cheiro de rosas, posso?

(dirige-se a um lava pé: põe água na bacia, passa no pescoço, se vê em um espelho

quebrado posto a parede. Reflexiva, examina os dentes e busca ver dentro dos buracos

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do nariz, dá a língua e sai a resmungar) – tudo parece tão claro, tão fácil, sei que

outrora não existia despertador, a gente acordava com o canto do galo. Do poleiro, era

ele quem dava a ordem: “hora de levantar”, de abrir portas e janelas, cortar a lenha e

acender o fogão que queimava todo o dia. O canto do galo indicava que naquela hora o

dia era iniciado. Ainda escuro, depois de debulhar os santos ofícios, ajoelhada nos pés

do oratório, levantava para fazer o pão de milho. Pegava o milho seco, punha no

moinho e moía, depois molhava um pano limpinho, pegava um prato de ágata, molhava

um pano, punha a massa mexida, e esperava o pão de milho ficar pronto. Os homens

madrugavam nos currais. Estavam lá espremendo com força bruta as tetas das vacas até

expelir a última gota de leite. Faziam aquilo tão cautelosamente que chegava a ser

prazeroso, mordiam a língua, reviravam os olhos e davam-lhe palmadas no traseiro, no

colchão macio das vacas (alisa os peitos, cospe). Pegavam as vacas pelo rabo,

amarravam as vacas pelas pernas e o serviço era feito nas vacas, vacas, vacas... Era

assim, o tratamento com as vacas de dia, o tratamento com a mulher, à noite, na cama.

Era domada, derrubada no abate, presa entre as pernas do macho que me possuía,

possuía a mim enquanto resfolegava um bafo quente em meus ouvidos e gemidos

animalescos e eu no silêncio esperando o tempo duradouro passar como um pedregulho.

Era assim, continuava os afazeres, ia aos terreiros despejar o milho para as galinhas

cacarejantes, apanhava os ovos, abastecia os ninhos das galinhas chocas, e chamava

cada uma pelo nome. Naquele tempo cada galinha tinha um nome próprio, só delas,

como tinha nome também, as vacas, os cachorros, os jumentos e as éguas. Enxaguava as

roupas ensaboadas do dia passado amaciadas no cacete e fervidas no fogão à brasa; ao

estendê-las nos varais ou cercas coloriam todo o terreiro e deixavam exalar o cheiro do

anil... Batia a nata, fritava os ovos e esperava a vinda dos homens com o leite... Meu

macho contava as novilhas, as ovelhas, os porcos e ia preparar as rações de cada uma e

todas eram ferradas com as inicias e nós carregávamos os sobrenomes deles. (reflexiva)

Você comia sem mastigar e deixava a comida escorrer pelo canto da boca. Nojo. Nojo.

Ecaaa... (ríspida) Naquele tempo palavra valia mais que dinheiro e os casamentos eram

para a vida toda. Está posta a mesa do café e odeio geleia (vai até o caixão e pega um

pedaço da laranja e come sem mastigar)... Não sei se pisco o olho ou se é um cisco no

olho. Corre água do meu olho e tenho medo de me afogar com a lágrima insistente e

tantas lembranças amargas. Cismo com minha imagem refletida no espelho da parede.

Quem sou? O que sou? Por que tenho que ser algo? Não sei, essa é a minha verdade.

Talvez porque a construí assim e me acomodei assim ser. Desespero? Depressão? Falta

de aptidão? Não, essa é a única certeza que tenho, uma fome voraz de... Mas a fome é

abstrata, necessita de... Deixa pra lá! Vou delicia-me com essa deliciosa melodia, talvez

na primeira degustada eu me encontre com mais certeza de, as velas, preciso acender as

velas. A porta está fechada e nem sei como abri-la. Frio. Sinto frio. Vou me aprontar,

hora de fazer oração (toca)

Cena 2

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ROMANA: (limpa as mãos sujas de milho na roupa, resmunga com a boca e puxa um

bendito) Ó São Jorge, meu Santo Guerreiro e protetor, invencível na fé em Deus, que

por ele sacrificou-se, traga em vosso rosto a esperança e abre os meus caminhos. Com

sua couraça, sua espada e seu escudo, que representam a fé, a esperança e a caridade, eu

andarei vestida, para que meus inimigos tendo pés não me alcancem, tendo mãos não

me peguem, tendo olhos não me enxerguem e nem pensamentos possam ter, para me

fazerem mal. Armas de fogo ao meu corpo não alcançarão, facas se quebrarão sem ao

meu corpo chegar, cordas e correntes se arrebentarão sem o meu corpo tocar. Ó

Glorioso nobre cavaleiro da cruz vermelha, vós que com a sua lança em punho

derrotaste o dragão do mal, derrote também todos os problemas que por ora estou

passando. Ó glorioso São Jorge, em nome de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo

estendei-me seu escudo e as suas poderosas armas, defendendo-me com a vossa força e

grandeza dos meus inimigos carnais e espirituais. Ó Glorioso São Jorge, ajudai-me a

superar todo o desânimo e a alcançar a graça que agora vos peço (faz um pedido). Ó

Glorioso são Jorge, neste momento tão difícil da minha vida eu te suplico para que o

meu pedido seja atendido e que com a sua espada, a sua força e o seu poder de defesa eu

possa cortar todo o mal que se encontra em meu caminho, amém... (reflexiva,

caminhando ao redor do caixão, tirando um vaso de flores de são Jorge e aguando as

flores do caixão) Estou triste, preciso ato em mim, assim como preciso dizer isso

porque senão, não conseguirei mais erguer a cabeça. Se não for assim, como poderá ser?

Uma tristeza tão grande que me aperta o peito e me faz sentir os pulmões querendo sair

pela boca. Daí da moldura é possível sair alguma resposta? Porque você sempre me

resposta em silêncio e o calo da língua cresce e calo porque não ouço a voz que sai de

você (caminha e senta ao lado da musicista). Triste. Não pense que por você, não perco

meu tempo. Triste por mim. A tristeza está em mim enraizada desde que me lembro de

quando passei a existir e choro como o choro de quem corta cebola. Lágrimas amargas.

Ardidas. Choro para espantar a dor e a solidão que se apoderam de mim em plenas

primeiras horas da madrugada. É madrugada e madruga em mim o desejo latente de

glória (vai ao relógio e dá corda)... Está nublado e nem sei ao certo qual a cor do céu.

Não cantou nenhum galo e cresce o galo dentro de mim, de dor, de desespero... já já é

hora de moer o milho e eu cá a debulhar esse rosário infinito de mágoas. Oração

sangrenta, míope, de desespero de falta de amor por mim mesma, de desgosto, de pintar

os olhos com carvão e se sentir persona suburbana de carnavais de outros tempos.

Acendo uma chama para que ascenda na luz a divina chama da dívida eterna e na vida

eterna eu possa pagar a minha culpa máxima culpa, estado de culpa a me crucificar em

vida (põe o véu, diante do caixão). Viva a Deus e todos os eus da minha existência.

Viva o caos e todos os casos isolados de sentimentos inexplicáveis como esse agora, de

repente um frio me invade a espinha e arrepia até a alma, cruzo os dedos e dedilho

baixinha a oração de santa Bárbara. Triste, simplesmente triste porque a liberdade é

isso, estado de descontentamento. Ninguém é livre em si sem o outro, embora o outro

não reconheça isso em você (canta um bendito) Vem cá, vem cá, dá cá um abraço, vem

que eu te dou abraços, eu afrouxo os laços, Maria cega, eu tiro os laços, os laços; pousa

aqui em meu dedo e pegue safada, pegue ( dá o dedo ao tempo e depois o segura com a

outra mão acalentando) Alçar voos, colorir o céu do seu mundo com as cores ímpares.

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Tenho de parar, pensar em mim, repaginar a vida de outra forma. Sem ninguém,

somente comigo e a solidão me faz invejar as asas da borboleta a voar em círculos de

ida e volta, de ida sem volta, de voltar sem ter ido ao espaço de mim mesma.

(desespero) Roo as unhas da mão esquerda porque com a direita contemplo a aliança e

tento lembrar-me do dia em que te conheci e da cor de sua roupa. Não sei se era cinza

ou se fazia cinza em meus olhos. Só sei que era madrugada, sim era madrugada.

Madrugada, desejo de tomar caldo da caridade e nenhuma cebola no cesto. A faca

armada sobre a pia e a tábua da carne. Fome. Cortar a verdura que tem. Desisto (dirige-

se a um lava pé: põe água na bacia, passa no pescoço, se vê em um espelho quebrado

posto a parede. Reflexiva, examina os dentes e busca ver dentro dos buracos do nariz,

dá a língua e sai a resmungar). Eu odeio a mim, odeio-me e quero ódio por mim

sempre porque ninguém há de chorar por mim, a minha cova não há de ser cavada

porque todos sumiram, sumiram todos e odeio a mim por não me atrever a dizer mais

nada, nada por completo. Estou encharcada de meias verdades, de não se lembrar das

coisas ditas ou o que quero dizer, agora, por exemplo, me sinto sufocada, a porta

fechada e meu corpo, por onde anda meu corpo (para e observa as mãos)? (penteando

os longos cabelos, passando o óleo de coco e resmungando) Aos poucos está esfriando

minha carne, já não estou mais nem morna, fria, quase fria, suando levemente aqui por

detrás das orelhas e essa orelhas, rugas, marcas de um tempo passado... Alguém pode

ver meus pulsos, não sinto minha pulsação, talvez um chá de alho, talvez, nossa,

palpitação aqui, bem aqui... Quando está me dando uma coisa e percebo que é uma

coisa boa, logo recebo. Agora, quando está me dando uma coisa e sinto que não é uma

coisa boa, é coisa ruim, me dando logo vontade de peidar (olhando para são Jorge) Está

rindo de que despacho da raiz entroncada, cururu de cemitério, couro de jia morta no

calor da lamparina, me diga, diga! Livrai-me santa Bárbara dessas tormentas e miragens

do inimigo, do fogo do inferno de inimigos que vivem tramando contra mim, essa

legião de seres infernais que não me querem para o bem e nem meu bem... Puxe daqui

mal auguro, estopou balaio, ranço da malagueta, perna fina de uma fica... Me respeite,

me respeite que sou uma mulher idosa, já tenho para mais de meio século de vida,

devota de Deus, metade do cabelo já branco porque a outra metade eu já perdi de tanto

lutar com gente ruim. Se olhe no espelho, pau de sebo quarado na seca de trinta, cara de

maracujá, infeliz, parece o cão chupando manga verde em cima de uma pedra de fogo

no pingo do mei dia e fica aí com essa boca encangotada sem nenhum dente, miserável.

Sou uma mulher de muito peito, muito peito mesmo (passa a alisá-los), embora tenha

somente um, porque o outro já se foi de uma cirurgia que fiz, às pressas. Triste cirurgia

das mãos de um doutor zarolho, isso mesmo, um olho no gato e o outro na puta que o

pariu, isso sim (pega um ramo verde e se faz que está encomendando o corpo). A dor

era debaixo do peito, nesse cantinho aqui, olhe. Os exames todos acusaram vesícula, o

médico arrancou meu peito, pode? Se bem que era véspera de natal, eu até entendi, mas

não entendi muito bem não, até hoje sinto a dor da tal vesícula e a ausência do meu

peito. Amanhã é sábado, o sétimo dia da semana, o dia do descanso e tem dia que não

me aguento de tanta dor, só você sentindo para saber o tanto que dói. Agora, operar de

novo, Deus me defenda, vai que ele arranque outra parte, o outro peito, uma parte mais

debaixo, ave-maria três vezes, ave-maria três vezes, ave-maria três vezes... Não gosto

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nem de pensar, tenho muito peito pra encarar qualquer situação. Não precisa nem ser pai

de santo para perceber essas coisas. Quando a coisa é ruim a gente logo sente no ar,

feito catinga de peido, num sabe, aquele nó que vai apertando o peito, o escurecimento

de vista, a suadeira das mãos, um fogo debaixo das pernas... Eu já sei que é uma notícia

ruim. Se eu tiver com um garfo na mão e cair, já sei que é algo com meu homem; caso

seja uma colher, penso logo nas minhas irmãs e se for uma faca, já sei que é traição, das

brabas!!!Vou diretinho pro meu oratório, acendo minhas velhas e rezo pra todas as

almas do purgatório para me livrar de todo mal, amém. A parte ruim da história é ter

que me ajoelhar para a penitência ser maior e a prece ser logo atendida. Sabe como é né,

muitos pedidos, os santos muito ocupados, pego o atalho, peço logo a todas as almas do

purgatório, mas como ia dizendo, a hora ruim da coisa é ficar de joelho. Olhe, quando

tenho que me levantar é dor, é dor que parece que o mundo vai se acabar. O tal médico

diz que é um tal de ácido úrico alterado, mandou que eu parasse de comer carne na

diária. Eu, uma senhora idosa, banguela? É, porque esses dentes aqui foi uma chapa que

ganhei de um vizinho meu que era candidato a qualquer coisa. Ele tinha uma bacia

cheinha lá no consultório de prótese na casa dele, cheguei lá e olhe, fui experimentando

de uma a uma até que essa deu certinho em mim. (dirige-se a São Jorge e encontra um

cesto de macaxeira) Nossa, macaxeira, vou pegar. Pesada, não? Ai, ai, quando vejo uma

macaxeira assim lembro-me do tempo que era feliz lá na roça, era macaxeira de dia e de

noite, mesmo quando estava indisposta e não queria, era obrigada a empurrar goela

adentro a macaxeira do seu Zé dos burros, olhe que ele era conhecido como o homem

da melhor e da maior macaxeira do lugarejo que eu morava. Olhe o tamanho e a

grossura, cresci a base de macaxeira. Casei, tive que abandonar o campo, vim morar

aqui na cidade, troquei a macaxeira do seu Zé dos burros por outros alimentos e veja só

no que deu, vivo com problemas de saúde. Madrugada, desejo de tomar caldo da

caridade e nenhuma cebola no cesto. A faca armada sobre a pia e a tábua da carne.

Fome. Cortar a verdura que tem. Desisto. Não quero mais, depois ter de escovar os

dentes e dormir de barriga para o alto. Melhor não, a chapa já está escovada e não tenho

coragem de levantar. Pelo buraco na telha vejo a escuridão e várias imagens a estarem

em mim. Imagens. Somente. Cruzo os dedos e me entrego a orações. Vou dizendo cada

uma que me vem e vou aumentando a fome ao mesmo tempo em que percebo que a

rede balança. Onde estou? Na rede? E quem me pôs aqui? Outro dia lembrei-me de

jantar fígado e adormecer lá fora, na cadeira de sempre antes de terminar metade das

ave-marias. Aqui. Como? Onde? Ninguém diz nada e vejo a porta fechada. Espere.

Naquele dia eu me lembro, era fígado, a janta, jantei e me pus a tomar vento. Precisei de

chá de boldo e entre arrotos ainda tive tempo de acender cachimbo, mas o peido não foi

meu, não foi, disso tenho certeza, jamais negaria uma coisa que faço, por mais podre

que ela seja. Se o ato é meu, tenho que assumir. Foi assim que me ensinaram e assim

que devo agir para sempre, até na eternidade. Sinto o cheiro do cuscuz, já está pronto,

nossa, nem me lembro de ter moído o milho, de molhar o pano, fazer o fogo, vê-lo em

brasa, não me lembro, nem de ter imagem a se refletir no espelho, só sinto uma angústia

a subir e descer cá dentro e da vontade de tomar caldo da caridade, mas não, meus

movimentos me impedem, meus pés estão amarrados, não encontro forças e uma

ladainha da mãe dos aflitos rangem entre meus dentes. Não posso vomitar, é

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desperdício, não posso, a condição de mim é não ter condição ou nem ser eu mesma. Eu

me lembro de e ninguém me faz esquecer. À noite. O escuro está escuro lá fora embora

esteja claro em meu coração e do brilho dos meus olhos, nas lembranças das noites

quentes de junho, eu sei, eu sinto o Fim do mês junino. Fim das cores, fim dos balões.

Fim da madeira queimada nas fogueiras. Cinza! Cinza! Cinza o meu coração porque

diante de tantas simpatias tudo continua fora do lugar. Não vejo a melodia, calou-se a

canção e nas brincadeiras de roda nossas mãos não se encontraram, não entramos na

dança e ficamos a ver, cada um na sua, os rojões explodirem sozinhos no espaço a

esperança calada dos outros. A zabumba agora já não bate nem acertou antes as

pancadas de dentro da gente, chorou desafinada a sanfona nos movimentos estilizados

dos brincantes das quadrilhas e na quadrilha de gato e rato e nenhuma caça. Dou graça à

vida e sem graça me vejo a refletir o que passou. Dorme o mês passado, acorda o mês

presente e os tempos não se conjugam mais como outrora. O tempo agora é o agora,

hora de varrer o terreno e guardar alguns caroços de milho sobrado para o plantio do

ano vindouro (abre uma garrafa de vinho, volta o tango)... Foi assim, jantei fígado,

adormeci e me trouxeram até aqui, mas quem, alguém? Talvez esteja à receita escrita e

guardada no lugar de sempre. Sempre acontece isso comigo, esquecimento, esqueço

tudo, até que tenho nome e nunca saio do lugar, apenas uma simpatia que fiz na noite de

São João, coisa besta e despachei na encruzilhada, pedido feito a São João – Xangô e a

Santa Bárbara – Iasãn. Amarrei seu nome em fita vermelha lambuzado com mel e

joguei as formigas para que seu corpo pudesse servir de alimento (risos) A receita, ora,

do caldo da caridade, caridade, isso, caridade. Fico rodando que nem os bois de puxar

carroça, rodo, rodo e nunca saio do lugar. Um oco no estômago e ainda me pego a jogar

conversa fora. O caldo da caridade, por a água no fogo para ferver, contar o coentro, o

tomate e a cebola me faz chorar, arde em meus olhos, dói em mim. Quebrar os ovos e

deixá-los espalhados pela água borbulhando em fervura. São os meus olhos, o meu

medo, o sono que chegou ou é mesmo a imagem de Santa Bárbara que criou vida?

Cena 3

IARA: (surgi por detrás da imagem, como assombração, entidade) Sou moça-menina

de saia rodada estampada florida no pé da canela com enfeites de fitas de santos

sagrados do altar da jurema. Molambo de pano solto em fiapos de seda ou chita

rasgados a faca com nós por costura. Na altura dos ombros apenas meu busto, peitos de

fora, amostra da beleza total do congo bendito. Toda riscada pelas mãos do criador, sem

amarrotas ou enxovalhas. Solta na vida, na rua, nas esquinas encruzilhadas. Boca

pintada de batom carmim, encarnado da paixão e nas orelhas balangandãs grandes,

coloridos, combinados com as guias e pulseiras em estardalhaços musicais. Na cabeça

ornamento de luxo no couro raspado por obrigação. Pura fama de mulata assanhada para

os prazeres da carne, oblação. Meu corpo arde vulcão e na boca de grandes lábios o

gosto da carne do negro suado chegado em instantes, necessitado de atenção. Não diz o

que quer, mas me olha por baixo e eu de cima, desço do salto e me solto e vou ao

encontro desse desejo dengoso que me prende em seus braços e me faz solidão. Entre as

pernas do negro sua chave que fecha, peito que enche as mãos calejadas no cabo da

enxada, cana-de-açúcar chupada, sou bagaço espremido a força do desejo ardente na

respiração acelerada. Atada pelo cio, me faço andorinha para ser depenada. Volúpia

gritante do macho em pulsação, sou toda dengosa nos braços daquele que me quer

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saciar... Rodo a baiana em ponta de pé bailando ao vento como folha seca caída da

árvore frondosa do quintal da casa grande na instância. Aos olhos da sinhá, sou cobra

criada em botija, o despacho encontrado no pé da lagoa onde a água não corre, risco

feito no chão, sou a canção do desejo do coronel na cama com suas senhoras. A falta de

respeito, sou o efeito da cana, embriagues. Malandra criada do lado de dentro do balcão

da venda, vendo o tempo passar e ficar marcado na palma da mão. Vendo a lembrança a

preço de banana e faço escorregar na casca todos aqueles que se atreverem cruzar meu

caminho sem tirar o chapéu, ofertar moedas ou molhar meus beiços de beijos doces.

Sarava para mim e para todas as moças faceiras da coroa da Oxum, dou risadas

escancaradas em cor de ouro de um lado a outro a mostrar os dentes brancos cuidados e

o resto do corpo em movimentos gingados salientes, intrépidos, impávidos de lado, de

banda, do bando de cima. Sou sina, garapa da cana, morena, mulata do congo... Princesa

das camas mornas, fogo de brasa, carvão. Atirada entre as pernas dos senhores de cor de

talco, palco efetivo de grandes espetáculos. Sou rastro, fome, sede e dor. Fruto proibido,

sou libido, instinto, desejo sexual. Consagrada pelos pés e pelas mãos, rodo, chamo,

corro e paro. Nasci da fusão do amor existente entre a volúpia da carne e a embriagues

do espírito, por aí, em dia de noite de lua cheia, nas calçadas das madames e no leito do

choro me fiz batizada as margens da vida, nas linhas traçadas. Ganhei enxoval

encharcado, roto, de panos usados e esquecidos dentro dos baús carcomidos de bolor

pelo tempo decorrido. Herdei apelido e agora tenho nome de peso, Molambo, aquela

que diz, promete e cumpre. Venho de cima das nuvens em rodopios, arrepio na chegada

e nas quebradas eu gingo porque cabaré que eu não mando, eu mando fechar. As portas

se abrem, as janelas se escancaram, os copos balançam e deixo rolar em minha presença

o cheiro da quenga dentro do seu ganzá. Saúdo seu Zé Pretinho, rainha Ginga e as

minhas aias pequenas. Sou quenga de coco lascada ao meio, secada ao sol do meio-dia,

hora da ave de rapina, sou sina, cismada, mato queimado pelo sol, a brasa aflita

saltitante, sou a errante flecha que acerta o alvo e sobre o meu cavalo eu monto e açoito,

sou coice pela estrada que cruza ligeiro a macumba estendida, quarada nas badaladas

dos ponteiros amancebados. Tira de pano em nó cego molhado, quarado de dia e de

noite, sou açoite no tronco e dou trono, dou o troco a quem por mim se atrever a passar.

Piso bem forte no chão que me segura e bato palma na roda de gira que me quer em

trabalho. Sou astro reluzente, lua minguante hemorrágica, aquela a quem se pede e faz

figa, fecha os olhos e mentaliza. Despacho de bebida doce, sou a voz algoz da açucena,

menina pequena mimada, Maria Molambo da encruzilhada das almas desencontradas, a

pluma do rabo do pavão em disparada, a que ata os pés e as mãos em cruz e pela via da

veia latente canta: _ Sou a dama de ouro/do vale da sombra/ saia rodada de renda/ a

fenda que se encrava/ o cravo bordado em molambo/ sou o tecido de teia/ dos fios de

ouro da cigana/ me veste de chita/ em farrapos de tiras/ espalha em mim o cheiro/ das

flores dos campos colhidos/ dê cá uma bebida, moça/ faça as honras e toque/ meu canto

é ouvido em todo lugar, porque cabaré que eu não mando, dou ordem e mando fechar...

Sarava todas as moças, exus e juremas catimbozeando neste lugar. Pais, mães e cavalos

assentados, dois passos para trás, três passos para a direita, três passos para a esquerda e

sete passos para frente para poder caminhar do lado da sombra da luz. Veio me ver esse

menino? Chegue mais perto, ande, saúde a moça em aperto de mão. Hum que mão

graúda, possante, prestigiosa. Utensílio de cabra macho afeiçoado ao trabalho de

arrancar touco e capinar mato. Mate a sede da gazela em prensa de mão pela mão em

ajuda e jure a mim devoção. Aperte a mão da dama da noite e afeiçoe também a ela em

apertos densos, estonteantes. Vá até o chão e toque as canelas que sambam e beije os

pés desta que baila solta, leve e livre no ar deste terreiro. Saúde a moça, ligeiro, acenda

um troço, preciso baforar... Baforar para que se abram os caminhos trancados do lado de

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cá... Erga os braços em músculos rígidos, seu moço, isso, erga os braços para o alto com

a finalidade de descruzar o que está tão obscuro, turvo, sem claridade e sombrio do lado

desta vida que te faz ficar do outro lado da ponte sem querer atravessar e na tesoura do

destino eis moço temido pelas bandas de cá. Guerreiro valente de sangue rubro a correr

nessas veias das velhas correntes de destemidos orixás. Na fumaça do meu cachimbo eu

vejo que estás com o coração partido por causa da moça cravo e canela da rua de trás

que não te quer mais para chafurdar. Vejo a dor e o desespero deste cabra da peste

suado, homem de coração manso e arretado, pulador de cerca e conhecido amasiado de

camas alheias e corpos desalentados. Vejo uma sombra em volta e no sinal da cruz eu

renego toda a esquerda que se liberta e impede dos mansos trabalharem. Vou pegá-la

pelos cabelos e trazê-la de volta para os braços do amigo diante do meu altar. A dama

de copa de coração embrutecido, coberto por tecido que quero em molambo para a

minha saia aumentar. Vou trazê-la em poucas luas, cantando loas de se acasalar e na

oferenda da prenda um corte de animal gordo há de concretizar. Um banho de rosas

amarelas de sol, isso, colha os girassóis das manhãs e despeje em água fervida para o

moço se banhar. Se assente em pensamentos positivos, cante para a moça que a moça

vem e há de te ajudar. Em troca traga água que arde quando entra na boca, fumo de rolo

para poder baforar... Alforria essas mãos, bebe no meu caneco esse treco, bebe, danado,

bebe sem pestanejar. Mentalize, isso, pense na moça virada de costa e se apegue na saia

da molambo e nesta gira vou te amarrotar. Ta amarrado a mim desde agora, jogue fora

esse choro e venha para roda gingar. Dança na gira da Maria Molambo em palmas e

vibras... viche, a moça descalça da encruzilhada, deserta, até as pedras se cruzam, né

não? Na outra lua me lembrarei desses olhos cor de mel... Ai, sangue. Que é isso seu

moço? Faz isso não. Atingiu meu cavalo de cima abaixo, do lado do peito em golpe

certeiro. Estraçalhou lhe o peito comovido, virou cachoeira escarlate... Que foi isso seu

moço? Meu peito fechado inchou, foi plugado pelo golpe da navalha como flecha de

cupido e agora? Minhas mãos estão dormentes e trêmulas e do lado da orelha esquerda

sinto escorrer um suor todo frio. Meu corpo em arrepio escuta a voz que diz: É hora, é

hora, é hora... As mãos que se levam ao peito, quente, pulsante, profundo e as pernas

que já não se governam... Solto a última baforada do fumo de cravo enquanto subo para

o lado de cima e em cima da obrigação cai meu cavalo em molambos, o peito retalhado

em pranto de sorriso concupiscente, os braços em cruz desdobrados, ali, fechando os

olhos para visualizar o que havia por trás das cores do arco-íris, porta de entrada da

morada das moças, pretas velhas e encruzilhadas.

Ato II

Cena 1

TEMIS: ( cantando um bendito ou excelência ou ponto de moças) Resolvi desistir de

mim. Quase seis horas da manhã e ainda não consegui bater os ovos para a omelete, e

pensar que o óleo já há muito esquenta no fogão. Quebrar os ovos, separar clara da

gema, farinha, sal, frigideira, carne... Passo a mão na testa e um pouco de suor, sinto

ainda o coração bater, mas não tenho gosto. Está escuro ainda e o pavio curto da

lamparina não ajuda. Tenho desgosto a me enforcar, um quase nada de ar sair de mim e

nada entra... Droga, daqui a pouco os ovos já não servem mais de nada, bato duas três

vezes e paro cá com os meus botões... Tem barulho de vento e a janela vez assim

assopra... Não sei se ponho a farinha ou desisto mesmo, cheiro de queimado e uma azia

doída me invade. Sei não, não tenho a vida que pedi a Deus, nem pedi vida nenhuma e

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aqui estou... Ai, agora me pego em blasfêmia, minha vó já me dizia que é um pecado

sem perdão ir contra ao que já está escrito, o que vem pronto, escrito em fios de ouro e

blasfêmia é um pecado sem perdão, o mesmo que atentar contra a própria vida... E os

que me ofendem, como devem se sentir? Melhor transformar em fios tudo isso e com

agulha boa e tela bordar bela tela, sem melancolia ou cólera, apenas deixar registrada

toda dor e depressão de palavras vãs, palavras remorso, malditas e mal ditas... Melhor

deixar essa tigela aqui e molhar o rosto. Tenho tanto desgosto, tanto desgosto, e essa rã

ainda se atreve a pular em mim. Nojo, ecaaaa! Vou cuspir! Assoar o nariz e limpar os

dedos para não grudar na farinha. O balde é tão alto e não quero subir no tamborete,

também não sei se ponho mais lenha no fogo, às vezes penso que o dia vai ser frio e

mais tarde talvez precise de esquento, um corpo, uma boca, mãos em calo para me

acalentar... Minhas mãos, meus braços, meus cabelos. Os pés se arrastam lentamente e

nem sei se ainda tenho tempo. Desisti de querer. Desisti de pregar o mesmo pedaço de

tecido no mesmo tecido e ficar a remendar a vida como se a vida fosse somente

retalhos. Resolvi querer pano novo. Pronto. Lavar novo pano no anil e estendê-lo em

outro varal, ao mesmo tempo em que não quero mais pano nenhum, nem a mim mesma

(dirige-se a uma quartinha, põe água em um caneco de alumínio, pega café e depois

acende o cachimbo). Já não sinto mais necessidade de você. A roseira não foi aguada e

todas as rosas acabaram murchando: caíram todas as folhas, despetalaram-se todas as

rosas e os espinhos já não servem. Também deixei nenhuma janela, nenhuma porta,

nem tão pouco fresta no telhado para que você voltasse a me assombrar. Agora vejo

minha imagem refletida no fundo dessa caneca e tiro a sorte na bora desse café e o que

vejo é um semblante confiante de si: há brilho nos olhos, um tom rosado nas bochechas

e bastante saliência nos lábios. Um novo corte de cabelo e uma nova fragrância no

corpo. Já não vejo mais as mesmas imagens de outrora: apagou-se a velha chama,

chamo a mim pelo meu nome que havia se perdido num eco sistema longínquo de

amargura, assim como acendeu uma nova centelha de esperança exata na multiplicação

de uma necessidade urgente de sentir alívio. Hoje me sinto aliviada, serena, com sorriso

singelo nos lábios e cheio de amor para dar. Agora o tempo é outro, o momento é outro.

Nada de se prender ao passado ou lembranças de coisas que já não existem mais. Novo

sol, novos sonhos, muita liberdade e pouco tempo de ficar com a mão no queixo

esperando a hora de ser feliz, não, nada disso. A felicidade é uma emergência diária,

não se pode esperar que ela viesse, é preciso buscá-la a cada dado momento de vida

(dirige-se a um lava pé: põe água na bacia, passa no pescoço, se vê em um espelho

quebrado posto a parede. Reflexiva, examina os dentes e busca ver dentro dos buracos

do nariz, dá a língua e sai a resmungar). Espere, ainda não estou pronta, espere, é noite,

hora de apagar as lamparinas, e da submissão aos maridos. Temos de satisfazê-los os

desejos das carnes. Nas camas somos conduzidas. Algumas usam lençóis especiais, com

a abertura no orifício e não há beijo de boca, conversa ou afagos, somos apenas

depósitos dos desejos alheios e de barrigas inchadas despejamos e não sabemos o que

na verdade é o prazer. É certo dizer que existiam aquelas mais afoitas, que se despiam

na intimidade, serviam aos seus homens com maestria, eram verdadeiras menestréis das

noites curtas de ambos. Se enroscavam nos corpos e cantavam e se derretiam por seus

homens. Antigamente as mulheres não tinham sentimentos respeitados por ninguém,

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eram entregues aos seus maridos pelos pais como mercadoria e assim eram tratadas por

toda vida. Os homens eram instintivos e tinham um desejo de posse sobre as esposas

como se tinha pelas vacas, ovelhas e bens. Deitavam-se com elas para que as servissem

por obrigação. Elas se abriam e eles as invadiam, defloravam, demarcavam seus espaços

como se estivesse ferrando uma das cabeças de seu gado. Para estes, as mulheres não

podiam gemer, não podiam ceder, não podiam ser mulheres... Os desejos mais

fantasiosos iam buscar com as outras mulheres dos bordeis, dos bregas de beira de

estrada. Existiam aqueles que ousavam, não pediam, mas conduziam e no outro dia não

as encaravam, calavam-se e os diálogos não aconteciam. Antigamente se dizia que os

meninos eram presente das cegonhas e quando uma mulher ia parir, o pirraia era levado

para casa da avó, madrinha ou parenta distante e a barriga da mãe era explicada como

sendo barriga d’água. O corpo era objeto proibido, feio, desconhecido e tentador. A

toalha da mulher, homem nenhum podia se enxugar e não era por questão de higiene

não, era o receio de a mulher embuchar. Moça direita não podia deitar na cama de

homem, nem ficar de conversa sozinha com tal ser. Beijar na boca era pecado mortal,

caso acontecesse não podia comungar e tinha de procurar o padre para uma confissão e,

Deus, Deus, dependendo do vigário, tome penitências. Às vezes, eram tantos os padres

nossos, tantas ave-marias que o cristão, realmente desistia de cometer tal pecado danado

de bom. A primeira menstruação acontecia aos vinte anos e as mulheres estavam de boi,

sagravam feito vaca, estavam doentes e não podiam se levantar por alguns dias e não

existia absorvente e tinham de usar pedaços de pano usados, lavados e guardados para

um novo ciclo. Os homens eram afoitos e logo que engrossavam a voz, apareciam os

primeiros pelos, começavam a aparecer os primeiros fios do bigode tinham de ser

iniciados, eram levados pelos pais às casas das damas, casas de diversão. Ali bebiam,

dançavam e se deliciavam com as primeiras experiências de iniciação a vida adulta

sentindo o desejo latente aflorando pelo toque da pele com a pele. Ou aproveitavam os

escuros das noites e sem sentimento de culpa ou receio, afogavam-se nos abate das

jumentas. E nos relinchos do momento sentiam-se poderosos, machos, realizados. E

essas experiências, muitas vezes, era o esperado por esses homens pelas suas esposas.

Antigamente, quando os hormônios afloravam e os dois não aguentavam, fugiam nos

lombos dos cavalos, nos varões das bicicletas e tinham de casar par lavar a honra da

família. Não tinham nada, não era ninguém, mas moça desavergonhada o pai não mais

queria de volta a casa. (amarra um pano nos olhos, gira em torno de si, solta os cabelos

longos e passa a cortá-lo com uma faca) Sexta-feira, meu corpo frio, meu pulso fraco,

meu coração, ai ai, ainda tenho? Hoje não sinto mais necessidade de você, sinto

necessidade de mim, de me ver além do meu olhar e plantando outras rosas, semeando

novos jardins. Os ovos. A omelete e o que eu ia fazer mesmo que já nem sei... Agora

sim, o relógio aponta seis horas. Daqui a pouco passa a última caravana e tenho que ir

(excelência). Me esperam meus pais e tenho que rezar o terço, dizer os mistérios e

revelar mistérios que ainda não revelei. Menino, chamem as galinhas, andem, é hora de

tirá-las do poleiro... Cadê o pote, por onde anda minha visão que mesmo de óculos não

consigo enxergar? Desisti pronto. Vou agora mesma por os ovos para os porcos, jogar

água no fogão e alguém pode, por favor, abrir essa porta para mim. Abram, por favor, as

portas. O cheiro forte das naftalinas está me provocando espirros. Desisti, já disse,

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desisti de ficar por aqui e não haver compreensão. Em outros tempos era diferente, eu

me lembro... De tarde sentava no balanço debaixo da mangueira e brincava de contar

história para o meu amiguinho que morava na casa ao lado. Desde que ele partiu que

nunca mais o vi. Dizem, os invejosos, que ele mora no além, do outro lado da vida, para

onde vou, sabe, depois, que aprontar essa omelete e pronto, já pus farinha, sal e o óleo

esquentou. Está chiando... Enquanto frita, desisti de mim, faz tempo, muito tempo, só

ainda não sei por que, mas desisti, é verdade (choro, silêncio, vai à mortalha pronta e

faz ROMANA de manequim. Aos poucos vai despindo-a e vestindo a mortalha que antes

estava a costurar, enquanto Dorinha põe a tampa do caixão com a ajuda da Iara).

Saudade dói mais que dor de dente, mais que dor de parto, parte pela meio ou na metade

o que se sente ou o que não se sente... Porque vai saindo assim sem trilha certa e a certa

altura vai envolvendo o ser acerca de um sentimento nostálgico e por mais que se queira

explicar, não se explica, apenas se sente e se vai assim... É ela austera, prepotente e está

no ser com a finalidade de ir ao encontro às lembranças mornas de outrora; autora de

desilusão, ascende ao de maior, quer estar no topo ao mesmo instante em que acende

uma centelha de humor negro. Por que se sente? Sabe-se lá, talvez porque tenha que ser

assim ou talvez porque, bem o porquê de verdade eu dizer (...) Bem ou mal, há um

motivo, um acaso, uma fresta para que ela possa se instalar. Haja uma cessão de

saudade para aqueles que fecham os olhos e se prendem e se compre na seção de

esquecimento em frasco pequeno, fechado embrulhado para presente, como dor de

dente, de parto e se parta logo que caia a primeira lágrima... Saudade vai de encontro a

alegria que sinto quando vou a esquina e compro sorvete (...) É olhar nos seus olhos e

não mais encontrar o brilho dos meus olhos. A porta está trancada e nem sei onde pus

as chaves. Deixei sobre o fogão a comida, caso chegue e queira comer, esquente no

forno, ponha a mesa, pegue prato e talher ou coma com as mãos mesmo. Não me

importo, não me interessa nem quero saber (entrega o cachimbo a ROMANA faz

cigarro de fumo enquanto dá detalhes na mortalha). Acendi um cigarro e estou vendo-o

queimar. Quanto tempo já não fazia isso? Há tempo que já deixei de contar o tempo de

dadas coisas, há tempo que nem sei se o tempo existe. Enquanto pinto esse quadro me

vêm essas coisas esquisitas... Penso em você, tudo bem? Posso? Perdão, use a sua

piedade cristã para perdoar qualquer coisa, o cheiro da tinta é muito forte e talvez eu

esteja meio que... Odeio ter de dar explicações e olhe que sei que você nem gosta, não é

mesmo, tanto que nunca me explicou nada. Às vezes acho que o céu não é mesmo azul,

sério, chego a acreditar que as cores simplesmente residem dentro de mim. Gosto de

inventar. Gosto de quebrar estigmas, gosto de você e de mim, por segundos. Nossa,

acabei de fazer uma mistura terciária. Pretendo batizar essa cor como descoberta minha,

o que acha? Desculpa, novamente eu e minhas inseguranças. É que você sempre foi tão,

como posso dizer, tão firme nas afirmações e decisões que; a porta está do mesmo jeito.

Trancada. Não sei onde está a chave. Já tentei abrir por vezes e por vezes fracassei. Será

eu um fracasso da vida? Nossa acho que sem querer, intuitivamente pintei seu rosto na

tela. Conheceria esses olhos, conheceria, em qualquer canto. Bom, muito bom trabalho,

mas se pudesse contornar mais as silhuetas do lado esquerdo da orelha e do queixo,

droga! Droga! Eu quase que sabia que isso iria acontecer. Desfigurei o seu rosto. Você

não me aparece mais na lembrança e vagamente tenho surtos e esse tão concreto me

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deixei escapar. Vá esquentar sua comida e mastigá-la longe de mim, ande, vá... Odeio

lembrar sua salivação infernal e a comida caindo pelo canto da boca. Nojo. De você. De

mim. Desse quadro. Das tintas. Nojo tinta quadro mim você... Queimou todo o cigarro,

morreu completamente e a fumaça vaga pelos cantos da sala. Cala sua voz dentro de

mim, calo nos dedos de tanto manusear o pincel, infernal pincel que me cansa os

movimentos. A porta fechada, as chaves perdidas, a comida fria e uma sede de mim a

me infringir por completo, completo delito (pega o violino e toca, sobe no caixão, deita-

se, levanta. Caminha novamente até o lava-pé, lava novamente as mãos, se olha no

espelho, põe o dedo no nariz. Romana apaga todas as velas, Dorinha segue atrás de

Romana, vão até o lava-pés e repetem o gesto de Temis. Dorinha pega o violino,Temis

passa a acender novamente as velas, somente as azuis, senta-se na cadeira e passa a

bordar. Ensaiam uma ladainha) Do jeito que estou aqui, tenho certeza que não chego

no próximo dezembro. Estou dizendo, estou dizendo e ninguém acredita. Ainda bem

que todos os filhos já estão criados e criando suas crias, as crias de suas crias e assim

vão pela sorte de Deus. Só pela sorte de Deus é que se consegue ir tão longe. É, só eu

sei o que sinto, só eu sei o que se passa comigo. Ontem, inventei de pegar numa água,

para mim estava morna, mas eu acho mesmo, agora, que estava era quente, quente só

não, estava era pegando fogo. Se eu tivesse tido a ideia de ter colocado um ovinho de

codorna pra fazer o teste, tinha certeza que teria cozinhado porque estou é com a

moléstia, uma dor no corpo, uma dor na cabeça, uma dor nos músculos, uma fraqueza

nas pernas e nos braços que só eu sei sentir, tudo porque tinha que lavar minhas

calçolas. Se eu não lavasse, quem iria lavar? E eu lá sou mulher de entregar minhas

coisas íntimas para qualquer pessoa chegar e passar a mão, ficar esfregando, esfregando,

meter o cacete pra amolecer e depois jogar no quarador? Não, de jeito nenhum. As

calçolas são minhas, é obrigação minha lavá-las, isso quem me ensinou foi minha

madrinha que me criou, porque minha mãe, coitada, não deu tempo de me ensinar nada.

Depois de ter parido dezessete filhos e só eu ter escapado, foi acometida de um mal que

Deus a levou loguinho. Agora me encontro aqui, uma pia de louça pra lavar, o feijão

ainda por catar, uma trouxa de roupa pra engomar no ferro a brasa e eu sem conseguir

sair do lugar, sem conseguir se quer me mexer, coçar meu sovado que a tempo fervilha.

Será algum furúnculo atrás de nascer, porque né assim, eles procuram os lugares mais

descabidos para se aprochegarem. Quando não é o sovaco, são as virilhas, as polpas da

bunda, no centro das partes íntimas, entre a regada e o caminho da felicidade. Oh vida,

meu Deus, oh vida essa que a gente leva sem saber pra onde, sem saber de onde viemos

e se estamos mesmo no lugar que queremos. E eu aqui sozinha, desamparada, com um

espirro preso querendo se libertar, mas, mas, mas... A quem poderei pedir socorro? Se

me sento na rede, fico tonta, se me deito, fico a ver estrelas e carneirinhos pulando nas

nuvens, se me levanto, as pernas não obedecem meus comandos... Vou me valer de

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, socorrei-me minha santa, livrai-me desse mau

momento!! Pronto, encontrei o vick, agora posso empantufar meu nariz pra ver se

desentope, mas, se desentupir e começar a escorrer, eu não tenho um lenço aqui

pertinho de mim, não tenho papel higiênico, como vou me assuar? E se começar a

tossir? Vick é muito forte, o cheiro logo agita uma coceira infernal na minha garganta,

uma coceira, mas uma coceira que parece uma coisa. O catarro que está pregado no

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peito sai mesmo que não queira... A latinha com areia, que sempre tenho pra cuspir

dentro, sempre deixo aqui no canto da parede, e, hoje, logo hoje, inventei de colocar pra

fora para mudar a areia e esqueci-me de trazer. Não esperava essa gripe assim, me

pegou desprevenida. Eu que sou sempre tão precavida, gosto de ter tudo no lugar, a

tempo e a hora. Logo hoje, hoje que não tenho casca de laranja nem eucalipto pra fazer

um cozimento. O gás tá seco e nem chamei ninguém pra trocar o botijão. O velho

inventou de ir pra maré e me deixou aqui, também se tivesse não fazia diferença, deita

nessa cama e dorme, dorme que se esquece do tempo. Melhor que vá que me deixe aqui

com meus botões que me viro. Viro é, viro nada, não consigo mexer nem com os olhos,

estou toda entrevada. Bem que eu não queria dormir sem rezar, mas de teimosa, já

sentindo o cansaço do corpo tive a infeliz ideia de deitar só um tiquinho, adormeci, de

dois balanços aqui na rede depois de tomar dois goles de café e um pão. Ai, a febre,

meu corpo pinica como nunca, pinica que só vendo. Estou toda moída, parece que

passei a noite na gafieira de seu Pepeu Sanfoneiro... Ai, ai, será que atravesso essa

madrugada, ninguém vai sentir o que estou passando, quero gritar e a voz não sai.

Preciso chamar alguém, alguém me escute! A chapa, a chapa me incomoda, dói o céu da

boca, não posso dar o goto, minha boca não saliva, socorro. Preciso fechar os olhos, eles

estão pesados, preciso de ir ao banheiro, estou de bexiga cheia, mas não posso mijar

aqui, assim na rede. Já pensou molhar a calçola, o meu vestido, a rede, os lençóis, vazar

até o chão, escorrer, escorrer e se o mijo encontrar a porta do quarto, e se for lá pra

sala... Que vergonha, meu Deus, que vergonha. Estou quente, estou fervendo e os meus

lábios estão ressecados. Agora me lembro de que não tomei meu remédio da pressão,

mas que horas são mesmo, nem tenho noção. Parece que escuto alguém fuçando a

janela, e agora minha Nossa Senhora Aparecida, e se for um ladrão? Não, não pode ser.

Sinto que meu coração está disparado, será arritmia? Na semana passada o médico disse

que eu evitasse fortes emoções, não podia me avexar, tinha que manter a calma, ouço

passos, no telhado, e agora meu Deus, não consigo mais prender o mijo e se fizer

barulho, será que eles vão embora e me deixam em paz? A porta, a porta do terraço, não

me lembro se fechei direito, não me lembro nem se está fechada, se pendurei as panelas

para caso alguém tentasse abrir caíssem e fizessem zoada. Não me lembro de nada, será

que estou com aquele mal e não sei? De repente me dá uns esquecimentos... E agora, e

agora? Sinto um queima vindo de dentro do meu estômago, pronto, agitou minha úlcera,

ai que gosto nojento, e é porque nem jantei fígado. Estou me sentindo um dragão. Estou

com ânsia, acho que vou colocar o café e o pão pra fora... Ai, escuto de longe o galo

cantar, preciso ver o que é isso, ai...

III ATO

Cena 1

DORINHA: (observando a mortalha no corpo de ROMANA tateando-o com a ponta

dos dedos) Ficou lindo, lindo, nossa. Trabalho de aranha. Os fios tecidos. Você e os

seus dotes. Lembro-me quando tecia vestidos de noivas e nenhuma sorte no amor, não é

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mesmo? As grandes histórias e nenhum romance, e se alguém que você ama tanto

chegar e de forma imperativa ordenar que não chore, engula as lágrimas e entenda que a

vida é ciclo e que os ciclos se encerram? De repente perceber que o tempo é de repente

e no repente do tempo se soma a ação, o pensamento, a atitude não chega e tudo se abre

num vazio infinito? Espere, não fale, não diga nada, simplesmente escute, cutuque-se aí

com as palavras lidas e não se preocupe em dar resposta, afinal de conta nem tudo na

vida deve ser respondido com respostas. O silêncio. Somente. Não chore, não vejo

necessidade de lágrimas, eu mesmo já não choro mais. Engula as lágrimas. É preciso

entender que... ciclo e os ciclos se encerram. Fim da questão.

TEMIS: (com uma tigela a quebrar ovos e batê-los) Os ciclos se encerram. Fim da

questão. Por que então desenterrar os mortos, se o correto é deixá-los lá, onde estão?

(pensativa) pensar que houve um tempo de se chorar juntos, de se sorrir juntos e de não

se desgrudar. Se pensar que o de repente não era tempo calculado porque se acreditava

que tudo estava escrito e o amor estava escrito na eternidade, de antes do começo. A

memória me agride e o som da voz falando dentro de mim. Não consigo sair. Não vejo

alternativa e vou medindo os passos de lá para cá sem sessar. Alguém que você ama

num intervalo de tempo duradouro dizer que você, logo você é a ação da vivência feliz e

que agora deverá engolir cada lágrima e se cuidar, seguir, trilhar caminhos opostos.

Enxugue. Vá. Vá ao inferno e lá fique para a eternidade. Com lágrimas. Rangidos. Sem

sair. Sem poder mover a tramela posta na porta do lado esquerdo do quadrado que de

repente se transformou a sua vida. Engula. O choro. A saudade. A ausência. Todos os

planos e passe a borracha, faz favor, do tempo, nas verdades ditadas porque não servem

mais. Romana, você ainda tem a receita da simpatia, amarrar o nome em fita vermelha,

lambuzar com mel, jogar na encruzilhada para que o corpo seja, o corpo, todo o corpo...

ROMANA: Abandonada tantas vezes e, pelo menos, não choro mais. E para quê

chorar? Por qual motivo? Era uma vez e eu me lembro de dias passados a beira mar, a

céu aberto e nossos corpos nus dourados pela lua. Eu na sua, você na minha e nada de

portas fechadas... Uma visão? Não sei, estava escuro e nosso amor tornava claro.

Naquele momento nos amavámos, eu sei, eu me lembro bem e a necessidade um do

outro era sentida. Sai gato, deixa a carne aí em cima, sua comida já foi posta, sai, vai

atrás dos ratos que passaram a noite toda a roerem minhas fotografias. A faca está cega

e essa saga em mim, a me martelar. Espere, no momento certo quero saber a sua

opinião, agora não. Está quente aqui e você ainda não acabou esse novo ponto. Veja.

TEMIS: Nossa, bordei esse nome sem querer. Droga. Droga. Droga. Está vendo só? As

ações são involuntárias e ele ainda tem a petulância de mandar recado, dizer que eu

devo me arrumar para logo mais. Diz que quer me usar. Devo tomar banho de rosas e

vestir camisola nova. Ele que vá lá para as teudas. Hoje é dia de santo e quero rezar

minha novena.

ROMANA: Ai, ai, as lágrimas correm como água de cebola. Bem feito fez a Inês

coroada depois de morta. Estou amálgama. Rancorosa. Destampe a panela esclerótica.

Não vê que o feijão já está quase pronto.

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TEMIS: Tolice a minha de esperar. Eu não. Mas quando começa a cair o dia e sinto que

já é sexta e nada de ninguém chegar. Eu somente. Eu. Na última estação do trem

esperando o nada. Por vezes repetida ação resultante em nada. Querendo ao menos uma

surpresa. Só lágrimas. Engolir o choro porque de repente o tempo passou e eu nem

senti.

ROMANA: A carne, chega, sai gato. Ai, uma dor nesse lado. O ciclo. Encerrou

DORINHA: Alguém fechou a porta? Está escuro e eu preciso de claridade. Acabou o

quesorene e nem posso acender a lamparina. Ei, escute, agora pode falar, pelo som da

voz posso saber onde você está.

Cena 2

TEMIS: O bordado, veja, espere. Ai, não, não me faça isso, ai, essa agulha é muito fina,

não. Está me dando uma mijadeira. O ciclo. Se encerra. Acabou. Mas eu não queria, não

queria... Deixe estar, pode bater a porta e ir, vá de uma vez e não olhe para trás. Não,

não olhe a cena que fica, o rosto deprimente que se instala, vá, vá de uma vez e não diga

palavras que venha se arrepender depois. Nem seja piegas ao ponto de se despedir como

se fosse uma obrigação, uma coação, um constrangimento, uma sujeição. A humilhação

é uma mortificação, um rebaixamento, uma desonra, é uma das piores coisas para um

ser humano, a humilhação, um aviltamento... E eu que não quero chorar, jamais, e eu,

logo eu que detesto choro, abomino, lágrimas rolando dos olhos sem controle, odeio

lamúria. O descontrole é um desgoverno de suas faculdades, a perda da razão, da lógica,

do bom senso; a humilhação e esse momento deprimente, deplorável, lastimoso, febril,

mísero de despedida... Sinal de fraqueza, de pusilanimidade. Se não me queres é porque

não me merece. Não se sinta superior, aéreo, elevado, não se ache porque encontrou um

novo amor, esses amores de, de olhos que se encontram enquanto passamos na rua, na

condição de ninguém ser de ninguém, essas coisas efêmeras, provisórias, fugazes,

passageiras. Amores de beira de estrada, de noitadas de motel barato em dia de

promoção... Um corpo bonito, um beijo mais caloroso, entusiástico, uma novidade, uma

nova posição, uma fantasia realizada. Faz fora de casa o que nunca teve coragem de

fazer dentro e já se acha amando. Amor, amor, um novo amor assim, nascido do nada,

do nada. Fácil, não, muito fácil, tudo muito fácil. Odeio alocução. Sermão. Falação.

Odeio e disse a mim mesmo que nada diria. Nada pronunciaria. O silêncio seria a minha

arma de arquivamento, iria me conservar, controlar, sabe, não metralhar esse momento

patético, enternecedor com choramingalhas, mas nunca é ou nunca pode ser como

pensamos porque pensamos tanto, não foi, pensamos tanto para nós dois e veja a que

ponto chegamos. Um novo amor, assim, como é assim o dia que nasce após o outro

findado, a lua depois do pôr-do-sol... Se quer ir mesmo, vá, pode ir de uma vez. Vá, vá

acolher-se nos braços de quem te merece ou na coisa melhor que te cabe, que te

compete, vá. Não, não pense que não fui eu quem não te mereci, foi você quem não sou

cativar meu coração de forma a sentir-se seguro, confortável ao meu lado.

DORINHA: As incertezas, as indelicadezas, essa estranha forma de dizer que ama, de

dizer, simplesmente dizer, esquecendo-se que existem outras linguagens, outros gestos

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que até nos diz que o que foi dito pode não ser a verdade que se deseja. Uma questão de

ego e neste momento a inteligência pede passagem para o lugar do esquecimento.

Esquecemos a etiqueta, as normas, as formalidades e o desejo da agressão bate a porta

da falta de senso e se eu pudesse, agora, te alcançar com este objeto que em minhas

mãos vibra (a faca de cortar a carne), te partiria o corpo em partes dízimas, medíocre

ser, pequeno ser, causa de meus desafetos... Espere, escute, vire e encare meus olhos

como nunca teve coragem de realmente olhá-los. Perceba na profundidade do meu o que

está em mim, o que sai de mim, o que resta ainda em mim, veja, veja sem piedade,

apenas veja e guarde esta imagem... Quantos romances lemos juntos, você lembra?

Lembra? Ainda consegue lembrar-se de alguma coisa vivida por nós ou tudo já foi

deletado como um botão poderoso que num simples clicar joga tudo na lixeira do

esquecimento? Quantos romances, diga... Um, dois, quantos? Romeu e Julieta? O amor

que ia além da morte? Um ser capaz de morrer pelo outro? Um amor capaz de vencer as

mazelas sociais? E chegamos a desejar que assim fosse o nosso sentimento, como

romance do Shakespeare, sentimento de alma que transpassa o corpo, que está na carne

pulsante, carne gritando de amor, um pelo outro, ligados, em elos e a nossa aliança de

sangue como no romance da Moreninha, lembra-se? Lembra-se quando cortamos

nossos lábios em beijos mordidos para compactuarmos amor, eterno, amor e como

sorvíamos freneticamente os nossos sangues e não aceitávamos a poesia Viniciana que

dizia: “... eterno enquanto dure...", porque acreditávamos no eterno na etimologia da

palavra, o amor do Tristão e da Isolda, que renunciaríamos a tudo e a todos em nome de

nós mesmos, só nós bastávamos, só nós... É o meu ciúme que me descontrola, eu sei,

sou consciente, ciúme, ciúme descontrolado, esse desejo de posse como propriedade

privada, esse meu controle desenfreado de cada passo dado, de tornar você o eixo

condutor de minha vida. Você como o norteador do meu pensamento... Tudo em prol

de; e nós nos conhecemos tão bem, sabia como guardar suas cuecas, as meias, as

camisas da diária. Sabia a quantidade de sal da comida e a luminosidade do quarto e o

som ambiente. Sabemos como guardar as escovas de dente no banheiro e sabemos até

quando um usa a escova do outro, só para termos o prazer de sentir mais de perto o

hálito, a comunhão de... Sabemos a temperatura ideal da água do chuveiro que lavava

nossos corpos depois de uma boa noitada de amor. O sabonete que corríamos corpo

acima, corpo abaixo, grudados, laçados e a água morna, morna água que nos deixava

lassos, felizes por estarmos ali naquele momento só nosso, sabíamos até dos nossos

desafetos e como um poderia desamarrar os laços dados um no outro.

ROMANA: E achávamos que éramos felizes, se um soltasse um pum diferente,

sabíamos que a dieta era quebrada e que algo de estranho tínhamos comido, sabíamos,

sabíamos, sabíamos e agora não sabemos mais de nada. Somos estranhos, dois

estranhos, um estranho frente a outro estranho. Anos de convivência e dois plenos

estranhos a monologar... Eu sempre soube disse, eu sempre dizia que não ia dar certo.

Nunca acreditei mesmo que seria eterno, para sempre, porque para sempre só os finais

de contos de fada... A sua jovialidade, a vontade das novas descobertas, eu sabia e você

sabe disso, você e sua insistência e eu me deixei levar. Nunca me preparei para... Vá, vá

de uma única vez, vá e não volte mais, não esqueça nada e vire o rosto quando passar

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por mim na rua... As coisas existem para serem, se não são é porque a existência é algo

duvidoso e essa música que me faz recordar, essa música que me enche os ouvidos de...

Talvez você já nem se lembre mais. É estranho não? Tudo é muito estranho, ainda

ontem deitados um ao lado do outro e quantos planos futuros. Quantas vezes transamos

pensando está fazendo amor? E uma outra pessoa deitada no nosso meio e um outro ser

instalado em nosso meio e o pensamento que julgava ser somente em mim talvez já

fosse projetar para ser de outrem, humilhação. Essa música escute. A música que toma

conta do espaço, que nos abre os polos, que nos transporta e a porta, abra, saia, saia,

abra essa droga de porta, merda de porta, porra de porta e vá quebrar a cara num outro

lar, ao lado de um outro ser desconhecido e o faço iludido como você me iludiu, vá e

faça o mesmo jogo, use do mesmo artifício, engane, faça-o sonhar. Apresente o vinho,

dance, faça strep, suba em pontos altos, transe ao ar livre, choque, chame a atenção,

mande flores, mande chocolate e lata, lata de amor feito cachorro doido e depois aplique

um pé no traseiro como está fazendo comigo agora. Eu odeio o amor, odeio sentir-me

amando, odeio ter me entregado a esse sentimento que me domina e a vontade de estar

ao seu lado. De sentir novamente o hálito quente de seus beijos... Veja!!! Veja, chegou o

roteiro de nossa viagem... Você quebrou o pacto, mudou a regra, já vai? Não quer saber,

espera, por favor, espera, eu não vou chorar, não vou, essa água que escorre dos meus

olhos não são lágrimas, espera, por favor, espera, não abre ainda a porta, espera, por

favor, não estou chorando, é essa terrível dor de cabeça, espera, escuta, você precisa

escutar, o roteiro, a viagem, não, não terá sermão, veja o roteiro, veja... Por favor, por

favor, escuta o que tenho pra te dizer... Para sempre, para sempre amor, amor, amor...

Ai, como dói essa pancada de porta que se fecha e não se abre mais...

Cena 3

DORINHA, ROMANA, TEMIS: Estou acordada? Nem sei se dormi. Amanheci em

mim com saudade. Os olhos choram e o coração não sabe o porquê. Existe razão para

isso? Talvez a sua ausência, talvez a falta de paciência de mim mesma. Amanheci e nem

sei que horas são. O relógio da parede está sem o pêndulo e o meu pulso borda uma tela

infinda. As cores não se combinam, as linhas não se entrelaçam e a inda nem sei qual

figura devo bordar aqui. Sinto o lado de fora da minha mão molhada. Enxuguei as

lágrimas com o lado rude de minha mão e dói o meu olho esquerdo. No canto do quarto

um retrato e a sua foto que me olha. Viro de lado e você está lá. Assusto-me, assou o

nariz e sinto sangue. Volto a chorar. Não quero mais chorar e a agulha me espeta o

dedo. Levo-o a boca e enquanto chupo o meu dedo, meus olhos encontram com os seus.

Nossos olhos como aquele dia lindo e mágico. Ainda era madrugada quando chegamos.

Fui deitar e você se dirigiu a cozinha. Adormeci e longe escutei quando a porta do

quarto se fechou. Sinto sua ausência como sinto a hora que você chega do lado da cama.

Acende uma luz suave e joga o seu corpo sobre o meu. Lentamente. Bem lentamente

seus lábios buscam os meus e sou intensamente beijada por seus lábios. Nossas bocas

ocupadas. Nossos corpos ali na quentura do momento e quente, bem quente escuto em

meu ouvido quando sua voz diz que nada, nada na vida nem ninguém acabará com o

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nosso amor. Somos um do outro. Pertencemos um ao outro e um abraço forte, bem forte

me torna adormecida como num sonho profundo (TEMIS deita sobre o caixão,

ROMANA vai para frente da imagem de Santa Bárbara e DORINHA assume o lugar do

início, toca violino)

ORAÇÃO FINAL

Ó Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos

furacões, fazei com que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar

dos canhões não me abalem a coragem e a bravura. Ficai sempre a meu lado para que eu

possa enfrentar, de fronte erguida e rosto sereno, todas as tempestades e batalhas de

minha vida: (fazer o pedido) para que, vencedor de todas as lutas, com a consciência do

dever cumprido, possa agradecer a vós, minha protetora e render Graças à Deus, criador

do céu, da Terra, da Natureza; este Deus que tem poder de dominar o furor das

tempestades e abrandar a crueldade das guerras. Amém. Santa Bárbara, rogai por nós.