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MEMÓRIAS DE DOROTEIA
Marcus Vinicius Filgueira de Medeiros
Personagens:
Dorinha ................................. Cega musicista
Romana ................................. Beata cozinheira
Themis .................................. Tecelã costureira.
Iara ......................................... Maria Molambo, entidade.
Carpideiras ............................ Coro.
Linhas gerais:
Doroteia é a representação de carpideiras viúvas, cada uma com suas dores, amarguras,
reclamações. No final choram a morte de cada uma. São irmãs de tragédia, filhas da
mesma dor. Encantadas, desencantadas com a dureza da vida, unidas pelo mesmo laço,
amantes do mesmo homem embora tudo seja uma grande farsa, um grande ensaio da
morte. Cada uma num surto como se estivessem encenando o enterro delas. A música é
a composição da marcha fúnebre do enterro das três. A costureira une as partes da
mortalha de todas e a outra faz a comida que quer ver servida no dia do velório. Uma
reflexão acerca da condição da mulher que ama, se entrega, envelhece e diante da vida
percebe que somente a lembrança de tempos em tempos que a torna viva. Dorinha é a
cega musicista, Romana a beata cozinheira e Themis é a tecelã costureira.
Figurino – todas de roupas pretas, luto fechado, na cabeça lenço, roupas iguais.
MEMÓRIAS DE DOROTEIA
Marcus Vinicius Filgueira de Medeiros
I ato
CENÁRIO: (um quadro de São Jorge, um quadro de Iemanjá. Uma imagem de santa
Barbara. Um caixão, bancos, velas de tamanhos variados, uma cadeira de balanço, um
fogão à lenha, um violino ou rabeca, coro de carpideiras).
CENA INICIAL:
A beata cantando excelência e acendendo velas, a musicista tocando no violino, a
tecelã enfeitando o caixão com flores. Em seguida, a que está acendendo vela pega uma
laranja, corta em quatro (4) pedaços e a coloca sobre as mãos do morto. A que estava
colocando as flores no caixão acende um turíbulo com incenso e começa a incensar ao
redor do caixão. A beata vai descobrir a santa Bárbara enquanto a tecelã deixa o
incenso debaixo do caixão e passa a arrumar as coroas de flores. A musicista puxa uma
ladainha no mesmo momento que a beata e a tecelã vestem o véu, pegam os terços e se
posicionam como se estivessem em oração. Cada uma vai, lentamente, assumindo sua
posição. A costureira senta-se na cadeira de balanço, religiosa senta-se em um
tamborete e a musicista permanece no mesmo lugar, sentada num banco grande de
madeira. SILÊNCIO TOTAL. Depois de alguns minutos, a beata pega um pilão de
madeira e começa a pila gradativamente. A costureira passa a se balançar na cadeira
que faz imenso barulho e a musicista a bater com o pé...
Cena 1
DORINHA: (largando o violino em cima do banco) Não sei se acordei ou se permaneço
dormindo. Não sei se o relógio parou ou se o tempo nunca passou. Não sei se o dia é dia
ou se a noite é noite porque na verdade desde que comecei a pensar que já me disseram
que era assim e pronto, nunca na verdade quis correr o risco de ir à procura da verdade e
faço verdade, as verdades dos outros... Não sei se é tempo de sorrir ou de chorar, se o
gás acabou ou se nunca existiu. Não sei nem se as coisas saíram do lugar ou se sou eu
que nunca estive aqui, não sei se é cedo ou tarde ou o que é cedo ou tarde ou se já vou
cedo ou tarde ou se o cedo é tarde ou se o tarde é cedo... Sei que a noite chegou em mim
e uma escuridão me apavora, seguida de tempestade e hoje, logo hoje que já cumpri
todas as obrigações: Troquei a água dos vasos das rosas, colhi rosas novas, as rosas da
roseira do oitão da casa, na esquerda, quina, logo ali onde o sol começa a se por.
Amarelas. Somente. Colhi as rosas amarelas, da roseira do quintal, pus no vaso com
água nova e nem sei ao certo o que é certo ou errado, verdade ou mentira, se durmo ou
se já estou acordada... Tenho sede em saber, necessidade de conhecer a mim e pego
carona nas asas da borboleta, veja, vou até o infinito e me delicio com a música do
universo. Um copo de água vai, um pouco de água que mate essa sede. Ao menos molhe
a ponta do pano e humedeça os meus beiços rachados. A saliva secou e o gosto de seca
está em mim, de terra seca remoendo em minha língua, misturado com o gosto de rosas
e daqui a pouco nem posso mais tirar a roupa do varal, pus para quarar por insistência,
apenas para tirar o cheiro de barata e de coisa guardada assim como também tenho
cheiro de barata e de coisa guardada. Só queria aproveitar o dia de sol, o sabão e toda a
espuma produzida. Lavei no cacete e dei cacetada em minha dor: pegue danada, pegue,
pegue para aprender... Cada peça do meu enxoval guardado há tanto tempo, e o bordado
continua o mesmo, feito por mim, pelas minhas mãos. Agora não tem mais sentido, não
há mais sentido, não quero que tenha nem seja herança para ninguém. Herança tem
malícia, é gananciosa e me lembro bem do dia de sua morte. Era noite, noite de natal, na
noite do nascimento do menino que Deus o levou para longe de mim e nunca mais tive
motivo de celebrar tal sereno. Todos se dividiram porque cada um queria uma parte na
botija; meu corpo está morno, alguém tem um cachete? Se ao menos tivesse colhido
algumas folhas da laranjeira, agora poderia fazer um chá, mas fiz música e deixei
guardada aqui (pega na cabeça). É segredo e não posso contar como é segredo toda
existência e as cores de minha dor, mas se ao menos conseguisse lembrar o meu nome,
como me chamavam, mas não, a cabeça já não serve mais pra nada, está fraca, apenas
uma névoa de tempo e tempo... Desculpa, saiu sem querer. Saiu assim, na cacetada, na
jogada da água com a mão e entre uma esfregada e o suor que escorria no meu rosto,
fiquei de braços mortos, cansados, brincava de bolhas de sabão e nem pude brincar com
o meu violino... Peidaram. Alguém peidou, estou sentindo o aroma e nem escuto o
cachorro, afinal de contas, onde tem cachorro, adulto não libera flatulências, não é feliz,
nem pode dizer do prazer que liberou pelo rabo. Também não tenho o olfato tão sensível
como meu ouvido. Não sei se é odor de fígado ou se o ovo estava goro, mas que fede,
fede e arde minha narina. Caso tivesse ouvido o som, poderia dizer se foi agudo ou
grave, afinado ou saiu por opressão. É feio, proibido. (dirige-se ao violino e começa a
ensaiar algumas notas) Está aqui minha música, só minha, a saga de uma existência.
Não digo, não vou dar a ninguém. Será a minha obra prima. Essa é especial porque me
revela de outra forma, por outro lado que não me quero ser vista, tateada, enrugada,
marcada pelo tempo que passa, que passou e cansei a vista e nem pude levar o comer
aos porcos; enquanto a minha carne estiver morna, ainda me pertence, mas depois que
estiver tudo frio, pronto, perco o direito, perco minha identidade e quem quiser que
tome de conta, me mutile, me rasgue, deixe-me estendida, quarando, carcomida pelos
vermes... Era uma vez e eu não me lembro. Era outra vez e eu não estava lá. Eram tantas
às vezes e em nenhuma descobri o que estava por trás do seu olhar. Era a vez de sempre
e sempre existia a distância e eu tonta com o seu cheiro me embriagava a vagar pelo
nada. Mergulhada. Absorta. Presa a uma realidade que era só minha, mas existia a
gaivota, existia a devoção, existia o céu e toda a dimensão do infinito. Também existia a
dureza da vida e toda uma angústia latifundiária a me oprimir. Sorrir sem vontade,
aceitar ingratidão, ser cega sem ser, não ser nada por falta de opção e as marcas no rosto
me denunciando, e o desgosto no peito a me enforcar (chora, chora copiosamente como
se estivesse a lamentar). Meus braços não se aguentam erguidos, quase não consigo
mais os acordes perfeito e feito mosca me vejo corcunda, não aguento mais o peso.
Meu grito. Minha paz. (ríspida) É preciso a higiene diária, todos os dias varrer a casa e
não por a poeira para debaixo do tapete. Não podemos acumular lixo nos depósitos nem
depositar lixo em lugares incabíveis, desnecessários... Pôr água nas plantas e também
ser planta, exalar cheiro, ter espinhos, raiz, ser sombra; assombrar-se a todo instante e
fazer dos instantes momentos de euforia... A higiene diária perpassa em não roer as
unhas, pentear os cabelos e saber a essência do sabonete que lhe percorre o corpo, ser
corpo e estar no corpo presente como passarinho que alça voo a cada momento que se
sente acuado. Acuado não se pode ter receio de buscar abrigo, ser abrigado em lugar
limpo e se contaminar com as vivências, experiências, convivências... Fechar os olhos e
se atirar no escuro incerto de cada dia, ser dia claro. Limpo. Higienizado. Sem poeira,
sem pó, sem eira, sem ira, semiárido de si na faxina cotidiana... É preciso, muito precisa
a higiene diária. A existência e você obscuros como as notas musicais que nunca pude
reproduzir, nunca pude, ora, não sei, não tive tempo de parar e pensar e saber e enfim,
depois de amanhã é domingo, dia de pegar a galinha e torcê-la pelo pescoço até sangrar,
esquentar a água e depená-la, pena por pena e não ter pena de si. Almoçá-la
acompanhada de pirão e sentir-se também depenada, sangrenta, cabidela de si mesma...
Não sei se digo ou me engasgo. Não sei se relato ou guardo para mim. A condição de
não saber é cômoda e eu me acho perdida nesse estado de desconhecido. Oráculo. Déjà
vu (faz som, uma melodia de tango). Solidão. Caça de si. Esquadros e tantos outros
laços de nós cegos, eca, engoli uma mosca. Puta que pariu, puta que pariu. E se ela tiver
pousado na bosta do porco aqui ao lado da casa? Vinda de lá fazer morada eterna em
mim. Mosca. Morta em mim. Agora serei túmulo de uma coisa inútil (riso
descontrolado) já não bastava ter engolido um peido, agora uma mosca cheia de bosta
de porco? Privada propriedade (ríspida) Não digo, pronto, minha boca é um túmulo.
Meu corpo é um túmulo. Não sei se despertei ou se permaneço caída no sono. Não sei
se o registrador de tempo acuou ou se a estação nunca se adiantou (canta canção de
ninar). Não sei se o dia é noite ou se a noite é dia porque já me disseram que era assim e
pronto, nunca quis correr o risco como sempre foi. Não há necesidade de exposição.
Pertenço ao tempo findado e enquanto o dado é lançado eu me consumo em
interrogações. Gosto da nota dó, de toda escala e odeio explicação. É o meu dia e esse é
o meu presente, sempre soube que não iria ficar para semente, azia, nossa, estou em
brasa, a visão embaçada... Chegaria o dia de descansar em paz e na paz repouso eterno,
a grande viagem como é uma viagem estar lúcida e se fazer partida, defunta de si rumo
à morada eterna. Quem pôs algodão no meu nariz? Vou agora, nesse momento,
embriagar a mim mesma calculando respostas que não chegam a ter resultados
concretos, como nunca tive, nunca tive resposta nem direito de perguntar. Tida como
um nada, um zero a esquerda, pronta para servir. E nem precisava de palavras enfeitadas
para marcar qualquer ato, preciso, pois, só preciso mesmo de descanso e um banho frio
de água de tanque, ao menos lavar as mãos com água fria e cheiro de rosas, posso?
(dirige-se a um lava pé: põe água na bacia, passa no pescoço, se vê em um espelho
quebrado posto a parede. Reflexiva, examina os dentes e busca ver dentro dos buracos
do nariz, dá a língua e sai a resmungar) – tudo parece tão claro, tão fácil, sei que
outrora não existia despertador, a gente acordava com o canto do galo. Do poleiro, era
ele quem dava a ordem: “hora de levantar”, de abrir portas e janelas, cortar a lenha e
acender o fogão que queimava todo o dia. O canto do galo indicava que naquela hora o
dia era iniciado. Ainda escuro, depois de debulhar os santos ofícios, ajoelhada nos pés
do oratório, levantava para fazer o pão de milho. Pegava o milho seco, punha no
moinho e moía, depois molhava um pano limpinho, pegava um prato de ágata, molhava
um pano, punha a massa mexida, e esperava o pão de milho ficar pronto. Os homens
madrugavam nos currais. Estavam lá espremendo com força bruta as tetas das vacas até
expelir a última gota de leite. Faziam aquilo tão cautelosamente que chegava a ser
prazeroso, mordiam a língua, reviravam os olhos e davam-lhe palmadas no traseiro, no
colchão macio das vacas (alisa os peitos, cospe). Pegavam as vacas pelo rabo,
amarravam as vacas pelas pernas e o serviço era feito nas vacas, vacas, vacas... Era
assim, o tratamento com as vacas de dia, o tratamento com a mulher, à noite, na cama.
Era domada, derrubada no abate, presa entre as pernas do macho que me possuía,
possuía a mim enquanto resfolegava um bafo quente em meus ouvidos e gemidos
animalescos e eu no silêncio esperando o tempo duradouro passar como um pedregulho.
Era assim, continuava os afazeres, ia aos terreiros despejar o milho para as galinhas
cacarejantes, apanhava os ovos, abastecia os ninhos das galinhas chocas, e chamava
cada uma pelo nome. Naquele tempo cada galinha tinha um nome próprio, só delas,
como tinha nome também, as vacas, os cachorros, os jumentos e as éguas. Enxaguava as
roupas ensaboadas do dia passado amaciadas no cacete e fervidas no fogão à brasa; ao
estendê-las nos varais ou cercas coloriam todo o terreiro e deixavam exalar o cheiro do
anil... Batia a nata, fritava os ovos e esperava a vinda dos homens com o leite... Meu
macho contava as novilhas, as ovelhas, os porcos e ia preparar as rações de cada uma e
todas eram ferradas com as inicias e nós carregávamos os sobrenomes deles. (reflexiva)
Você comia sem mastigar e deixava a comida escorrer pelo canto da boca. Nojo. Nojo.
Ecaaa... (ríspida) Naquele tempo palavra valia mais que dinheiro e os casamentos eram
para a vida toda. Está posta a mesa do café e odeio geleia (vai até o caixão e pega um
pedaço da laranja e come sem mastigar)... Não sei se pisco o olho ou se é um cisco no
olho. Corre água do meu olho e tenho medo de me afogar com a lágrima insistente e
tantas lembranças amargas. Cismo com minha imagem refletida no espelho da parede.
Quem sou? O que sou? Por que tenho que ser algo? Não sei, essa é a minha verdade.
Talvez porque a construí assim e me acomodei assim ser. Desespero? Depressão? Falta
de aptidão? Não, essa é a única certeza que tenho, uma fome voraz de... Mas a fome é
abstrata, necessita de... Deixa pra lá! Vou delicia-me com essa deliciosa melodia, talvez
na primeira degustada eu me encontre com mais certeza de, as velas, preciso acender as
velas. A porta está fechada e nem sei como abri-la. Frio. Sinto frio. Vou me aprontar,
hora de fazer oração (toca)
Cena 2
ROMANA: (limpa as mãos sujas de milho na roupa, resmunga com a boca e puxa um
bendito) Ó São Jorge, meu Santo Guerreiro e protetor, invencível na fé em Deus, que
por ele sacrificou-se, traga em vosso rosto a esperança e abre os meus caminhos. Com
sua couraça, sua espada e seu escudo, que representam a fé, a esperança e a caridade, eu
andarei vestida, para que meus inimigos tendo pés não me alcancem, tendo mãos não
me peguem, tendo olhos não me enxerguem e nem pensamentos possam ter, para me
fazerem mal. Armas de fogo ao meu corpo não alcançarão, facas se quebrarão sem ao
meu corpo chegar, cordas e correntes se arrebentarão sem o meu corpo tocar. Ó
Glorioso nobre cavaleiro da cruz vermelha, vós que com a sua lança em punho
derrotaste o dragão do mal, derrote também todos os problemas que por ora estou
passando. Ó glorioso São Jorge, em nome de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo
estendei-me seu escudo e as suas poderosas armas, defendendo-me com a vossa força e
grandeza dos meus inimigos carnais e espirituais. Ó Glorioso São Jorge, ajudai-me a
superar todo o desânimo e a alcançar a graça que agora vos peço (faz um pedido). Ó
Glorioso são Jorge, neste momento tão difícil da minha vida eu te suplico para que o
meu pedido seja atendido e que com a sua espada, a sua força e o seu poder de defesa eu
possa cortar todo o mal que se encontra em meu caminho, amém... (reflexiva,
caminhando ao redor do caixão, tirando um vaso de flores de são Jorge e aguando as
flores do caixão) Estou triste, preciso ato em mim, assim como preciso dizer isso
porque senão, não conseguirei mais erguer a cabeça. Se não for assim, como poderá ser?
Uma tristeza tão grande que me aperta o peito e me faz sentir os pulmões querendo sair
pela boca. Daí da moldura é possível sair alguma resposta? Porque você sempre me
resposta em silêncio e o calo da língua cresce e calo porque não ouço a voz que sai de
você (caminha e senta ao lado da musicista). Triste. Não pense que por você, não perco
meu tempo. Triste por mim. A tristeza está em mim enraizada desde que me lembro de
quando passei a existir e choro como o choro de quem corta cebola. Lágrimas amargas.
Ardidas. Choro para espantar a dor e a solidão que se apoderam de mim em plenas
primeiras horas da madrugada. É madrugada e madruga em mim o desejo latente de
glória (vai ao relógio e dá corda)... Está nublado e nem sei ao certo qual a cor do céu.
Não cantou nenhum galo e cresce o galo dentro de mim, de dor, de desespero... já já é
hora de moer o milho e eu cá a debulhar esse rosário infinito de mágoas. Oração
sangrenta, míope, de desespero de falta de amor por mim mesma, de desgosto, de pintar
os olhos com carvão e se sentir persona suburbana de carnavais de outros tempos.
Acendo uma chama para que ascenda na luz a divina chama da dívida eterna e na vida
eterna eu possa pagar a minha culpa máxima culpa, estado de culpa a me crucificar em
vida (põe o véu, diante do caixão). Viva a Deus e todos os eus da minha existência.
Viva o caos e todos os casos isolados de sentimentos inexplicáveis como esse agora, de
repente um frio me invade a espinha e arrepia até a alma, cruzo os dedos e dedilho
baixinha a oração de santa Bárbara. Triste, simplesmente triste porque a liberdade é
isso, estado de descontentamento. Ninguém é livre em si sem o outro, embora o outro
não reconheça isso em você (canta um bendito) Vem cá, vem cá, dá cá um abraço, vem
que eu te dou abraços, eu afrouxo os laços, Maria cega, eu tiro os laços, os laços; pousa
aqui em meu dedo e pegue safada, pegue ( dá o dedo ao tempo e depois o segura com a
outra mão acalentando) Alçar voos, colorir o céu do seu mundo com as cores ímpares.
Tenho de parar, pensar em mim, repaginar a vida de outra forma. Sem ninguém,
somente comigo e a solidão me faz invejar as asas da borboleta a voar em círculos de
ida e volta, de ida sem volta, de voltar sem ter ido ao espaço de mim mesma.
(desespero) Roo as unhas da mão esquerda porque com a direita contemplo a aliança e
tento lembrar-me do dia em que te conheci e da cor de sua roupa. Não sei se era cinza
ou se fazia cinza em meus olhos. Só sei que era madrugada, sim era madrugada.
Madrugada, desejo de tomar caldo da caridade e nenhuma cebola no cesto. A faca
armada sobre a pia e a tábua da carne. Fome. Cortar a verdura que tem. Desisto (dirige-
se a um lava pé: põe água na bacia, passa no pescoço, se vê em um espelho quebrado
posto a parede. Reflexiva, examina os dentes e busca ver dentro dos buracos do nariz,
dá a língua e sai a resmungar). Eu odeio a mim, odeio-me e quero ódio por mim
sempre porque ninguém há de chorar por mim, a minha cova não há de ser cavada
porque todos sumiram, sumiram todos e odeio a mim por não me atrever a dizer mais
nada, nada por completo. Estou encharcada de meias verdades, de não se lembrar das
coisas ditas ou o que quero dizer, agora, por exemplo, me sinto sufocada, a porta
fechada e meu corpo, por onde anda meu corpo (para e observa as mãos)? (penteando
os longos cabelos, passando o óleo de coco e resmungando) Aos poucos está esfriando
minha carne, já não estou mais nem morna, fria, quase fria, suando levemente aqui por
detrás das orelhas e essa orelhas, rugas, marcas de um tempo passado... Alguém pode
ver meus pulsos, não sinto minha pulsação, talvez um chá de alho, talvez, nossa,
palpitação aqui, bem aqui... Quando está me dando uma coisa e percebo que é uma
coisa boa, logo recebo. Agora, quando está me dando uma coisa e sinto que não é uma
coisa boa, é coisa ruim, me dando logo vontade de peidar (olhando para são Jorge) Está
rindo de que despacho da raiz entroncada, cururu de cemitério, couro de jia morta no
calor da lamparina, me diga, diga! Livrai-me santa Bárbara dessas tormentas e miragens
do inimigo, do fogo do inferno de inimigos que vivem tramando contra mim, essa
legião de seres infernais que não me querem para o bem e nem meu bem... Puxe daqui
mal auguro, estopou balaio, ranço da malagueta, perna fina de uma fica... Me respeite,
me respeite que sou uma mulher idosa, já tenho para mais de meio século de vida,
devota de Deus, metade do cabelo já branco porque a outra metade eu já perdi de tanto
lutar com gente ruim. Se olhe no espelho, pau de sebo quarado na seca de trinta, cara de
maracujá, infeliz, parece o cão chupando manga verde em cima de uma pedra de fogo
no pingo do mei dia e fica aí com essa boca encangotada sem nenhum dente, miserável.
Sou uma mulher de muito peito, muito peito mesmo (passa a alisá-los), embora tenha
somente um, porque o outro já se foi de uma cirurgia que fiz, às pressas. Triste cirurgia
das mãos de um doutor zarolho, isso mesmo, um olho no gato e o outro na puta que o
pariu, isso sim (pega um ramo verde e se faz que está encomendando o corpo). A dor
era debaixo do peito, nesse cantinho aqui, olhe. Os exames todos acusaram vesícula, o
médico arrancou meu peito, pode? Se bem que era véspera de natal, eu até entendi, mas
não entendi muito bem não, até hoje sinto a dor da tal vesícula e a ausência do meu
peito. Amanhã é sábado, o sétimo dia da semana, o dia do descanso e tem dia que não
me aguento de tanta dor, só você sentindo para saber o tanto que dói. Agora, operar de
novo, Deus me defenda, vai que ele arranque outra parte, o outro peito, uma parte mais
debaixo, ave-maria três vezes, ave-maria três vezes, ave-maria três vezes... Não gosto
nem de pensar, tenho muito peito pra encarar qualquer situação. Não precisa nem ser pai
de santo para perceber essas coisas. Quando a coisa é ruim a gente logo sente no ar,
feito catinga de peido, num sabe, aquele nó que vai apertando o peito, o escurecimento
de vista, a suadeira das mãos, um fogo debaixo das pernas... Eu já sei que é uma notícia
ruim. Se eu tiver com um garfo na mão e cair, já sei que é algo com meu homem; caso
seja uma colher, penso logo nas minhas irmãs e se for uma faca, já sei que é traição, das
brabas!!!Vou diretinho pro meu oratório, acendo minhas velhas e rezo pra todas as
almas do purgatório para me livrar de todo mal, amém. A parte ruim da história é ter
que me ajoelhar para a penitência ser maior e a prece ser logo atendida. Sabe como é né,
muitos pedidos, os santos muito ocupados, pego o atalho, peço logo a todas as almas do
purgatório, mas como ia dizendo, a hora ruim da coisa é ficar de joelho. Olhe, quando
tenho que me levantar é dor, é dor que parece que o mundo vai se acabar. O tal médico
diz que é um tal de ácido úrico alterado, mandou que eu parasse de comer carne na
diária. Eu, uma senhora idosa, banguela? É, porque esses dentes aqui foi uma chapa que
ganhei de um vizinho meu que era candidato a qualquer coisa. Ele tinha uma bacia
cheinha lá no consultório de prótese na casa dele, cheguei lá e olhe, fui experimentando
de uma a uma até que essa deu certinho em mim. (dirige-se a São Jorge e encontra um
cesto de macaxeira) Nossa, macaxeira, vou pegar. Pesada, não? Ai, ai, quando vejo uma
macaxeira assim lembro-me do tempo que era feliz lá na roça, era macaxeira de dia e de
noite, mesmo quando estava indisposta e não queria, era obrigada a empurrar goela
adentro a macaxeira do seu Zé dos burros, olhe que ele era conhecido como o homem
da melhor e da maior macaxeira do lugarejo que eu morava. Olhe o tamanho e a
grossura, cresci a base de macaxeira. Casei, tive que abandonar o campo, vim morar
aqui na cidade, troquei a macaxeira do seu Zé dos burros por outros alimentos e veja só
no que deu, vivo com problemas de saúde. Madrugada, desejo de tomar caldo da
caridade e nenhuma cebola no cesto. A faca armada sobre a pia e a tábua da carne.
Fome. Cortar a verdura que tem. Desisto. Não quero mais, depois ter de escovar os
dentes e dormir de barriga para o alto. Melhor não, a chapa já está escovada e não tenho
coragem de levantar. Pelo buraco na telha vejo a escuridão e várias imagens a estarem
em mim. Imagens. Somente. Cruzo os dedos e me entrego a orações. Vou dizendo cada
uma que me vem e vou aumentando a fome ao mesmo tempo em que percebo que a
rede balança. Onde estou? Na rede? E quem me pôs aqui? Outro dia lembrei-me de
jantar fígado e adormecer lá fora, na cadeira de sempre antes de terminar metade das
ave-marias. Aqui. Como? Onde? Ninguém diz nada e vejo a porta fechada. Espere.
Naquele dia eu me lembro, era fígado, a janta, jantei e me pus a tomar vento. Precisei de
chá de boldo e entre arrotos ainda tive tempo de acender cachimbo, mas o peido não foi
meu, não foi, disso tenho certeza, jamais negaria uma coisa que faço, por mais podre
que ela seja. Se o ato é meu, tenho que assumir. Foi assim que me ensinaram e assim
que devo agir para sempre, até na eternidade. Sinto o cheiro do cuscuz, já está pronto,
nossa, nem me lembro de ter moído o milho, de molhar o pano, fazer o fogo, vê-lo em
brasa, não me lembro, nem de ter imagem a se refletir no espelho, só sinto uma angústia
a subir e descer cá dentro e da vontade de tomar caldo da caridade, mas não, meus
movimentos me impedem, meus pés estão amarrados, não encontro forças e uma
ladainha da mãe dos aflitos rangem entre meus dentes. Não posso vomitar, é
desperdício, não posso, a condição de mim é não ter condição ou nem ser eu mesma. Eu
me lembro de e ninguém me faz esquecer. À noite. O escuro está escuro lá fora embora
esteja claro em meu coração e do brilho dos meus olhos, nas lembranças das noites
quentes de junho, eu sei, eu sinto o Fim do mês junino. Fim das cores, fim dos balões.
Fim da madeira queimada nas fogueiras. Cinza! Cinza! Cinza o meu coração porque
diante de tantas simpatias tudo continua fora do lugar. Não vejo a melodia, calou-se a
canção e nas brincadeiras de roda nossas mãos não se encontraram, não entramos na
dança e ficamos a ver, cada um na sua, os rojões explodirem sozinhos no espaço a
esperança calada dos outros. A zabumba agora já não bate nem acertou antes as
pancadas de dentro da gente, chorou desafinada a sanfona nos movimentos estilizados
dos brincantes das quadrilhas e na quadrilha de gato e rato e nenhuma caça. Dou graça à
vida e sem graça me vejo a refletir o que passou. Dorme o mês passado, acorda o mês
presente e os tempos não se conjugam mais como outrora. O tempo agora é o agora,
hora de varrer o terreno e guardar alguns caroços de milho sobrado para o plantio do
ano vindouro (abre uma garrafa de vinho, volta o tango)... Foi assim, jantei fígado,
adormeci e me trouxeram até aqui, mas quem, alguém? Talvez esteja à receita escrita e
guardada no lugar de sempre. Sempre acontece isso comigo, esquecimento, esqueço
tudo, até que tenho nome e nunca saio do lugar, apenas uma simpatia que fiz na noite de
São João, coisa besta e despachei na encruzilhada, pedido feito a São João – Xangô e a
Santa Bárbara – Iasãn. Amarrei seu nome em fita vermelha lambuzado com mel e
joguei as formigas para que seu corpo pudesse servir de alimento (risos) A receita, ora,
do caldo da caridade, caridade, isso, caridade. Fico rodando que nem os bois de puxar
carroça, rodo, rodo e nunca saio do lugar. Um oco no estômago e ainda me pego a jogar
conversa fora. O caldo da caridade, por a água no fogo para ferver, contar o coentro, o
tomate e a cebola me faz chorar, arde em meus olhos, dói em mim. Quebrar os ovos e
deixá-los espalhados pela água borbulhando em fervura. São os meus olhos, o meu
medo, o sono que chegou ou é mesmo a imagem de Santa Bárbara que criou vida?
Cena 3
IARA: (surgi por detrás da imagem, como assombração, entidade) Sou moça-menina
de saia rodada estampada florida no pé da canela com enfeites de fitas de santos
sagrados do altar da jurema. Molambo de pano solto em fiapos de seda ou chita
rasgados a faca com nós por costura. Na altura dos ombros apenas meu busto, peitos de
fora, amostra da beleza total do congo bendito. Toda riscada pelas mãos do criador, sem
amarrotas ou enxovalhas. Solta na vida, na rua, nas esquinas encruzilhadas. Boca
pintada de batom carmim, encarnado da paixão e nas orelhas balangandãs grandes,
coloridos, combinados com as guias e pulseiras em estardalhaços musicais. Na cabeça
ornamento de luxo no couro raspado por obrigação. Pura fama de mulata assanhada para
os prazeres da carne, oblação. Meu corpo arde vulcão e na boca de grandes lábios o
gosto da carne do negro suado chegado em instantes, necessitado de atenção. Não diz o
que quer, mas me olha por baixo e eu de cima, desço do salto e me solto e vou ao
encontro desse desejo dengoso que me prende em seus braços e me faz solidão. Entre as
pernas do negro sua chave que fecha, peito que enche as mãos calejadas no cabo da
enxada, cana-de-açúcar chupada, sou bagaço espremido a força do desejo ardente na
respiração acelerada. Atada pelo cio, me faço andorinha para ser depenada. Volúpia
gritante do macho em pulsação, sou toda dengosa nos braços daquele que me quer
saciar... Rodo a baiana em ponta de pé bailando ao vento como folha seca caída da
árvore frondosa do quintal da casa grande na instância. Aos olhos da sinhá, sou cobra
criada em botija, o despacho encontrado no pé da lagoa onde a água não corre, risco
feito no chão, sou a canção do desejo do coronel na cama com suas senhoras. A falta de
respeito, sou o efeito da cana, embriagues. Malandra criada do lado de dentro do balcão
da venda, vendo o tempo passar e ficar marcado na palma da mão. Vendo a lembrança a
preço de banana e faço escorregar na casca todos aqueles que se atreverem cruzar meu
caminho sem tirar o chapéu, ofertar moedas ou molhar meus beiços de beijos doces.
Sarava para mim e para todas as moças faceiras da coroa da Oxum, dou risadas
escancaradas em cor de ouro de um lado a outro a mostrar os dentes brancos cuidados e
o resto do corpo em movimentos gingados salientes, intrépidos, impávidos de lado, de
banda, do bando de cima. Sou sina, garapa da cana, morena, mulata do congo... Princesa
das camas mornas, fogo de brasa, carvão. Atirada entre as pernas dos senhores de cor de
talco, palco efetivo de grandes espetáculos. Sou rastro, fome, sede e dor. Fruto proibido,
sou libido, instinto, desejo sexual. Consagrada pelos pés e pelas mãos, rodo, chamo,
corro e paro. Nasci da fusão do amor existente entre a volúpia da carne e a embriagues
do espírito, por aí, em dia de noite de lua cheia, nas calçadas das madames e no leito do
choro me fiz batizada as margens da vida, nas linhas traçadas. Ganhei enxoval
encharcado, roto, de panos usados e esquecidos dentro dos baús carcomidos de bolor
pelo tempo decorrido. Herdei apelido e agora tenho nome de peso, Molambo, aquela
que diz, promete e cumpre. Venho de cima das nuvens em rodopios, arrepio na chegada
e nas quebradas eu gingo porque cabaré que eu não mando, eu mando fechar. As portas
se abrem, as janelas se escancaram, os copos balançam e deixo rolar em minha presença
o cheiro da quenga dentro do seu ganzá. Saúdo seu Zé Pretinho, rainha Ginga e as
minhas aias pequenas. Sou quenga de coco lascada ao meio, secada ao sol do meio-dia,
hora da ave de rapina, sou sina, cismada, mato queimado pelo sol, a brasa aflita
saltitante, sou a errante flecha que acerta o alvo e sobre o meu cavalo eu monto e açoito,
sou coice pela estrada que cruza ligeiro a macumba estendida, quarada nas badaladas
dos ponteiros amancebados. Tira de pano em nó cego molhado, quarado de dia e de
noite, sou açoite no tronco e dou trono, dou o troco a quem por mim se atrever a passar.
Piso bem forte no chão que me segura e bato palma na roda de gira que me quer em
trabalho. Sou astro reluzente, lua minguante hemorrágica, aquela a quem se pede e faz
figa, fecha os olhos e mentaliza. Despacho de bebida doce, sou a voz algoz da açucena,
menina pequena mimada, Maria Molambo da encruzilhada das almas desencontradas, a
pluma do rabo do pavão em disparada, a que ata os pés e as mãos em cruz e pela via da
veia latente canta: _ Sou a dama de ouro/do vale da sombra/ saia rodada de renda/ a
fenda que se encrava/ o cravo bordado em molambo/ sou o tecido de teia/ dos fios de
ouro da cigana/ me veste de chita/ em farrapos de tiras/ espalha em mim o cheiro/ das
flores dos campos colhidos/ dê cá uma bebida, moça/ faça as honras e toque/ meu canto
é ouvido em todo lugar, porque cabaré que eu não mando, dou ordem e mando fechar...
Sarava todas as moças, exus e juremas catimbozeando neste lugar. Pais, mães e cavalos
assentados, dois passos para trás, três passos para a direita, três passos para a esquerda e
sete passos para frente para poder caminhar do lado da sombra da luz. Veio me ver esse
menino? Chegue mais perto, ande, saúde a moça em aperto de mão. Hum que mão
graúda, possante, prestigiosa. Utensílio de cabra macho afeiçoado ao trabalho de
arrancar touco e capinar mato. Mate a sede da gazela em prensa de mão pela mão em
ajuda e jure a mim devoção. Aperte a mão da dama da noite e afeiçoe também a ela em
apertos densos, estonteantes. Vá até o chão e toque as canelas que sambam e beije os
pés desta que baila solta, leve e livre no ar deste terreiro. Saúde a moça, ligeiro, acenda
um troço, preciso baforar... Baforar para que se abram os caminhos trancados do lado de
cá... Erga os braços em músculos rígidos, seu moço, isso, erga os braços para o alto com
a finalidade de descruzar o que está tão obscuro, turvo, sem claridade e sombrio do lado
desta vida que te faz ficar do outro lado da ponte sem querer atravessar e na tesoura do
destino eis moço temido pelas bandas de cá. Guerreiro valente de sangue rubro a correr
nessas veias das velhas correntes de destemidos orixás. Na fumaça do meu cachimbo eu
vejo que estás com o coração partido por causa da moça cravo e canela da rua de trás
que não te quer mais para chafurdar. Vejo a dor e o desespero deste cabra da peste
suado, homem de coração manso e arretado, pulador de cerca e conhecido amasiado de
camas alheias e corpos desalentados. Vejo uma sombra em volta e no sinal da cruz eu
renego toda a esquerda que se liberta e impede dos mansos trabalharem. Vou pegá-la
pelos cabelos e trazê-la de volta para os braços do amigo diante do meu altar. A dama
de copa de coração embrutecido, coberto por tecido que quero em molambo para a
minha saia aumentar. Vou trazê-la em poucas luas, cantando loas de se acasalar e na
oferenda da prenda um corte de animal gordo há de concretizar. Um banho de rosas
amarelas de sol, isso, colha os girassóis das manhãs e despeje em água fervida para o
moço se banhar. Se assente em pensamentos positivos, cante para a moça que a moça
vem e há de te ajudar. Em troca traga água que arde quando entra na boca, fumo de rolo
para poder baforar... Alforria essas mãos, bebe no meu caneco esse treco, bebe, danado,
bebe sem pestanejar. Mentalize, isso, pense na moça virada de costa e se apegue na saia
da molambo e nesta gira vou te amarrotar. Ta amarrado a mim desde agora, jogue fora
esse choro e venha para roda gingar. Dança na gira da Maria Molambo em palmas e
vibras... viche, a moça descalça da encruzilhada, deserta, até as pedras se cruzam, né
não? Na outra lua me lembrarei desses olhos cor de mel... Ai, sangue. Que é isso seu
moço? Faz isso não. Atingiu meu cavalo de cima abaixo, do lado do peito em golpe
certeiro. Estraçalhou lhe o peito comovido, virou cachoeira escarlate... Que foi isso seu
moço? Meu peito fechado inchou, foi plugado pelo golpe da navalha como flecha de
cupido e agora? Minhas mãos estão dormentes e trêmulas e do lado da orelha esquerda
sinto escorrer um suor todo frio. Meu corpo em arrepio escuta a voz que diz: É hora, é
hora, é hora... As mãos que se levam ao peito, quente, pulsante, profundo e as pernas
que já não se governam... Solto a última baforada do fumo de cravo enquanto subo para
o lado de cima e em cima da obrigação cai meu cavalo em molambos, o peito retalhado
em pranto de sorriso concupiscente, os braços em cruz desdobrados, ali, fechando os
olhos para visualizar o que havia por trás das cores do arco-íris, porta de entrada da
morada das moças, pretas velhas e encruzilhadas.
Ato II
Cena 1
TEMIS: ( cantando um bendito ou excelência ou ponto de moças) Resolvi desistir de
mim. Quase seis horas da manhã e ainda não consegui bater os ovos para a omelete, e
pensar que o óleo já há muito esquenta no fogão. Quebrar os ovos, separar clara da
gema, farinha, sal, frigideira, carne... Passo a mão na testa e um pouco de suor, sinto
ainda o coração bater, mas não tenho gosto. Está escuro ainda e o pavio curto da
lamparina não ajuda. Tenho desgosto a me enforcar, um quase nada de ar sair de mim e
nada entra... Droga, daqui a pouco os ovos já não servem mais de nada, bato duas três
vezes e paro cá com os meus botões... Tem barulho de vento e a janela vez assim
assopra... Não sei se ponho a farinha ou desisto mesmo, cheiro de queimado e uma azia
doída me invade. Sei não, não tenho a vida que pedi a Deus, nem pedi vida nenhuma e
aqui estou... Ai, agora me pego em blasfêmia, minha vó já me dizia que é um pecado
sem perdão ir contra ao que já está escrito, o que vem pronto, escrito em fios de ouro e
blasfêmia é um pecado sem perdão, o mesmo que atentar contra a própria vida... E os
que me ofendem, como devem se sentir? Melhor transformar em fios tudo isso e com
agulha boa e tela bordar bela tela, sem melancolia ou cólera, apenas deixar registrada
toda dor e depressão de palavras vãs, palavras remorso, malditas e mal ditas... Melhor
deixar essa tigela aqui e molhar o rosto. Tenho tanto desgosto, tanto desgosto, e essa rã
ainda se atreve a pular em mim. Nojo, ecaaaa! Vou cuspir! Assoar o nariz e limpar os
dedos para não grudar na farinha. O balde é tão alto e não quero subir no tamborete,
também não sei se ponho mais lenha no fogo, às vezes penso que o dia vai ser frio e
mais tarde talvez precise de esquento, um corpo, uma boca, mãos em calo para me
acalentar... Minhas mãos, meus braços, meus cabelos. Os pés se arrastam lentamente e
nem sei se ainda tenho tempo. Desisti de querer. Desisti de pregar o mesmo pedaço de
tecido no mesmo tecido e ficar a remendar a vida como se a vida fosse somente
retalhos. Resolvi querer pano novo. Pronto. Lavar novo pano no anil e estendê-lo em
outro varal, ao mesmo tempo em que não quero mais pano nenhum, nem a mim mesma
(dirige-se a uma quartinha, põe água em um caneco de alumínio, pega café e depois
acende o cachimbo). Já não sinto mais necessidade de você. A roseira não foi aguada e
todas as rosas acabaram murchando: caíram todas as folhas, despetalaram-se todas as
rosas e os espinhos já não servem. Também deixei nenhuma janela, nenhuma porta,
nem tão pouco fresta no telhado para que você voltasse a me assombrar. Agora vejo
minha imagem refletida no fundo dessa caneca e tiro a sorte na bora desse café e o que
vejo é um semblante confiante de si: há brilho nos olhos, um tom rosado nas bochechas
e bastante saliência nos lábios. Um novo corte de cabelo e uma nova fragrância no
corpo. Já não vejo mais as mesmas imagens de outrora: apagou-se a velha chama,
chamo a mim pelo meu nome que havia se perdido num eco sistema longínquo de
amargura, assim como acendeu uma nova centelha de esperança exata na multiplicação
de uma necessidade urgente de sentir alívio. Hoje me sinto aliviada, serena, com sorriso
singelo nos lábios e cheio de amor para dar. Agora o tempo é outro, o momento é outro.
Nada de se prender ao passado ou lembranças de coisas que já não existem mais. Novo
sol, novos sonhos, muita liberdade e pouco tempo de ficar com a mão no queixo
esperando a hora de ser feliz, não, nada disso. A felicidade é uma emergência diária,
não se pode esperar que ela viesse, é preciso buscá-la a cada dado momento de vida
(dirige-se a um lava pé: põe água na bacia, passa no pescoço, se vê em um espelho
quebrado posto a parede. Reflexiva, examina os dentes e busca ver dentro dos buracos
do nariz, dá a língua e sai a resmungar). Espere, ainda não estou pronta, espere, é noite,
hora de apagar as lamparinas, e da submissão aos maridos. Temos de satisfazê-los os
desejos das carnes. Nas camas somos conduzidas. Algumas usam lençóis especiais, com
a abertura no orifício e não há beijo de boca, conversa ou afagos, somos apenas
depósitos dos desejos alheios e de barrigas inchadas despejamos e não sabemos o que
na verdade é o prazer. É certo dizer que existiam aquelas mais afoitas, que se despiam
na intimidade, serviam aos seus homens com maestria, eram verdadeiras menestréis das
noites curtas de ambos. Se enroscavam nos corpos e cantavam e se derretiam por seus
homens. Antigamente as mulheres não tinham sentimentos respeitados por ninguém,
eram entregues aos seus maridos pelos pais como mercadoria e assim eram tratadas por
toda vida. Os homens eram instintivos e tinham um desejo de posse sobre as esposas
como se tinha pelas vacas, ovelhas e bens. Deitavam-se com elas para que as servissem
por obrigação. Elas se abriam e eles as invadiam, defloravam, demarcavam seus espaços
como se estivesse ferrando uma das cabeças de seu gado. Para estes, as mulheres não
podiam gemer, não podiam ceder, não podiam ser mulheres... Os desejos mais
fantasiosos iam buscar com as outras mulheres dos bordeis, dos bregas de beira de
estrada. Existiam aqueles que ousavam, não pediam, mas conduziam e no outro dia não
as encaravam, calavam-se e os diálogos não aconteciam. Antigamente se dizia que os
meninos eram presente das cegonhas e quando uma mulher ia parir, o pirraia era levado
para casa da avó, madrinha ou parenta distante e a barriga da mãe era explicada como
sendo barriga d’água. O corpo era objeto proibido, feio, desconhecido e tentador. A
toalha da mulher, homem nenhum podia se enxugar e não era por questão de higiene
não, era o receio de a mulher embuchar. Moça direita não podia deitar na cama de
homem, nem ficar de conversa sozinha com tal ser. Beijar na boca era pecado mortal,
caso acontecesse não podia comungar e tinha de procurar o padre para uma confissão e,
Deus, Deus, dependendo do vigário, tome penitências. Às vezes, eram tantos os padres
nossos, tantas ave-marias que o cristão, realmente desistia de cometer tal pecado danado
de bom. A primeira menstruação acontecia aos vinte anos e as mulheres estavam de boi,
sagravam feito vaca, estavam doentes e não podiam se levantar por alguns dias e não
existia absorvente e tinham de usar pedaços de pano usados, lavados e guardados para
um novo ciclo. Os homens eram afoitos e logo que engrossavam a voz, apareciam os
primeiros pelos, começavam a aparecer os primeiros fios do bigode tinham de ser
iniciados, eram levados pelos pais às casas das damas, casas de diversão. Ali bebiam,
dançavam e se deliciavam com as primeiras experiências de iniciação a vida adulta
sentindo o desejo latente aflorando pelo toque da pele com a pele. Ou aproveitavam os
escuros das noites e sem sentimento de culpa ou receio, afogavam-se nos abate das
jumentas. E nos relinchos do momento sentiam-se poderosos, machos, realizados. E
essas experiências, muitas vezes, era o esperado por esses homens pelas suas esposas.
Antigamente, quando os hormônios afloravam e os dois não aguentavam, fugiam nos
lombos dos cavalos, nos varões das bicicletas e tinham de casar par lavar a honra da
família. Não tinham nada, não era ninguém, mas moça desavergonhada o pai não mais
queria de volta a casa. (amarra um pano nos olhos, gira em torno de si, solta os cabelos
longos e passa a cortá-lo com uma faca) Sexta-feira, meu corpo frio, meu pulso fraco,
meu coração, ai ai, ainda tenho? Hoje não sinto mais necessidade de você, sinto
necessidade de mim, de me ver além do meu olhar e plantando outras rosas, semeando
novos jardins. Os ovos. A omelete e o que eu ia fazer mesmo que já nem sei... Agora
sim, o relógio aponta seis horas. Daqui a pouco passa a última caravana e tenho que ir
(excelência). Me esperam meus pais e tenho que rezar o terço, dizer os mistérios e
revelar mistérios que ainda não revelei. Menino, chamem as galinhas, andem, é hora de
tirá-las do poleiro... Cadê o pote, por onde anda minha visão que mesmo de óculos não
consigo enxergar? Desisti pronto. Vou agora mesma por os ovos para os porcos, jogar
água no fogão e alguém pode, por favor, abrir essa porta para mim. Abram, por favor, as
portas. O cheiro forte das naftalinas está me provocando espirros. Desisti, já disse,
desisti de ficar por aqui e não haver compreensão. Em outros tempos era diferente, eu
me lembro... De tarde sentava no balanço debaixo da mangueira e brincava de contar
história para o meu amiguinho que morava na casa ao lado. Desde que ele partiu que
nunca mais o vi. Dizem, os invejosos, que ele mora no além, do outro lado da vida, para
onde vou, sabe, depois, que aprontar essa omelete e pronto, já pus farinha, sal e o óleo
esquentou. Está chiando... Enquanto frita, desisti de mim, faz tempo, muito tempo, só
ainda não sei por que, mas desisti, é verdade (choro, silêncio, vai à mortalha pronta e
faz ROMANA de manequim. Aos poucos vai despindo-a e vestindo a mortalha que antes
estava a costurar, enquanto Dorinha põe a tampa do caixão com a ajuda da Iara).
Saudade dói mais que dor de dente, mais que dor de parto, parte pela meio ou na metade
o que se sente ou o que não se sente... Porque vai saindo assim sem trilha certa e a certa
altura vai envolvendo o ser acerca de um sentimento nostálgico e por mais que se queira
explicar, não se explica, apenas se sente e se vai assim... É ela austera, prepotente e está
no ser com a finalidade de ir ao encontro às lembranças mornas de outrora; autora de
desilusão, ascende ao de maior, quer estar no topo ao mesmo instante em que acende
uma centelha de humor negro. Por que se sente? Sabe-se lá, talvez porque tenha que ser
assim ou talvez porque, bem o porquê de verdade eu dizer (...) Bem ou mal, há um
motivo, um acaso, uma fresta para que ela possa se instalar. Haja uma cessão de
saudade para aqueles que fecham os olhos e se prendem e se compre na seção de
esquecimento em frasco pequeno, fechado embrulhado para presente, como dor de
dente, de parto e se parta logo que caia a primeira lágrima... Saudade vai de encontro a
alegria que sinto quando vou a esquina e compro sorvete (...) É olhar nos seus olhos e
não mais encontrar o brilho dos meus olhos. A porta está trancada e nem sei onde pus
as chaves. Deixei sobre o fogão a comida, caso chegue e queira comer, esquente no
forno, ponha a mesa, pegue prato e talher ou coma com as mãos mesmo. Não me
importo, não me interessa nem quero saber (entrega o cachimbo a ROMANA faz
cigarro de fumo enquanto dá detalhes na mortalha). Acendi um cigarro e estou vendo-o
queimar. Quanto tempo já não fazia isso? Há tempo que já deixei de contar o tempo de
dadas coisas, há tempo que nem sei se o tempo existe. Enquanto pinto esse quadro me
vêm essas coisas esquisitas... Penso em você, tudo bem? Posso? Perdão, use a sua
piedade cristã para perdoar qualquer coisa, o cheiro da tinta é muito forte e talvez eu
esteja meio que... Odeio ter de dar explicações e olhe que sei que você nem gosta, não é
mesmo, tanto que nunca me explicou nada. Às vezes acho que o céu não é mesmo azul,
sério, chego a acreditar que as cores simplesmente residem dentro de mim. Gosto de
inventar. Gosto de quebrar estigmas, gosto de você e de mim, por segundos. Nossa,
acabei de fazer uma mistura terciária. Pretendo batizar essa cor como descoberta minha,
o que acha? Desculpa, novamente eu e minhas inseguranças. É que você sempre foi tão,
como posso dizer, tão firme nas afirmações e decisões que; a porta está do mesmo jeito.
Trancada. Não sei onde está a chave. Já tentei abrir por vezes e por vezes fracassei. Será
eu um fracasso da vida? Nossa acho que sem querer, intuitivamente pintei seu rosto na
tela. Conheceria esses olhos, conheceria, em qualquer canto. Bom, muito bom trabalho,
mas se pudesse contornar mais as silhuetas do lado esquerdo da orelha e do queixo,
droga! Droga! Eu quase que sabia que isso iria acontecer. Desfigurei o seu rosto. Você
não me aparece mais na lembrança e vagamente tenho surtos e esse tão concreto me
deixei escapar. Vá esquentar sua comida e mastigá-la longe de mim, ande, vá... Odeio
lembrar sua salivação infernal e a comida caindo pelo canto da boca. Nojo. De você. De
mim. Desse quadro. Das tintas. Nojo tinta quadro mim você... Queimou todo o cigarro,
morreu completamente e a fumaça vaga pelos cantos da sala. Cala sua voz dentro de
mim, calo nos dedos de tanto manusear o pincel, infernal pincel que me cansa os
movimentos. A porta fechada, as chaves perdidas, a comida fria e uma sede de mim a
me infringir por completo, completo delito (pega o violino e toca, sobe no caixão, deita-
se, levanta. Caminha novamente até o lava-pé, lava novamente as mãos, se olha no
espelho, põe o dedo no nariz. Romana apaga todas as velas, Dorinha segue atrás de
Romana, vão até o lava-pés e repetem o gesto de Temis. Dorinha pega o violino,Temis
passa a acender novamente as velas, somente as azuis, senta-se na cadeira e passa a
bordar. Ensaiam uma ladainha) Do jeito que estou aqui, tenho certeza que não chego
no próximo dezembro. Estou dizendo, estou dizendo e ninguém acredita. Ainda bem
que todos os filhos já estão criados e criando suas crias, as crias de suas crias e assim
vão pela sorte de Deus. Só pela sorte de Deus é que se consegue ir tão longe. É, só eu
sei o que sinto, só eu sei o que se passa comigo. Ontem, inventei de pegar numa água,
para mim estava morna, mas eu acho mesmo, agora, que estava era quente, quente só
não, estava era pegando fogo. Se eu tivesse tido a ideia de ter colocado um ovinho de
codorna pra fazer o teste, tinha certeza que teria cozinhado porque estou é com a
moléstia, uma dor no corpo, uma dor na cabeça, uma dor nos músculos, uma fraqueza
nas pernas e nos braços que só eu sei sentir, tudo porque tinha que lavar minhas
calçolas. Se eu não lavasse, quem iria lavar? E eu lá sou mulher de entregar minhas
coisas íntimas para qualquer pessoa chegar e passar a mão, ficar esfregando, esfregando,
meter o cacete pra amolecer e depois jogar no quarador? Não, de jeito nenhum. As
calçolas são minhas, é obrigação minha lavá-las, isso quem me ensinou foi minha
madrinha que me criou, porque minha mãe, coitada, não deu tempo de me ensinar nada.
Depois de ter parido dezessete filhos e só eu ter escapado, foi acometida de um mal que
Deus a levou loguinho. Agora me encontro aqui, uma pia de louça pra lavar, o feijão
ainda por catar, uma trouxa de roupa pra engomar no ferro a brasa e eu sem conseguir
sair do lugar, sem conseguir se quer me mexer, coçar meu sovado que a tempo fervilha.
Será algum furúnculo atrás de nascer, porque né assim, eles procuram os lugares mais
descabidos para se aprochegarem. Quando não é o sovaco, são as virilhas, as polpas da
bunda, no centro das partes íntimas, entre a regada e o caminho da felicidade. Oh vida,
meu Deus, oh vida essa que a gente leva sem saber pra onde, sem saber de onde viemos
e se estamos mesmo no lugar que queremos. E eu aqui sozinha, desamparada, com um
espirro preso querendo se libertar, mas, mas, mas... A quem poderei pedir socorro? Se
me sento na rede, fico tonta, se me deito, fico a ver estrelas e carneirinhos pulando nas
nuvens, se me levanto, as pernas não obedecem meus comandos... Vou me valer de
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, socorrei-me minha santa, livrai-me desse mau
momento!! Pronto, encontrei o vick, agora posso empantufar meu nariz pra ver se
desentope, mas, se desentupir e começar a escorrer, eu não tenho um lenço aqui
pertinho de mim, não tenho papel higiênico, como vou me assuar? E se começar a
tossir? Vick é muito forte, o cheiro logo agita uma coceira infernal na minha garganta,
uma coceira, mas uma coceira que parece uma coisa. O catarro que está pregado no
peito sai mesmo que não queira... A latinha com areia, que sempre tenho pra cuspir
dentro, sempre deixo aqui no canto da parede, e, hoje, logo hoje, inventei de colocar pra
fora para mudar a areia e esqueci-me de trazer. Não esperava essa gripe assim, me
pegou desprevenida. Eu que sou sempre tão precavida, gosto de ter tudo no lugar, a
tempo e a hora. Logo hoje, hoje que não tenho casca de laranja nem eucalipto pra fazer
um cozimento. O gás tá seco e nem chamei ninguém pra trocar o botijão. O velho
inventou de ir pra maré e me deixou aqui, também se tivesse não fazia diferença, deita
nessa cama e dorme, dorme que se esquece do tempo. Melhor que vá que me deixe aqui
com meus botões que me viro. Viro é, viro nada, não consigo mexer nem com os olhos,
estou toda entrevada. Bem que eu não queria dormir sem rezar, mas de teimosa, já
sentindo o cansaço do corpo tive a infeliz ideia de deitar só um tiquinho, adormeci, de
dois balanços aqui na rede depois de tomar dois goles de café e um pão. Ai, a febre,
meu corpo pinica como nunca, pinica que só vendo. Estou toda moída, parece que
passei a noite na gafieira de seu Pepeu Sanfoneiro... Ai, ai, será que atravesso essa
madrugada, ninguém vai sentir o que estou passando, quero gritar e a voz não sai.
Preciso chamar alguém, alguém me escute! A chapa, a chapa me incomoda, dói o céu da
boca, não posso dar o goto, minha boca não saliva, socorro. Preciso fechar os olhos, eles
estão pesados, preciso de ir ao banheiro, estou de bexiga cheia, mas não posso mijar
aqui, assim na rede. Já pensou molhar a calçola, o meu vestido, a rede, os lençóis, vazar
até o chão, escorrer, escorrer e se o mijo encontrar a porta do quarto, e se for lá pra
sala... Que vergonha, meu Deus, que vergonha. Estou quente, estou fervendo e os meus
lábios estão ressecados. Agora me lembro de que não tomei meu remédio da pressão,
mas que horas são mesmo, nem tenho noção. Parece que escuto alguém fuçando a
janela, e agora minha Nossa Senhora Aparecida, e se for um ladrão? Não, não pode ser.
Sinto que meu coração está disparado, será arritmia? Na semana passada o médico disse
que eu evitasse fortes emoções, não podia me avexar, tinha que manter a calma, ouço
passos, no telhado, e agora meu Deus, não consigo mais prender o mijo e se fizer
barulho, será que eles vão embora e me deixam em paz? A porta, a porta do terraço, não
me lembro se fechei direito, não me lembro nem se está fechada, se pendurei as panelas
para caso alguém tentasse abrir caíssem e fizessem zoada. Não me lembro de nada, será
que estou com aquele mal e não sei? De repente me dá uns esquecimentos... E agora, e
agora? Sinto um queima vindo de dentro do meu estômago, pronto, agitou minha úlcera,
ai que gosto nojento, e é porque nem jantei fígado. Estou me sentindo um dragão. Estou
com ânsia, acho que vou colocar o café e o pão pra fora... Ai, escuto de longe o galo
cantar, preciso ver o que é isso, ai...
III ATO
Cena 1
DORINHA: (observando a mortalha no corpo de ROMANA tateando-o com a ponta
dos dedos) Ficou lindo, lindo, nossa. Trabalho de aranha. Os fios tecidos. Você e os
seus dotes. Lembro-me quando tecia vestidos de noivas e nenhuma sorte no amor, não é
mesmo? As grandes histórias e nenhum romance, e se alguém que você ama tanto
chegar e de forma imperativa ordenar que não chore, engula as lágrimas e entenda que a
vida é ciclo e que os ciclos se encerram? De repente perceber que o tempo é de repente
e no repente do tempo se soma a ação, o pensamento, a atitude não chega e tudo se abre
num vazio infinito? Espere, não fale, não diga nada, simplesmente escute, cutuque-se aí
com as palavras lidas e não se preocupe em dar resposta, afinal de conta nem tudo na
vida deve ser respondido com respostas. O silêncio. Somente. Não chore, não vejo
necessidade de lágrimas, eu mesmo já não choro mais. Engula as lágrimas. É preciso
entender que... ciclo e os ciclos se encerram. Fim da questão.
TEMIS: (com uma tigela a quebrar ovos e batê-los) Os ciclos se encerram. Fim da
questão. Por que então desenterrar os mortos, se o correto é deixá-los lá, onde estão?
(pensativa) pensar que houve um tempo de se chorar juntos, de se sorrir juntos e de não
se desgrudar. Se pensar que o de repente não era tempo calculado porque se acreditava
que tudo estava escrito e o amor estava escrito na eternidade, de antes do começo. A
memória me agride e o som da voz falando dentro de mim. Não consigo sair. Não vejo
alternativa e vou medindo os passos de lá para cá sem sessar. Alguém que você ama
num intervalo de tempo duradouro dizer que você, logo você é a ação da vivência feliz e
que agora deverá engolir cada lágrima e se cuidar, seguir, trilhar caminhos opostos.
Enxugue. Vá. Vá ao inferno e lá fique para a eternidade. Com lágrimas. Rangidos. Sem
sair. Sem poder mover a tramela posta na porta do lado esquerdo do quadrado que de
repente se transformou a sua vida. Engula. O choro. A saudade. A ausência. Todos os
planos e passe a borracha, faz favor, do tempo, nas verdades ditadas porque não servem
mais. Romana, você ainda tem a receita da simpatia, amarrar o nome em fita vermelha,
lambuzar com mel, jogar na encruzilhada para que o corpo seja, o corpo, todo o corpo...
ROMANA: Abandonada tantas vezes e, pelo menos, não choro mais. E para quê
chorar? Por qual motivo? Era uma vez e eu me lembro de dias passados a beira mar, a
céu aberto e nossos corpos nus dourados pela lua. Eu na sua, você na minha e nada de
portas fechadas... Uma visão? Não sei, estava escuro e nosso amor tornava claro.
Naquele momento nos amavámos, eu sei, eu me lembro bem e a necessidade um do
outro era sentida. Sai gato, deixa a carne aí em cima, sua comida já foi posta, sai, vai
atrás dos ratos que passaram a noite toda a roerem minhas fotografias. A faca está cega
e essa saga em mim, a me martelar. Espere, no momento certo quero saber a sua
opinião, agora não. Está quente aqui e você ainda não acabou esse novo ponto. Veja.
TEMIS: Nossa, bordei esse nome sem querer. Droga. Droga. Droga. Está vendo só? As
ações são involuntárias e ele ainda tem a petulância de mandar recado, dizer que eu
devo me arrumar para logo mais. Diz que quer me usar. Devo tomar banho de rosas e
vestir camisola nova. Ele que vá lá para as teudas. Hoje é dia de santo e quero rezar
minha novena.
ROMANA: Ai, ai, as lágrimas correm como água de cebola. Bem feito fez a Inês
coroada depois de morta. Estou amálgama. Rancorosa. Destampe a panela esclerótica.
Não vê que o feijão já está quase pronto.
TEMIS: Tolice a minha de esperar. Eu não. Mas quando começa a cair o dia e sinto que
já é sexta e nada de ninguém chegar. Eu somente. Eu. Na última estação do trem
esperando o nada. Por vezes repetida ação resultante em nada. Querendo ao menos uma
surpresa. Só lágrimas. Engolir o choro porque de repente o tempo passou e eu nem
senti.
ROMANA: A carne, chega, sai gato. Ai, uma dor nesse lado. O ciclo. Encerrou
DORINHA: Alguém fechou a porta? Está escuro e eu preciso de claridade. Acabou o
quesorene e nem posso acender a lamparina. Ei, escute, agora pode falar, pelo som da
voz posso saber onde você está.
Cena 2
TEMIS: O bordado, veja, espere. Ai, não, não me faça isso, ai, essa agulha é muito fina,
não. Está me dando uma mijadeira. O ciclo. Se encerra. Acabou. Mas eu não queria, não
queria... Deixe estar, pode bater a porta e ir, vá de uma vez e não olhe para trás. Não,
não olhe a cena que fica, o rosto deprimente que se instala, vá, vá de uma vez e não diga
palavras que venha se arrepender depois. Nem seja piegas ao ponto de se despedir como
se fosse uma obrigação, uma coação, um constrangimento, uma sujeição. A humilhação
é uma mortificação, um rebaixamento, uma desonra, é uma das piores coisas para um
ser humano, a humilhação, um aviltamento... E eu que não quero chorar, jamais, e eu,
logo eu que detesto choro, abomino, lágrimas rolando dos olhos sem controle, odeio
lamúria. O descontrole é um desgoverno de suas faculdades, a perda da razão, da lógica,
do bom senso; a humilhação e esse momento deprimente, deplorável, lastimoso, febril,
mísero de despedida... Sinal de fraqueza, de pusilanimidade. Se não me queres é porque
não me merece. Não se sinta superior, aéreo, elevado, não se ache porque encontrou um
novo amor, esses amores de, de olhos que se encontram enquanto passamos na rua, na
condição de ninguém ser de ninguém, essas coisas efêmeras, provisórias, fugazes,
passageiras. Amores de beira de estrada, de noitadas de motel barato em dia de
promoção... Um corpo bonito, um beijo mais caloroso, entusiástico, uma novidade, uma
nova posição, uma fantasia realizada. Faz fora de casa o que nunca teve coragem de
fazer dentro e já se acha amando. Amor, amor, um novo amor assim, nascido do nada,
do nada. Fácil, não, muito fácil, tudo muito fácil. Odeio alocução. Sermão. Falação.
Odeio e disse a mim mesmo que nada diria. Nada pronunciaria. O silêncio seria a minha
arma de arquivamento, iria me conservar, controlar, sabe, não metralhar esse momento
patético, enternecedor com choramingalhas, mas nunca é ou nunca pode ser como
pensamos porque pensamos tanto, não foi, pensamos tanto para nós dois e veja a que
ponto chegamos. Um novo amor, assim, como é assim o dia que nasce após o outro
findado, a lua depois do pôr-do-sol... Se quer ir mesmo, vá, pode ir de uma vez. Vá, vá
acolher-se nos braços de quem te merece ou na coisa melhor que te cabe, que te
compete, vá. Não, não pense que não fui eu quem não te mereci, foi você quem não sou
cativar meu coração de forma a sentir-se seguro, confortável ao meu lado.
DORINHA: As incertezas, as indelicadezas, essa estranha forma de dizer que ama, de
dizer, simplesmente dizer, esquecendo-se que existem outras linguagens, outros gestos
que até nos diz que o que foi dito pode não ser a verdade que se deseja. Uma questão de
ego e neste momento a inteligência pede passagem para o lugar do esquecimento.
Esquecemos a etiqueta, as normas, as formalidades e o desejo da agressão bate a porta
da falta de senso e se eu pudesse, agora, te alcançar com este objeto que em minhas
mãos vibra (a faca de cortar a carne), te partiria o corpo em partes dízimas, medíocre
ser, pequeno ser, causa de meus desafetos... Espere, escute, vire e encare meus olhos
como nunca teve coragem de realmente olhá-los. Perceba na profundidade do meu o que
está em mim, o que sai de mim, o que resta ainda em mim, veja, veja sem piedade,
apenas veja e guarde esta imagem... Quantos romances lemos juntos, você lembra?
Lembra? Ainda consegue lembrar-se de alguma coisa vivida por nós ou tudo já foi
deletado como um botão poderoso que num simples clicar joga tudo na lixeira do
esquecimento? Quantos romances, diga... Um, dois, quantos? Romeu e Julieta? O amor
que ia além da morte? Um ser capaz de morrer pelo outro? Um amor capaz de vencer as
mazelas sociais? E chegamos a desejar que assim fosse o nosso sentimento, como
romance do Shakespeare, sentimento de alma que transpassa o corpo, que está na carne
pulsante, carne gritando de amor, um pelo outro, ligados, em elos e a nossa aliança de
sangue como no romance da Moreninha, lembra-se? Lembra-se quando cortamos
nossos lábios em beijos mordidos para compactuarmos amor, eterno, amor e como
sorvíamos freneticamente os nossos sangues e não aceitávamos a poesia Viniciana que
dizia: “... eterno enquanto dure...", porque acreditávamos no eterno na etimologia da
palavra, o amor do Tristão e da Isolda, que renunciaríamos a tudo e a todos em nome de
nós mesmos, só nós bastávamos, só nós... É o meu ciúme que me descontrola, eu sei,
sou consciente, ciúme, ciúme descontrolado, esse desejo de posse como propriedade
privada, esse meu controle desenfreado de cada passo dado, de tornar você o eixo
condutor de minha vida. Você como o norteador do meu pensamento... Tudo em prol
de; e nós nos conhecemos tão bem, sabia como guardar suas cuecas, as meias, as
camisas da diária. Sabia a quantidade de sal da comida e a luminosidade do quarto e o
som ambiente. Sabemos como guardar as escovas de dente no banheiro e sabemos até
quando um usa a escova do outro, só para termos o prazer de sentir mais de perto o
hálito, a comunhão de... Sabemos a temperatura ideal da água do chuveiro que lavava
nossos corpos depois de uma boa noitada de amor. O sabonete que corríamos corpo
acima, corpo abaixo, grudados, laçados e a água morna, morna água que nos deixava
lassos, felizes por estarmos ali naquele momento só nosso, sabíamos até dos nossos
desafetos e como um poderia desamarrar os laços dados um no outro.
ROMANA: E achávamos que éramos felizes, se um soltasse um pum diferente,
sabíamos que a dieta era quebrada e que algo de estranho tínhamos comido, sabíamos,
sabíamos, sabíamos e agora não sabemos mais de nada. Somos estranhos, dois
estranhos, um estranho frente a outro estranho. Anos de convivência e dois plenos
estranhos a monologar... Eu sempre soube disse, eu sempre dizia que não ia dar certo.
Nunca acreditei mesmo que seria eterno, para sempre, porque para sempre só os finais
de contos de fada... A sua jovialidade, a vontade das novas descobertas, eu sabia e você
sabe disso, você e sua insistência e eu me deixei levar. Nunca me preparei para... Vá, vá
de uma única vez, vá e não volte mais, não esqueça nada e vire o rosto quando passar
por mim na rua... As coisas existem para serem, se não são é porque a existência é algo
duvidoso e essa música que me faz recordar, essa música que me enche os ouvidos de...
Talvez você já nem se lembre mais. É estranho não? Tudo é muito estranho, ainda
ontem deitados um ao lado do outro e quantos planos futuros. Quantas vezes transamos
pensando está fazendo amor? E uma outra pessoa deitada no nosso meio e um outro ser
instalado em nosso meio e o pensamento que julgava ser somente em mim talvez já
fosse projetar para ser de outrem, humilhação. Essa música escute. A música que toma
conta do espaço, que nos abre os polos, que nos transporta e a porta, abra, saia, saia,
abra essa droga de porta, merda de porta, porra de porta e vá quebrar a cara num outro
lar, ao lado de um outro ser desconhecido e o faço iludido como você me iludiu, vá e
faça o mesmo jogo, use do mesmo artifício, engane, faça-o sonhar. Apresente o vinho,
dance, faça strep, suba em pontos altos, transe ao ar livre, choque, chame a atenção,
mande flores, mande chocolate e lata, lata de amor feito cachorro doido e depois aplique
um pé no traseiro como está fazendo comigo agora. Eu odeio o amor, odeio sentir-me
amando, odeio ter me entregado a esse sentimento que me domina e a vontade de estar
ao seu lado. De sentir novamente o hálito quente de seus beijos... Veja!!! Veja, chegou o
roteiro de nossa viagem... Você quebrou o pacto, mudou a regra, já vai? Não quer saber,
espera, por favor, espera, eu não vou chorar, não vou, essa água que escorre dos meus
olhos não são lágrimas, espera, por favor, espera, não abre ainda a porta, espera, por
favor, não estou chorando, é essa terrível dor de cabeça, espera, escuta, você precisa
escutar, o roteiro, a viagem, não, não terá sermão, veja o roteiro, veja... Por favor, por
favor, escuta o que tenho pra te dizer... Para sempre, para sempre amor, amor, amor...
Ai, como dói essa pancada de porta que se fecha e não se abre mais...
Cena 3
DORINHA, ROMANA, TEMIS: Estou acordada? Nem sei se dormi. Amanheci em
mim com saudade. Os olhos choram e o coração não sabe o porquê. Existe razão para
isso? Talvez a sua ausência, talvez a falta de paciência de mim mesma. Amanheci e nem
sei que horas são. O relógio da parede está sem o pêndulo e o meu pulso borda uma tela
infinda. As cores não se combinam, as linhas não se entrelaçam e a inda nem sei qual
figura devo bordar aqui. Sinto o lado de fora da minha mão molhada. Enxuguei as
lágrimas com o lado rude de minha mão e dói o meu olho esquerdo. No canto do quarto
um retrato e a sua foto que me olha. Viro de lado e você está lá. Assusto-me, assou o
nariz e sinto sangue. Volto a chorar. Não quero mais chorar e a agulha me espeta o
dedo. Levo-o a boca e enquanto chupo o meu dedo, meus olhos encontram com os seus.
Nossos olhos como aquele dia lindo e mágico. Ainda era madrugada quando chegamos.
Fui deitar e você se dirigiu a cozinha. Adormeci e longe escutei quando a porta do
quarto se fechou. Sinto sua ausência como sinto a hora que você chega do lado da cama.
Acende uma luz suave e joga o seu corpo sobre o meu. Lentamente. Bem lentamente
seus lábios buscam os meus e sou intensamente beijada por seus lábios. Nossas bocas
ocupadas. Nossos corpos ali na quentura do momento e quente, bem quente escuto em
meu ouvido quando sua voz diz que nada, nada na vida nem ninguém acabará com o
nosso amor. Somos um do outro. Pertencemos um ao outro e um abraço forte, bem forte
me torna adormecida como num sonho profundo (TEMIS deita sobre o caixão,
ROMANA vai para frente da imagem de Santa Bárbara e DORINHA assume o lugar do
início, toca violino)
ORAÇÃO FINAL
Ó Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos
furacões, fazei com que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar
dos canhões não me abalem a coragem e a bravura. Ficai sempre a meu lado para que eu
possa enfrentar, de fronte erguida e rosto sereno, todas as tempestades e batalhas de
minha vida: (fazer o pedido) para que, vencedor de todas as lutas, com a consciência do
dever cumprido, possa agradecer a vós, minha protetora e render Graças à Deus, criador
do céu, da Terra, da Natureza; este Deus que tem poder de dominar o furor das
tempestades e abrandar a crueldade das guerras. Amém. Santa Bárbara, rogai por nós.