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Memória coletiva e contos de assombração: uma abordagem sobre a identidade e a tradição da cultura popular em Caldas, Minas Gerais. Marcelo Elias Bernardes 1 Resumo A reflexão deste trabalho fundamentou-se sobre uma investigação feita junto a alguns moradores de Caldas, Minas Gerais, acerca da prática tradicional de contar narrativas sobre assombrações. A metodologia da história oral possibilitou a aquisição de vários contos que serviram como vias de acesso a um imaginário coletivo profundamente presente na cotidianidade local. Nesse sentido, ao interpretamos seu conteúdo, entendemos que os contos são manifestações de uma religiosidade popular confeccionada a partir da interação entre as vivências em grupo e o mundo das representações. A memória coletiva é emblemática no processo de monumentalização da crença nas assombrações, permitindo o fornecimento de saberes e referenciais sociais transmitidos pela tradição oral e capaz ainda de promover de forma dinâmica a circularidade das ideias no município. Dessa forma, procuramos analisar a estrutura dos contos de assombração e seu papel na formação de uma concepção de realidade que desemboca na manutenção da identidade local, o que nos permite pensa-los como patrimônios históricos imateriais. Palavras-chave: imaginário; religiosidade; medo; oralidade; tradição Abstract The reflection of this work was based on an investigation carried out among some residents of Caldas, Minas Gerais, about the traditional practice of telling stories about hauntings. The methodology of oral history enabled the acquisition of several stories that served as access routes to a collective imaginary deeply present in the local daily life. In this sense, to interpret its contents, we understand that the stories are manifestations of popular religiosioty made from the interaction between the experiences in group and their world of representations. The collective memory is emblematic in monumentalization process of belief in ghosts, allowing the provision of knowledge and social references 1 Mestrando em Ciências Sociais pelo PPGCS da Universidade Estadual Paulista, campus de Marília.

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Memória coletiva e contos de assombração: uma abordagem sobre a

identidade e a tradição da cultura popular em Caldas, Minas Gerais.

Marcelo Elias Bernardes1

Resumo

A reflexão deste trabalho fundamentou-se sobre uma investigação feita junto a alguns

moradores de Caldas, Minas Gerais, acerca da prática tradicional de contar narrativas sobre

assombrações. A metodologia da história oral possibilitou a aquisição de vários contos que

serviram como vias de acesso a um imaginário coletivo profundamente presente na

cotidianidade local. Nesse sentido, ao interpretamos seu conteúdo, entendemos que os

contos são manifestações de uma religiosidade popular confeccionada a partir da interação

entre as vivências em grupo e o mundo das representações. A memória coletiva é

emblemática no processo de monumentalização da crença nas assombrações, permitindo o

fornecimento de saberes e referenciais sociais transmitidos pela tradição oral e capaz ainda

de promover de forma dinâmica a circularidade das ideias no município. Dessa forma,

procuramos analisar a estrutura dos contos de assombração e seu papel na formação de uma

concepção de realidade que desemboca na manutenção da identidade local, o que nos

permite pensa-los como patrimônios históricos imateriais.

Palavras-chave: imaginário; religiosidade; medo; oralidade; tradição

Abstract

The reflection of this work was based on an investigation carried out among some

residents of Caldas, Minas Gerais, about the traditional practice of telling stories about

hauntings. The methodology of oral history enabled the acquisition of several stories that

served as access routes to a collective imaginary deeply present in the local daily life. In

this sense, to interpret its contents, we understand that the stories are manifestations of

popular religiosioty made from the interaction between the experiences in group and their

world of representations. The collective memory is emblematic in monumentalization

process of belief in ghosts, allowing the provision of knowledge and social references

1 Mestrando em Ciências Sociais pelo PPGCS da Universidade Estadual Paulista, campus de Marília.

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transmitted by oral tradition and still able to promote dynamically the circularity of ideas in

the municipality. Then, we analyzed the structure of haunting tales and their role in forming

a conception of reality that ends in maintaining local identity, which allows us to think

them as historic immaterial patrimony.

Key-words: imaginary; religiousness; fear; orality; tradition

Introdução

Este trabalho propõe discutir os contos populares de assombração no município

mineiro de Caldas, procurando observá-los a partir de um prisma que coloca em perspectiva

a prática do contar enquanto elemento tradicional da cultura popular local e a memória

coletiva, carregando ainda em sua configuração elementos que exprimem uma religiosidade

de caráter popular construída na interação dinâmica entre representações cosmológicas

híbridas, típicas da formação cultural brasileira, e a experiência material humana. Nesse

sentido, ao considerarmos estes aspectos, entendemos que os contos de assombração

expressam uma crença popular inscrita em um imaginário historicamente construído e

impregnado na vida cotidiana da população local, permitindo que estes seres compartilhem

espaços públicos e privados a partir de uma relação tecida pelo medo.

Dessa forma, nossa investigação perpassa por diversas narrativas partilhadas pelos

moradores e que retratam uma relação de proximidade com o sobrenatural e seus

desdobramentos na realidade imediata. Os “causos”2, ancorados em uma memória coletiva,

atuam como vias de acesso ao mundo das representações locais, assegurando que os saberes

deste meio cultural sejam passados para as gerações seguintes, constituindo-se como uma

forma de conservação do passado (LE GOFF, 2003). Assim, observamos que as

assombrações carregam consigo a discursividade de um catolicismo que perpassou por

processos complexos de convergência cultural, anteriores à colonização e adquiriram maior

2 “Causos” é a palavra utilizada pela população local para se referir aos contos.

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complexidade a partir das relações interculturais com as etnias nativas e africanas, se

distanciando da doutrina oficial católica (MELLO E SOUZA, 1986), o que nos acena para a

necessidade de inseri-lo dentro da noção de catolicismo popular cunhada por Riolando

Azzi.

O catolicismo popular, em suas diversas manifestações históricas, esteve sempre

bastante próximo dos cultos africanos e ameríndios, gerando não poucas vezes

expressões religiosas que podem ser consideradas como verdadeiro sincretismo

religioso. (1978: 11)

Caldas se insere neste modus religioso, vivenciando uma pluralidade que carrega

elementos híbridos e convergentes de diversas fontes religiosas, característica típica das

religiosidades brasileira, organizadas e coerentes dentro de seu sistema simbólico. Como

aparato elucidativo é importante mensurar também que ao discutirmos o catolicismo

popular, devemos considerar a priori que ele não é uma exclusividade cultural brasileira,

visto que muitas práticas religiosas de cunho popular eram frequentes na Europa antes do

processo de colonização do Novo Mundo.

Entre narrativas de assombração e vivências religiosas

Comumente, a centralidade das mensagens transmitidas pelas assombrações gravita

em torno de uma moralidade acerca do pecado, na qual notamos uma condição de punição.

Portanto, dentro da concepção popular, alguns moradores, que vieram a cometer tais

transgressões cosmológicas acabam se tornando almas penadas após a morte com a

intencionalidade de quitar seus pecados e carregando ainda a função de advertir os vivos

para que não incorram no mesmo erro. C.Z.L.3 nos trouxe uma história que nos ilustra

melhor essa forma de compreensão cósmica da vida.

3 Entrevista realizada com C.Z.L. no dia 03/01/2015. Natural de Caldas. Atualmente mora parte urbana do

município.

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Segundo nossa narradora, Ana do Zé Jonas, que habitou o bairro urbano Morro da

Barreira, trabalhava como prostituta nas proximidades de sua casa, nas margens da rodovia

que dá acesso ao distrito de Pocinhos do Rio Verde e ficava ali durante as noites esperando

os motoristas, visto que eles eram os únicos clientes a quem eram oferecidos seus serviços.

Desde seu falecimento, C.Z.L. nos contou que ela aparece em algumas noites, naquele

mesmo trecho e entra nos veículos em movimento, mas apenas naqueles que estão

ocupados por um homem. Sua presença não era visível, apenas sentida e há alguns relatos

de motoristas que viam o banco do passageiro afundar.

Através da análise do discurso percebemos que há uma conexão hermética entre os

elementos deste conto. A prostituição emerge como um pecado passivo de perdão e sua

punição era vagar naquele mesmo trecho onde seus pecados foram cometidos. Outro

detalhe emblemático refere-se ao local onde Ana aparece, os carros dos motoristas, que

também são as únicas pessoas envolvidas nesta trama, o que faz uma referência bastante

clara ao seu modo próprio de realizar seu trabalho. Essa característica do pecado também

pode ser observada na narrativa que a adolescente J.A.T.A.4 nos traz, um conto famoso no

distrito de Pocinhos do Rio Verde.

Tinha um rapaz que maltratava a mãe dele, e um dia quando ele chegou do

trabalho, ela não tinha feito o almoço ainda porque estava arrumando a casa. Aí

tinha uma cela [...], ele pegou, empurrou ela e colocou nela [...] e começou a

bater [...] com aquele negócio. Depois ele sofreu um acidente e contam que ele

voltou, mas que ele tem o corpo de animal, mas a cabeça é dele mesmo. Corpo de

cavalo, a orelha não sei do que [...].

Este “causo” se apresenta como uma amostra da complexidade que envolve a ideia

de assombração, tal como concebida pelos moradores de Caldas, uma vez que entra em

perspectiva o antropozoomorfismo, presente em várias histórias e que é capaz de nos

revelar outra interface que esses seres apresentam, não apenas como espíritos dos mortos.

4 Entrevista com J.A.T.A. realizada no dia 15/09/2015. Natural de Caldas. Atualmente mora na parte urbana

do município.

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Ainda que a transformação indique uma característica que detém materialidade, diferente

das almas penadas que voltam do além-túmulo, a categoria do pecado encontra-se em

ambas as narrativas.

Nesse sentido, ao compreendermos a religiosidade como elemento implícito na

estrutura dos contos de assombração podemos vislumbrá-la sob a ótica de símbolos

amalgamados que sintetizam o ethos de uma comunidade (GEERTZ, 1989). O sentimento

religioso oferece lentes precisas que permitem ao indivíduo observar e apreender o mundo

que o rodeia e dessa forma, construa e ordene a sua realidade próxima.

[…] os símbolos religiosos oferecem uma garantia cósmica, não apenas para sua

capacidade de compreender o mundo, mas também para que, compreendendo-o,

deêm precisão a esse sentimento, uma definição às suas emoções que lhes

permita suportá-lo […] (GEERTZ, 1989:77)

O medo é outro sentimento que está alinhado à religiosidade dentro do sistema de

crenças da população de Caldas, de forma que lhe compreendemos a partir da perspectiva

de Delumeau (2009), como mecanismo que atua como defesa contra os perigos. Articulado

a esta posição também entendemos-no como uma representação determinada por princípios

culturais. Assim, é possível traçar uma cartografia dos medos coletivos, inseridos nos

contos e na prática do contar, que dialogam e se complementam, servindo de combustível

para a manutenção da crença. O medo da noite e do escuro são itens deste mapeamento que

não podem ser desprezados à medida que o conhecimento popular aponta este período do

dia como de maior incidência destas aparições. Neste ponto é preciso inseri-los em suas

historicidades como permanências no imaginário ocidental (DELUMEAU, 2009) e não

como uma produção peculiar da cultura local.

Outro medo que é apropriado por este sistema simbólico diz respeito à figura do

Diabo, entendido por algumas pessoas como o protagonista pelo aparecimento das

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assombrações. W.C.G.5, diz ter visto algumas assombrações, ouvido muitas outras e afirma

que “[...] essas coisas nunca são [...] essas coisas... assombração... nunca são por parte de

Deus né? Essas coisas são do diabo mesmo [...]”. O medo da Quaresma também é

cristalizado na mentalidade coletiva, caracterizando-se por um momento sacro da

cosmovisão cristã e se traduz em Caldas como um período em que as assombrações

aparecem com maior frequência.

As categorias do medo e da religiosidade se tornam emblemáticas em nossa

investigação uma vez que são capazes de produzir emoções a partir da interiorização

progressiva de um imaginário coletivo desde a infância, que envolve costumes, valores

morais e formas corretas de comportamento, transmitidos pela oralidade.

Durante a infância […] à noite meu pai sentava na taipa do fogão [de lenha],

nós, os filhos, sentávamos em volta. Alguns momentos ele ia nos ensinar rezar.

Nos outros momentos depois que ensinava, ele ia contar as histórias, os causos

de assombração do tempo que ele era moço, que saía muito […] e é lógico que

nós tínhamos um medo terrível […] 6

Portanto, essas duas categorias em associação fazem parte do modus operandi da

população caldense, indicando, em muitas ocasiões, que as explicações sobre fenômenos

cotidianos sejam interpretados sob a égide do sobrenatural, como nos fala L.A.S.7:

[...] esses dias para trás, eu estava lá em casa, acho que era em uma quinta-

feira, eu estava assistindo jogo lá, esse ano mesmo. Acabou [...] e eu fiquei

ouvindo uns comentários lá do jogo. Já era tarde, duas e meia da manhã e nisso

do nada escutei um barulho de um [...] parece [...] cavalo passando na rua.

Achei muito esquisito e saí para fora lá e não vi nada. Daí me veio na cabeça o

lance que eles falaram da mula-sem-cabeça.

5 Entrevista realizada com W.C.G. no dia 19/03/2012. Natural de Caldas. Atualmente mora no distrito de São

Pedro de Caldas. 6 Entrevista realizada com M.B.F. no dia 04/04/2012. Natural de Caldas. Atualmente mora no distrito de São

Pedro de Caldas. 7 Entrevista realizada com L.A.S. no dia 25/07/2015. É natural de Caldas. Mora atualmente na parte urbana do

município.

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Este trecho da entrevista possibilita-nos pensar como as assombrações possuem um

caráter complexo, a partir de sua variabilidade em termos de forma e sentido, com forte

poder explicativo da concreticidade. Para L.A.S., o barulho foi interpretado a partir da

ausência explicativa racional, o que nos permite afirmar que o campo no qual estes

discursos distintos estão inseridos é permeado por tensões e diálogos.

Patrimônio cultural: a memória coletiva e a circularidade das ideias na formação da

identidade

As assombrações atuam no cotidiano e nos mostram como as mentalidades não

podem ser observadas de forma cindida da vida social (LE GOFF, 1989). A eficácia deste

sistema simbólico reside na tradição oral e na memória coletiva e isso se destaca ao

identificarmos a ausência de documentos formais das instituições locais, como o hospital e

a polícia militar. Dessa forma entendemos que as situações que envolvem as assombrações

são interpretadas a partir da lente religiosa e combatidas, portanto através de práticas

mágicas, como as bênçãos. Aqui emergem atores importantes dessa rede cultural, como os

benzedores populares que atuam em suas residências, o pároco do município e os pais e

mães-de-santo nos centros espíritas8.

Esta crença tecida monumentalizada pela tradição oral nos permite perceber a

existência de um movimento circular das idéias, sintetizado por Ginzburg (2006) como

circularidade cultural, se apresentando como elemento orgânico da crença nas

assombrações e na dinâmica horizontal da mobilidade dos “causos” por vários bairros e por

um número incontável de indivíduos. Um exemplo desta colocação pode ser observado no

conto da mulher de branco, bastante conhecido no município e diante de sua veiculação

acabou sendo modificado, adquirindo versões diferentes, contendo itens que variam e que

8 É a categoria que a população usa para designar as religiões que possuem traços culturais africanos, como a

umbanda.

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podem implicar em ressiginificações mediante sua construção no tempo. Segundo T.A.P.9,

a tal mulher era uma alma penada que saia do cemitério.

E a mulher de branco, vinha ser do cemitério [riso]). Era uma mulher que saía

do cemitério e ia pros bailes. Ela tinha hora para chegar, no que saía do

cemitério, ia para os bailes. Ela tinha hora para chegar e sair. Então quando

saia, ela já avisava ao parceiro que meia noite tinha que sair. E uma certa vez,

um dos apaixonados dela, resolveu lhe seguir, e ela foi terminar o baile no

cemitério [risos]. Quando chegava na porta do cemitério ela ia embora.

Em outra narrativa sobre o mesmo personagem V.T.S.10 conta que

[…] essa mulher de branco saiu e teve um rapaz aqui na cidade […] se não me

engano é parente do Tuca […] que falou assim “Hoje eu pego essa mulher”. E

ele pegou e desceu atrás dela […] Aí então ela estava chegando na avenida

[Santa Cruz] ali embaixo. Ele pegou e correu atrás dela, tirou o capuz dela e só

estava o vestido branco. Na hora que ele tirou o capuz não tinha nada. Estava o

[…], o corpo já não tinha nada e saiu correndo [...]

No fundo disso, há dois pontos fundamentais a serem destacados. O primeiro diz

respeito à disposição desta narrativa em outras regiões do Brasil, o que mostra que a crença

nas assombrações não se configura como uma produção sui generis de Caldas. Portanto, a

rede da circularidade cultural é vasta e adquire tonalidades diferentes por meio dos

processos de tradução cultural (BURKE, 2010). A tradução cultural permite que as

narrativas sejam absorvidas segundo as disposições mentais locais. Assim, entendemos que

os contos de assombração possuem elementos peculiares que fazem parte do universo

mental caldense.

9 Entrevista realizada com T.A.P. no dia 26/03/2016. Natural de Caldas. Atualmente mora na parte urbana do

município. 10 Entrevista realizada com V. T. S. no dia 20/03/2012. Natural de Caldas. Atualmente mora na parte urbana

do município.

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O segundo ponto informa-nos que a rotatividade dentro do município pode

modificar o conto a partir do processo da transmissão de um agente a outro. Este

movimento não é necessariamente algo intencional, uma vez que a memória não é algo

sólido e que pode sofrer alterações (POLLAK, 1992; BOSI, 1994). No entanto, estas

modificações possuem um caráter mais profundo na medida em que a prática do contar é

secular no município, ainda que seja impossível apontar uma precisão de sua origem, ideia

que nos faz refletir que a transmissão de uma geração a outra já pressupõe mudanças nos

contos, visto que eles são reflexos do meio social em que são produzidos, reproduzidos ou

traduzidos.

Desta forma é perfeitamente possível pensar que os dois “causos” sobre a mulher de

branco podem ser produtos de temporalidades distintas. Segundo E.P. Thompson (1998), a

cultura popular envolve as interações sociais, a constituição das identidades coletivas e

fornece referências para as gerações futuras. Seguindo esta posição, nos defrontamos com a

necessidade de pensar a relação entre os sentidos cultura popular com as apropriações da

memória, sobretudo na dimensão que marca as experiências compartilhadas em grupo e sua

transmissão pela oralidade.

O conto é um relato de algum indivíduo que ao transmiti-lo a outras pessoas

contribui na tecitura das vivências coletivas e na manutenção da prática do contar e da

crença local acerca das assombrações. Tais narrativas, ao se debruçarem sobre valores e

normas socialmente estabelecidos se configuram como patrimônio cultural ao expressarem

um modo coletivo de apreensão da realidade e atuarem como instrumentos de cristalização

da identidade local. Nesse sentido, entendemos tal como Paul Thompson (1992) que a

história possui uma finalidade e deste aspecto emerge a necessidade de transmissão dos

saberes para as gerações futuras. Assim, o que permanece na memória coletiva, enquanto

formas e expressões do conhecimento, são os elementos que possuem significado para o

grupo e se desenvolvem a partir dos laços de convivência (HALBAWACHS, 1990). A

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partir deste ponto é que podemos identificar a criação do sentimento de pertencimento

pincelado pela memória de grupo.

Podemos, portanto, dizer que a memória é um elemento constituinte do

sentimento da identidade, tanto individual como coletiva na medida em que ela é

também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de

coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. [POLLAK,

1992:5]

As relações que se tecem na superfície da identidade não se configuram apenas

entre os indivíduos que reconhecem no outro uma imagem de semelhança a partir da

partilha dos mesmos códigos sociais. A identidade como constructo das interações promove

o desenvolvimento das representações coletivas que se estendem também sobre

determinados lugares. Dialeticamente, dentro da circulação cultural, são atribuídos

significados a estes locais que passam a atuar como símbolos que emolduraram e fornecem

sentido às próprias relações sociais que incutiram suas representações sobre estes espaços

da memória. As casas consideradas assombradas ilustram esta discussão e revela-nos como

o imaginário coletivo não pode ser observado de forma distante da vida cotidiana, como

vemos na narrativa de C.Z.L. sobre três senhoras que moravam no bairro rural Pereiras.

Elas eram muito católicas, mas muito mesmo. Então elas, solteironas, rezavam

muito. Não se sabe se era provação ou se [...] porque elas [...] os pais delas

eram da época dos escravos e eles (o povo) achavam que foi castigo. Meu pai

que falou isso. Quando elas estavam trabalhando, fazendo um café, colocavam

açúcar no saleiro e virava cocô de vaca (risos), de galinha. Elas estavam

dormindo, algo tacava fogo no colchão, sem ter ninguém dentro da casa, só as

três né? e também outro detalhe: cortava o cabelo delas no toco. As cadeiras

viravam ao contrário, derrubavam coisas da prateleira: xícara, panela, de tudo.

Então foi preciso chamar um padre de Santa Rita [cidade vizinha] para fazer um

exorcismo lá, porque elas rezavam muito né? E aí o padre chegou lá para fazer

isso. Começou a rezar e tomou um pontapé no peito que o rosário arrebentou no

meio e depois não se ouviu mais falar de ninguém ir lá benzer. Saíram da casa e

mudaram para Poços [cidade vizinha]. A casa ficou fechada.

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Em outra entrevista M.B.F. nos conta uma história que aconteceu com seus avós

que certa vez se mudaram

[…] para uma fazenda muito velha e todos os dias minha avó ouvia o barulho

nas telhas como se alguém estivesse jogando pedra ali, coisas que caíam e iam

rodando, mas ela não tinha medo. E um dia além do barulho no telhado, ela

ouviu bater na porta. Achou que era alguém que estivesse brincando e ela gritou

“Entra assombração, eu não tenho medo nem de noite quanto mais de

dia.”quando ela viu tinha uma mulher na cozinha com ela, sabe. Só que essa

mulher é desconhecida, ficou alguns segundos lá e depois desapareceu […] e ela

se recusou a ficar nessa fazenda. Eles tiveram que mudar por medo.

Portanto, existe uma conexão entre lugar, identidade e história, o que nos permite

problematizar que o conceito de lugar não pode mais ser definido apenas como um produto

geográfico, mas como uma construção social carregada de representações do imaginário

(TRAJANO FILHO, 2010). A memória acaba perpetuando as representações do medo

alocadas nestes lugares, contribuindo para que o imaginário permaneça na

contemporaneidade e dialogue com outras práticas, representações e formas de concepção

da realidade, como a racionalidade e os meios de comunicação e entretenimento que

carregam discursos distintos e que marcam fortemente as relações entre as dimensões

global e local.

Com base na coleta de dados etnográficos, percebemos que existem muitos lugares

em Caldas que se encontram em situação de abandono por possuírem o caráter de

assombrados. Sendo assim, notamos uma dificuldade em alugar ou vender tais patrimônios

entre a população. No entanto, algumas residências acabam sendo compradas por

indivíduos que não são naturais do município. Os compradores das residências

assombradas acabam sendo pessoas que não habitam a cidade, como turistas, o que nos

possibilita ver estas ocasiões a partir de uma disparidade em termos de compartilhamento

do mesmo universo simbólico. Observamos também que os locais sagrados, como as

igrejas do centro da cidade, Matriz e Rosário, carregam este estigma social sendo, portanto,

palco para diversas narrativas populares.

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A Igreja Matriz emerge como uma expressão da manifestação do imaginário

coletivo em um patrimônio específico, sugerindo-nos que a relação entre o profano e o

sagrado no catolicismo popular é, em grande medida, simbiótica e inscrita em um diálogo

de alteridade como forma de reconhecimento de si. Entretanto, o que nos chama atenção

nos “causos” sobre a Igreja Matriz diz respeito a uma antiguidade que nos fornece sólidas

referências sobre as modificações do espaço urbano na cidade. Até o início do século XX,

no largo da praça havia apenas uma capela com o cemitério municipal instalado em seu

fundo. Contudo, com o crescimento do número de óbitos foi necessário construir outro

cemitério, migrar os mortos e os túmulos para este novo local. A Igreja Matriz acabou

sendo reconstruída sobre o antigo cemitério que ainda tinha alguns mortos que não foram

transferidos, o que fundamentou a construção da simbologia em torno dela como um local

assombrado por almas penadas.

Conclusão: os saberes populares como visão de mundo e o discurso da racionalidade

O fazer da cultura, tecido nas relações sociais, promoveu a cristalização dos

conhecimentos populares enquanto expressões que permitem compreender o mundo

rigorosamente. Em Caldas, a partir das vivências firmadas no cotidiano, que foram

herdadas das gerações anteriores, a população ao longo de sua história desenvolveu sua

própria forma de se situar no mundo e no cosmos, na qual sua noção de realidade

compreende uma profunda relação entre o mundo dos vivos e o reino do sobrenatural, não

apenas como diálogos distantes, mas como uma convivência intima em um mesmo plano,

dividindo espaços e em grande medida todas as temporalidades do dia, porque segundo a

crença local esses seres não aparecem apenas pela noite.

Este imaginário secular permanente é um ponto de ancoragem dos saberes populares

que acumularam informações pela oralidade e que não podem ser analisados sob uma

perspectiva estagnada ou acabada. Uma das interfaces desse conhecimento reside

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justamente na sua condição de recriação e remodelação, como formas próprias de sua

continuidade. Neste contexto, as mensagens que são transmitidas por estes agentes do

sobrenatural, como não matar, não maltratar os pais, evitar sair sozinho pela noite, entre

outras, não podem ser vistas apenas por uma perspectiva mecânica durkheimiana de

solidariedade, tão pouco gramsciana na qual a cultura popular e suas concepções de mundo

são simplistas e necessitam passar por um processo de educação racional com a finalidade

de superação do senso comum.

Os conteúdos implícitos nos contos populares carregam formas de conhecimento

que estão atrelados aos modos de viver e organizar a realidade. A discussão levantada por

Levi-Strauss (2005) carrega uma maior lucidez ao redirecionar o olhar sobre a validade do

conhecimento tradicional, sendo considerado detentor de tanta complexidade quanto o

saber produzido pela ciência, mas que por se tratarem de formas distintas de interpretação

do real, acabam sendo observadas sobre o ponto de vista unilateral imposto pelo modelo

racional. De forma similar, o antropólogo aponta para a necessidade de enxergar o

pensamento, considerado mágico, como algo que possui um sentido próprio, não havendo,

portanto, uma hierarquia entre as múltiplas formas de pensamento. Para isso, é recorrente

que abandonemos estes antigos meandros do evolucionismo cultural, que nos faz enxergar

nestes grupos sociais nosso próprio passado (FAVRET-SAADA, 2005), para que possamos

interpretar de forma mais clara as disposições e motivações que norteiam as práticas e

representações destes grupos.

Foucault (2002) também fornece reflexões acerca do discurso racional como

detentor da verdade. Nesse sentido, ele problematiza a epistemologia da ciência enquanto

fundamento que desconsidera qualquer forma de pensamento ancorado em outra

perspectiva. Tal disposição universal deslegitima a produção dos saberes propondo o

monopólio do conhecimento a partir de um discurso fundamentado na verdade. Essa

problematização encontra relevância porque legitima as múltiplas subjetividades culturais e

seus campos de atuação. Assim, os contos de assombração atuam como conhecimento

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elucidativo de uma realidade que é regida e construída por uma interação entre dois

mundos.

Os contos populares envolvem elementos minuciosamente combinados e

desenvolvidos na história a partir de laços de convivência, o que permite que sejam

pensados como um complexo cultural e não apenas como crença, vista como uma condição

arcaica do pensamento humano. Ao possuírem sentidos que estão incorporados no ethos da

comunidade, necessariamente se constituem como parte da identidade local e servem como

referência de localização e interação com o mundo. Apenas partindo deste pressuposto é

que perceberemos a importância e a necessidade local para que os contos de assombração

fossem transmitidos para as novas gerações como continuidade de um modo de ser da

comunidade caldense. Portanto, olhar para estes contos sob a ótica da alegorização implica

em assumir uma posição política do discurso racional e científico, o que pode simplificar e

desqualificar a sua importância para aqueles cuja vida se encontra em sintonia com estes

aparatos cosmológicos. Este é o ponto em que consideramos os contos de assombração

como patrimônios culturais imateriais, porque além de refletirem uma identidade

constituída historicamente, que expressa representações e vivências coletivas transmitidas

pela oralidade, acabam atuando em grande medida como formas de resistência ao processo

de racionalização.

Bibliografia

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