Memorização musical

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EM PAUTA - v. 20 - n. 34/35 - janeiro a dezembro de 2012 187 CHAFFIN, Roger. Estratégias de recuperação da memória na execução musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491 Estratégias de recuperação da memória na execução musical: aprendendo Clair de Lune Roger Chaffin Learning Clair de Lune: retrieval practice and expert memorization

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    Estratgias de recuperao da memria na

    execuo musical: aprendendo Clair de Lune

    Roger Chaffin

    Learning Clair de Lune: retrieval practice and expert memorization

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    Resumo: Como um intrprete experiente memoriza com rapidez uma nova pea em apenas algumas horas de estudo? Em busca de respostas, gravamos as sesses de estudo de uma pianista profissional, durante seu aprendizado de Clair de Lune de Claude Debussy. Ela tambm nos forneceu relatrios detalhados sobre a es-trutura formal da pea e sobre os guias de execuo utilizados ao longo do aprendi-zado, bem como outras decises tcnicas e interpretativas. Estes relatrios foram utilizados para determinar os aspectos aos quais ela prestou ateno durante as sesses de estudo e os pontos em que ela teve problemas com a recuperao da memria. O treino das recuperaes con-sistiu em uma das principais atividades, ao longo das quase cinco horas despendidas para que a obra pudesse ser executada de memria. A pianista tentou tocar de memria desde o incio do aprendizado, utilizou a estrutura musical para organizar seu estudo e trabalhou com os guias de execuo para acelerar a recuperao a partir da memria de longo prazo. Por-tanto, os intrpretes praticam estratgias de recuperao, mesmo quando o tempo disponvel limitado.

    Palavras-chave: memria, memria de msicos profissionais, execuo musical, preparao, guias de execuo.

    Abstract: How does an experienced performer memorize when learning a new piece quickly, in just a few hours of practice? To find out, a concert pianist recorded her practice as she learned Clair de Lune by Claude Debussy. She also provided detailed reports on the formal structure of the piece, the performance cues that she selected to attend to while playing, and other decisions about tech-nique and interpretation. These reports were used to determine what she paid attention to during practice and where she had difficulty with memory retrieval. Retrieval practice was one of the main ac-tivities throughout the 4 hours needed to prepare the piece for performance. The pianist tried to play from memory almost from the start, used the musical structure to organize practice, and worked on per-formance cues to speed up retrieval from long-term memory. Performers practice memory retrieval, even when practice time is limited.

    Keywords: memory, expert memory, music performance, practice, performan-ce cues.

    Traduo: Fernando Rauber Gonalves

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    As biografias de msicos famosos contm relatos incrveis sobre suas capacidades de memorizao de vastas quantidades de material (Cooke, 1999, p.41). Experts em outras reas demonstram capacidades similares na memorizao eficaz, as quais parecem beirar o sobrenatural (Chase & Simon, 1973). No entanto, de acordo com a

    teria da memria em experts, a recuperao de dados, nestes indivduos, no funciona de

    forma diferente dos demais. As extraordinrias habilidades de memorizao dos experts po-

    dem ser explicadas segundo os princpios gerais do funcionamento da memria, aplicveis

    a qualquer indivduo (Chaffin & Imreh, 2002; Ericsson & Kintsch, 1995). O funcionamento

    superior da memria se d pela combinao de trs fatores: conhecimento, estratgia e

    esforo. O conhecimento dos experts, em seus respectivos campos do conhecimento, os

    habilitam a codificar novas informaes de acordo com padres pr-moldados e j existentes

    em sua memria (Mandler & Pearlstone, 1966; Miller, 1956; Tulving, 1962). Para um msico,

    estes segmentos de informaes incluem padres familiares como escalas, acordes e arpejos,

    cuja prtica constitui significativa parte do treinamento musical (Halpern & Bowser, 1982;

    Imreh & Chaffin, 1996/97). Em relao memorizao, os msicos e os artistas profissionais

    tambm utilizam esquemas de recuperao que, quando necessrio, os auxiliam no acesso

    aos agrupamentos que compem a memria de uma pea (Ericsson & Oliver, 1989). Por

    ltimo, as longas horas dedicadas ao estudo aumentam dramaticamente a velocidade de

    recuperao, tornando o msico profissional capaz de utilizar a memria de longo prazo

    para executar tarefas para as quais a maioria das pessoas dependeriam da memria de

    trabalho (Ericsson & Kintsch, 1995).

    A validade dos princpios de funcionamento da memria em experts, no campo da

    execuo musical, no uma obviedade, tendo em vista que os princpios aqui relatados

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    resultam de pesquisas com indivduos especializados em decorar informaes tais como

    sequncias de movimentos nos tabuleiros de xadrez (Chase & Ericsson, 1982; Chase & Si-

    mon, 1973), sequncias numricas (Chase & Ericsson, 1982; Thompson, Cowan & Frieman,

    1993) e pedidos de refeies em restaurantes (Ericsson & Oliver, 1989). Nesses campos, a

    primazia da memria declarativa (conceitual), enquanto as memrias motoras e auditi-

    vas so menos atuantes. A maioria das execues na tradio musical ocidental resulta de

    numerosas horas de estudo para assegurar que o msico possa contar com a capacidade

    de recuperao imediata de vastas quantidades de informao, exigindo do musicista

    memria automtica e implcita das sequncias motoras requeridas. O pianista Jrg Demus

    comentou que, durante a juventude, provavelmente a maioria dos intrpretes depende

    quase exclusivamente da memria motora: Quando voc jovem, toca (de cor) quase

    sem conscincia do que est fazendo ... mas em uma idade mais avanada ... esta aborda-

    gem inconsciente no funciona mais, portanto precisamos utilizar o crebro para ajudar o

    corao (Elder, 1986, p.129).

    O problema para qualquer um que dependa da memria motora implcita, seja estu-

    dante ou profissional, que, quando alguma coisa de errado acontece, e este um fato

    inescapvel, o msico no dispe de recursos para enfrentar estes momentos e acaba se

    debatendo com a msica, improvisando e tateando, na esperana de que algo lhe fornea

    um guia de recuperao que coloque sua execuo de volta nos eixos. Demus acredita que

    o risco de humilhao pblica, envolvido na eventual falha de memria no palco, leva a

    maioria dos jovens intrpretes a desenvolverem estratgias de memorizao mais confiveis.

    Utilizar o crebro uma forma de ajudar a memria motora, amplamente implcita, com

    um tipo mais explcito, a memria declarativa. Diz o pianista Leon Fleischer: Provavelmente

    o [tipo de memria] menos confivel na execuo pblica a memria digital, porque

    o dedo que nos abandona primeiro. Portanto, eu pensaria em uma memria estrutural ...

    (Noyle, 1987, p.97).

    O comentrio de Fleischer sugere que a memria declarativa, utilizada por um intr-

    prete para reter seu repertrio, pode ter estreitos pontos de contato e semelhanas com

    as memrias dos jogadores de xadrez, dos indivduos que conseguem decorar longas

    sequncias numricas, dos garons que conseguem reter vrias listas de pedidos sem se

    confundir grupos que foram estudados em pesquisas anteriores (Ericsson & Kintsch, 1995;

    Ericsson & Lehmann, 1996). A maior parte da msica ocidental de concerto hierarquica-

    mente organizada em movimentos, sees e subsees, de acordo com as propriedades

    harmnicas e meldicas do material musical. Esta estrutura formal fornece aos musicistas

    esquemas de recuperaes pr-moldados que podem ser utilizados como mecanismo de

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    acesso, confivel e flexvel, para a execuo de obras complexas. Os estudos da memria

    musical mostram que os msicos codificam a msica de acordo com seu entendimento

    do esquema estrutural, o utilizando para organizar sua prtica. Ao comearem e pararem

    nos limites de sees, os msicos estabelecem estes pontos como guias de recuperao.

    Se algum problema ocorre durante uma execuo, o msico pode pular para o prximo

    guia de recuperao e continuar com um mnimo de interrupo (Chaffin & Imreh, 1997,

    2001, 2002; Chaffin, Imreh, & Crawford, 2002). Intrpretes experientes prestam ateno

    estrutura musical durante sua preparao, resultando em representaes de memria que

    so hierarquicamente organizadas de acordo com a estrutura: os incios de sees so lem-

    brados com mais facilidade (Chaffin & Imreh 1997, 2002; Chaffin et al., 2002) e reconhecidos

    mais rapidamente (Williamon & Egner, 2004).

    Alm dos limites de sees, msicos experientes estabelecem outros guias de recu-

    perao para nortear sua execuo. Estes guias de execuo representam quatro aspectos

    principais de uma pea musical (Chaffin & Imreh, 1997, 2002; Chaffin et al., 2002). Os guias

    estruturais, que representam os limites de sees, j foram mencionados. Outro tipo de guia

    estrutural consiste nos pontos de troca, ou seja, quando um material musical idntico se repe-

    te em pontos diferentes da pea, criando o risco de confundir o msico sobre qual passagem

    est sendo tocada. Os guias expressivos representam os sentimentos musicais transmitidos

    audincia, como a surpresa ou o entusiasmo. Os guias expressivos fornecem outros nveis

    de organizao hierrquica, dividindo a pea em frases expressivas. Alm destes, existem

    tambm guias de execuo para a interpreo e para tcnica. A maior parte das decises

    sobre interpretao e tcnica feitas por msicos so automaticamente implementadas

    como resultado da prtica. No entanto, alguns guias devem ser monitorados, durante a

    execuo, para garantir que sejam realizados conforme o planejado. Esses se tornam guias

    interpretativos e guias bsicos de execuo. Os guias interpretatvos representam decises

    interpretativas crticas, como um decrscimo de dinmica que prepara um crescendo pos-

    terior. Os guias bsicos representam detalhes cruciais de tcnica, por exemplo, o uso de um

    dedilhado especfico para posicionar a mo para a prxima passagem.

    A Figura 1 mostra um exemplo dos guias de execuo utilizados pela pianista neste

    estudo. A figura mostra os guias bsicos, interpretativos e expressivos (representados por

    flechas), dos compassos 39-42 de Clair de Lune de Claude Debussy, com anotaes adicio-

    nadas pelo autor para propsitos de ilustrao. Trs guias de execuo foram marcados no

    incio do compasso 41. Para a pianista, este trecho consistia no clmax expressivo da pea.

    No nvel bsico, ela precisava posicionar sua mo para a sequncia de teras descendentes

    a seguir. No nvel interpretativo, ela precisava tocar forte. No nvel expressivo, ela precisava

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    transmitir o clmax expressivo. Os trs tipos de guias representam, portanto, diferentes

    formas de pensar sobre a mesma passagem. Neste compasso, os trs tipos de guias funcio-

    naram em conjunto, contudo, nem sempre este alinhamento ocorre. Quatro guias bsicos

    de execuo adicionais representam, na Figura 1, relaes harmnicas familiares, que

    eram marcos importantes para a pianista, sem, no entanto, demandarem ateno especial

    direcionada interpretao ou expresso. Os guias interpretativos e expressivos tambm

    podem ocorrer desvinculados de outros guias.

    Os guias de execuo so marcos que um msico experiente utiliza para monitorar a

    execuo de uma pea. O conjunto de guias forma um mapa mental que fornece meios de

    monitorar e controlar a ao rpida e automtica das mos, dando ao msico flexibilidade

    para se recuperar de erros e se ajustar s demandas idiossincrticas de cada execuo. O

    ato de pensar sobre os guias, durante o estudo, significa treinar justamente a recuperao

    da memria. O ato de prestar ateno em uma caracterstica da msica a estabelece como

    um guia de recuperao, de maneira que, durante a execuo, o guia possa ser lembrado

    automaticamente e sem esforo e, com isto, estimule os movimentos dos dedos, das mos

    e dos braos, deliberadamente estudados e necessrios neste ponto.

    O estudo consistente e consciente um fator indispensvel para que os guias de execu-

    o funcionem de maneira confivel, enquanto o msico estiver vivenciando a presso do

    Figura 1 Um exemplo do relatrio original pianista sobre os guias de execuo (indi-

    cados por flechas) para os compassos 39-42 de Clair de Lune de Claude Debussy com

    anotaes acrescentadas pelo autor.

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    evento, do pblico e da situao de palco (Chaffin et al., 2002). Para assegurar sua utilidade

    durante uma execuo pblica, a recuperao a partir da memria declarativa de longo

    prazo deve acompanhar a velocidade da execuo. Entretanto, este tipo de recuperao

    da memria geralmente um processo mais lento em relao aos processos perceptuais

    e motores (Ericsson & Kintsch, 1995). Por conta disso, intrpretes com menor experincia

    utilizam, no lugar desta, as memrias implticas motoras e auditrias. Para manter uma re-

    presentao declarativa explicta na memria de trabalho, durante a execuo, o intrprete

    deve ser capaz de pensar sobre o que vem adiante, durante o prprio desenrolar da pea.

    Sem um estudo realmente consistente, o fluxo musical constantemente interrompido,

    por exemplo, quando o intrprete hesita para poder se lembrar da prxima passagem,

    antes de toc-la. A prtica consistente necessria para evitar estas interrupes e tornar a

    recuperao, a partir da memria declarativa de longo prazo, rpida, automtica e confivel.

    Alcanar a integrao necessria entre pensamento e ao um dos principais objetivos

    das longas horas de estudo necessrias para aprender uma obra musical desafiadora.

    Ao estudar msicos que se confrontam com novas obras, observa-se que eles praticam

    de forma muito consistente os guias de execuo. Em um estudo realizado com estudantes

    de piano, constatou-se que o grupo mais avanado comeou a utilizar a estrutura musical

    para organizar seu processo de aprendizado antes que o grupo menos avanado o fizes-

    se, resultando em mais prtica dos guias estruturais e em execues mais satisfatrias

    (Williamon & Valentine, 2002). Estudos de caso longitudinais, com intrpretes experientes,

    mostram que eles incorporam os guias de execuo desde o incio da aprendizagem de

    uma nova pea. Uma pianista e uma violoncelista praticaram guias de execuo durante

    mais de 30 horas e 50 sesses de estudo para aprenderem, respectivamente, o Presto do

    Concerto Italiano de J.S. Bach e o Preldio da Sute para Cello N6 para execuo pblica

    (Chaffin et al., 2002; Chaffin, Lisboa, Logan, & Begosh, 2006).

    No entanto, o que dizer sobre msicas que no requerem um perodo de estudo to

    prolongado? Intrpretes experientes frequentemente aprendem novas peas com muita

    rapidez. Ser que esta memorizao mais rpida tambm envolve a prtica consistente de

    guias de recuperao? Dois estudos de caso longitudinais sobre o aprendizado de obras

    menos complexas, em perodos de tempo relativamente curtos, com intrpretes experien-

    tes, sugerem que os guias de execuo so indispensveis, mesmo nas obras mais fceis

    (Ginsborg, Chaffin, & Nicholson, 2006; Noice, Chaffin, Jeffrey, & Noice, 2008). A necessidade

    de incorporao consistente dos guias de execuo se reduz em comparao com as peas

    mais difceis, pois menos guias so necessrios e estes no precisam operar to rapidamente.

    Contudo, mesmo assim a prtica dos guias de execuo parece ter seu lugar assegurado.

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    Ginsborg et al. (2006) descrevem os comentrios de uma soprano e de um regente, durante

    as sesses de estudo individuais e em conjunto, na preparao da execuo do Ricercar 1 da

    Cantata de Stravinsky para soprano e tenor solistas, coro feminino e conjunto instrumental.

    Os comentrios dos msicos identificaram pontos que, posteriormente, foram considerados

    guias de execues coletivos e, nas sesses em conjunto, os msicos entraram em acordo

    sobre os guias de execuo que compartilhavam. Noice et al. (2008) observou um pianista

    de jazz memorizando um standard bebop de 32 compassos, In Deep Freeze de Hank Mobley,

    em duas sesses, totalizando 45 minutos de estudo. Guias estruturais, expressivos e guias

    bsicos de execuo foram identificados como pontos de partida. Intrpretes experientes

    parecem utilizar os guias de execuo em peas mais simples, da mesma forma que em

    obras mais desafiadoras.

    O presente estudo tem por objetivo comprovar a viabilidade da hiptese, segundo a

    qual intrpretes experientes incorporam os guias de execuo, mesmo quando aprendem

    rapidamente uma nova pea. Os estudos anteriores apresentaram evidncias diferenciadas

    sobre esta hiptese: comentrios (Ginsborg et al., 2006) e incios e interrupes durante

    o estudo (Noice et al., 2008). No entanto, os pianistas no estudo de Noice et al. no apre-

    sentaram a pea em pblico e pararam de estud-la asim que a memorizaram, antes de a

    obra estar pronta para a execuo pblica. O presente estudo examinou quatro tipos de

    evidncia, medida que uma pianista j estudada em Chafin et al. (2002) preparava,

    pela primeira vez, Clair de Lune de Claude Debussy para a execuo pblica. Embora Clair

    de Lune apresente durao similar ao Presto de Bach, a pianista antecipava um processo

    de memorizao mais fcil, em virtude do andamento lento. Segundo ela, isto permitiria

    bastante tempo para pensar sobre o prosseguimento da msica e porque, diferentemente

    do Presto, sua estrutura simples e no repetitiva apresentaria chances menores de confu-

    so em relao s diferentes repeties do mesmo tema. A dvida, no entanto, era se a

    pianista utilizaria os guias de execuo e a estrutura musical como apoio fundamental na

    memorizao, da mesma forma que ela havia feito no Presto.

    Caso a pianista tenha utilizado os guias de execuo e a estrutura musical para me-

    morizar Clair de Lune, ento constataremos que incios, paradas e repeties, durante a

    prtica, ocorreram com mais frequncia nos guias estruturais e nos guias de execuo do

    que em outras passagens da msica. Caso a pianista tenha treinado os guias de execuo

    como mecanismo de memorizao, verificaremos que as hesitaes, durante as primeiras

    execues completas, ocorreram mais nos guias de execuo assinalados do que em outros

    pontos da partitura. Vamos tambm comparar os comentrios espontneos da pianista,

    registrados durante seu estudo, com suas prprias descries sobre a memorizao da

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    pea, a fim deverificar se h correspondncia com o que pode ser inferido da execuo no

    momento. Por ltimo, examinaremos o emprego do tempo de estudo, especificamente

    a proporo entre a prtica efetiva e o tempo de reflexo, para comprovar que a pianista

    praticou constantemente a recuperao da memria.

    Metodologia

    A pianista

    Gabriela Imreh estudou piano na Romnia e atua como concertista nos Estados Unidos.

    A msica

    Clair de Lune, da Sute Bergamasque, de Claude Debussy, uma das peas mais aclamadas

    do repertrio pianstico. Sua capacidade de evocar sentimentos de tranquilidade, mistrio

    e encantamento tem garantido sua popularidade durante geraes e motivado sua seleo

    como pea de bis por pianistas. A pianista nunca havia aprendido Clair de Lune, contudo

    estava familiarizada com esta conhecida pea e j havia tocado outras obras de Debussy

    durante sua carreira. Apesar de harmonicamente complexa, Clair de Lune no apresenta

    maiores dificuldades tcnicas e sua estrutura ABBA simples pode ser compreendida sem

    dificuldades. Sua execuo dura aproximadamente 5 minutos, sendo composta de 72

    compassos, em compasso ternrio composto 9/8.

    SESSES DE ESTUDO

    A pianista gravou suas sesses de estudo, desde o primeiro contato com a obra ao piano

    at a primeira execuo pblica, duas semanas depois. As sesses 1-5 ocorreram em seu

    estdio e foram gravadas em video. As sesses 6-7 foram gravadas na sala de concerto, no

    dia anterior e no dia da primeira execuo pblica, mas somente o udio foi registrado. A

    execuo pblica no foi gravada. A pianista no realizou um estudo mental sistemtico e

    no estudou a partitura longe do piano, portanto nossos dados cobrem todo o processo

    de preparao da pea. O aprendizado de Clair de Lune ocorreu durante uma intervalo de 3

    meses (entre as sesses 12 e 14) que entremeiam o aprendizado do Presto de Bach, descrito

    por Chaffin et al. (2002, pp. 97-100). Neste momento, a pianista ainda no tinha formulado

    sua ideia a respeito dos guias de execuo, articulada pela primeira vez quatro meses depois

    como parte da descrio de seu processo de memorizao do Presto.

    Cada nicio e interrupo do estudo foi anotado e transcrito. Durante a prtica, a pianista

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    comentou, periodicamente, o que estava fazendo. Estes comentrios foram transcritos e

    classificados por tpicos (veja Chaffin et al. 2002, p.140-141).

    O andamento-alvo mdio de execuo em cada sesso foi medido atravs de um me-

    trnomo eletrnico, para que correspondesse ao andamento da execuo em dez pontos

    da obra de cada sesso, espaados em intervalos de tempo praticamente equivalentes. Em

    cada ponto, o andamento medido foi o andamento-alvo que a pianista objetivava tocar em

    cada segmento, ignorando pausas momentneas e hesitaes. As taxas ou frequncias de

    estudo obtidas em cada sesso consistem no nmero mdio de batidas tocadas por minuto,

    durante toda a sesso (nmero de segmentos de estudo X durao mdia dos segmentos

    de estudo em compassos X 3 tempos por compasso) / (tempo de execuo em minutos).

    O tempo de execuo foi a durao da sesso gravada, menos o tempo no qual a pianista

    no tocou durante incios, finais e quaisquer outras pausas de mais de 30 segundos. A razo

    entre a frequncia/andamento expressou a discrepncia entre a frequncia de estudo e o

    andamento-alvo (frequncia de estudo/andamento-alvo; veja Chaffin et al., 2002, p.126-135

    para mais detalhes sobre cada uma dessas medies).

    SESSES DE ESTUDO DA EXECUO COMPLETA

    As primeiras vezes que a pianista tocou integralmente a pea de memria foram pon-

    tuadas por hesitaes. Seis execues ininterruptas foram examinadas para determinar

    onde as hesitaes ocorreram, duas em cada uma das sesses 4, 5 e 7. Os dados obtidos,

    nestas execues, foram combinados para calcular o andamento mdio de cada compasso

    entre as execues, para formar duas etapas mdias de execuo. As execues iniciais (duas

    da sesso 4 e uma do incio da sesso 5) foram representativas das primeiras execues

    nas sesses 4 e 5. As execues posteriores (a ltima execuo da sesso 5 e as duas da

    sesso 7) foram representativas da execuo mais polida nas sesses 6 e 7. Aps escutar

    as gravaes, a pianista considerou as ltimas execues como as mais prximas de sua

    inteno artstica.

    Intervalos entre compassos (IEC, em segundos) foram medidos para cada execuo com

    um software de processamento de udio, do incio da primeira nota em cada compasso

    ao nicio da primeira nota do prximo, e convertidos em estimativas de andamento em

    tempos por minuto ( andamento = (1 / IEC segundos) * 3 * 60). 1

    1 Nos compassos 1 e 9, no h nota no incio do compasso. Nestes casos, o incio do compasso foi determinado por interpolao.

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    RELATRIOS DA PIANISTA

    A pianista relatou as caractersticas da msica nas quais prestou ateno ou a partir

    das quais tomou decises durante a prtica, aproximadamente seis meses aps a primeira

    execuo pblica, quando a pea ainda estava bem presente em sua memria e em seu

    repertrio. Os relatrios foram organizados em 12 dimenses, que representaram a maioria

    dos aspectos musicais considerados pela pianista (veja a Tabela I; veja Chaffin et al., 2002,

    p.166-176 para mais detalhes). As dimenses estruturais descrevem sua compreenso da

    organizao temtica da pea (delimitaes de sees2 e pontos de troca). As dimenses

    da execuo descrevem os guias de execuo focalizados pela pianista, enquanto tocava

    (expressivos, interpretativos e bsicos). As dimenses interpretativas moldaram o carter

    musical da pea (fraseado, dinmicas, andamento e pedalizao) e as dimenses bsicas

    descrevem os fatores necessrios para a execuo correta das notas (padres familiares,

    dedilhados e dificuldades tcnicas).

    Tabela 1. Dimenses de estudo utilizadas pela pianista

    Dimenso Descrio da dimenso

    Estrutura musical

    Limites de seo: incios e finais de temas musicais, dividindo a pea em sees.Pontos de troca: lugares nos quais duas repeties do mesmo material comeam a divergir.

    Guias de execuo

    Expressivos: emoes que devem ser transmitidas durante a execuo (por exemplo, tenso ou tranquilidade).Interpretativos: fraseado, dinmicas, andamento e utilizaes do pedal que ainda demandam ateno durante a execuo.

    Interpretao

    Fraseado: agrupamento de notas para formar unidades musicais.Dinmicas: mudanas de volume, ou nfase em uma srie de notas para formar uma frase.Andamento: variaes na velocidade.Pedal: utilizado para colorir o som atravs do controle da ressonncia e da durao.

    Tcnica bsica

    Dedilhados: escolhas que fogem do padro usual para tocar certas notas.Dificuldades tcnicas: lugares que requerem ateno aos aspectos moto-res (por exemplo, saltos).Padres familiares de notas: por exemplo, escalas, acordes ou arpejos.

    2 A pianista identificou as seguintes sees e sub-sees (nmeros de compasso entre parntese): Aa (1-8), Aa1 (9-14), Ab (15-19), Ab1 (20-26), Ba (27-30), Ba1 (31-42), Ba2 (43-50), Aa2 (51-58), Aa3 (59-65), Coda (67-72).

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    Para produzir os relatrios, a pianista fez marcaes em cpias das partituras, que foram

    cortadas em pequenas sees e coladas em pginas maiores. Um exemplo do relatrio

    das dimenses bsicas mostrado na Figura 2, para os compassos 39-42. As setas indicam

    as caractersticas da msica sobre as quais a musicista havia pensado, durante o estudo,

    distinguindo dificuldades tcnicas, dedilhados e unidades conceituais (chamados de

    padres de familiaridade na Tabela 1 e nos demais pontos da partitura para mais clareza)

    marcadas em dimenses distintas. As dimenses interpretativas e os guias de execuo

    foram relatados de maneira semelhante em duas pginas adicionais. O relatrio dos guias

    de execuo para os mesmos compassos encontra-se na Figura 1.

    Os compassos 39-42 representam o clmax da pea e a ateno dada pela pianista para

    esta passagem crucial se reflete no elevado nmero (33) de caractersticas bsicas, mar-

    cadas na Figura 2. Observe, no entanto, que somente os guias bsicos de execuo foram

    Figura 2. Um exemplo dos relatrios fornecidos pela pianista sobre as caractersticas que envolvem aspectos tcnicos bsicos, pensados durante o estudo dos compassos 39-42, separados em trs dimenses (dificuldades tcnicas, dedilhado, unidades conceituais/

    padres de familiaridade). As caractersticas so indicadas, respectivamente, por flechas ascendentes e descendentes.

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    relatados para a mesma passagem, na Figura 2. Esta constatao no foge ao normal; os

    guias de execuo bsicos formam um subconjunto seleto das caractersticas bsicas. A

    maioria das caractersticas bsicas tornaram-se automticas com a prtica, prescindindo

    da necessidade de ateno durante a execuo. Somente um pequeno nmero de carac-

    tersticas bsicas, escolhidas como parte do mapa mental da execuo, tornaram-se guias

    bsicos de execuo neste caso especfico.

    ANLISE

    Para determinar se a pianista estava estudando os guias estruturais de execuo que ela

    prpria havia identificado em seus relatrios, anlises regressivas diversas foram utilizadas,

    a fim de relacionar a quantidade de guias de execuo, relatados em cada compasso, com

    a quantidade de vezes que cada compasso foi estudado e com a fluncia durante a exe-

    cuo de memria. Foram consideradas vriaveis referentes aos aspectos quantitativos de

    estudo (nmero de incios, paradas e repeties do mesmo compasso) e o andamento por

    compasso na execuo integral da pea, bem como variveis de previses, representando

    os relatos da pianista sobre estrutura musical, guias de execuo e caractersticas nas di-

    menses interpretativas e bsicas (veja a Tabela 1), agrupadas em conjunto. Onze previsores

    relevantes presente hiptese sobre memorizao foram selecionados, a partir de uma

    anlise exploratria, que incluiu todos os 22 previsores descritos no prximo pargrafo.

    As doze dimenses da Tabela 1 resultaram em 21 previsores. O nmero de notas em

    cada compasso tambm foi includo como um previsor em todas as anlises. Os relatrios da

    estrutura musical foram representados por cinco previsores: o primeiro e ltimo compasso

    em cada seo (codificados como variveis descartveis); a posio serial do compasso em

    uma seo numerada a partir do incio da seo; o nmero de pontos de troca relatados

    em um compasso; os compassos antes de pontos de troca. Cada um dos guias de execuo,

    agrupados em bsicos, interpretativos e expressivos, foi representado por trs previsores.

    Os relatrios dos guias de execuo foram codificados pelo nmero de guias relatados, por

    compasso, para cada dimenso. Para identificar os efeitos em compassos limtrofes, os com-

    passos anteriores e posteriores aos guias de execuo bsicos, interpretativos e expressivos

    foram representados pela alterao da posio dos previsores um grau (compasso) para trs

    ou para diante. Por exemplo, a fim de representar os compassos anteriores e posteriores aos

    guias bsicos de execuo, as variveis que os representavam foram deslocadas uma coluna

    para cima (anterior) ou uma coluna para baixo (posterior) na matriz dos dados, criando

    dois novos mecanismos de previso que representavam, respectivamente, os compassos

    anterior e posterior aos guias bsicos de execuo. (Os compassos anteriores aos pontos

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    de troca, mencionados anteriormente, foram codificados da mesma forma, um compasso

    aps sua ocorrncia). Por ltimo, os relatos das dimenses bsicas e interpretatvas foram

    codificados pelo nmero de caractersticas relatadas por compasso, para cada dimenso

    interpretativa (fraseado, dinmica, andamento e pedal) e para cada dimenso bsica (de-

    dilhado, dificuldades tcnicas e padres familiares).

    Houve divergncias quanto aos previsores selecionados para o estudo e para o anda-

    mento da msica, a partir das anlises exploratrias. Tanto em relao ao estudo propria-

    mente dito quanto ao andamento, a estrutura foi representada pelos primeiros e ltimos

    compassos nas sees e pela posio serial, os guias de execuo pela quantidade de cada

    tipo (bsicos, interpretativos e expressivos) e pela quantidade de notas. Alm disso, as an-

    lises das sesses de estudo incluram: compassos anteriores e posteriores aos guias bsicos

    de execuo; compassos anteriores aos guias interpretativos; compassos posteriores aos

    guias expressivos. Os mesmos previsores foram utilizados para o andamento com a adio

    dos pontos de troca e a omisso de compassos anteriores aos guias bsicos, totalizando 11

    previsores para as sesses de estudo e para o andamento.

    As correlaes entre os previsores foram, em sua maioria, pequenas (r

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    a execuo ininterrupta dos compassos indicados no eixo horizontal. Cada vez que a exe-

    cuo para e reinicia, um novo segmento mostrado na linha acima. (O incio do primeiro

    segmento de estudo de cada sesso indicado na esquerda pelo smbolo >). De acordo

    com os grficos das sesses de estudo, o aprendizado foi dividido em quatro estgios. Os

    resumos estatsticos so relatados abaixo, assim como os comentrios da pianista durante

    sua preparao.

    Tabela 2. Sesses de estudo e caractersticas dos segmentos ao longo das duas semanas

    do perodo de aprendizado. Estgio

    Estudo por seo Agrupando sees PolimentoSesso Sesso Sesso Sesso Sesso Sesso Sesso

    Estatstica descritiva 1 2 3 4 5 6 7

    Dias do incio da prtica 1 2 3 11 12 13 14

    Durao da seo (horas:min.) 01:06 00:36 00:33 00:55 00:56 00:30 00:13

    Mdia de durao dos segmentos (em compassos)

    4,3 4.3 5 16.3 23.5 11.8 19.5

    Nmero dos segmentos de estudo

    172 111 89 40 33 33 9

    ESTUDO EXPLORATRIO (SESSO 1)

    A pianista iniciou a sesso 1 lendo a partitura (esta leitura no consta no grfico de

    estudo). Depois tocou, primeira vista, toda a pea com muitas interrupes, porm sem

    parar para trabalhar em nenhum ponto especfico. Com este tipo de abordagem, a pianista

    concluiu o primeiro estgio de explorao, cujo intuito foi o de formar uma imagem musical

    da pea e identificar os principais marcos e as questes a serem adminstradas (Chaffin,

    Imreh, Lemieux & Chen, 2003; Neuhaus, 1973).

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    Figura 3. Registros cumulativos de estudo para a sesso 1, indicando onde a execuo

    iniciou e terminou. Os registros devem ser lidos de baixo para cima.

    ESTUDO POR SEES (sesses 1-3)

    O prximo estgio foi caracterizado pelo estudo por sees. Ele durou at a sesso de

    estudo 3. A pianista trabalhou a pea em sees, dividindo o tema A em duas subsees

    principais, trabalhando, primeiro, nos compassos 1-14, e depois nos compassos 15-16, an-

    tes de junt-las. Ela ento realizou o mesmo procedimento para o tema B nos compassos

    27-50. A sesso 1 foi concluda com outra tentativa de tocar a pea inteira. Na sesso 2, a

    pianista iniciou com passagens j trabalhadas e ento concentrou-se no clmax da pea, nos

    compassos 41-42, estabelecendo os guias de execuo mostrados na Figura 1. Este trabalho

    ainda no estava finalizado quando a pianista precisou parar por conta da fadiga:

    Eu queria ter um pouco mais de resistncia para trabalhar mais. Tenho certeza que conseguiria alcanar meu objetivo logo. [Mas] estou muito cansada ... tentarei amanh. Espero conseguir um pouco de tempo para trabalhar nisso.

    Ela no conseguiu continuar sua tarefa e, no dia seguinte, precisou viajar para um recital.

    Quando ela retornou, oito dias depois, o trabalho nos compassos 41-42 foi retomado na

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    sesso 3. Esta sesso de estudo foi concluda com trs execues do incio da pea at o

    compasso 50.

    Mesmo sem ter finalizado seu estudo por sesses, a pianista passou para o prximo

    estgio na sesso 4, tendo como obetivo tocar toda a pea de memria. A pianista iniciou

    a sesso 4, tentando tocar a pea at onde fosse possvel de memria. Ela conseguiu exe-

    cutar a pea sem a partitura quatro vezes com xito. A sesso 5 prossegiu com o mesmo

    padro, com a pianista alternando o estudo da seo final, at ento negligenciada, com

    a prtica da execuo de memria.

    Figura 4. Registros cumulativos de estudo para as sesses 2-3, indicando onde a execuo

    iniciou e terminou. Os registros devem ser lidos de baixo para cima.

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

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    34**

    0.27

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    0.66

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    11

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    250.

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    0.33

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    0.32

    0.20

    0.36

    Exp

    ress

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    -2.5

    33.

    88-3

    .58

    -0.7

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    .91

    0.51

    -0.3

    8-0

    .09

    -0.2

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    -0.2

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    -0.0

    6*-0

    .05*

    -0.1

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    ***

    0.38

    **0.

    53**

    *0.

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    *0.

    190.

    28*

    0.31

    *0.

    27*

    0.16

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    POLIMENTO (sesso 6)No dia anterior ao concerto, aps o aquecimento, que consistiu em duas execues

    integrais de Clair de Lune no palco, a pianista descobriu que a seo final ainda apresenta-

    va problemas: Obviamente, a ltima pgina ainda mais fraca, pois eu a comecei muito

    depois do que as outras e trabalhei muito menos nela (sesso 6). Ela repetiu o mesmo

    procedimento novamente na manh seguinte (sesso 7) e apresentou a pea como um

    bis no recital pela tarde. Dois dias aps a execuo, a pianista gravou sua avaliao sobre

    sua execuo:

    O resultado foi bastante satisfatrio para a primeira execuo... eu cometi somente alguns pequenos erros, no entanto me senti bastante confortvel. Provavelmente o nico erro que me incomodou foi no compasso 33, mas com isto quero dizer que me apeguei a este erro. Durante um minuto, um segundo, uma frao de segundo, eu estava um pouco preocupada. Nem posso dizer onde o erro ocorreu, se ele aconteceu na mo direita ou na esquerda. Eu me recuperei bastante rpido. Foi somente uma deciso tomada em uma frao de segundo e eu sabia o que estava fazendo ... Tirando isso, no ocorreram outros problemas significativos ... Portanto, eu penso que o trabalho foi bem realizado.

    Ela planejou apresentar Clair de Lune novamente em outro concerto, um ms depois, mas

    por agora a pea estava memorizada e a pianista parou de gravar suas sesses de estudo.

    Figura 5. Registros cumulativos de estudo para as sesses 4-7, indicando onde a execu-

    o iniciou e terminou. Os registros devem ser lidos de baixo para cima.

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    Tabela 4. Coeficientes de regresso (no ajustados) e R para os efeitos dos previsores no

    andamento mdio dos dois conjuntos de execues completas e na diferena entre estes.

    Efeitos nas mdias de execuo distintas

    Efeitos na segunda mdia de exe-cues comparado com a mdia

    das primeiras execuesMdia de execuo Mdia de execuo

    Varivel de previsoPrimeiro

    conjunto de execues

    Segundo conjunto de execues

    Segundo conjunto de execues

    F ( df = 1.59 )

    Primeiro conjunto de execues - - 0.77 11.92***

    Estrutura musical:

    Incio de seo 8.67 -0.94 15.29 ***

    Final de seo -9.19 * -15.86 *** -7.58 10.58 *

    Posio serial em uma seo 0.78 1.17 * -8.82

    Pontos de troca -9.74* -1.93 0.58 9.79 **

    Guias de execuo: 5.53

    Bsicos -1.32 2.23 3.24 7.63 **

    Bsicos (compasso anterior) -3.27 2.72 5.23 24.11 ***

    Interpretativos -1.88 -0.29 1.15

    Interpretativos (com-passo anterior) 0.55 -0.58 -1.01

    Expressivos -0.08 -0.55 -0.49

    Expressivos (com-passo anterior) 4.08 0.45 -2.67 5.26 *

    Nmero de notas 0.13 0.29* 0.19 4.95 *

    R 0.26 * 0.39 *** 0.82 ***

    *p < .05, **p < 0.1, ***p < 0.01

    Mesuraes descritivas da prticaOs objetivos diversos de cada estgio se refletem nas mudanas na quantidade e

    durao dos segmentos praticados em cada seo (veja a Tabela 2). Nas sesses 1-3, os

    segmentos de estudo eram curtos e numerosos, pois a pianista trabalhava a pea por

    sees. Nas sesses 4-5, os segmentos aumentaram em durao e diminuram em quan-

    tidade, pois ela estava praticando a execuo da pea sem interrupes. Nas sesses 6-7,

    a durao dos segmentos diminui novamente, pois a pianista estava polindo detalhes,

    havendo, portanto, um nmero menor de instncias da execuo completa.

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    Consequncias da estrutura musical e dos guias de execuo na prticaOs grficos relativos s sesses de estudo evidenciam que a pianista escolheu alguns

    lugares para iniciar e parar e que ela exercitou algumas passagens mais do que outras.

    Por qu? A resposta sugerida pelas anlises regressivas resumidas na Tabela 3. Os

    significativos efeitos positivos indicam que a pianista iniciou, interrompeu ou repetiu

    compassos nos quais ela havia reportado limites estruturais e guias de execuo mais

    frequentemente do que outros.

    A aprendizagem foi organizada a partir da estrutura formal. Em todos os trs estgios,

    os segmentos de estudo iniciaram com mais frequncia nos limites de sees do que em

    outros lugares. Os efeitos mostrados da Tabela 3 evidenciam que, assim como em seu

    aprendizado do Presto, a pianista levou em conta a estrutura formal, durante a prtica, e

    estabeleceu incios de sees como guias de recuperao nos quais ela podia comear sua

    execuo (Chaffin & Imreh, 2002; veja tambm Miklaszewski, 1989; Williamon & Valentine,

    2002). Os efeitos da posio serial nas sesses 1-3 sugerem que sua ateno estrutura

    formal j estava afetando a memria nestas sesses iniciais. Compassos posteriores em uma

    seo foram repetidos mais vezes e foram locais de mais incios e paradas, sugerindo difi-

    culdades de memorizao. As consequncias das posio seriais deste tipo so usualmente

    encontradas na recuperao dos dados e so geralmente considerados como reflexo da

    organizao da informao na memria (por ex.: Rundus, 1971). Aqui, o efeito sugere que a

    memria da pianista foi organizada em segmentos baseados nas sees da estrutura formal,

    e que a recuperao de cada seo iniciou com o primeiro compasso, com cada compasso

    guiando sucessivamente a lembranado prximo (Broadbent, Cooper & Broadbent, 1978;

    Roediger & Crowder, 1976).

    Durante o processo de aprendizado, a pianista se concentrou mais nos guias de execuo.

    Os guias bsicos de execuo e os compassos imediatamente posteriores foram repetidos

    mais do que outros nas sesses 4-5 e 5-6. Nas sesses 4-5, os compassos antes dos guias

    bsicos tambm foram mais repetidos. Os esforos da pianista para tocar passagens mais

    longas de memria nestas sees foram aparentemente interrompidas pela repetio

    nestes pontos, sugerindo que a recuperao da memria ainda no estava funcionando

    de maneira confivel.

    Os efeitos dos guias de execuo expressivos foram similares queles dos incios

    das sees nas sesses 1-3. Durante o estudo, houve maior nmero de interrupes em

    compassos posteriores aos guias de execuo expressivos do que em outros pontos. A

    similaridade com os efeitos da estrutura musical sugerem que os guias expressivos podem

    ter sido utilizados para subdividir a msica em frases expressivas, subdividindo as sees

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    formais da pea. Os guias expressivos desempenharam o mesmo papel no aprendizado

    do Presto (Chaffin & Imreh, 2002; Chaffin et al., 2002, pp. 213-216). A ausncia de efeitos

    significativos para os guias interpretativos sugerem que, assim como o Presto, estes guias

    podem ter sido menos importantes do que os guias estruturais e expressivos (Chaffin &

    Imreh, 2002; Chaffin et al., 2002, p.215).

    EXPLICAES ALTERNATIVASPoderiam os efeitos dos guias de execuo bsicos e expressivos refletir mais o trabalho

    na tcnica e interpretao do que a prtica de recuperao da memria? Para examinar esta

    possibilidade, as anlises foram refeitas incluindo todos os previsores adicionais fornecidos

    pela pianista. Este previsores representam os relatos da pianista sobre cada aspecto da

    msica sobre o qual ela pensou durante a prtica. Caso os efeitos dos guias de execuo

    bsicos ou expressivos sejam resultado da prtica da tcnica ou da interpretao e no da

    recuperao da memria, ento os efeitos dos guias de execuo devem desaparecer em

    anlises expandidas, substitudos pelos previsores, representando uma quantidade maior

    de decises bsicas ou interpretativas realizadas durante a preparao da pianista.

    Os efeitos dos guias de execuo no desapareceram; os efeitos significativos permane-

    ceram inalterados. Tanto os compassos anteriores quanto os posteriores aos guias bsicos

    de execuo foram repetidos mais vezes nas sesses 4-5 e 6-7. A execuo tambm foi

    interrompida em compassos posteriores aos guias de execuo expressivos nas sesses 1-3.

    A repetio extra destes compasos j no era mais significativa e, no lugar dos sete efeitos

    significativos dos guias de execuo, mostrados na Tabela 3, foram registrados somente

    cinco. Apesar destas mudanas, a concluso permanece inalterada. provvel, portanto,

    que os efeitos dos guias de execuo descritos aqui tenham sido resultado da memorizao,

    no da tcnica ou da interpretao. A anlise expandida sugere que a pianista relatou seus

    guias de execuo e que ela deu especial ateno aos guias de execuo, durante a prtica,

    com o intuito de estabelec-los como guias de recuperao no processo de memorizao.

    As anlises expandidas mostram que os efeitos dos guias de execuo bsicos e expressivos,

    apresentados aqui, foram robustos e no se prestaram a explicaes alternativas.

    A recuperao da memria durante a preparao da execuo integral da pea

    A pianista esperava que suas tentativas iniciais de tocar de memria fossem repletas de

    hesitaes, por conta do esforo necessrio para lembrar-se do que viria a seguir: At o final

    do trabalho de amanh, provavelmente conseguirei tocar de memria, ainda que com paradas

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    e esbarres (sesso 1). As paradas e esbarres aparecem nos grficos de estudo como

    segmentos adjacentes, ascendendo da esquerda para direita, representando interrupes

    em segmentos de estudo mais extensos (Figuras 3-5). Contudo, os grficos da prtica no

    mostram hesitaes que no chegaram a causar interrupes. Para descobrir isso, compara-

    mos o andamento mdio de cada compasso das primeiras prticas de execuo completas

    (na sesso 4 e no incio da seso 5) com a mdia das execues completas posteriores (no

    final da sesso 5 e a sesso 7), para verificar se existiam, nas primeiras execues, hesitaes

    nos guias de execuo no presentes nas execues posteriores.

    Os coeficientes de regresso na Tabela 4, representam os efeitos das variveis de

    previso na mdia do primeiro e do segundo conjunto de execues. Valores positivos

    indicam acrscimo no andamento, valores negativos indicam decrscimo. Por exemplo, o

    efeito negativo dos pontos de troca, nas primeiras execues, indicam que o andamento

    diminui nestes pontos. As diferenas entre os dois conjuntos de execues so mostradas

    no painel direito. A coluna 3 mostra os coeficientes de regresso para o segundo conjunto

    de execues, quando o andamento do primeiro conjunto era mantido constante, atravs

    da incluso destas execues como previsores adicionais. Estes coeficiententes de regres-

    so representam, portanto, os efeitos dos previsores remanescentes, aps ser removida a

    variabilidade presente nas primeiras execues (Campbell & Kenny, 1999). As diferenas

    entre as execues foram avaliadas pelas anlises da variao, utilizando os previsores

    como variveis independentes;o andamento como uma varivel dependente;a execuo

    como um fator de mesurao repetido. As diferncias entre as execues foram indicadas

    pelo efeito principal da execuo e suas interaes com os outros previsores, sumarizados

    na coluna 4 da Tabela 4.3

    O andamento diminuiu nos pontos de troca no primeiro conjunto de execues, mas

    no no segundo (Tabela 4, colunas 1 e 2), sugerindo que a pianista, nas primeiras execu-

    es, hesitou nestes pontos, conforme se lembrava do que vinha a seguir. A execuo dos

    pontos de troca necessita que informaes sobre a prxima passagem sejam recuperadas

    da memria de longo prazo, para que a continuao correta possa ser ativada. O efeito dos

    pontos de troca sugere que, em suas tentativas iniciais de tocar de memria, a pianista he-

    3 As diferenas foram avaliadas pela anlise da variao, com o intuito de fornecer uma nica anlise das diferenas. As anlises de regresso relatadas no painel direito da Tabela 4 representam somente uma de duas comparaes possveis. Tambm teria sido possvel considerar as primeiras execues como variveis de previso e as execues posteriores como previsor adicional. Ambas compara-es so igualmente vlidas, porm no produzem nveis de significado equivalentes. A anlise da variao fornece um nico critrio para avaliar as diferenas. Os resultados so apresentados como coeficientes de regresso, ao invs de mdias por consistncia, com a anlise da prtica na Tabela 2, e por que o elevado nmero de mdias envolvidas tornaria a anlise invivel.

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    sitou na medida em que tentava se lembrar da continuao correta. Outros efeitos podem

    ser consequncia da interpretao. Em ambos os conjuntos de execues, os andamentos

    foram mais lentos nos ltimos compassos de sees, um mecanismo comum de interpre-

    tao (Clarke, 1995; Krumhansl, 1996). A interpretao tambm responsvel por outros

    dois efeitos nas ltimas execues. O andamento foi aumentando de acordo com a posio

    serial em uma seo, sugerindo que a pianista delineou cada seo com um gradiente de

    andamento (Gabrielsson, 1999). O andamento tambm foi mais rpido nos compassos

    contendo mais notas, provavelmente porque a intrprete escolheu acentuar o acrscimo

    na tenso musical criada pelo maior nmero de notas, comprimindo sua execuo.

    Foram constatadas diferenas substanciais entre as duas mdias de execuo (Tabela

    4, colunas 3 e 4). Os efeitos positivos na coluna 3 indicam andamentos mais rpidos nas

    ltimas execues, em comparao com as primeiras. O efeito positivo na linha superior da

    coluna 3 indica que as ltimas execues foram, em geral, um pouco mais rpidas do que

    as primeiras (M = 50,6 e 48,5 tempos/minuto, respectivamente). A diferena reflete a maior

    fluidez das ltimas execues. Outros efeitos positivos indicam pontos nos quais o aumento

    da fluncia foi mais pronunciado: nos pontos de troca, nos guias bsicos de execuo e nos

    compassos aps estes guias. J sugerimos, anteriormente, que processos de recuperao

    da memria se faziam necessrios nos pontos de troca. O efeito similar nos guias bsicos

    de execuo sugere que estes guias tambm envolvem mecanismos de recuperao. Nas

    primeiras execues, quando a pianista ainda estava tentando ordenar e aprender os seg-

    mentos da pea, a fim de toc-la de memria, ela hesitou nos pontos de troca e nos guias

    bsicos de execuo, para se lembrar do que vinha a seguir. Nos guias bsicos, o efeito foi

    to sentido que persistiu no compasso seguinte. Nas execues posteriores, em contraste,

    a recuperao a partir da memria de longo prazo j tinha sido automatizada; a pianista

    estava polindo a pea para a execuo pblica e as hesitaes desapareceram.

    Alm de mais fluentes, as ltimas execues tambm foram mais expressivas. Outras

    diferenas entre os dois conjuntos de execues parecem ser decorrentes de gestos in-

    terpretativos, desenvolvidos durante o aprendizado. Como anteriormente observado, o

    incremento no andamento em compassos com mais notas, nas ltimas execues, parece

    ser um gesto cujo propsito acentuar a maior tenso musical de tais compassos. Este

    efeito foi ainda mais acentuado nas ltimas execues. Outras diferenas parecem refletir a

    utilizao de variaes no andamento, para delinear sees e frases expressivas. Nos finais

    de sees, desaceleraes j presentes nas primeiras execues aumentaram e, nos incios

    de sees, o pequeno incremento de andamento, nas primeiras execues, tornou-se pe-

    queno decrscimo de andamento, nas ltimas execues. A mesma mudana ocorreu nos

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    compassos posteriores aos guias expressivos, sustentando ainda mais a concluso sugerida

    pelos dados da prtica de que a pianistas dividiu a pea em frases expressivas que iniciaram

    nestes compassos (Sloboda & Lehmann, 2001). 4

    EXPLICAES ALTERNATIVAS

    Para examinar a possibilidade de que os efeitos dos pontos de troca e dos guias bsicos

    de execuo poderiam refletir os efeitos da tcnica ou da interpretao, ao invs de recu-

    peraes da memria, como sugerimos aqui, as anlises foram refeitas, incluindo todos

    os previsores adicionais fornecidos pela pianista. Os resultados das anlises expandidas

    sugerem que os efeitos no foram causados por conta de outras propriedadas da msica.

    Os efeitos importantes dos guias bsicos de execuo e dos pontos de troca permaneceram

    inalterados. Os efeitos no foram, portanto, resultado de questes tcnicas ou interpreta-

    tivas. provvel que a diminuio do andamento nestes pontos, nas primeiras execues,

    tivesse ocorrido pela necessidade de lembrar o que fazer. Estas hesitaes diminuram nas

    execues posteriores, medida que a recuperao da memria tornou-se mais fluente.

    Comentrios sobre a memria

    Em cada sesso, o tpico mais frequente nos comentrios da pianista foi a memria,

    provavelmente porque este aspecto estava justamente sendo objeto de pesquisa e tam-

    bm porque a pianista no encontrou entraves na tcnica ou na interpretao. O seguinte

    comentrio do incio da sesso 1 mostra que a memorizao foi um dos objetivos principais

    desde o incio:

    Esta a primeira frase [o tema A]. Estou me esforando muito para aprend-la e memoriz-la agora, porque possvel memoriz-la instantaneamente. Por exemplo, eu me lembro do dedilhado que eu uso e das notas aqui. Eu me lembro que tenho que mudar, [e] mudar novamente. (sesso 1)

    Como a memorizao era um aspecto saliente para a pianista, seus comentrios for-

    necem numerosos exemplos para ilustrar os trs princpios da memria despecializada.

    Os comentrios so, obviamente, evidncia das convices da pianista sobre a memria,

    no sobre os processos de memria. No entanto, eles fornecem uma imagem qualitativa a

    respeito de suas estratgias de memorizao, sobre as quais ela tinha ideias bastante defi-

    nidas. Por outro lado, ela no tinha conhecimento das teorias sobre a memria em experts

    descritas neste artigo e ainda no havia articulado, para si mesma, a ideia de que estaria

    4 A ausncia de efeitos dos guias de execuo interpretativos provavelmente refletem o fato de que alguns gestos interpretativos diminuem e outros aumentam o andamento, no resultando em um efeito geral.

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    de fato fazendo uso de guias de execuo (veja Chaffin et al., 2002, p.250-254). Tampouco

    a pianista sabia que seria posteriormente solicitada a apresentar relatos sobre a msica, os

    quais seriam utilizados como previsores nas anlises de todo o processo.

    PADRES FAMILIARES

    Embora os dados comportamentais no forneam evidncia sobre o primeiro princpio

    da memoria em experts segundo o qual os segmentos da memria so compostos por

    padres familiares previamente armazenados na memria a pianista fez muitos coment-

    rios, nas sesses iniciais, sobre sua busca por padres para auxiliar a memorizao, e sobre

    os devios de padres esperados com os quais ela precisava se defrontar:

    A razo pela qual esta passagem fcil de memorizar porque existe uma estrutura harmnica que termina em um R estranho, portanto dispensamos [a necessidade de memorizao] a maioria dos acordes e [a memria acstica] a melodia tomar conta [da nota R]. (sesso 1)

    A identificao de padres , obviamente, um processo ativo. Alguns padres, como a

    organizao latente da polifonia na partitura, no eram nem um pouco bvios:

    Eu tenho esta maneira muita estranha de memorizar. Eu mesmo no a compreendo. Eu memorizo as coisas em blocos [soprano, tenor e as vozes do baixo]. Por exemplo, eu no consigo relacionar o baixo da mo esquerda .... com nada alm dele prprio. Eu os vejo em sequncia, e tento ver como cada [voz] continua. (sesso 1)

    Outros padres foram criados pela escolha de dedilhado:

    Ok, eu posso colocar estas quatro [notas] em sequncia ... estas [sequncias] me ajudam muito na memorizao. (sesso 1)

    A utilizao de dedilhados consistentes, quando um padro de notas se repetia, reduziu

    o trabalho de memorizao:

    Existem dois dedilhados diferentes para esta passagem ... estou tentando descobrir se posso utilizar o mesmo [dedilhado] para ambas ... acho que consigo. (sesso 2)

    Ainda assim, o dedilhado consistia em uma das principais coisas a serem lembradas:

    Por agora, so pequenos erros de dedilhados que fazem voc acertar uma passagem ou no ...

    tudo se resume a como voc coloca suas mos [no teclado]. (sesso 1)

    A utilizao de semelhanas nos dedilhado como auxlio para a memria tornou a

    lembrana destas diferenas particularmente importantes:

    Eu no me lembrei de mudar o dedilhado aps a segunda repetio. (sesso 1)

    Diferenas como essas so, com frequncia, incorporadas como guias bsicos de exe-

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    cuo, pois requerem ateno durante a execuo, para que sejam executados conforme

    o planejado. Isto foi o mais prximo que a pianista chegou de mencionar, explicitamente,

    o tpico dos guias de execuo.

    Como a maioria dos msicos, a pianista no considerou sua busca de padres de vrios

    tipos um mecanismo de memorizao (Chaffin et al., 2002, Ch. 3):

    Ainda no estou me concentrando na memria. Estou somente tentando entender como as coisas se encaixam. Estou, o tempo todo, escolhendo coisas que penso serem importantes para a memria. Neste momento, parece que estou mais aprendendo do que memorizando ... eu penso que, no final de outra sesso como essa ... eu possa ser capaz de conhecer o suficiente para poder passar pela pea. (sesso 1)

    ORGANIZAO DA RECUPERAO

    Os padres mais amplos consistem nos temas e subtemas meldicos e a estrutura formal

    que fornece ao msico uma organizao pr-moldadade recuperao. A pianista buscou

    ativamente estes marcos, comparando diferentes passagens para identificar similaridades

    e diferenas:

    Esta a primeira frase [tema] ... e isto novamente o mesmo [tema]. As melodias no so paralelas [nas duas repeties do mesmo tema]. um R bemol [na primeira vez], enquanto que na segunda vez ... (sesso 2)

    medida que trabalhava no tema B, durante a sesso 2, a pianista descreveu o que

    estava buscando:

    Ento, estou tentando passar rapidamente pela pea algumas vezes, somente para tentar compre-ender os grandes blocos [subsees do tema B]. (sesso 2)

    Uma vez identificadas, as diferentes subsees foram comparadas:

    Estou tentando comparar os dois incios [das subsees do tema B]... [nos] compassos 27 e 31. (sesso 2)

    De forma similar:

    Estou tentando comparar as duas mos [diretas] ... (sesso 3)

    A pianista tambm utilizou a estrutura formal para se referir passagens especifcas:

    Estou tentando executar a seo do meio [Aa2] pela quarta vez ... (sesso 6)

    PRTICA DE RECUPERAO

    A pianista tentou tocar de memria desde o incio. No comeo da Sesso 1, ela

    comentou:

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    Ok, eu preciso lembrar disso... [executa uma passagem] Como voc pode ver, estou tentando tocar o mximo possvel de memria ... (sesso 1)

    O esforo direcionado para atos de recuperao, durante o estudo, foi notvel. Por exem-

    plo, aps tocar as duas primeiras pginas de memria com dificuldades, ela comentou:

    De qualquer forma, estou tentando me localizar sem a partitura, somente para ver o que consigo lembrar. De fato, de toda a [primeira] pgina, eu s no consegui continuar em um lugar, talvez eu no estivesse concentrada o suficiente, porque, provavelmente, com tempo suficiente, eu poderia ter conseguido.

    Conforme tocava de memria, ela escutava seus erros e, posteriormente, os conferia

    na partitura:

    Com certeza fiz erros, e sabia [o que estava fazendo de errado] enquanto tocava ... Portanto, o que eu vou fazer repetir a passagem mais algumas vezes e olhar atentamente a partitura. (sesso 2)

    Eu quase pulei um compasso no compasso 17. Eu queria conferir o compasso 35, porque eu acho que esqueci a nota do baixo.(sesso 4)

    A partir de agora, a todo momento haver alguma outra coisa que vai ressurgir..que ainda no foi conscientemente memorizada e consolidada na memria cognitiva [declarativa] ... de vez em quando, eu toco com a partitura somente para conferir algumas coisas. Sempre existe algum pequeno detalhe que me escapa. (sesso 5)

    Ela avaliava constantemente seu progresso:

    Basicamente, queria conferir o que eu podia lembrar de ontem, e me parece que a primeira pgina est consolidada, assim como algumas coisas da segunda pgina. (sesso 2)

    Eu ainda fiz alguns erros, mas no muitos. (sesso 4)

    Ok, eu fiz alguns erros. (sesso 7)

    A razo frequncia/andamento como medida da prtica de recuperao

    Os comentrios da pianista sugerem que ela estava constantemente testando sua me-

    mria, forando a execuo da pea, mesmo quando as notas no vinham com facilidade.

    As hesitaes nos pontos de troca e nos guias bsicos de execuo, durante as primeiras

    prticas da execuo completa (veja a Tabela 4), confirmam que ela hesitou durante estas

    primeiras execues. A presena de hesitaes similares de maneira mais geral na prtica

    sugerida pelas razes frequncia/andamento, demonstradas na Tabela 5. A razo frequncia/

    andamento (descrita na metodologia) fornece uma medida da prevalncia das hesitaes

    sobre todas as sesses de estudo, atravs da comparao do andamento-alvo mdio que a

    pianista estava tentando alcanar, durante uma sesso com a frequncia de estudo efetiva-

    mente realizada. A razo frequncia/andamento consiste na discrepncia entre estas duas

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    CHAFFIN, Roger. Estratgias de recuperao da memria na execuo musical: aprendendo Clair de Lune. Em Pauta, Porto Alegre, v. 20, n. 34/35, 187-221, janeiro a dezembro 2012. ISSN 1984-7491

    medidas e oferece uma indicao da proporo do tempo de estudo empregado em pausas

    curtas, geralmente no mais do que alguns segundos, e em decrscimos momentneos

    no andamento. A razo frequncia/andamento fornece, portanto, uma medida global do

    tempo empregado pensando, em vez de tocando, durante a prtica. Neste caso, seus co-

    mentrios indicam que ela estava pensando muito sobre a memorizao; portanto, a razo

    estabelecida entre frequncia e andamento fornece uma medida do tempo empregado

    pensando sobre a memorizao, assim como em outras questes.

    Tabela 5. Razo frequncia/andamento durante as duas semanas de aprendizado

    Estgio

    Estudo por seo Agrupando sees Polimento

    Anlise descri-tiva

    Sesso 1

    Sesso 2

    Sesso 3

    Sesso 4

    Sesso 5

    Sesso 6

    Sesso 7

    Andamento-alvo mdio (tempos/min.)

    63 62 58 55 57 52 48

    Frequncia de estudo (tempos/min.)

    37 42 43 39 44 39 40

    Razo frequn- cia/andamento 0.59 0.67 0.74 0.71 0.74 0.75 0.83

    A razo frequncia/andamento aumentou durante as sesses de .59 para .83, com

    uma mdida de 0.72.5 Para entendermos o significado desta razo, ponderemos que, se a

    pianista tivesse mantido seu andamento-alvo,durante toda a prtica, ela teria finalizado

    seu aprendizado em 3 horas e meia, ao invs das quase 5 horas que, de fato, gastou. De

    forma alternativa, se ela tivesse praticado a mesma quantidade de tempo, ela poderia ter

    tocado novamente metade de toda a msica durante as sesses. A razo frequncia/an-

    damento corrobora, portanto, a impresso causada por seus comentrios, segundo a qual

    ela trabalhou arduamente para tocar de memria ao longo de cada sesso de estudo. Ao

    tentar tocar as passagens recm aprendidas a qualquer custo, ela estava, de fato, treinando

    a recuperao da memria.

    5 A Tabela 4 tambm mostra que o andamento-alvo mdio diminui ao longo das sesses. A mudana provavelmente reflete o aumento de foco da pianista na expresso musical, conforme ela explicou, na seguinte observao sobre sua primeira execuo pblica: eu provavelmente toquei um pouco mais lento [do que na prtica], e eu gostei mais da execuo, me permitindo acalmar o andamento em alguns lugares, somente para tentar transmitir o clima certo, ao contrrio da prtica, quando voc simplesmente conserta coisas ... ou simplesmento no sente vontade disso. Por esta razo, os an-damentos mais rpidos, nas ltimas execues, como mostra a Tabela 4, foram provavelmente em virtude do incremento na fluncia, ao invs de na expressividade.

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    Concluses

    O objetivo principal desta investigao foi verificar se a pianista iria incorporar, cons-

    cientemente, a prtica de recuperao da memria em seu aprendizado, prevista pelo

    terceiro princpio da memria em experts (Chaffin & Imreh, 2002; Ericsson & Kintsch, 1995;

    Williamon & Valentine, 2002). A resposta foi ntida: o tempo e o esforo empregados no

    treinamento da recuperao da memria constituram a caracterstica mais marcante do

    processo de aprendizado. Mesmo no perodo limitado de duas semanas, no qual a pianista

    aprendeu Clair de Lune, constatamos evidncias inequvocas deste treino de recuperao:

    nos incios e nas paradas, durante as sesses de estudo, nas hesitaes, durante ensaios

    para a execuo, nos comentrios da pianista, e na razo frequncia/andamento. A pianista

    considerou a memorizao como seu desafio principal e, desde o incio, trabalhou ativa-

    mente para alcanar seu objetivo.

    Assim como os memorizadores especializados em outras reas, a pianista praticou

    extensivamente as estratgias de recuperao com o propsito de tocar sem interrup-

    es ou hesitaes. Embora o aprendizado de Clair de Lune tenha ocorrido durante duas

    semanas e o do Presto, pela mesma pianista, em 10 meses (Chaffin et al., 2002), o processo

    de aprendizado das duas peas passou por etapas muito semelhantes. A leitura inicial da

    pea, primeira vista, para compreender o panorama mais vasto, foi seguida por sesses

    de estudo por sees, depois pela tentativa de agrupar os pedaos da pea para tocar de

    memria e finalmente por sesses de polimento para a execuo. Em cada estgio, a pianista

    estudou os guias de execuo, prestando ateno adiferentes guias em diferentes pontos.

    Esta concluso consistente com a de outros estudos de casos longitudinais, envolvendo

    tanto o estudo prolongado (Chaffin et al., 2006) como perodos menores (Ginsborg et al.,

    2006; Noice, et al., 2008).

    A evidncia comportamental mais significativa, direcionando para o treinamento da

    recuperao, foi a ateno conferida aos guias bsicos de execuo. A idia, segundo a

    qual os msicos experientes utilizam os guias de execuo para monitorar e guiar suas

    execues, surgiu do estudo do Presto (Chaffin et al., 2002). Os msicos, durante o estudo,

    apoiam-se em certas caractersticas da msica e, desta forma, as estabelecem como guias

    de recuperao. Durante a execuo, estes guias automaticamente estimulam as memrias

    motoras e auditivas necessrias para monitorar e guiar a execuo. Estes guias de execuo

    fornecem ao intrprete profissional a rede de segurana necessria, permitindo a recupe-

    rao de erros e lapsos de memria.

    A pianista praticou os guias bsicos de execuo nas sesses 4-5, quando estava juntando

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    a pea para execut-la de memria, e nas sesses 6-7, quando estava polindo sua execu-

    o. Em ambos os estgios, repetiu compassos que continham guias bsicos de execuo,

    assim como os compassos seguintes, mais frequentemente do que outros. O efeito desta

    repetio ficou evidenciado nas medidas por compasso do andamento, nas prticas da

    execuo, nestas sesses. As tentativas de execuo nas sesses 4-5 foram marcadas por

    hesitaes nos guias bsicos de execuo e nos pontos de troca. As execues posterio-

    res, em contraste, foram mais fluentes nestes pontos. Guias bsicos e pontos de troca so

    lugares nos quais esperamos que a recuperao da memria de longo prazo acontea. A

    maior fluncia das execues nestes pontos mostram que a repetio, durante a prtica,

    aumentou a velocidade e o automatismo da recuperao.

    Os comentrios da pianista sustentaram a evidncia comportamental da prtica da

    recuperao, confirmando que a memorizao foi considerada como o principal desafio do

    aprendizado da pea e que este aspecto foi trabalhado ativamente desde o incio da sesso

    1. A razo frequncia/andamento fortaleceu esta concluso, ao mostrar que a pianista em-

    pregou mais de um quarto do tempo de estudo pensando durante pausas entre a prtica.

    As anlises da prtica e do andamento sugerem que boa parte deste tempo adicional foi

    empregado pensando sobre os guias bsicos de execuo.

    Constatamos tambm ampla evidncia da utilizao do segundo princpio da memria

    em experts, qual seja, a utilizao de uma organizao preexistente de recuperao (Ericsson

    & Kintsch, 1995). A pianista utilizou a estrutura formal de Clair de Lune como uma moldura

    para seu estudo, mostrando que ela estava pensando sobre a msica de acordo com sua

    estrutura. Nas sesses 1-3, a prtica foi organizada por sees. Ao mesmo tempo, nesta e em

    outras sesses, a pianista usou os limites de sees como pontos de partida e de interrupo

    nas sesses 1-3. Ainda que este padro de estudo no mostre diretamente que ela estava

    utilizando a estrutura formal como mecanismo de organizao da recuperao,demonstra

    que ela estava pensando constantemente sobre a estrutural formal, medida que pratica-

    va. Utilizaes similares da estrutura musical para organizar a prtica tm sido observadas

    em outros estudos de msicos experientes (Chaffin & Imreh, 2002; Miklaszewski, 1989;

    Williamon & Valentine, 2002).

    As frases expressivas revelaram outros nveis na organizao hierrquica da pea em

    sees e subsees. A pianista utilizou guias expressivos como pontos de partida desde

    o incio do aprendizado, mostrando que ela j estava segmentando a msica em frases

    expressivas, desde as primeiras sesses de estudo (Chaffin et al., 2002, pp. 189-190, 199-

    200; Chaffin et al., 2003). Nas sesses 1-3, ela repetiu e parou mais em compassos que eram

    incios de frases expressivas (por exemplo, compassos aps guias expressivos), assim como

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    em compassos que eram nicios de sees. A pianista continou a pensar em frases expres-

    sivas nas sesses posteriores, utilizando o andamento para marcar o incio destas frases,

    nas ltimas prticas da execuo completa. Este gesto msical foi o mesmo utilizado para

    marcar o incio de sees.

    A sustentao encontrada em relao ao primeiro princpio da memria em experts,

    a utilizao de padres familiares para codificar a msica, foi mais limitada (Ericsson &

    Kintsch, 1995). A presena do primeiro princpio no processo de memorizao da pianista

    foi sustentado pelos comentrios nas sesses 1-3, mostrando que a busca por padres foi

    uma estratgia deliberada que ela acreditava ser benfica para a memorizao. No entanto,

    ao contrrio do estudo do Presto (Chaffin et al., 2002), os dados comportamentais destas

    sesses no forneceram evidncias suficientes para confirmar a utilizao deste princpio.

    A prtica no foi afetada pelo nmero de padres familiares em um compasso, talvez por-

    que a pianista tenha considerado os padres de Debussy na msica mais fceis de serem

    integrados do que os encontrados na msica de Bach.

    Este estudo do aprendizado de Clair de Lune demonstrou que os princpios da memria

    em experts, que foram significativos na memorizao do Presto, podem ser aplicados adequa-

    damente a outra pea de um estilo de msica muito diferente e em um perodo de tempo

    muito menor. Os mesmos princpios da memria musical em experts, como comprovado

    nos estudos citados anteriormente, podem ser aplicados a outros solistas, instrumentos

    e tradies musicais. As generalizaes feitas a partir destes estudos de caso baseiam-se

    em princpios psicolgicos gerais (Ericsson & Oliver, 1988). A utilizao por parte dos m-

    sicos da estrutura musical e da execuo consistente com os princpos da memria em

    experts,desenvolvidos nos estudos com experts em outros campos de atuao, e com os

    princpios da memria, derivados de estudos com populaes em geral. Existe uma boa

    razo para acreditarmos, portanto, que os mesmos princpios podem ser generalizados

    maioria dos intrpretes experientes.

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    Nota do autor

    Agradeo Gabriela Imreh por sugerir as ideias desenvolvidas nesta pesquisa e por

    fornecer os dados necessrios; Mary Crawford pelas valiosas sugestes em uma verso

    anterior deste artigo; Len Katz e David Kenny pelos conselhos sobre estatstica; Aaron

    Williamon, Julie Konik e Dawn Dougert pela transcrio das sesses de estudo; Stepha-

    nie Taylor pela mesurao do andamento por compasso; Miles Ingram por mesurar o

    andamento-alvo. Relatos anteriores sobre estes dados foram desenvolvidos por Chaffin,

    Imreh, & Konik (1998) e Chaffin, Imreh, de Vries, & Taylor (1999).

    Correspondncias sobre este artigo devem ser endereadas Roger Chaffin, Department

    of Psychology U-1020, University of Connecticut, Storrs, CT 06269- 1020 USA. E-mail: Roger.

    [email protected]

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