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MEMÓRIAS E TRAJETÓRIAS DOCENTES: OS BASTIDORES DE UMA PESQUISA RESUMO: Texto elaborado a partir da pesquisa “Percorrendo os caminhos da profissão docente: estudo da trajetória de professoras formadas nas primeiras décadas do século XX”, que teve como objetivo compreender aspectos da profissão docente, a partir da reconstrução da trajetória profissional de professoras formadas nesse período. Foram pesquisadas onze professoras de Minas Gerais, com idade entre 78 e 92 anos, que se formaram no Curso Normal de nível médio entre 1930 e 1944 e exerceram a profissão docente na escola primária, tendo se aposentado na carreira do magistério. Foram realizadas entrevistas abertas, na linha da História Oral de Vida, onde os depoimentos permitiram a utilização da memória como fator dinâmico da interação entre o passado e o presente. Ao lado do resgate das lembranças do passado, foram captadas opiniões das professoras sobre educação e profissão docente. A partir da reconstrução da trajetória de cada professora, onde foram analisados os diferentes momentos vividos por elas, buscando suas relações com a formação e com outros aspectos da trajetória de vida, foram identificados pontos comuns que, independente dos outros aspectos das trajetórias individuais, podiam ser interpretados como marcas da época em que viveram e retratavam a situação da professora primária no início do século XX. Palavras chave: Profissão docente, Memória de professoras, Educação em Minas Gerais, História Oral, Trajetórias docentes MEMORIES AND EDUCATIONAL PATHS: THE BACK STAGES OF A RESEARCH ABSTRACT: Text elaborated starting from the research "Traveling the roads of the educational profession: a study of teachers’path, formed in the first decades of the twentieth century", that had as objective understands aspects of the educational profession, starting from the reconstruction of the professional path of teachers formed in that period. Eleven teachers of Minas Gerais were researched, with age among 78 and 92 years, that were formed in the Normal Course of medium level between 1930 and 1944 and they exercised the educational profession in the elementary school and retired in the teaching career. Open interviews were accomplished, in the line of the Oral History of Life, where the depositions allowed the use of the memory as dynamic factor of the interaction between the past and the present. Beside the rescue of the past' memories, the teachers' opinions about education and educational profession were captured. Starting from the reconstruction of each teacher's path, where the different moments lived by them were analyzed, looking for their relationships with the formation and with other aspects of the life path, were identified common points that, independent of the other aspects of the individual paths, could be interpreted as marks of the time in that

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MEMÓRIAS E TRAJETÓRIAS DOCENTES: OS BASTIDORES DE UMA PESQUISA RESUMO: Texto elaborado a partir da pesquisa “Percorrendo os caminhos da profissão docente:

estudo da trajetória de professoras formadas nas primeiras décadas do século XX”, que

teve como objetivo compreender aspectos da profissão docente, a partir da reconstrução

da trajetória profissional de professoras formadas nesse período. Foram pesquisadas

onze professoras de Minas Gerais, com idade entre 78 e 92 anos, que se formaram no

Curso Normal de nível médio entre 1930 e 1944 e exerceram a profissão docente na

escola primária, tendo se aposentado na carreira do magistério. Foram realizadas

entrevistas abertas, na linha da História Oral de Vida, onde os depoimentos permitiram

a utilização da memória como fator dinâmico da interação entre o passado e o presente.

Ao lado do resgate das lembranças do passado, foram captadas opiniões das

professoras sobre educação e profissão docente. A partir da reconstrução da trajetória

de cada professora, onde foram analisados os diferentes momentos vividos por elas,

buscando suas relações com a formação e com outros aspectos da trajetória de vida,

foram identificados pontos comuns que, independente dos outros aspectos das

trajetórias individuais, podiam ser interpretados como marcas da época em que viveram

e retratavam a situação da professora primária no início do século XX.

Palavras chave: Profissão docente, Memória de professoras, Educação em Minas Gerais, História Oral, Trajetórias docentes

MEMORIES AND EDUCATIONAL PATHS: THE BACK STAGES OF A RESEARCH ABSTRACT: Text elaborated starting from the research "Traveling the roads of the educational profession: a study of teachers’path, formed in the first decades of the twentieth century", that had as objective understands aspects of the educational profession, starting from the reconstruction of the professional path of teachers formed in that period. Eleven teachers of Minas Gerais were researched, with age among 78 and 92 years, that were formed in the Normal Course of medium level between 1930 and 1944 and they exercised the educational profession in the elementary school and retired in the teaching career. Open interviews were accomplished, in the line of the Oral History of Life, where the depositions allowed the use of the memory as dynamic factor of the interaction between the past and the present. Beside the rescue of the past' memories, the teachers' opinions about education and educational profession were captured. Starting from the reconstruction of each teacher's path, where the different moments lived by them were analyzed, looking for their relationships with the formation and with other aspects of the life path, were identified common points that, independent of the other aspects of the individual paths, could be interpreted as marks of the time in that

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they lived and could portrayed the primary teacher's situation in the beginning of the twentieth century. Key Words: Educational profession, teachers' Memory, Education in Minas Gerais, Oral History, educational Paths Autora: Magali de Castro Doutora em Educação – USP E-mail: [email protected]

MEMÓRIAS E TRAJETÓRIAS DOCENTES: OS BASTIDORES DE

UMA PESQUISA

Magali de Castro∗ Notas Introdutórias

A profissão docente e a vida dos professores vêm se intensificando na produção acadêmica dos últimos tempos, configurando-se como uma das principais temáticas da análise contemporânea sobre os profissionais da educação. A crescente preocupação com a formação de professores e com a profissão docente faz sentido. O magistério da escola básica passa por uma crise de valorização: com os baixos salários que os obriga a dobrar turnos de trabalho para garantirem a sobrevivência, os professores da educação básica carecem de tempo e de recursos financeiros para se atualizarem e para terem uma maior dedicação à sua atividade docente. Os reflexos dessa situação se fazem sentir nos resultados apresentados pelos alunos desse nível de ensino.

Na busca de respostas para os problemas educacionais, pesquisadores da área vêm investindo em estudos voltados para memórias e trajetórias docentes. Diretamente responsável pelo processo de ensino-aprendizagem, o professor é um dos mais importantes atores da instituição escolar. No exercício de sua profissão, o professor, partindo do capital social, econômico e cultural seu e de seus alunos e das características e oportunidades oferecidas pelo meio social, engendra relações pedagógicas, criando e recriando suas práticas. Sua competência profissional vai além da aplicação correta de métodos de ensino e de materiais instrucionais e do domínio de um conhecimento a ser transmitido ao aluno. Sua atuação é resultado de um processo de formação e profissionalização que ultrapassa os bancos da escola normal, sendo construído em uma trajetória de vida, onde a formação de habitus e as relações culturais e sociais vão além do âmbito profissional e acadêmico. Através do estudo de trajetórias docentes, pode-se desvendar os meandros da profissão docente em diferentes épocas e, analisando o presente à luz do passado, fazer projeções para o futuro dessa profissão. A melhor forma de resgatar o passado é ouvir antigas professoras, aquelas que exerceram a docência em outros tempos, quando os problemas eram outros e a realidade social, econômica e política do país era muito diferente.

Assim, buscando contribuir para as atuais discussões em torno da profissão docente e do melhor nível e instância para a formação de professores da escola básica, penetramos no túnel do tempo para resgatar, junto a professoras primárias formadas no início do século vinte, aspectos da profissionalidade docente que são determinantes dessa profissão e que precisam ser considerados nos cursos de formação, independente do nível em que sejam oferecidos. Essas antigas professoras eram, acima de tudo, profissionais do ensino. Tendo passado por diferentes momentos históricos da profissão

∗ Doutora em Educação pela USP, Profª do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC/Minas Gerais, Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Profissão Docente - GEPPDOC

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- do prestígio dos anos iniciais à posição mais recente do magistério enquanto profissão difícil, mal remunerada e desvalorizada socialmente, trazem, em suas memórias, lembranças que, se desvendadas, poderão apontar para ações de resgate e revalorização do magistério.

A proposta de analisar a trajetória de antigas professoras, já aposentadas e distantes da prática do magistério, encontra eco na seguinte afirmação de Fontana:

Na trama das relações sociais de seu tempo, os indivíduos que se fazem professores vão se apropriando das vivências práticas e intelectuais, de valores éticos e das normas que regem o cotidiano educativo e as relações no interior e exterior do corpo docente. Nesse processo, vão constituindo seu “ser profissional”, na adesão a um projeto histórico de escolarização. Somente o distanciamento da experiência imediata e o confronto com outras perspectivas emergentes na prática social tornam possível a esse indivíduo perceber-se no contexto em que foi se constituindo professor/professora, analisar a emergência, a articulação e a superação das muitas vozes e das categorias por elas produzidas, para significar os processos culturais e então criticar-se (ou não) e rever-se (ou não), aderindo (ou não) a um projeto de escolarização. (FONTANA, 2000, p. 48)

Apesar de terem exercido a docência em outro tempo e espaço social, as

antigas professoras, na construção de sua identidade profissional, enfrentaram dificuldades e buscaram alternativas para o melhor exercício da profissão. Muitas dessas alternativas perderam-se no tempo e poderiam ser resgatadas. Kramer,1 citada por Freitas, afirma que “as vozes de todas as gerações, de hoje como as de ontem precisam ser ouvidas”. Segundo Freitas,

Essas vozes, através da linguagem, revelam toda uma peculiaridade cultural, permitindo que ocorra o entrelaçamento do passado com o presente, uma vez que o homem não faz história simplesmente começando de novo e ignorando os feitos de seus antecedentes. (FREITAS, 2000, p. 101)

Valorizando suas histórias singulares e buscando nelas os traços marcantes da

profissionalidade do professor, tivemos oportunidade de refletir sobre a profissão docente ontem e hoje. Conforme afirma Sacristán, “refletir sobre o presente é impossível sem se valer do passado, pois neste o tempo que vivemos encontrou seu nascimento.” (Sacristán, 2000, p. 37). Nesse sentido, através da reconstrução das trajetórias das professoras, nos propusemos rever papéis e retomar conceitos sobre a profissão docente.

Percorrendo os caminhos da profissão docente: pesquisando a trajetória de antigas professoras

Para essa reconstrução, foi implementada a pesquisa “Percorrendo os caminhos da profissão docente: estudo da trajetória de professoras formadas nas primeiras décadas do século XX”, que teve como objetivo “compreender os aspectos da profissão e da profissionalidade docentes, a partir da reconstrução da trajetória profissional de professoras formadas nas primeiras décadas do século vinte” e como 1 KRAMER, Sônia. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo: Ática, 1994, p. 105

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questões de estudo: Como foi a infância e a juventude das antigas professoras e quais as principais diferenças entre sua trajetória e a infância e juventude atual? Como era a escola primária e as professoras desse nível de ensino no início do século XX? Como os acontecimentos políticos e sociais interferiam na vida particular e profissional das professoras? O que exercia maior interferência na escolha e no exercício do magistério e como era a formação das professoras e dos especialistas em educação naquela época? Como se deu a trajetória profissional das antigas professoras e como elas resolviam os problemas encontrados e as questões relacionadas a ensino-aprendizagem? Quais as percepções dessas professoras sobre o passado, o presente e o futuro da educação e da profissão docente?

Foi utilizada a abordagem metodológica própria da História Oral2 que, segundo Vidigal (1996), é um método de trabalho que incide sobre o passado dos atores, sobre aspectos da vida social, particularmente da esfera do cotidiano que, em geral, não constam em documentos escritos. Segundo Ferreira e Amado,

A pesquisa com fontes orais apóia-se em pontos de vista individuais, expressos nas entrevistas, estas são legitimadas como fontes (seja por seu valor informativo, seja por seu valor simbólico), incorporando assim elementos e perspectivas às vezes ausentes de outras práticas históricas. (AMADO E, FERREIRA, 1996, p. XIV).

Nos depoimentos de História Oral, os relatos pessoais são filtrados pelo tempo

e pelos percursos individuais, havendo diferentes interpretações e sentimentos em relação a um mesmo fato ou período histórico. Assim, é possível detectar a interferência dos acontecimentos sociais e políticos nas trajetórias individuais e as reações dos indivíduos a esses acontecimentos. Essa abordagem metodológica baseia-se na técnica de entrevista aberta, através da qual são recolhidos e registrados os testemunhos orais. Nessa entrevista, é de extrema importância o estabelecimento de boas relações entre o pesquisador e o entrevistado, devendo o primeiro manter, por todo o tempo, a vigilância epistemológica e uma dose extra de simpatia. A disposição para a escuta, a atitude de atenção para a captação de interações verbais e não verbais e o respeito pelo entrevistado são imprescindíveis para uma boa entrevista. Segundo Le Ven, Faria e Motta,

Uma entrevista de história de vida é um “momento solene” em dois sentidos. Por um lado, há todo um aparato técnico, a presença de pesquisaadores que são encarados pelo entrevistado, quase sempre, como seres dotados de uma “autoridade acadêmica”. O entrevistador toma a iniciativa de apontar seus objetivos e interesses e escolhe os indivíduos a serem entrevistados. Por outro lado, apesar destes aspectos, à primeira vista constrangedores, o entrevistado concorda em desnudar sua história diante de pessoas normalmente desconhecidas,o que não é uma situação comum. (LeVen, Faria e Motta, 1997, p. 215)

2 É importante ressaltar que não se trata de um Projeto de História Oral, mas sim da utilização dessa abordagem metodológica, enquanto método que incide sobre o passado dos atores. História Oral não é sinônimo de memória e não se limita à consulta às fonte orais, com utilização da memória. Meihy define história oral como “um conjunto de procedimentos que vão desde o planejamento do projeto, a definição da colônia, a eleição das redes, o estabelecimento de uma pergunta de corte, a elaboração das entrevistas, a feitura dos textos e a devida guarda, a conferência e a devolução do documento à comunidade que o gerou.” (MEIHY, 1996, p. 54)

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Falando dos bastidores: enfrentando desafios e buscando alternativas Partindo dessas considerações iniciais sobre a pesquisa realizada, passamos a

relatar, passo a passo, seus bastidores, ou seja, os desafios enfrentados e as alternativas que foram se apresentando, no decorrer do trabalho investigativo.

A primeira preocupação de um pesquisador é dar legitimidade à sua pesquisa e, na academia, a legitimidade passa pela aprovação de alguma agência de fomento. Não importa o quanto teremos de ajuda, o que é realmente importante é ter o projeto legitimado. Surge aí o primeiro desafio do pesquisador: consultar os prazos das diferentes agências de financiamento e enfrentar a maratona dos formulários e da incerteza quanto à sua aprovação. No nosso caso, tentamos duas agências de financiamento: CNPQ e FIP da PUC/Minas. Tivemos o projeto aprovado por essa segunda agência e passamos a implementá-lo.

Logo no início da pesquisa, nos vimos diante de um desafio, relacionado à localização dos atores. Como nos propúnhamos a trabalhar com professoras formadas no início do século XX, havíamos definido, no Projeto, três instâncias para a localização dessas professoras: o Centro de Referência do Professor do Estado de Minas Gerais, que possui um Projeto de História Oral e poderia nos fornecer indicação de antigas professoras, Casas de Repouso e Centros de Idosos e indicação de pessoas ligadas à educação, que conheciam professoras mais idosas.

Nosso primeiro contato foi com o Centro de Referência do professor, onde constatamos que todas as professoras identificadas pelos pesquisadores do Projeto História Oral já haviam sido entrevistadas, dentro do Projeto: “Depoimentos Orais sobre a Educação em Minas Gerais: ampliando a memória oficial”. Portanto, não justificava entrevistá-las novamente.

Em nossa segunda instância, conseguimos localizar setenta Casas de Repouso e Centros de Idosos em Belo Horizonte, entretanto tivemos muita dificuldade de acesso aos responsáveis e, quando conseguíamos, éramos informadas de que não havia professoras lúcidas e em condições de darem entrevistas. Não havia como forçá-los a receber-nos e não tínhamos como localizar nossas professoras nesses Centros, sem a ajuda dos responsáveis por eles. Apenas uma professora foi localizada em uma casa de repouso, mas estava se mudando para a casa de uma sobrinha, onde foi entrevistada. Mesmo assim, ao final da entrevista, disse que estava voltando para a casa de repouso pois, apesar de ser muito bem tratada, não estava se dando bem na casa da sobrinha: vivia muito isolada, pois a casa era em bairro mais distante e todos trabalhavam o dia inteiro, deixando-a com uma empregada. Assim, preferia a casa de repouso, que era mais central e permitia maiores contatos e alguns passeios pela Savassi.

A forma que melhor funcionou para a localização das antigas professoras foi o contato com profissionais da área de educação, alunos e colegas, que nos informavam a respeito de algumas professoras, através das quais íamos localizando outras. Assim, acabamos utilizando, em nossa pesquisa, a amostra bola de neve.

Foram selecionadas onze professoras que se formaram nas primeiras décadas do século XX e exerceram a profissão docente na escola primária, tendo se aposentado na carreira do magistério. Formaram-se no Curso Normal de nível médio entre 1930 e 1944 e estavam com idade entre 78 e 92 anos, na época da pesquisa. Apenas três se formaram na Escola Normal Modelo de Belo Horizonte. As outras se formaram em colégios particulares religiosos de cidades de interior, em geral, mantidos por freiras.

Uma vez localizadas e identificadas as professoras, fizemos os contatos iniciais e marcamos o primeiro encontro, no qual foram dadas todas as informações sobre a pesquisa e assinado, pelas duas partes, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A autorização de uso de depoimento oral foi assinada no último encontro.

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Foram realizadas entrevistas abertas, na linha da História Oral de Vida, onde os depoimentos permitiram a utilização da memória como fator dinâmico da interação entre o passado e o presente. Ao lado do resgate das lembranças do passado, durante as entrevistas foram captadas as reflexões e opiniões das professoras sobre educação e profissão docente.

A entrevista constitui um outro grande desafio da pesquisa. O pesquisador tem uma posição muito delicada: sentindo-se um pouco como um estranho no ninho, ele tem que ouvir o que precisa e o que o entrevistado necessita dizer, o que demanda uma dose extra de simpatia e compreensão e muito bom senso! O respeito a cada uma de nossas professoras estava em primeiro lugar, tal como afirma Portelli: “o respeito pelo valor e pela importância de cada indivíduo é, portanto, uma das primeiras lições de ética sobre a experiência com o trabalho de campo na História Oral”. (Portelli, 1997, p. 17). Assim, procuramos manter sempre uma atitude de atenção e escuta das professoras, evitando muitas explicações iniciais ou intervenções durante o relato. Estávamos bem conscientes do que significava chegar à casa de uma pessoa, ligar um gravador e pedir que ela falasse de sua vida para um estranho. Mais uma vez, nos lembrávamos de Portelli, quando ele aborda as boas maneiras do entrevistador:

Ter boas maneiras não significa apenas falar em um tom de voz agradável, dizer “muito obrigado”, sentar onde nos mandam sentar, tomar o café ou o vinho que nos oferecem (normalmente, não tomo vinho nem café com açúcar, mas aprendi a fazer as duas coisas, pelo menos nas etapas iniciais do trabalho). Significa que, em vez de irmos à casa de alguém e tomarmos seu tempo a lhe fazer perguntas, vamos à casa dessa pessoa e iniciamos uma conversa. A arte essencial do historiador oral é a arte de ouvir. (Portelli, 1997, p. 21-22)

Nesse sentido, muitas vezes ouvimos histórias que, diretamente, não diziam

respeito a nosso objeto de estudo, mas que as professoras tinham necessidade de contar, tais como a doença de um marido ou a separação de uma filha. Esses fatos nos interessavam, porque diziam respeito à trajetória de nossos atores. Portanto, sem procurar interrompê-las, buscávamos, na primeira oportunidade, entender as relações ou a interferência deles em sua trajetória escolar ou profissional, com alguma pergunta do tipo: “e como a senhora conseguiu conciliar esse problema com suas atividades de professora?”. Sempre tivemos a preocupação de não interromper um relato ou manifestar desinteresse. Afinal, nós é que precisamos de nosso entrevistado e, para que tenhamos as informações que queremos, temos que nos mostrar dispostas a ouvir o que eles têm necessidade de dizer. Entretanto, o entrevistador precisa ter habilidade e jogo de cintura, para evitar uma grande dispersão.

Outro cuidado que tivemos foi o de ajudar ao entrevistado nos momentos em que éramos chamados a fazê-lo. Considerando a entrevista um exercício espiritual e uma oportunidade de expressão para os pesquisados, Bourdieu fala sobre a necessidade do entrevistador ajudar o entrevistado a explicitar seus pensamentos, nos momentos de hesitação, propondo sem impor e formulando sugestões, quando necessário, oferecendo, assim, prolongamentos múltiplos e abertos às palavras do pesquisado. Nesse sentido, afirma que:

Oferecendo-lhe uma situação de comunicação completamente excepcional, livre dos constrangimentos, principalmente temporais, que pesam sobre a maior parte das trocas cotidianas e abrindo-lhe

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alternativas que o incitam ou o autorizam a exprimir mal-estares, faltas ou necessidades que ele descobre exprimindo-os, o pesquisador contribui para criar as condições de aparecimento de um discurso extraordinário, que poderia nunca ter tido e que, todavia, já estava lá, esperando suas condições de atualização. (Bourdieu, 1997, p. 704)

Uma dificuldade permeou o trabalho, durante todo o seu desenvolvimento: a

questão da exigüidade do tempo para a estratégia metodológica adotada. Havíamos escolhido a estratégia própria da História Oral, por ser a mais adequada ao nosso objeto de estudo e o prazo da agência financiadora era de doze meses. Nossa experiência apontava para a necessidade de reduzir o número de professoras a serem entrevistadas, pois a equipe da pesquisa era composta por um único pesquisador e três bolsistas de Iniciação Científica3. No entanto, não queríamos perder a oportunidade de ouvir professoras provenientes de diferentes contextos sócio-econômico-culturais, formadas por escolas diferentes e com experiências profissionais diversificadas. Por isso, não conseguimos reduzir o número e acabamos trabalhando com onze entrevistadas, o que significou um trabalho extra considerável. Essa decisão encontra explicação na seguinte afirmativa de Lang:

Quanto à perspectiva sociológica, a História Oral não se restringe a uma história de vida, a um único relato ou a um único depoimento. Trabalhando com relatos de vários indivíduos de uma mesma coletividade, abre a possibilidade de leitura do social, através de múltiplas versões individuais, permitindo reconstruir, através de vários relatos, a história estrutural e sociolótica de determinados grupos, reconstruir a trajetória de um grupo social. (Lang, 1996, p. 45)

A organização e análise dos dados constituiu outro desafio: o material obtido

com as entrevistas era de uma riqueza incalculável. Havia, naqueles depoimentos, muito mais do que necessitávamos para a nossa análise da profissão docente no início do século. Decidimos editar as entrevistas em sua totalidade, registrando, também, os temas emergentes. Essa riqueza de dados nos trouxe dificuldade em peneirar as informações recebidas, no momento de fazer o relatório da pesquisa, pois tudo nos parecia importante.

Para facilitar essa tarefa, lançamos mão das questões de estudo como eixos de análise dos depoimentos e de organização das trajetórias das professoras. Nessa análise à luz dos estudos teóricos e contextuais realizados, alguns cuidados foram tomados: atenção à relação fundamental existente entre os fatos relatados pelas professoras entrevistadas e os contextos específicos que os determinaram, tendo o cuidado de não isolar as experiências individuais da dimensão espaço-temporal mais ampla e o cuidado com o estabelecimento de generalizações. Como diz Lang,

O sociólogo, buscando apreender as relações sociais através das fontes orais, não se atém apenas ao conhecimento de fatos mas, através deles, dirige seu olhar para as relações sociais e os processos que as informam. (Lang, 1996, p. 38)

3 Bolsistas de Iniciação Científica, alunas do curso de Pedagogia, da PUC-Minas: Adriane Cristine Ribeiro Batista, Lorena Prado Costa e Valéria Toledo Oliva Borges.

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A vida e a profissão de professoras primárias formadas no início do século XX: o que a pesquisa apontou

A análise dos dados foi permeando sua coleta, durante todo o trabalho de campo: a cada depoimento, buscávamos localizar os fatos evidenciados nas trajetórias individuais em diferentes momentos da história da educação no Brasil e, especialmente em Minas Gerais. Também buscávamos analisar as fases por que passavam esses professores, à luz dos estudos de Hüberman, sobre os ciclos de vida profissional e identificar os momentos em que, desprovidos de condições materiais e dos recursos tecnológicos da atualidade, buscavam seu desenvolvimento profissional, no dia-a-dia da profissão, discutindo com colegas ou inventando novos jeitos de ser professor e de estar no exercício dessa profissão.

Com todos os depoimentos transcritos e editados, reconstruímos a trajetória de cada professora, analisando os diferentes momentos das trajetórias individuais e buscando suas relações com a formação e com outros aspectos da trajetória de vida. Nessa análise, identificamos pontos comuns que, independente dos outros aspectos das trajetórias individuais, podiam ser interpretados como marcas da época em que viveram e retratavam a situação da professora primária no início do século XX.

Dessa forma, tendo presente a afirmação de Portelli (l997, p. 16), de que “a História Oral tende a representar a realidade, não tanto como um tabuleiro em que todos os quadrados são iguais, mas como um mosaico ou colcha de retalhos, em que os pedaços são diferentes, porém formam um todo coerente, depois de reunidos”, buscamos identificar, a partir dos depoimentos de nossas onze professoras, alguns traços característicos da vida e da profissão das professoras primárias do início do século XX, os quais apresentamos a seguir, ilustrados com alguns excertos de seus depoimentos:

Infância e juventude: A infância no início do século era de uma riqueza sem par. Longe da

parafernália dos dias atuais, as crianças viviam em um contexto em que o núcleo familiar era estável e nele as pessoas encontravam um ponto de apoio e em que as relações de vizinhança eram muito mais estreitas e duradouras. Assim, cercadas de vizinhos e em contato direto com a natureza, ao invés de terem pressa de se tornarem adultas e de se comportarem como tal, desfrutavam dessa fase com alegria e despreocupação.

Foi uma infância feliz, sem riqueza, não é, porque nós éramos de classe média. (...) Ah, tinha uma coisa muito interessante também, é que naquela época os vizinhos eram muito amigos. Então a vizinhança toda aqui era amiga. (Terezinha)

As famílias eram muito conhecidas, muito amigas, todo mundo se conhecia aqui. Então a gente brincava demais nas casas vizinhas, porque eram de pessoas amigas. (...) Todos nós tínhamos quintal com frutas, porque fazia parte da nossa infância, isso que hoje a infância não tem, pois fica confinada entre quatro paredes vendo televisão, não sabem subir numa árvore, as meninas não sabem fazer uma roupinha de boneca, não sabem fazer um cozinhadinho num fogão improvisado, como nós fazíamos nos nossos quintais. (Elza) Quando eu era criança, brincava de boneca de pano! (...) Então os brinquedos que a gente tinha eram esses, meu pai quando viajava, ou

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meus avós, levavam brinquedo para a gente, mas eram aqueles brinquedos rústicos daquele tempo: levavam uma casinha de pau,, depois apareceram esses brinquedos, esses bonecos de plástico! Aí apareceu, sabe, esse negocinho, esse biboquê. (Júlia) Hoje é diferente, quem mora em apartamento, quem mora em casa sem quintal... Os meninos não sabem o que é uma minhoca.! O que é um caracol. (Tiana)

A juventude era muito diferente da de hoje: as moças prestavam obediência

aos pais e não existia a atual permissividade em relação ao sexo e aos vícios. Conheciam seus futuros maridos nos bailes e nos footings e, quando se casavam, mudavam alguns hábitos e passavam a sair com os maridos, aos quais prestavam certa obediência.

Naquela época a gente ia ao baile, o pai ou a mãe é que ia levando a gente, ficava com a gente e tal, sabe, a gente dançava bastante e tudo, conversava e tal, pai e mãe tinham que ir, não é. (...) A gente só podia pegar na mão do moço, não podia chegar muito perto do moço, aquelas coisas antigas, você sabe? (Tatiana) Tinha clube, mas tinha também muita dança em casa, não é? A gente ia dançar em casa. Nas casas faziam bailes, não era só em clube, só fora de casa. (...) Até o namoro também, o namoro era simplesmente olhar, não é? Lá nós passeávamos, as mulheres iam num sentido e os homens no outro, para a gente encontrar, e namorava só olhando. Quando aproximava era porque já estava muito interessado. (Faustina) Andava na pracinha, olhava, dava volta, encontrava com o rapaz, dava volta, as moças todas faziam assim, davam essa voltinha na praça. (...) Na minha época a gente não ficava solteira não, porque a professora era muito procurada. (Elizabeth)

A gente freqüentava clube e dançava. O meu pai gostava demais de nos acompanhar ao clube lá da minha terra, lá é muito animado, com orquestra muito boa. (Lourdes) Eu era muito controlada nessa questão de festas, namoro. Eu já com 26 anos era noiva, meu namorado tinha que sair, à noite, às nove horas em ponto. Minha mãe levava um cafezinho na sala como se quisesse dizer: Boa noite! E não tinha mais nada. (Mag)

A escola primária e suas professoras:

A educação infantil, pré-escola ou jardim de infância não era comum naquela época. Na escola primária, o ensino era diversificado, havendo aulas de canto, brincadeiras e excursões. Eram dadas aulas de Catecismo e enfatizada a Educação Cívica, sendo cantado o Hino Nacional, pelos alunos.

Naquele tempo não tinha infantil. Não tinha infantil e eu fui matriculada no grupo escolar. (...) A escola era leiga, mas a gente

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aprendia também catecismo na escola, não era só a Igreja não, a Escola participava também. (Faustina) Olha eu comecei o meu curso primário eu já tinha completado sete anos, porque naquele tempo não podia entrar antes de completar. Em casa mesmo fui aprendendo as primeiras letras, não era tão comum o pré-escolar, não é? (Terezinha) A parte de civismo era muito bem controlada, hoje eu estou achando que falta civismo. Falava em Hino Nacional e Hino da Bandeira e todo mundo sabia cantar. (...) Festejava o sete de setembro, essas datas cívicas todas com o tal desfile. (Luiza)

As professoras eram muito respeitadas e, com raras exceções, a relação entre professor e alunos era de carinho e amizade. Consideradas competentes e capazes, as professoras do curso primário serviram de exemplo para as entrevistadas, em sua vida profissional. Os professores eram muito hábeis, e havia aquele respeito pela professora, admiração do aluno pela professora. Havia uma hierarquia, que hoje não existe mais. (Elza) Foi por ela, professora Judite, quando eu era criança, que eu sempre pensei em seguir o magistério. Eu procurava até imitá-la nos gestos, na maneira que ela expunha os trabalhos. (Elizabeth)

Mas uma professora exemplar, preparava mesmo a gente. Hoje eu digo assim, o valor que eu tive durante a vida, continuando minha tarefa de professora, era o que eu via nela, que ela queria ensinar. Ensinar, mas ensinar direitinho. (Tiana)

Interferência dos acontecimentos políticos e sociais na vida pessoal e profissional:

A interferência da política partidária foi uma constante na vida das professoras do interior, desde sua infância, uma vez que o poder encontrava-se polarizado entre duas forças hegemônicas: UDN e PSD. As divergências políticas eram enormes e interferiam na vida profissional e nas relações sociais das pessoas. Essa situação parecia gerar uma aversão das professoras pela política partidária.

Antigamente tinham separação até na igreja. Eram os costumes não é? Uma pessoa descendente dos Marques não sentava no banco cá, o lado direito era dos Santos e lado esquerdo da igreja era dos Marques. Não havia relação, os casamentos eram proibidos. Os pais faziam uma imposição tremenda. (Luiza) A professora tinha problema com a política. (...) O negócio lá na minha terra era assim: tinha a diretora, mas em tempos de política, se era amiga do prefeito ficava, mas se não fosse, não ficava,, dava um jeito até de sair. A política era muito forte, muito forte. (Tatiana)

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Tinha a família Ladeira e tinha a família Andrade, cada um mais rico do que o outro. E meu pai não era de lado nenhum, por causa do serviço dele. E a minha mãe não era de lado nenhum, porque era professora. E nós fomos abençoadas, porque tudo que a mãe precisava ou o pai precisava, todos os dois partidos queriam ajudar. (Júlia) Tristeza era a política! Nas questões políticas, eles transferiam as pessoas, se tivesse algum problema com o esposo, igual eu tive, que eu casei em quarenta e dois e eles me transferiram do lugar. (...) E assim eles faziam, a política nessa época era assim, e eu fui transferida para essa fazenda. Eles tinham um poder muito grande, muito grande. (Elizabeth) Tinha muita interferência político partidária, tinha muita mesmo e os prefeitos é que controlavam tudo isso, não tinha concurso, não tinha nada. (...) Não tinha concurso para trabalhar na escola do Estado não, era mais política. (Mag) A professora antigamente era indicada por político, depois passou a ser o concurso. Já no interior é diferente, política de interior é quente, aqui nem parecia não, ninguém falava nada e eu também não falava.(Lourdes)

A Revolução de 1930 foi um fato marcante na vida de crianças e adolescentes

da época. Por mais que fossem preservadas, compartilhavam com os adultos os receios e problemas advindos da situação política do país e ainda guardam lembranças marcantes dos impactos sociais e econômicos da revolução sobre suas famílias.

Essa revolução de trinta foi um horror viu! Veio a reforma da educação, de tudo, não é? Durante a ditadura do Getúlio. (Heloisa) A gente ouvia falar sobre a guerra e tinha medo, à noite a gente fechava tudo, a gente tinha medo. (...) Quando começou aquele negócio com Getúlio, (...) nós passamos uma semana na roça com medo... e nesse tempo eu era menina de sete ou oito anos. (Júlia) É que aqui em casa, a casa era maior e tudo e ficaram assim vinte e uma pessoas, sabe. Vieram para aqui por causa de tiro que tinha e tudo. Então a minha avó veio, com uma filha dela que era viúva e tinha filhos, veio um outro tio, então era aquela meninada. (...) É, a Revolução de 30 foi uma coisa assim de fazer medo. (Terezinha)

Eu formei em 35 e em 30 teve aquela revolução quando ele tomou posse,não é? Então era a ditadura, era elogiar Getúlio, cada casa tinha um retrato e era em torno dele que tinha a parte política. E quando ele morreu, começou essa democracia nova e eu já estava estudando aqui.. (Luiza)

A opção pelo magistério:

Fazer o magistério não foi propriamente uma escolha: o curso normal era a única opção de estudo para as moças da época. Os pais incentivavam o estudo das

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filhas e esse tinha que ser, necessariamente, nas escolas normais. Além disso, a professora primária era valorizada e era comum haver professoras nas famílias.

Meu pai queria que as mulheres estudassem, não fazia questão dos homens estudar não, que eram todos fazendeiros. E as mulheres, meu pai fazia questão da gente ser mulher-mãe, porque naquele tempo a formação de mulher era para casar, ter filhos. Era a única coisa que eles pensavam para a gente. (...) E mulher só fazia curso normal. (...) E mulher trabalhava fora só como professora. Não tinha mulher nenhuma em outro trabalho, ou era cozinha ou professora, ou era casada, criadora de filho, ou cozinha. (Heloisa)

Nós éramos quatro irmãs e todas fomos professoras. (...)Eu não sei como me tornei professora, mas acho que é porque a gente morava no interior, não tinha muita coisa, naquela época também nem tinha, era bem diferente. (Tatiana)

Os pais também achavam importante ser professora. Naquela época, só tinha essa profissão para as filhas, não é? Não tinha outra. (Elizabeth)

Quando era criança, eu adorava professoras, porque a minha mãe era professora. Minha mãe foi a primeira professora da terra onde nasceram meus meninos. (...) minha mãe, minha avó, minha bisavó todos foram professores, e agora meus filhos, acho que é hereditário: he-re-di-tá-rio! São todos, acho que fui transmitindo esse gosto. (...) naquela época ser professora era uma coisa maravilhosa. (Júlia)

naquela época a única opção que tinha era ser professora. Todo colégio do interior tinha o curso onde as moças formavam para professora. Os rapazes estudavam no ginásio e vinham aqui para Belo Horizonte e outros lugares para estudar. Mas as moças eram só professoras, não existia outra profissão. (Mag) Naquele tempo a gente não tinha muito como escolher, não é? (...) porque não tinha outras oportunidades, não tinha outros cursos, outras coisas. (Terezinha) Não havia outra profissão também lá naquela época, não é? A moça ou ficava em casa costurando ou ia ser professora, não havia empregos, em muito poucos lugares havia uma mulher trabalhando. (Lourdes) Depois do grupo, eu fui para a Escola Normal Modelo. Meu pai não perguntou se queria ou se não queria, ele matriculou e fez bem, porque naquele tempo magistério era o único caminho para as mulheres. (Elza)

Instâncias e cursos de formação de professoras primárias e especialistas de educação:

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Até 1946, o Curso Normal era de jurisdição estadual e, em Minas Gerais, tinha duração de sete anos, divididos em três fases: Adaptação (2), Preparatório (3) e Aplicação (2). Em 1932, um Decreto Estadual suprimiu o Curso Preparatório e reduziu a formação para cinco anos: Adaptação (2) e Normal (3). Nessa época, havia possibilidade de se concluir o curso em quatro anos, mediante a aprovação em exame, que possibilitava a passagem direta do primeiro ano de Adaptação para o Normal.

Os Diretores e Orientadores eram formados pela Escola de Aperfeiçoamento. Ao terminarem o curso, as professoras já eram indicadas para a orientação pedagógica das escolas. Não era comum o curso superior para moças e poucas professoras da época o fizeram.

A Escola de Aperfeiçoamento, de nível pós-normal, foi criada em Minas Gerais, em 1929, para preparar o corpo docente das Escolas Normais e os administradores e orientadores de ensino das escolas primárias. A partir de 1946, com a criação do Instituto de Educação de Minas Gerais, essa escola foi extinta e passou a integrar o Curso de Administração Escolar, que continuou a formar diretores e orientadores.

O Normal era em sete anos, dois de Adaptação, três de Preparatório e dois de Aplicação. Esse Aplicação equivalia ao magistério. (Elza, 1934, Escola Normal Modelo de M. G., B.Hte) A escola normal que eu fiz era de cinco anos. Tinha dois de adaptação e três de Curso Normal, havia possibilidade de prestar um exame e fazer em quatro, saltava o segundo de adaptação. Eu fiz o exame. Então eu fiz o primeiro ano de adaptação e três do Curso Normal. (Faustina, 1935, Escola Normal Oficial de Visconde do Rio Branco, M.G.)

Meu curso de professora era assim: teve o primeiro e o segundo ano de adaptação e depois três anos normais, foram cinco anos de estudo. (Júlia, 1942, Escola Normal Nossa Senhora do Carmo, Viçosa, M.G.)

Além das Escolas Normais Oficiais, os colégios religiosos católicos eram os grandes formadores das professoras primárias, sendo muito comum o regime de internato.

O colégio lá era de internato, mas era assim, asilo. Tinha as internas pensionistas e tinha as órfãs que as irmãs mantinham, era um número grande. E as órfãs é que faziam o serviço caseiro: cozinhavam, lavavam a roupa, arrumavam tudo para a gente. (Luiza)

Era dirigido por irmãs, as irmãs vicentinas, e de regime de semi-internato e internato, principalmente. (Elizabeth)

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Toda semana meu pai ia me ver ou então minha mãe, mas não podia sair. Ficava lá. O negócio lá era feio, sabe. (...) A gente dormia naquele colégio, era uma casa maior do que a minha aqui, tudo com cama e de cada lado tinha um quarto de madeira com um biombo, para as irmãs que dormiam lá vigiarem a gente. (Júlia)

Como era a formação das professoras primárias: aspectos relacionados ao currículo

Nos cursos normais de nível médio, predominavam as disciplinas de formação geral sobre as de formação profissional. Além das disciplinas obrigatórias, eram oferecidas disciplinas de formação geral, tais como Canto Coral e Modelagem. Nas escolas de freiras, era comum a oferta de disciplinas que formavam as alunas para o lar, tais como Bordado e Costura. O Francês continuava a ser a língua estrangeira predominante.

A gente era obrigada a aprender até a cerzir, aula de costura. Eu não tinha paciência para essas coisas não, mas tinha que fazer, eu tenho meu caderno aí, como é que fazia bainha, como é que fazia isso, a gente tinha costura, tinha ginástica, tinha português, francês, inglês, tudo não é, que naquele tempo você tinha que estudar. (Heloisa) Trabalhos Manuais, também entravam nesse curso normal. Era um curso que, além das matérias assim mais intelectuais mesmo, tinha essa formação também, não é? (Faustina.) Na Escola Normal daquela época era só o Francês, não tinha outra língua não. E tinha também curso de Trabalhos Manuais. (Terezinha)

Ao se lembrarem do Curso Normal que fizeram, as professoras relataram o

incentivo e gosto pela leitura, que existia naquela época. Havia oportunidade para aprofundamento e desenvolvimento dos hábitos de leitura, através de atividades obrigatórias e liberdade de acesso à biblioteca da escola.

Nós tínhamos a biblioteca. Aula era coisa muito séria! O que hoje é o Instituto de Educação, pois antes era Escola Normal Modelo, tinha uma biblioteca extraordinária, depois houve incêndio, já no Instituto de Educação. Havia obras que hoje não tem. (Elza) Nós fazíamos essas leituras. Lá na Escola Normal a gente gostava tanto de leitura que às vezes a gente até matava umas aulas, aquelas aulas que a gente não gostava mais e ia para a biblioteca e ficava lendo. (Terezinha)

Nós líamos os livros de Dewey, de Piaget e apresentávamos uma ficha com resumo, isso era um trabalho de dentro da cadeira. (Faustina)

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A gente tinha liberdade, assim uma vez por semana, de tirar um tempo que fosse possível, para ir à biblioteca e ler os livros. Eu então, não perdia tempo, eu acabava um e pegava outro. (Luiza)

A formação profissional específica era feita nas aulas de Metodologia e nos estágios e atividades práticas, realizados em salas de aula e em escolas anexas às Escolas Normais. Entretanto, algumas professoras afirmam que essas aulas não foram suficientes, na medida em que não aprenderam atividades práticas, tais como a elaboração de planos de aula.

Eu gostava de todas as disciplinas, mas a que eu gostava demais era o estágio, era a retirada da sala de aula porque o colégio tinha também o curso primário para treinamento das professoras e faltava até professora e me chamavam para lá para dar aula, de tanto que eu gostava. (Lourdes) E na própria escola funcionava uma escola primária. E nós então dávamos aula lá sabe. Preparávamos lá nossas aulas. No primeiro ano a gente só assistia, e a turma toda só assistia. Depois, no segundo ano, a gente já era designada para dar uma determinada matéria, quando acabava passava para outra e então nos preparamos para depois dar aula. (Terezinha,) Não tinha aulas de didática como hoje, não era assim como hoje que a gente tem a preparação, estudar para dar aula. Na escola de aperfeiçoamento é que eu fui aprender, mas depois já de professora. (Heloisa,) Nós estudávamos Psicologia, Pedagogia, um currículo grande, mas nós não aprendemos nem a fazer o plano de aula, que a gente não sabia mesmo. Não foi aí que nós aprendemos a fazer não, eu aprendi a fazer plano de aula no curso de Administração, aí sim. (Tiana)

A lembrança dos professores da Escola Normal é muito positiva. As entrevistadas se emocionaram ao falar dos antigos professores, para os quais só têm elogios. Nas escolas particulares religiosas, o ensino era ministrado por freiras.

Na Escola Normal Modelo eu tive mestres para toda a minha vida, não foram só professores não, foram mestres, educadores, sem nenhum curso de Psicologia, só com aquela intuição extraordinária, que a intuição é uma coisa magnífica, sem ela não se vive, não se faz nada sem a intuição. (...) Havia assim uma coisa curiosa na Escola Normal Modelo, os professores não indicavam livro não, qualquer livro servia, mas eles davam aula. (Elza) Elas eram muito dedicadas, só professora irmã, não tinha gente de fora não. (Luiza)

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O curso normal eu adorei. Esse curso normal era muito bom, tinha professores muito bons também. Tinha professoras maravilhosas (Tiana)

Trajetória profissional

O Ingresso no magistério se dava através da indicação de políticos, de professores das escolas normais ou de diretores das escolas, onde as alunas faziam estágio. É interessante observar que as indicações por políticos eram mais freqüentes em cidades do interior, onde a interferência da política partidária na vida das pessoas era maior, conforme foi observado anteriormente. Só mais tarde, começaram a haver concursos para o magistério público. Apenas duas professoras declararam que fizeram concurso para o magistério em escolas públicas da rede estadual de Minas Gerais, situadas em Belo Horizonte, após terem iniciado a carreira em cidades do interior.

A escola que eu dei aula quem arrumou para mim eu não sei nem o nome mais, foi um desses homens que mandavam, foi o Prefeito que arranjou para mim e ele gostava demais de mim, sabe? (Tatiana) Eu fiz estágio e depois uma professora entrou de licença. Então a diretora da escola, gostou do meu estágio e me convidou, se eu queria substituir. (...) Fiz essa substituição até o fim do ano. Aí nós formamos e no ano seguinte a Dona Maninha me chamou e eu comecei logo. (Terezinha) E essa professora que gostava de mim, quando eu tirei o diploma, ela me chamou para trabalhar no Instituto Pestalozzi, onde eu fiquei onze anos. (Tiana)

Logo que cheguei aqui houve um concurso de diplomas, eu coloquei o meu e fui nomeada e me chamaram para escolher onde eu queria. (Lourdes) Papai tenha uns amigos ricos, sabe, então eles arranjaram uma sala grande para eu dar aula, uma aula particular (...)eu fui professora do Estado e, para entrar, eu fiz um concurso. (Júlia)

Na época, o Estado era o grande empregador das professoras das séries iniciais da escolarização formal. Somente mais tarde, com a Municipalização do Ensino, a responsabilidade pela oferta desse nível de ensino passou para os municípios. Professoras do interior costumavam iniciar a carreira profissional em escolas da zona rural.

Sempre trabalhei em escola pública! Felizmente! Eu gosto é de escola pública, é democrática, estruturada, com liberdade de argumentar, de brigar, que não tem numa escola particular. (Elza)

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E foi aí que eu encontrei uma fazenda chamada Fazenda Velha e lá foi o primeiro lugar em que eu lecionei, em 1939. (...) O Estado mantinha as escolas. Em cada fazenda havia uma escola, uma escola singular, quer dizer, só tinha uma professora. E tinham outras que eram mais afastadas, eram as escolas rurais. (Elizabeth) Em quarenta e três eu fui dar aula numa fazenda lá em Dom Joaquim, que era de uns parentes meus. Precisavam de uma professora para meninos já alfabetizados. Então eu comecei a minha profissão foi por aí. (Mag)

A oportunidade de formação continuada mais comum era o Curso de

Administração da Escola de Aperfeiçoamento, o qual era procurado por várias professoras, para ascensão na carreira. As escolas não ofereciam atividades específicas para a formação continuada dos professores. As professoras acabavam exercendo a direção das escolas por indicação e a orientação pedagógica, quando se formavam no Curso de Administração. Não havia concurso ou eleição para esses cargos.

A gente tinha poucas informações, porque não tinha um curso para a pessoa se reciclar, acabou ali, era trabalhar. (...) já tem professor que tem especialização, naquela época não tinha, especialização nessa ou naquela matéria.(Elizabeth)

Hoje a pessoa tem muito campo para poder desenvolver, estudar, muito curso, muita coisa, muita exposição, ambiente. E a gente não tinha. (Luiza)

Eu, para melhorar mais a situação financeira, vim fazer a escola de aperfeiçoamento. Escola Normal Modelo, que na ocasião se chamava, depois que veio a ser Escola de Aperfeiçoamento, eram três anos. (Heloisa) Fui fazer o Curso de Administração, mas voltei como orientadora técnica. (Elza)

As professoras não se aposentavam cedo e não viam a aposentadoria como um fim de linha. Em sessenta e nove eu aposentei e tenho muito boas recordações de todo meu tempo de professora. (...) Nós fundamos lá uma associação, colocamos um curso para gestantes e a gente dá o enxovalzinho, porque se não prometer nada elas não vão, aí elas vão tendo contato com a gente, vão civilizando mais, a gente ensina como lidar com os filhos, na educação dos filhos e recebe o enxoval. (Luiza, 88 anos)

Aposentei no Estado para me dedicar às minhas escolas. Eu até gostei na época de aposentar, porque eu acho que eu renderia mais na minha escola, no jardim do que no segundo grau, no primeiro

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grau. Eu queria uma coisa minha, uma coisa que eu pudesse levar até o fim. (Elizabeth, 83 anos)

O dia-a-dia da docência: dos problemas às alternativas de solução

As professoras relataram suas experiências com alfabetização, para a qual usavam o método global e a cartilha chamada “Lili”, de autoria de Anita Fonseca.

Fui logo de cara começando com o primeiro ano. Comecei a empregar o método global, naquela incerteza se ia dar certo ou não. (...) Quando chegou na fase da silabação, eu caprichei bem, (...) E a gente usava era a história de Lili. (Mag)

O método que eu usava para alfabetizar era o método global. (...) A cartilha que eu utilizei foi da Lili. (Terezinha) Nesse tempo que eu ensinei lá era Lili. .Eu noto hoje, que a leitura de quem aprendeu pelo método global é mais rica, é mais rápida e há mais absorção. (Tiana)

O maior desafio das professoras no início da carreira era o enfrentamento da

sala de aula e a manutenção da disciplina. A maior dificuldade era a precária condição financeira dos alunos e das escolas. Diante dos desafios que encontravam, as professoras inventavam formas diferentes de ensinar. Conseguiam ensinar efetivamente, sem os recursos disponíveis na atualidade. Por exemplo, uma professora contou que utilizou um livro de receitas, para ensinar a leitura para uma aluna adulta, que estava com dificuldades.

O desafio maior foi quando eu comecei mesmo, para adotar o método global, porque o medo que eu tinha, a responsabilidade que a gente tinha perante os alunos do método não dar certo, esse foi o meu maior desafio. (Mag) Quando eu mudei para aqui, eu já pelejei naquele lugar, eu cheguei lá e os meninos, tudo fuxiquinho, todos sujos e aquela coisa não tinha nem água para beber. As orelhas todas sujas, aí eu botava na fila e começava a limpar as orelhas daquilo tudo e ensinava e falava que não podia ficar com aquelas orelhas sujas, as unhas, não sei o quê. Mas só você vendo como eles ficaram satisfeitos, eu não tinha nem água para beber, num calorão danado. (Tatiana) Os meninos tinham dificuldades até para levar uma merenda. Hoje a gente vê aqueles meninos que têm merenda, recebem merenda, então, a gente vê que tudo evoluiu, não é? (Elizabeth)

É engraçado, eu lembro, eu vou deitar e lembro dos menininhos que eu fui professora, sabe, os menininhos pobres, nariz escorrendo, mal vestidos, aí eu embestei de ajudar, a gente saía, menina, eu e mais duas, ia de loja em loja, para arranjar dinheiro para a merenda escolar, a gente pedia. Naquela época, ninguém dava as coisas assim

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não, sabe. A gente fazia festinha e tudo, convidava outros colégios, para poder manter ao menos o recreio com qualquer coisa para comer, porque é muita pobreza. (Júlia) Eles eram muito sujos, tinham piolho e mãe não queria ter graça nenhuma na escola não. As meninas maiores, a calcinha era um pano amarrado com barbante. Então foi aí que eu comecei a costurar também. Então eu fazia roupa para elas, calcinha, para as maiores eu fazia soutien também, mostrava que elas já eram mocinhas, aí já tinha conversas com elas e tudo. (Tiana)

Naquela época, as professoras tinham muito mais facilidade para a conciliação entre a vida profissional e familiar, não só porque contavam com familiares e boas empregadas domésticas, para cuidarem dos filhos, mas também devido às facilidades de locomoção, já que naquele tempo não havia as dificuldades de transporte e os engarrafamentos de hoje, nem mesmo nas cidades grandes. As relações entre os profissionais da escola eram cordiais, não sendo marcadas pela competição e pelo stress e a relação com as famílias era mais fácil do que hoje, porque os pais eram mais presentes e colaboravam mais.

A minha relação com as outras pessoas da escola era muito boa. A diretora sempre fazia almoço para a gente lá, com as professoras todas, ela tinha um relacionamento de muita amizade. (...)Não tinha competição, nada disto, cada uma no seu trabalho. (Lourdes)

Eu tinha muito relacionamento com os pais, os pais me procuravam muito. (...) A família participava bem da escola e quando tinha um problema mais sério, que sempre aparece, eu chamava a mãe ou o pai e conversava e a gente consertava o problema. (Lourdes)

Posição social do professor: Há uma sensível diferença na posição social da professora daquela época e da

de hoje: as atuais professoras não têm o status e o prestígio que tinham as antigas.

O povo da minha cidade via a professora como pessoa que tinha que ser respeitada, não tratava as professoras de qualquer jeito daqui e dali não, respeitavam, os pais das crianças respeitavam. (Tatiana) Naquele tempo o magistério era o máximo que a pessoa podia conseguir e tem a ver também com a posição social da professora hoje, quer dizer, teve um tempo em que ser professora era importante. A mulher não fazia curso superior. Então o magistério era um curso muito importante na vida da mulher. (Faustina) O magistério, naquela época que eu fui professora primária, era como se fosse uma mestra venerada, era um bocado importante a professora. Ser professora naquela época era importante, agora outra coisa que tem uma diferença para hoje, tinha muito status. (Luiza)

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A docência nas séries iniciais da escolarização formal continua sendo exercida por mulheres. Entretanto, algumas professoras entrevistadas não consideram que a profissão seja essencialmente feminina. Para elas, qualquer um pode ser professor, entretanto é necessário ter vocação, espírito crítico e responsabilidade.

Dar aula é uma profissão para mulher, para homem, qualquer um que sabe e que precise, não é, tem que precisar também. (Tatiana) Olha, eu não acho que a profissão de professora é uma profissão feminina. Aqui no Brasil é, D. Helena Antipoff era contra, porque lá na Europa há muito professor homem, mas aqui começou.(Elza) A profissão é uma profissão que pode ser muito bem exercida tanto pelo homem quanto pela mulher. Agora, o homem também tem que aceitar, não é? Eu acho que ainda existe um preconceito, porque professor ganha menos, então professor não é bem remunerado, não é? (Faustina)

A questão salarial sempre foi precária, mas vem se agravando, devido às requisições da atual sociedade de consumo. A professora ganhava mal, mas era muito, muito valorizada. E todo mundo tinha aquele respeito pelo professor. (Júlia)

O professor nunca ganhou bem, nunca ganhou, eu não sei por quê. Não tem jeito não e, além disso, não é valorizado. Eram mais respeitados. (Tatiana) Então o salário em si, a professora nunca ganhou muito bem, mas como mulher não trabalhava, era muito. E mesmo o que se gastava também, não se tinha tanta solicitação, tanta coisa nova que você queria ter, não é? (Faustina) Eu acho que homens e mulheres podem ser educadores, porque eles serão pais e mães, portanto eles têm a mesma função educadora que é igual, uma vez que ele tenha prazer em ensinar. Acho que são mais as mulheres que buscam o magistério.(Tiana)

Como conseqüência dessa desvalorização social e salarial, observa-se uma

mudança na configuração do corpo discente dos cursos normais de nível médio.

Hoje eu acho que o curso normal não é tão freqüentado por pessoas de classes mais altas, eu acho que mudou muito, porque ninguém quer ser professora primária não. (Lourdes) A freqüência hoje já é uma camada mais inferior, não é assim de nível, mas de nível médio-baixo não é? De primeiro não, a

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professora era de alto nível. Era das camadas privilegiadas. Ser professora era uma honra! (Elizabeth)

As grandes diferenças no exercício da profissão ontem e hoje

Vários problemas da educação e do mundo atual interferem no trabalho docente, destacando-se: multiplicidade de papéis, burocratização, agravamento da disciplina e violência na escola. Alguns aspectos melhoraram, entre eles a orientação, que antes era precária e a facilidade de recursos didáticos, bibliográficos e audiovisuais.

Hoje as coisas são mais complexas porque tem muitos papéis, não é? Divisão de papeis e, ao mesmo tempo, fazer encaixar esses papeis. (Faustina)

A violência na escola hoje está triste, porque a gente não via essa violência não.(...) Tudo conseqüência de uma situação... porque pai e mãe precisam trabalhar, não podem ficar com o filho, dialogar com os filhos! (Elizabeth)

Porque hoje em dia a vida, difícil como está, com essa parte de emprego e tudo mais, acho que tudo isso influi para que não haja um bom rendimento dos alunos e que a professora não seja igual às de antigamente (Mag) No meu tempo não havia tanta indisciplina, tanta violência. Hoje em dia ninguém quer ter responsabilidade. Você só vê ladrão, só vê confusão, só vê um fazendo mal ao outro. (Heloisa) Eu vejo as questões da violência na escola com um pesar danado, porque no meu tempo tinha os meninos bravos, tinha aqueles meninos pretinhos, pobres, mas não tinha o que tem hoje. Hoje, até os branquinhos bonitinhos não é, por causa da droga. (Júlia)

Percepção da trajetória e auto-percepção:

A partir da análise da própria trajetória, em comparação com a docência nos dias atuais, as professoras consideram que a profissão está em crise, mas há saídas para ela. Apesar de ser uma profissão difícil, que encerra muitos problemas, vale a pena ser professora.

O magistério sempre ocupou um lugar importante na vida das antigas professoras, as quais têm um auto-conceito positivo. Lembranças memoráveis do tempo em que exerceram a docência, levam-nas à certeza de que, se começassem tudo de novo, voltariam a ser professoras.

Se eu pudesse voltar atrás, eu seria novamente professora. Até agora, com muito prazer trabalharia outra vez, (Tatiana)

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Ah! não deixaria de ser professora não, não achei que foi uma experiência ruim não, eu gostei. Ser professor hoje eu acho que vale a pena, porque é uma profissão, trabalhar com a educação vale a pena, vale a pena conhecer e se preparar para isso. Acho que é uma atividade agradável ser professor. (Faustina) Então eu fico muito feliz com o magistério, fui muito feliz. Se eu pudesse voltar na vida e escolher a profissão, eu queria ser professora dos mesmos alunos que eu tive. (Luiza) Se eu voltasse atrás e começasse tudo de novo, eu acho que seria professora novamente. (Lourdes)

Notas Conclusivas

Essas constatações foram obtidas a partir da análise dos depoimentos das

professoras, onde buscou-se interpretar suas narrativas a partir de suas próprias visões, à luz dos fatos revelados pela história da educação brasileira e, especificamente, mineira, tendo presentes a época, o local e o contexto social em que viveram as entrevistadas. Na verdade, não se trata de conclusões definitivas pois, como afirma Joutard (2000, p. 44), “nós, os historiadores, devemos também reconhecer o caráter parcial da verdade que trazemos à tona: estamos longe de exprimir o real em toda a sua diversa complexidade”.

A reconstrução da trajetória das professoras, partindo de suas histórias de vida, nos permitiu compreender aspectos da profissão e da profissionalidade docentes do início do século XX e afirmar que há grande diferença entre a realidade que viveram e os dias atuais. No que diz respeito à sua posição social, as atuais professoras das séries iniciais do ensino fundamental não têm o status e o prestígio que tinham as antigas professoras primárias e a questão salarial, que sempre foi precária, vem se agravando devido às requisições da atual sociedade de consumo. Em conseqüência dessa desvalorização social e salarial, vem ocorrendo uma mudança na configuração do corpo discente dos Cursos Normais, que antigamente eram procurados pelas moças de classe média e hoje o são pelas camadas social e economicamente desprivilegiadas.

No que diz respeito ao exercício da profissão, observamos que dar aulas no passado não era mais difícil, nem mais fácil do que hoje, na medida em que a profissão docente nunca foi fácil e sempre encerrou dificuldades. Entretanto, há uma série de problemas da educação e do mundo atual que interferem no trabalho das professoras, tais como a multiplicidade de papéis, a burocratização e a indisciplina e violência na escola, que se agravam. Apesar desses complicadores, há aspectos que hoje são melhores, tais como a orientação que antes era precária e a facilidade de recursos didáticos, bibliográficos e audiovisuais.

Junto com nossas professoras, reafirmamos que a profissão docente é e sempre foi difícil e que os professores enfrentam muitos problemas mas, mesmo nos momentos de crise, eles se identificam com o magistério e encontram as saídas para exercerem a profissão da melhor forma possível. Esse fato é confirmado pela certeza unânime das entrevistadas de que, se começassem tudo de novo, voltariam a ser professoras e de que a profissão docente nunca vai acabar, pois o professor é uma presença importante na vida de todos! Assim, elas nos deixam uma lição de otimismo, força e disposição: nossa profissão é difícil, mas é muito importante e vale a pena lutar por ela e buscar as formas de melhor exercê-la!

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