Memórias de Um Médico - Vol. 2

download Memórias de Um Médico - Vol. 2

of 157

Transcript of Memórias de Um Médico - Vol. 2

2

http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

Memrias de um Mdico: Jos Blsamo Volume II Alexandre Dumas

I A SENHORA LUSA DE FRANA A filha mais velha de el-rei esperava seu pai na grande galeria de Lebrun, a mesma onde, em 1683, Lus XIV havia recebido o doge imperial e os quatro senadores genoveses que vinham implorar perdo para a Repblica. Na extremidade dessa galeria, oposta quela por onde el-rei devia entrar, achavam-se duas ou trs damas de honor que pareciam consternadas. Lus XV chegou no momento em que no vestbulo comeavam a formar-se grupos, porque a resoluo que parecia ter sido tomada naquela manh pela princesa, j comeava a divulgar-se no palcio. A senhora Lusa de Frana, princesa de estatura majestosa e de beleza perfeitamente real, mas cujo rosto se obscurecia por vezes com uma tristeza desconhecida; a senhora Lusa de Frana, dizemos, impunha corte, pela prtica das mais austeras virtudes, esse respeito pelos grandes poderes do Estado que, desde cinqenta anos, j ningum em Frana sabia venerar seno por interesse ou receio. Ainda mais: nesse momento de geral desafeio dos povos pelos senhores, ela era amada. porque era franca a sua virtude: nunca se havia falado dela em pblico, mas sabia-se que tinha bom corao, e todos os dias o provava por aces piedosas que fazia, enquanto as outras s praticavam escndalos. Lus XV temia sua filha, pelo nico motivo que a estimava. Algumas vezes mesmo ensoberbecia-se por ter uma semelhante filha; tambm era ela a nica das suas filhas a quem poupava nas zombarias agudas que lhes dirigia, e, enquanto s trs outras - Adelaide, Vitria e Sofia - chamava Loque, Chiffe e Graille, a sua Lusa de Frana era sempre tratada por senhora. Desde que o marechal de Saxe levara consigo para o tmulo a alma dos Turenne e Cond, Maria Leckzinska o esprito de conduta da rainha Teresa, minguava tudo em redor do trono, j sem esplendor; ento a senhora Lusa, com um carcter verdadeiramente real, e que por comparao parecia herico, fazia o orgulho da coroa de Frana, que apenas possua essa jia fina no centro do ouropel e pedraria falsa. No queremos dizer nisto que Lus XV amasse a sua filha. Lus XV, como todos sabem, s se amava a si. S o que afirmamos que queria mais a esta que s outras. Ao entrar, viu a princesa s, no meio da galeria, encostada a uma mesa de mosaico. Estava vestida de preto; os seus formosos cabelos sem ps ocultavam-se debaixo de duas ordens de rendas; a sua fronte, menos austera que de costume, era quase triste. No olhava em torno de si, s de vez em quando dirigia melancolicamente os olhos para os retratos dos reis da Europa, frente dos quais figuravam os reis de Frana, seus antepassados. O trajo preto era o que geralmente usavam em jornada as princesas; escondia grandes algibeiras que ainda naquela poca se usavam, como no tempo das rainhas que cuidavam no governo das suas casas; e a senhora Lusa, seguindo o seu exemplo, trazia cintura, presas numa argola de ouro, a grande quantidade de chaves dos seus armrios e caixas. O rei tornou-se muito pensativo quando viu o silncio e a ateno com que olhavam para o resultado desta cena. Mas a galeria to comprida, que os espectadores, colocados nas duas extremidades dela, eram discretos fora. Viam, tinham esse direito; no ouviam, era o seu dever. A princesa deu alguns passos para ir ao encontro de el-rei, pegou-lhe na mo e beijou-a com respeito. - Dizem-me que vai partir, minha senhora? perguntou Lus XV; - vai para a Picardia? - No, senhor - disse a princesa. - Ento j adivinho - disse el-rei levantando a voz - vai de romaria a Noirmoutiers. - No, senhor - respondeu a senhora Lusa - retiro-me para o convento das carmelitas de Saint-Denis, onde, como sabe, posso ser abadessa.

El-rei estremeceu; todavia o sobressalto do corao no lhe alterou o rosto. - Oh! No - disse ele - no, minha filha, no se apartar de mim, no verdade? impossvel que me deixe. - Meu pai, h muito tempo que tomei esta resoluo, que Vossa Majestade j se dignou autorizar; portanto, meu pai, peo-lhe que no queira agora resistir. - verdade... J dei essa autorizao, mas depois de a haver combatido largamente, bem o sabe. Dei-a porque sempre esperei que lhe faltasse o nimo no momento da partida. No pode ir fechar-se num claustro, a senhora; no se entra num convento seno por desgosto ou reveses da fortuna. A filha do rei de Frana no pobre, creio eu, e se tem desgostos ningum os deve conhecer. A palavra e o pensamento de el-rei elevavam-se medida que ele entrava mais nesse papel de pai e de rei, que o actor nunca desempenha mal quando a soberba aconselha um e a saudade o outro. - Senhor - respondeu Lusa, que percebia a comoo de seu pai, to rara no egosta Lus XV e que, por esse motivo, usava de dissimulao para com sua filha - senhor, no enfraquea a minha alma mostrando-me ternura. O meu desgosto no um desgosto vulgar, motivo por que a minha resoluo fora dos costumes do nosso sculo. - Tens desgostos? - exclamou el-rei com um raio de sensibilidade. - Desgostos! Tu, pobre criana! - Cruis, imensos, senhor - respondeu Lusa. - Ah! Minha filha, e por que mo no dizias? - Porque so desgostos cuja cura no depende de mo humana. - Nem da mo de um rei? - Nem da mo de um rei, senhor. - Nem de um pai? - Tambm no, senhor, tambm no. - Entretanto s religiosa, Lusa, e da religio tira-se fora bastante... - No me basta, senhor, e retiro-me para o claustro a fim de achar mais. No silncio fala Deus ao corao do homem; na solido fala o homem ao corao de Deus. - Mas fazes ao Senhor um sacrifcio enorme que nada compensar. O trono da Frana espalha uma sombra augusta sobre os filhos criados em torno dele; no te basta essa sombra? - A da cela ainda mais profunda, meu pai; refresca o corao, doce para os fortes e para os fracos, para os humildes e para os soberbos, para os grandes e para os pequenos. - Receias algum perigo? Se isso, lembra-te que el-rei est ao teu lado para te defender. - Senhor, comece Deus por defender a el-rei! - Eu te repito, Lusa, deixas-te levar por um zelo mal entendido. bom orar, mas no orar sempre. Tu que s to boa, to caridosa, para que precisas orar tanto? - Nunca orarei bastante, meu pai! Nunca orarei bastante, meu rei, para afastar as desgraas que esto iminentes, e que vo cair sobre ns! Esta bondade que Deus me deu, esta pureza que h vinte anos tento purificar ainda mais, no so bastante, muito o receio, para a vtima expiatria. O rei recuou um passo, e olhando admirado para Lusa, disse: - Nunca me falaste assim. O ascetismo perde-te, querida filha. - Oh! Senhor, no d esse nome mundano devoo mais verdadeira e principalmente mais necessria que nunca filha ou sbdita ofereceram ao seu pai ou rei. Senhor, o seu trono, cuja sombra protectora ainda h pouco me oferecia com tanto orgulho, j treme com os golpes que ainda no sente, mas que eu adivinho. Est-se fazendo em silncio uma grande escavao, abismo que de repente pode engolir a monarquia. J lhe falaram alguma vez a verdade, senhor? A senhora Lusa olhou em torno de si para verificar se ningum estava a distncia de poder ouvi-la, e vendo todos longe, prosseguiu: - Pois bem, senhor, essa verdade sei-a eu; eu, que sob o hbito da misericrdia, visitei vinte vezes as ruas sombrias, as mansardas cheias de fome, os becos cheios de gemidos. Pois

bem! Nessas ruas, nesses becos, nessas mansardas, senhor, morre-se de fome e de frio no Inverno; no Vero, de sede e de calor. Os campos, que no v, senhor, porque ides unicamente de Versalhes a Marly e de Marly a Versalhes, os campos j no tm gro, no direi j para sustentar o povo, senhor, mas nem mesmo para deitar no sulco da charrua, que, amaldioada no sei por que poder inimigo, devora e no produz. Toda essa gente, a quem falta o po, queixa-se em voz baixa, porque h rumores vagos e desconhecidos que atravessam os ares, no crepsculo, na noite, e falam-lhes em ferros, grilhes, tiranias, e acordam ouvindo essas palavras, cessam de queixar-se em voz alta e comeam a murmurar. De outro lado os parlamentos pedem o direito de representao, isto , de lhe dizer em voz alta o que dizem em voz baixa: Rei, ests-nos perdendo! Salva-nos, seno tratamos ns da nossa salvao... A gente de guerra escava com a espada intil uma terra, em que est o germe da liberdade semeado a mos-cheias pelos enciclopedistas. Os escrevinhadores - e como se explica isto a no ser que os olhos dos homens comeam a ver coisas que dantes no viam? - os escrevinhadores sabem o que fazemos, e dizem-no ao povo que, cada vez que v passar os seus amos, franze as sobrancelhas. Vossa Majestade casa o seu filho! Antigamente, quando a rainha Ana de ustria casou o seu, a cidade de Paris fez presentes princesa Maria Teresa. Hoje, pelo contrrio, nem s a cidade se cala, nem s a cidade nada oferece, mas ainda Vossa Majestade viuse obrigado a aumentar os impostos para pagar as carruagens em que se conduz uma filha dos Csares para a casa de um filho de S. Lus. H j muito tempo que o clero est acostumado a no orar a Deus, mas v que as terras esto dadas, os privilgios exaustos, os cofres vazios, e comea agora de novo a orar a Deus, para o que chama a felicidade do povo! Enfim, senhor, ser preciso dizer-lhe o que muito bem sabe, o que tem visto com tanto desgosto que a ningum tem querido falar nisso? Os reis, nossos irmos, que dantes nos invejavam, afastam-se agora de ns. As suas quatro filhas, as filhas do rei de Frana, no casaram, e h na Alemanha vinte prncipes, trs em Inglaterra, dezesseis nos Estados do Norte, sem contar os nossos parentes, os Borbons da Espanha e de Npoles, que, ou se esquecem ou se afastam de ns como os mais. Talvez o sulto nos quisesse, se no fssemos filhas de Sua Majestade Cristianssima. Oh! Eu no falo por mim, meu pai, no me queixo; um estado feliz o meu, porque estou livre, porque a ningum da minha famlia sou precisa, porque no retiro, na meditao e na pobreza para onde vou, poderei orar a Deus para que afaste da sua cabea e da do meu sobrinho essa tremenda tempestade que brame ao longe no cu do futuro. - Minha filha - disse el-rei - os teus receios pintam-te esse futuro muito pior que ele na realidade . - Senhor, senhor - disse Lusa - lembre-se dessa princesa da Antiguidade, essa real profetisa, que prognosticava como eu a seu pai e seus irmos a guerra, a destruio, o incndio; e seu pai e seus irmos riam das suas profecias, a que chamavam insensatas. No me trate como ela foi tratada. Pense no que eu lhe digo, meu pai! Lus XV cruzou os braos e inclinou a cabea sobre o peito. - Minha filha - disse ele - falas-me severamente; essas desgraas de que me falas so porventura obra minha? - Deus no permita que eu o pense, mas so obra do tempo em que vivemos. levado pela corrente como ns todos. Escute, senhor, como nos teatros aplaudem a menor aluso contra a realeza; veja, de tarde, os grupos alegres que descem tumultuosamente as escadas das sobrelojas, quando est deserta a grande escada de mrmore. Senhor, o povo e os cortesos criaram prazeres parte dos nossos, divertem-se sem ns, ou melhor direi, quando aparecemos nos lugares em que se divertem ficam tristes. Ah! - prosseguiu a princesa com uma adorvel melancolia - ah! pobres mancebos! pobres raparigas! amem! cantem! olvidem! sejam felizes! Aqui incomodava-os eu, mas l, no meu retiro, poderei servi-los. Aqui, abafam os seus alegres risos, com receio de me desagradar; mas l, hei-de eu orar com todo o meu corao, pelo rei, por minhas irms, por meus sobrinhos, pelo povo de Frana, por vs todos enfim, que eu amo com a energia de um corao que ainda no est gasto por nenhuma paixo.

- Minha filha -disse el-rei depois de um triste silncio - suplico-te que no me deixes, pelo menos neste momento; acabas de me despedaar o corao. Lusa de Frana pegou na mo de seu pai, e fitando com ternura os olhos no nobre rosto de Lus XV, disse: - No, no, meu pai; nem mais uma hora neste palcio. No, tempo de ir orar. Sinto-me com foras para com as minhas lgrimas resgatar todos os prazeres a que aspira, o senhor, ainda moo como , e um bom pai que sabe perdoar. - Fica comigo, Lusa, fica - disse el-rei apertando sua filha entre os braos. A princesa abanou a cabea. - O meu reino no neste mundo - disse ela tristemente, livrando-se do abrao real. Adeus, meu pai. Eu disse hoje coisas que h mais de dez anos me pesam sobre o corao. O peso oprimia-me. Adeus, vou contente. Veja: rio, sou feliz hoje pela primeira vez. De nada levo saudades. - Nem de mim, querida filha? - Oh! de si teria saudades, se no devesse tornar a v-lo; mas h-de ir algumas vezes a Saint-Denis, no se esquecer inteiramente de mim. - Oh! nunca me hs-de esquecer! Nunca! - No se enternea, senhor; a nossa separao no eterna. Minhas irms nada sabem ainda, segundo creio, pelo menos s as minhas aias esto na confidncia. H oito dias que ando fazendo os meus preparativos, e desejo ardentemente que o rumor da minha partida no seja ouvido seno depois do que fizerem as pesadas portas do convento de Saint-Denis. Este no me deixar ouvir o outro. El-rei leu nos olhos de sua filha que era irrevogvel a sua resoluo. Preferiu deix-la ir sem oposio. E demais, Lus XV queria tambm ir a Marly, e se comeasse a demorar-se em Versalhes, no poderia partir naquele dia. Enfim, lembrou-se que ao voltar de alguma orgia, indigna de um rei e de um pai, no tornaria a encontrar aquele rosto srio e triste que lhe parecia uma admoestao a essa vida devassa que ele passava. - Faa-se a tua vontade, minha filha - disse ele; mas antes, recebe a bno de teu pai, que tanta felicidade te deve. - D-me a sua mo para eu beijar, senhor, e mentalmente conceda-me essa preciosa bno. Para os que sabiam da sua resoluo, era este um espectculo grande e solene. Chegados porta, el-rei cortejou a filha, e voltou para trs sem dizer palavra. A corte seguiu-o como era da etiqueta. II LOQUE, CHIFFE E GRAILLE El-Rei dirigiu-se para o gabinete das equipagens, onde costumava sempre ir antes de sair para a caa ou para passeio, a fim de dar as suas ordens para os diversos trens de que precisava para o servio daquele dia. No fim da galeria cortejou as pessoas que o acompanhavam e fez-lhes um sinal com a mo indicando que queria ficar s. Lus XV, s, continuou no seu caminho por um corredor sobre o qual dava o quarto das suas filhas. Chegado diante da porta que estava fechada por um reposteiro, parou um instante e abanou a cabea. - S uma era boa - resmungou ele entre dentes e essa partiu!

Umas poucas de vozes responderam a esse axioma, pouco amvel para as que ficavam. O reposteiro levantou-se e Lus XV foi saudado por estas palavras que em coro lhe dirigiu um trio furioso: - Obrigado, meu pai! El-rei estava entre as suas trs outras filhas. - Ah! s tu, Loque - disse ele dirigindo-se mais velha das trs, isto , senhora Adelaide. - Ah! Minha rica, quer te agrade, quer no, eu disse a verdade. - Ora! - disse a senhora Vitria - o que acaba de nos dizer no novo para ns, senhor, bem sabemos que sempre preferiu Lusa. - Acabas de dizer uma grande verdade, Chiffe. - E por que prefere Lusa a ns? - perguntou a senhora Sofia com azedume. - Porque Lusa no me atormenta - respondeu ele com essa bonomia de que, nos seus momentos de egosmo, Lus XV oferecia um tipo to perfeito. - Oh! Descanse, meu pai, ela o atormentar disse a senhora Sofia num tom que atraiu a ateno de el-rei. - Como sabes tu isso, Graille? - perguntou ele. - Quando Lusa partiu veio fazer-te as suas confidncias, a ti? Isso admira-me, porque ela no gosta muito de ti. - Tambm pago-lhe na mesma moeda redargiu Sofia. - Muito bem! - disse Lus XV - odeiem-se, despedacem-se, nada tenho com isso, contanto que me no venham incomodar para restabelecer a ordem no reino das amazonas. Mas o que desejava saber em que me h-de atormentar a pobre Lusa. - A pobre Lusa! - repetiram com ironia as duas irms, Vitria e Adelaide. - Em que o h-de atormentar? Pois eu lho digo, meu pai. Lus XV sentou-se numa grande poltrona colocada junto da porta, de modo que ficara a jeito para se retirar logo que lhe conviesse. - Porque a senhora Lusa - respondeu Sofia est um pouco possessa pelo Demnio que a abadessa de Chelles tinha, no corpo, e recolhe ao convento para fazer as suas experincias. - Vamos, vamos - disse el-rei - nada de equvocos a respeito da virtude de sua irm; por fora, onde se diz tanta coisa, nunca se falou dela. No comeces tu. - Eu? - Sim, tu. - Oh! no falo da sua virtude - disse a senhora Sofia, muito sentida pela acentuao particular que seu pai dava palavra tu; - digo que vai fazer experincias, nada mais. - Ora, quando mesmo ela fosse trabalhar em qumica, aprender a jogar as armas, tocar, quebrar cravos, que mal haveria nisso? - Eu digo que ela vai trabalhar em poltica. Lus XV estremeceu. - Estudar a filosofia, a teologia e continuar os comentrios sobre a bula Unigenitus; de modo que presas entre as suas teorias governamentais, os seus sistemas metafsicos e a sua teologia, havemos de parecer as inteis da famlia... - Se isso abrir a tua irm o caminho do paraso, que mal te pode fazer? - atalhou Lus XV, no deixando todavia de notar a relao que havia entre a acusao de Graille e a diatribe poltica com que a senhora Lusa rematara a sua partida. - Invejam a sua bem-aventurana? Seria uma aco de ms crists. - No, no - disse a senhora Vitria; - deixo-a ir para onde vai; mas no a quero seguir. - Nem eu, disse a senhora Sofia. - E demais ela odiava-nos - disse a senhora Vitria. - A todas? - perguntou Lus XV. - Sim, sim - responderam as outras duas irms. - Vero - disse Lus XV - ela foi escolher o paraso para no ter receio de se encontrar com a sua famlia.

Este dito fez rir um pouco as trs irms. A senhora Adelaide, a mais velha das trs, reunia toda a sua lgica a fim de descarregar sobre o pai um golpe mais profundo que os que acabavam de resvalar sobre a sua couraa. - Minhas senhoras - disse ela num tom reservado que lhe era peculiar - no souberam ou no quiseram dizer a Sua Majestade o verdadeiro motivo da partida da senhora Lusa. - Bom! Temos mais algum dito - atalhou el-rei. - Basta, Loque, basta! - Oh! senhor - redargiu ela - bem sei que vou dizer alguma coisa que h-de desagradar um pouco a Vossa Majestade. - Diz antes que tens essa esperana, e falars assim mais verdade. A senhora Adelaide mordeu os lbios. - Mas - acrescentou ela - hei-de dizer a verdade. - Bom! o caso promete. A verdade! emenda-te de semelhante coisa; a verdade nunca se diz; faz como eu, e olha que me no dou mal com isso, graas a Deus! E Lus XV encolheu os ombros. - Vamos, fale, minha irm, fale - disseram as outras duas princesas, impacientes por saberem esse motivo que tanto devia desagradar a el-rei. - Ora - prosseguiu a senhora Adelaide - o que a nossa irm Lusa receava mais que tudo, ela que com tanto rigor observava a etiqueta, era... - Era?...-repetiu Lus XV; - vamos, j que principiaste, acaba. - Pois bem, senhor, era a intruso de novas caras. - A intruso, disseste tu? - observou el-rei descontente com esse comeo, porque via, de antemo, o fim a que tendia; - a intruso! H em minha casa intrusos? Obriga-me algum a receber quem eu no quero que seja recebido? Era um meio hbil de mudar absolutamente o sentido da conversa. Mas a senhora Adelaide era muito fina, para assim se deixar despistar. - Expliquei-me mal, senhor - atalhou ela - expliquei-me mal, e no usei do termo prprio. Em lugar de intruso, deveria ter dito introduo. - Ah! Ah! - disse o rei - isso j outra coisa; a outra palavra desagradava-me, confesso-o; acho melhor introduo. - E contudo, senhor - continuou a senhora Vitria parece-me que nem essa ainda a verdadeira palavra. - Qual ento, vejamos? - apresentao. - Ah! sim - disseram as outras irms unindo-se mais velha - parece-me que desta vez acertou-se. El-rei mordeu os lbios. - Ah! julga que isso? - disse ele. - Sim - continuou a senhora Adelaide. - Dizia eu que a minha irm gosta pouco de novas apresentaes. - Bem! - disse el-rei que desejava acabar a conversa; - e depois? - Depois, meu pai, naturalmente teve medo de ver chegar ao Pao a Sr. Condessa du Barry. - Ora adeus! - exclamou el-rei com um impulso irresistvel de despeito - ora adeus! digam logo claro o que tm para dizer, sem procurar tantos rodeios. - Senhor - respondeu a senhora Adelaide - se tanto me demorei antes de dizer a Vossa Majestade o que acabo de dizer-lhe, porque o respeito me prendeu a fala, e s a sua ordem me podia obrigar a falar sobre semelhante assunto. - Ah! sim, sim, no falas, no mordes, nem mesmo tens abrimentos de boca!... - Apesar de tudo isso, senhor - continuou a senhora Adelaide - parece-me ter descoberto o verdadeiro motivo da partida de minha irm. - Pois ests enganada.

- Oh! senhor - repetiram juntas, abanando a cabea, as senhoras Vitria e Sofia; - oh! senhor, temos a certeza do que acaba de ouvir. - Sim! - interrompeu Lus XV; - ah! ah! Partilham todas da mesma opinio; h conspirao na minha famlia, pelo que vejo. por isso que a tal apresentao no pode ter lugar; por isso que estas senhoras nunca esto em casa quando as querem visitar; por isso que no respondem aos requerimentos e peties em que se solicitam audincias. - Que requerimentos e que peties so essas? perguntou a senhora Adelaide. - Ora! bem o sabem, os requerimentos da menina Joana Vaubernier - disse a senhora Sofia. - Nada, no isso, so as peties da Sr. Lange, que quer uma audincia - disse a senhora Vitria. El-rei levantou-se furioso, e o seu olhar geralmente to sossegado e doce despedia raios pouco favorveis para as trs irms. Entretanto, como no trio real no havia herona capaz, de sustentar a ira paternal, abaixaram todas trs a fronte diante do mpeto da tempestade. - Isso - disse ele - para me provar que me enganava quando h pouco dizia que das quatro a melhor tinha partido. - Senhor - disse a senhora Adelaide - Vossa Majestade trata-nos mal, pior que aos ces. - Pudera no; quando chego, os meus ces vm fazer-me festas; os meus ces so meus verdadeiros amigos. Adeus, minhas senhoras. Vou ver Carlota, Bela Filha e Gredinet. Pobres animais! Sim, gosto deles, e gosto deles principalmente porque no ladram a verdade. El-rei saiu furioso, e no teria andado quatro passos quando ouviu as suas trs filhas que em coro cantavam a primeira copla de uma cano contra a Sr. du Barry. El-rei esteve a ponto de voltar para trs, e talvez que tivesse sido muito pouco agradvel para Suas Altezas, mas conteve-se, e continuou o seu caminho, bradando: - Senhor capito das galgas! O oficial chamado com um ttulo to singular acudiu prontamente. - Faa abrir a casa dos ces! - disse el-rei. - Oh! senhor - bradou o oficial indo ao encontro de Lus XV - no d Vossa Majestade nem mais um passo. - Ento o que aconteceu? - perguntou el-rei, parando no limiar da porta, por baixo da qual se ouvia a respirao dos ces que farejavam a presena do seu dono. - Senhor - disse o oficial - perdoai o meu zelo, mas no posso permitir que el-rei entre na casa dos ces. - Ah! Sim, porque no est ainda arranjada... limpa... Pois bem, chame para aqui Gredinet. - Senhor - murmurou o oficial cujo rosto exprimia a consternao - h dois dias que Gredinet no bebe nem come, e receia-se muito que esteja danado. - Oh! Decididamente - exclamou Lus XV - sou o mais infeliz de todos os homens... Gredinet danado! o que agora me faltava. O oficial das galgas julgou dever verter uma lgrima para animar a cena. El-rei voltou e dirigiu-se para o gabinete, onde o esperava o seu criado de quarto. Este, vendo o rosto consternado de el-rei, retirou-se para um vo de janela. - Ah! Bem o vejo - murmurou Lus XV sem se importar com a presena do criado, que era um fiel servidor, e caminhando a largos passos no seu gabinete - ah! bem o vejo, o senhor de Choiseul zomba de mim; o delfim j se considera como meio senhor, e julga que o ser de todo quando tiver feito assentar a sua austriacazinha sobre o trono. Lusa ama-me, porm com aspereza, porque me prega um sermo de moral e retira-se. As minhas trs outras filhas cantamme canes em que me chamam nomes pouco agradveis, o Sr. Conde de Provena traduz Lucrcia, o Sr. Conde de Artois procura aventuras pelas ruas sujas, os meus ces danam-se e querem morder-me. Decididamente, s a minha condessa me ama. Os diabos levem portanto aqueles que lhe querem mal!

Ento, com uma resoluo desesperada, sentando-se junto da mesa sobre a qual Lus XIV dava a sua assinatura, a mesma que havia recebido o peso dos ltimos tratados e das cartas soberbas do grande rei, disse: - Agora percebo o motivo por que todos querem apressar a chegada da delfina. Julgam que bastar apresentar-se aqui para eu ser seu escravo, ou para ser dominado pela sua famlia. Ora! hei-de ter muito tempo para ver a minha querida nora, porque a sua chegada aqui deve meter-me decerto em novas sensaborias. Vivamos portanto sossegados; sossegados o mais tempo possvel, e para isso vamos demor-la no caminho. Ela devia passar em Reims e Noyon sem parar, e seguir logo para Compienha: nada, melhor manter o primeiro programa. Trs dias de recepo em Reims, e um... no! melhor dois, ora adeus! trs dias de festa em Noyon. Isso far sempre seis dias, seis bons dias. El-rei pegou na pena e com o seu prprio punho escreveu ao senhor de Stainville dandolhe ordem de se demorar trs dias em Reims, e trs dias em Noyon. Depois, expedindo o correio, disse-lhe: - Vai a toda a brida, e no pares seno para entregar esta ordem pessoa a quem dirigida. Depois, com a mesma pena escreveu: Querida condessa, hoje instalmos Zamora no seu governo. Vou partir para Marly. Esta noite irei a Luciennes dizer-lhe tudo quanto penso neste momento. Frana. - Lebel - bradou el-rei - leve esta carta condessa e recomendo-lhe o maior respeito, ouviu? um conselho que lhe dou. O criado inclinou-se e saiu. III A SENHORA DE BARN A Sr. Condessa de Barn, como Chon o havia dito a seu irmo, caminhava rapidamente para Paris. Esta jornada era o resultado de uma dessas maravilhosas imaginaes que, em momentos crticos, vinham em auxlio do visconde Joo. No podendo achar, entre as senhoras da corte, essa madrinha to desejada e necessria, porque sem ela no podia ter lugar a apresentao da senhora du Barry, lanara os olhos para a Provncia, examinara as posies, esquadrinhara as aldeias e acabara por encontrar o que precisava, numa sofrvel casa gtica das margens do Meuse. O que ele procurava, era uma velha demandista e um velho processo. A velha demandista era a condessa de Barn. O processo era um negcio do qual esperava toda a sua fortuna e que dependia do senhor de Maupeou, que se achava recentemente ligado com a senhora du Barry, com quem descobrira um grau de parentesco at ento ignorado, e a quem por conseqncia chamava sua prima. O senhor de Maupeou, na esperana de obter a chancelaria, tinha pela favorita todo o fervor de uma amizade nascida na vspera e de um interesse que o haviam feito nomear por el-rei vice-chanceler, e por abreviatura o vice (o vcio) que era como todos o conheciam. A Sr. Condessa de Barn, apesar do seu nome e ttulo magnficos, no era mais que uma velha demandista muito semelhante condessa de Escarbagnas ou senhora de Pimbche, que eram os dois bons tipos daquela poca. gil, magra, angulosa, sempre desconfiada de tudo, virando continuadamente e para todos os lados os seus olhos de gato espantado, tinha a condessa de Barn conservado os costumes das mulheres do tempo da sua mocidade, e como a moda, apesar dos seus caprichos, consente algumas vezes em ser lgica e arrazoada, acontecia que o trajo das raparigas de 1740 era exactamente um trajo de velhas em 1770.

Amplas rendas, manteletes bordados, enormes coifas, bolsos imensos, indispensvel colossal e mantinha de seda lavrada, tal era o costume em que Chon, a irm querida e confidente fiel da senhora du Barry, havia encontrado a senhora de Barn, quando em sua casa se apresentou com o nome suposto de Flageot, isto , na qualidade de filha do seu advogado. A velha condessa usava-o (entende-se que falamos do trajo) tanto por gosto como por economia. No era destas pessoas que se envergonham da sua pobreza, porque essa pobreza no precedia de culpa sua. S o que lamentava era no ser rica para deixar uma fortuna a seu filho, que fosse digna do seu nome. O filho era um mancebo provinciano, tmido como uma donzela, e que apreciava muito mais as douras da vida material que os favores da fama. Restava-lhe, contudo, o recurso de chamar suas as terras que o seu advogado disputava aos Salcios; mas, como era mulher de elevado esprito, bem conhecia que se tivesse que pedir dinheiro emprestado sobre elas, no acharia um nico usurrio, e naquela poca havia-os bem ousados em Frana, que lhe emprestasse coisa alguma sobre semelhante penhor. o motivo por que, reduzida aos rendimentos das terras no compreendidas na demanda, a Sr. Condessa de Barn, que possua uns mil escudos cada ano, fugia da corte, onde, s para se transportar a casa dos senhores juzes e dos senhores advogados, gastaria uns doze francos por dia. Tinha-se retirado principalmente porque desesperava de fazer sair e dar andamento aos seus autos antes de quatro ou cinco anos. Hoje as demandas ainda so longas, mas enfim, sem viver a idade de um patriarca, alguma esperana se pode ter de as ver concludas, mas antigamente uma demanda atravessava duas ou trs geraes, e, como essas fabulosas plantas dAs Mil e Uma Noites, s dava flor ao cabo de duzentos ou trezentos anos. Ora, a condessa de Barn no queria devorar o resto do seu patrimnio na tentativa de recuperar as dezessete vigsimas partes empenhadas: era, como j o dissemos, o que em todos os tempos se chama uma boa mulher do tempo antigo, isto , sagaz, prudente, forte e avarenta. Teria decerto defendido, advogado, executado e dirigido a sua demanda, melhor que qualquer procurador ou advogado, mas chamava-se Barn, e esse nome punha obstculos a muita coisa. Resultava que, devorada de arrependimentos e angstias, muito semelhante ao divino Aquiles, que, retirado na sua tenda, sofria mil mortes ao ouvir o som desse clarim para o qual se fingia surdo, a senhora de Barn passava os dias com os culos no nariz decifrando antigos pergaminhos, e as noites embuada no seu roupo de chita da Prsia, com os cabelos grisalhos soltos, a advogar diante do seu travesseiro a causa dessa sucesso reivindicada pelos Salcios, causa que ela sempre ganhava a si mesma, com uma eloqncia de que ficava to satisfeita, que em idnticas circunstncias, desejava-a igual ao seu advogado. Facilmente se percebe a doce sensao que, em tais circunstncias, devia ter causado condessa de Barn a chegada de Chon com o nome suposto de filha do Sr. Flageot. O jovem conde estava no seu regimento. Com facilidade se cr aquilo que se deseja. Tambm a senhora de Barn deu logo ouvidos histria que Chon lhe contou. Havia contudo uma sombra de desconfiana para conceber: a condessa conhecia o Sr. Flageot havia mais de vinte anos, tinha-o visitado duzentas vezes na sua casa da Rua do PetitLion-Saint-Sauveur, e nunca percebera o menor indcio de criana que viesse pedir doces e pastilhas aos clientes. Mas quem havia de pensar nessas coisas em tal momento, quem se havia de lembrar se existia ou no criana alguma em casa do advogado? a filha do Sr. Flageot era filha do Sr. Flageot, e nada mais lhe importava. Demais, esta senhora dizia que era casada, no vinha a Verdun de propsito, ia para Estrasburgo ter com seu marido. A senhora de Barn devia talvez ter perguntado Sr. Flageot pela carta que junto dela a devia acreditar; mas se um pai no pode mandar sua filha, a sua prpria filha, sem levar uma carta, a quem se poderia incumbir uma misso de confiana, e depois, por que teria esses receios?

A que tendiam semelhantes suspeitas? Qual seria o fim de fazer uma jornada de sessenta lguas para contar uma histria dessas? Se ela fosse rica, se, como a mulher de um banqueiro ou de um recebedor geral, tivesse que trazer consigo equipagens, baixelas e brilhantes, poderia pensar que era uma trama urdida por ladres. A senhora de Barn ria-se muito quando por vezes pensava no modo como ficariam despeitados os ladres que se lembrassem de a querer roubar. Por isso, apenas Chon saiu no carro ordinrio, puxado por um nico cavalo, e no qual ela vinha desde a ltima posta, onde havia deixado a sua carruagem, convencida a Sr. Condessa de Barn que era chegada a ocasio de fazer um sacrifcio, meteu-se tambm por sua vez numa antiga carruagem, e por tal forma apressou os postilhes, que passou em Chausse uma hora antes da delfina e chegou barreira de Saint-Denis apenas cinco ou seis horas depois de Chon du Barry. Como a viajante tinha pouca bagagem e sendo para ela da maior urgncia informar-se do seu negcio, fez parar a carruagem na Rua do Petit-Lion, porta do Sr. Flageot. Isto no se fez sem que se juntasse um grande nmero de curiosos (e os parisienses todos o so) em torno desse venervel coche que, pela arquitectura monumental, pelas cortinas de marroquim imprensado e pelas ferragens parecia sair das cocheiras de Henrique IV. A Rua do Petit-Lion no larga. A senhora de Barn e o seu trem ocupavam-na toda majestosamente, e tendo pago aos postilhes, deu-lhes ordem de conduzirem a carruagem para a hospedaria em que ela costumava apear-se, isto , no Galo Cantante, que era situada na Rua de Saint-Germain-des-Prs. Subiu, segurando-se corda sebenta, a escura escada do Sr. Flageot; havia nela uma frescura que no desagradou velha, fatigada pela rapidez e ardor do caminho. O Sr. Flageot, apenas a sua criada Margarida lhe anunciou a visita da Sr. Condessa de Barn, comps-se, porque o calor excessivo obrigava-o a estar meio despido, ps na cabea uma cabeleira que sempre tinha ao seu lado, levantou-se e dirigiu-se para a porta, levando um sorriso nos lbios. Mas nesse sorriso via-se to claramente uma nuvem de admirao que a condessa julgou-se obrigada a dizer-lhe: - Ento que isso, meu caro Sr. Flageot? sou eu. - Sim, sim, bem a vejo, senhora condessa. Fechando ento pudicamente o seu roupo, o advogado conduziu a condessa para uma poltrona de couro, que estava no canto mais claro do gabinete, e afastou-a com prudncia da mesa em que estavam os seus papis, porque sabia que era muito curiosa. - Agora, minha senhora - disse ele - permitir que me alegre por uma to agradvel surpresa. A senhora de Barn, encostada na poltrona, erguia um pouco os ps para deixar entre o cho e os seus sapatos de cetim lavrado o espao necessrio para a colocao de uma pequena almofada, que Margarida lhe trazia. Ergueu-se rapidamente. - Como surpresa? - disse ela entalando o nariz com os culos que acabava de tirar do estojo para melhor poder ver o Sr. Flageot. - Sem dvida, eu julgava que estava nas suas fazendas, minha senhora - respondeu o advogado, usando assim de uma amvel lisonja para qualificar as trs jeiras de terra de horta da condessa. - L estava efectivamente; mas, como v, deixei-as ao seu primeiro sinal. - Ao meu primeiro sinal? - disse o advogado muito admirado. - sua primeira palavra, primeiro aviso, primeiro conselho, enfim, ou como melhor lhe agradar. Os olhos do Sr. Flageot cresceram at ao tamanho dos culos da condessa. - Parece-me que no andei mal - continuou esta e que deve estar contente por isso. - Estou encantado, minha senhora, como sempre; mas permita que lhe diga, que no vejo o que tenho com tudo isto.

- Como! - disse a condessa - o que tem com isto?... tem tudo, ou direi melhor, fez tudo o senhor mesmo. - Eu? - Certamente... Ora vamos a saber, temos novidades por c? - Oh! sim, minha senhora, muitas; dizem que el-rei est para fazer um golpe de Estado a respeito do parlamento. Mas, esquecia-me oferecer-lhe de tomar alguma coisa. - Bem me importa a mim com el-rei, ou com os golpes de Estado! - Ento de que se trata, minha senhora? - Trata-se da minha demanda. Era a respeito da minha demanda que eu lhe perguntava o que havia de novo. - Oh! quanto a isso - disse o Sr. Flageot abanando tristemente a cabea - nada temos, nada absolutamente, minha senhora. - Isto , nada... - Nada, mesmo nada. - Nada, depois que a senhora sua filha me foi falar. Ora, como ela me falou anteontem, compreendo facilmente que depois daquele momento no poder ter havido muitas novidades mais. - A minha filha, minha senhora? - Sim. - Disse... a minha filha? - Sem dvida, a sua filha... a que mandou l. - Perdo, minha senhora - disse o Sr. Flageot mas era impossvel que eu lhe mandasse a minha filha. - Impossvel! - Por uma razo muito simples, porque no tenho nenhuma. - Est certo disso? - perguntou a condessa. - Minha senhora - respondeu o Sr. Flageot tenho a honra de ser solteiro. - Ora adeus! - exclamou a condessa. O Sr. Flageot tornou-se desassossegado; chamou Margarida para trazer os refrescos oferecidos condessa, e para ficar ali com ele a fim de a vigiarem. - Infeliz mulher - pensou ele - ter-se-lhe- voltado o juzo? - Como! - disse a condessa - o senhor no tem uma filha? - No, minha senhora. - Uma filha casada, em Estrasburgo? - No, minha senhora, no, mil vezes no. - E no encarregou essa filha - continuou a condessa prosseguindo na sua idia - no encarregou essa filha de me procurar, no seu caminho para Estrasburgo, a fim de me anunciar que a minha demanda ia ser julgada? - No. A condessa deu um salto na poltrona batendo com as mos sobre os joelhos. - Beba alguma coisa, senhora condessa - disse o Sr. Flageot - isso h-de fazer-lhe bem. Fez ao mesmo tempo um sinal a Margarida, que trazia dois copos de cerveja sobre uma bandeja, mas a velha j no tinha sede, porque repeliu a bandeja e os copos com tal fora, que Margarida, que parecia ter alguns privilgios na casa, ficou sentida. - Vamos, vamos - disse a condessa, olhando para o Sr. Flageot por cima dos culos expliquemo-nos, senhor, se me faz favor. - De boa vontade - respondeu Flageot; - fica, Margarida, talvez a senhora condessa queira tomar alguma coisa; vamos explicao. - Vamos, se assim o quer, porque hoje est incompreensvel, meu caro Sr. Flageot; palavra de honra, dir-se-ia que o calor da estao lhe voltou o juzo. - Sangue-frio, minha senhora - disse o advogado inclinando-se para trs na poltrona para se afastar da condessa - no se exaspere e conversemos.

- Sim, conversemos. No tem nenhuma filha, Sr. Flageot? - No, minha senhora, o que me causa muita pena porque me parece que lhe seria agradvel que eu tivesse alguma; ainda que... - Ainda que? - repetiu a condessa. - Ainda que, quanto a mim, preferiria ter um rapaz; os rapazes nestes tempos em que estamos saem melhores e so mais fceis de acomodar. A senhora de Barn ficou um instante pensativa. - Como! - disse ela - no me mandou recado por uma irm, uma sobrinha, uma prima qualquer, para que eu viesse imediatamente para Paris? - Nem mesmo pensei nisso, porque sei quanto dispendioso viver em Paris. - Mas a minha demanda? - Terei a honra de a avisar quando estiver para ser julgada, minha senhora. - Como? quando estiver para ser julgada! - Sim. - Pois no est para o ser? - No, que eu saiba, minha senhora. - Pois o meu processo no est avocado? - No. - Nem se trata disso proximamente? - No, minha senhora! Santo Deus, no! - Ento - exclamou a velha erguendo-se - zombaram, escarneceram indignamente de mim. O Sr. Flageot coou a cabeleira e murmurou: - Receio muito que assim seja, minha senhora. - Sr. Flageot! - exclamou a condessa. O advogado deu um salto sobre a cadeira e fez um sinal a Margarida, que se apressou a segurar seu amo. - Sr. Flageot - prosseguiu a condessa - no hei-de tolerar semelhante humilhao, e vou ter com o senhor chefe da polcia para que me procurem a sirigaita que cometeu tal insulto para comigo. - Oh! - disse o Sr. Flageot - h-de ser difcil! - Assim que souber quem foi - prosseguiu a condessa levada pela raiva - hei-de intentar logo uma aco! - Ainda outra demanda! - disse tristemente o advogado. Estas palavras fizeram cair a demandista de toda a altura do seu furor; a queda foi pesada. - Ah! - disse ela - eu vinha to contente, to feliz! - Mas o que lhe disse ento essa mulher, minha senhora? - Primeiramente disse-me que vinha da sua parte. - Horrvel intrigante! - E da sua parte me trazia a notcia da avocao do meu processo; era iminente; todas as diligncias que eu fizesse eram poucas, poderia chegar j tarde. - Ah! - repetiu o Sr. Flageot por sua vez - o negcio est longe de ser avocado, minha senhora. - Esqueceram-nos, no verdade? - Olvidados, enterrados, minha senhora, e a no haver algum milagre, e como bem o sabe os milagres so raros... - Oh! decerto - murmurou a condessa soltando um suspiro. O Sr. Flageot respondeu com outro suspiro modulado sobre o da condessa. - Olhe, Sr. Flageot - continuou a senhora de Barn - quer que lhe diga uma coisa? - Fale, minha senhora. - Sinto que no hei-de sobreviver a isto. - Oh! quanto a isso, no faria bem.

- Meu Deus! Meu Deus! - disse a pobre condessa - esto exaustas as minhas foras. - nimo, minha senhora, nimo! - disse Flageot. - Mas no tem algum conselho a dar-me? - Oh! sim, tenho um: de voltar para as suas fazendas, e no dar ouvidos daqui por diante seno aos que levarem um bilhetinho escrito por mim. - Que hei-de eu fazer, seno voltar para as minhas terras! - o mais prudente. - Mas acredite-me, Sr. Flageot - murmurou ainda a condessa de Barn - tenho quase a certeza de que no nos tornaremos a ver neste mundo. - Que infmia! - Mas pelo que vejo tenho inimigos bem cruis? - alguma maldade dos Salcios, era capaz de o jurar. - Em todo o caso, muito mesquinha. - Sim, e de mau gosto - disse o Sr. Flageot. - Oh! a justia, a justia! - exclamou a condessa - meu caro Sr. Flageot, a justia a caverna de Caco! - E por que no existe j a justia, minha senhora? - disse ele - porque o senhor de Maupeou quis ser chanceler em vez de se deixar ficar presidente. - Sr. Flageot, aceitarei agora o refresco que me ofereceu. - Margarida! - chamou o advogado. Margarida entrou. Tinha j sado quando viu que a conversa tomava um tom pacfico. Entrou, dizemos ns, trazendo a bandeja e os dois copos; a condessa bebeu lentamente um copo de cerveja depois de ter feito a honra de tocar o copo no do seu advogado; levantou-se, dirigiu-se para a ante-sala tendo feito previamente uma triste mesura, e despedidas mais tristes ainda. O Sr. Flageot seguiu-a, de cabeleira na mo. A senhora de Barn estava no patamar da escada, procurando a corda que servia de corrimo, quando sentiu outra mo encontrar-se com a sua e a cabea de algum que lhe batia contra o peito. Essa mo e essa cabea pertenciam a um escrevente que subia a quatro e quatro os degraus da escada. A condessa, resmungando e praguejando, sacudiu as saias e continuou a descer, enquanto o escrevente chegava ao patamar, empurrava a porta e bradava com a voz franca e alegre dos escreventes de todos os tempos: - A tem, Sr. Flageot; a respeito da questo Barn! E dava-lhe um papel. Subir novamente a escada, empurrar o escrevente, lanar-se sobre o Sr. Flageot, arrancarlhe o papel, bloquear o advogado no seu gabinete, eis tudo quanto tinha feito a velha condessa, antes que o escrevente acabasse de receber duas bofetadas que Margarida lhe aplicava ou fingia aplicar-lhe em resposta a dois beijos. - Ento! - bradou a velha - que diz este papel, Sr. Flageot? - Ainda no sei, senhora condessa; mas se mo quiser restituir, talvez que possa dizer-lho. - verdade, meu caro Sr. Flageot; leia, leia depressa. Este olhou para a assinatura do bilhete. - do Sr. Guildou, nosso procurador - disse ele. - Ah! meu Deus! - Convida-me - continuou o Sr. Flageot com uma estupefaco crescente - convida-me a aprontar-me para advogar na tera-feira, porque foi avocada a nossa demanda. - Avocada! - bradou a condessa saltando de contente. - Ah! Sr. Flageot, no brinquemos desta vez, porque era capaz de me matar. - Minha senhora - respondeu o Sr. Flageot admirado com a notcia - se algum zomba aqui, h-de ser o Sr. Guildou, mas seria a primeira vez na sua vida.

- A carta dele? - Assinou-se Guildou, veja! - verdade!... Avocada hoje, julgada na tera-feira. Ento a tal senhora que foi visitar-me no uma intrigante? - Parece-me que no. - Mas se no era mandada pelo senhor... Tem a certeza que no foi mandada por si? - Pudera no! - Por quem seria ento mandada? - Sim, por quem? - Porque enfim devia ser mandada por algum. - No percebo. - No entendo. - Ah! deixe-me tornar a ler, Sr. Flageot: avocada, julgada, est escrito, julgada perante o Sr. Presidente Maupeou. - Diacho! est l isso? - Sem dvida. - mau! - Por qu? - Porque o presidente Maupeou um amigo ntimo dos Salcios. - Sabe isso? - o seu maior amigo. - Bom, estamos ento pior que dantes. Sou infeliz. - E contudo - disse o Sr. Flageot - aqui nada h que dizer, preciso ir visit-lo. - Mas, receber-me- muito mal? - provvel. - Ah! Sr. Flageot, o que me diz? - A verdade, minha senhora. - Como! nem s perde o nimo, mas ainda em cima quer roubar-me aquele que eu tenho. - Do senhor de Maupeou, nada tem que esperar de bom. - to fraco, o senhor, um Ccero? - Ccero teria perdido a causa dos Ligarius, se tivesse advogado perante Verres, em vez de falar diante de Csar - foi a resposta mais modesta que ocorreu ao Sr. Flageot para repelir a honra insigne que a sua cliente acabava de lhe fazer. - Ento d-me de conselho que o no v procurar? - Deus no permita, minha senhora, que eu lhe aconselhe semelhante irregularidade, mas compadeo-me da senhora por estar obrigada a uma tal entrevista. - Est-me falando, Sr. Flageot, como um soldado que pensa em desertar. Dir-se-ia que receia encarregar-se do negcio. - Minha senhora - respondeu o advogado - j perdi durante a minha vida algumas causas que tinham mais probabilidade de se vencerem do que esta. A condessa suspirou e juntou toda a sua energia. - Hei-de ir at ao fim - disse ela com uma certa dignidade, que contrastava com o carcter cmico do dilogo; - no se dir que tendo eu o direito por mim, receei a luta. Poderei perder o meu processo, mas hei-de mostrar aos prevaricadores a fronte de uma mulher de bem como no h muitas hoje na corte. D-me o brao, Sr. Flageot, para me acompanhar a casa do seu vicechanceler? - Minha senhora - disse o Sr. Flageot, chamando em seu socorro toda a sua dignidade minha senhora, ns, os membros oponentes do parlamento de Paris, jurmos no ter relaes fora das audincias com os que abandonaram os parlamentos na questo do senhor de Aiguillon. A unio faz a fora, e como o senhor de Maupeou no andou firme e conseqente nessa questo, como temos razes de queixa contra ele, ficaremos em nossos respectivos campos at que ele se resolva para um lado ou para outro.

- O meu negcio chega em m ocasio, segundo vejo - suspirou a condessa; - advogados de mal com juzes, juzes de mal com os clientes... No importa, hei-de perseverar. - Deus a ajude, minha senhora - disse o advogado levantando ao mesmo tempo o seu roupo sobre o brao esquerdo, como um senador romano o teria feito com a sua toga. - Eis aqui um bem triste advogado - murmurou consigo mesmo a senhora de Barn. Receio muito ser to feliz com a sua defesa no parlamento, como o era l na minha casa de campo quando eu mesma defendia a minha causa diante do meu travesseiro. Depois, em voz alta e com um sorriso no qual tentava disfarar o seu desassossego, prosseguiu: - Adeus, Sr. Flageot, estude bem a causa, rogo-lho! Ningum sabe o que poder acontecer. - Oh! minha senhora - disse o Sr. Flageot - no a defesa que me d cuidado. H-de ser um belo discurso, e tanto mais belo que tenciono fazer nele terrveis aluses. - Aluses a qu, senhor, a qu? - A corrupo de Jerusalm, minha senhora, que hei-de comparar com as cidades malditas e sobre as quais hei-de chamar o fogo do Cu. Percebe, minha senhora, e ningum duvidar que Jerusalm Versalhes. - Sr. Flageot - bradou a velha - no nos v comprometer, ou direi melhor, no comprometa a minha causa! - Ora! minha senhora, a sua causa com o senhor de Maupeou, est perdida; do que se trata agora de vencer aos olhos do pblico, e como nos no fazem justia, faamos ns bulha e escndalo! - Sr. Flageot... - Minha senhora, sejamos filsofos... faamos estalada! - Anda! os diabos te faam estalada a ti! murmurou a condessa consigo - mau advogado, que s vs em tudo isto um meio de te envolveres nos teus farrapos filosficos. Vamos ver o senhor de Maupeou; no filsofo, esse, e talvez seja mais feliz com ele do que contigo! E a velha condessa separou-se do Sr. Flageot e afastou-se da Rua do Petit-Lion-SaintSauveur, depois de haver percorrido em dois dias todos os degraus da escada da esperana e do desapontamento. IV O VICE A condessa tremia como varas verdes ao dirigir-se a casa do senhor de Maupeou. Contudo, durante o caminho, havia feito uma reflexo prpria para se tranqilizar. Segundo toda a probabilidade, a hora no era prpria para o senhor de Maupeou a poder receber, e contentar-se-ia em anunciar ao porteiro uma prxima visita. Efectivamente, seriam sete horas da tarde, e conquanto fosse ainda dia, o costume de jantar s quatro, como j entre a nobreza se usava, interrompia geralmente todos os negcios desde o jantar at ao dia seguinte. A senhora de Barn, que ardentemente desejava falar com o vice-chanceler, consolou-se todavia com a idia de que no o encontraria. esta uma das freqentes contradies do esprito humano, que sempre se ho-de entender sem se poderem explicar. A condessa apresentou-se portanto, esperando que o porteiro lhe negasse a entrada. Tinha preparado um escudo de seis libras para adoar o Crbero e convid-lo a inscrever o seu nome na lista das audincias solicitadas. Chegando em frente do palcio, viu o porteiro falar com um correio que parecia estar dando uma ordem. Esperou discretamente, receando que a sua presena incomodasse os dois interlocutores; mas o correio, assim que viu a velha na sua carruagem alugada, retirou-se. O porteiro aproximou-se ento da carruagem e perguntou o nome da senhora.

- Oh! - disse ela - bem sei que provavelmente no terei a honra de ver Sua Excelncia. - Apesar disso, minha senhora - respondeu o porteiro - tem sempre a bondade de me dizer o seu nome. - Condessa de Barn - respondeu ela. - Sua Excelncia est em casa - replicou o porteiro. - Como? - disse a senhora de Barn no cmulo da admirao. - Digo que Sua Excelncia est em casa repetiu este. - Mas decerto no recebe ningum a estas horas. - H-de receber a senhora condessa - disse o porteiro. A senhora de Barn apeou-se sem saber bem se dormia ou velava. O porteiro puxou por uma corda que duas vezes fez soar uma sineta. Apareceu um criado no patamar da escada e o porteiro fez sinal condessa para que subisse. - Quer falar com Sua Excelncia, minha senhora? perguntou o criado. - Isto , senhor, eu solicito esse favor, mas sem esperana de o obter. - Queira seguir-me, senhora condessa. - Dizem tanto mal deste grande magistrado! pensou a condessa enquanto seguia o criado - e contudo tem uma qualidade ptima, de receber a gente a toda a hora. Um chanceler!... singular. Enquanto caminhava, estremecia com a idia de ir encontrar um homem tanto mais intratvel, tanto mais desagradvel quanto lho permitia ser a sua assiduidade ao trabalho. O senhor de Maupeou, coberto com uma grande cabeleira e vestido com a sua casaca de veludo preto, trabalhava num gabinete de portas abertas. A condessa, ao entrar, lanou em torno de si um olhar rpido, mas viu com surpresa que estava s, e que os espelhos no reflectiam outros rostos a no ser o seu e o do plido e magro chanceler. O criado anunciou a senhora condessa de Barn. O senhor de Maupeou levantou-se e encostou-se chamin que lhe ficava por detrs. A condessa fez as trs mesuras do estilo. O pequeno cumprimento que seguiu as mesuras foi um pouco embaraado. No tinha esperado alcanar a honra... no julgava que um ministro to ocupado tivesse nimo de tirar s suas horas de descanso... O senhor de Maupeou disse-lhe que o tempo era to precioso que os sbditos de Sua Majestade como para os seus ministros, e que no obstante, ainda havia distines a fazer a favor das pessoas que esto com pressa, e que portanto sempre dava o seu melhor resto de tempo quelas que mereciam as suas atenes. Novas mesuras da senhora de Barn, depois um silncio e perturbao, porque era chegado o ponto de acabar com os cumprimentos e comear o seu negcio. O senhor de Maupeou esperava. - Senhor - disse a demandista - quis apresentar-me na presena de V. Ex., a fim de lhe expor muito humildemente um negcio muito grave e do qual depende toda a minha fortuna. O senhor de Maupeou fez um leve sinal com a cabea, que queria dizer: - Fale. - Com efeito, senhor - disse ela - saber que toda a minha fortuna, ou direi melhor, toda a fortuna do meu filho depende de uma demanda que tenho contra a famlia dos Salcios. O vice-chanceler continuou a prestar ateno. - Mas, senhor, -me to conhecida a sua equidade que, apesar do conhecimento das relaes de amizade que existem entre V. Ex. e os meus adversrios, no hesitei um s momento em vir pedir a V. Ex. a merc de me ouvir. O senhor de Maupeou no pde deixar de sorrir-se ao ouvir louvar a sua equidade; fazialhe isso lembrar o tempo em que tambm louvavam o Sr. Dubois a respeito das suas virtudes apostlicas.

- Minha senhora - disse ele - tem razo de observar que sou amigo dos Salcios, mas tem tambm razo em acreditar que ao encarregar-me dos selos, como chanceler, pus de parte todas as amizades. Responder-lhe-ei portanto, minha senhora, fora de toda e qualquer preocupao particular, como do dever do chefe soberano da justia. - Oh! meu senhor, Deus o abenoe! - exclamou a velha. - Examino portanto a sua demanda como um simples jurisconsulto - prosseguiu o chanceler. - E muito o agradeo a V. Ex., que to hbil nestas matrias. - Parece-me que a sua demanda est para ser julgada proximamente? - Na semana prxima, senhor. - Agora diga-me o que deseja. - Que V. Ex. tome conhecimento dos documentos que juntei. - J examinei tudo. - Ento! - perguntou a velha toda trmula - qual a sua opinio? - A respeito do seu negcio? - Sim. - Parece-me que no pode haver a menor dvida. - Como, em se ganhar? - No, em se perder. - V. Ex. diz que hei-de perder a minha causa? - Indubitavelmente. Dou-lhe um conselho. - Qual ? - perguntou a condessa com uma ltima esperana. - que, se depois de julgada e condenada a sua demanda, tem que fazer algum pagamento... - Ento? - Trate de ter o seu dinheiro pronto. - Mas, senhor, ficamos perdidos! - Ah! senhora condessa, bem sabe que a justia no pode entrar nessas consideraes. - Entretanto, senhor, ao lado da justia est a piedade. - exactamente por essa razo, senhora condessa, que fizeram a justia cega. - Contudo, V. Ex. no me negar um conselho. - Fale! em que gnero o quer? - No haver meio algum de entrar numa combinao, num acordo para ter uma sentena mais suave? - No conhece nenhum dos seus juzes? perguntou o vice-chanceler. - Nenhum, senhor. - Isso mau! Os senhores Salcios tm relaes com mais de trs quartas partes do parlamento! A condessa estremeceu. - Note bem - continuou o vice-chanceler - que isto afinal nada faz ao caso, porque um juiz no se deixa levar por influncias particulares. Isto era to verdade como a equidade do chanceler e as famosas virtudes apostlicas de Dubois. A condessa esteve a ponto de perder os sentidos. - Mas enfim - prosseguiu o chanceler estabelecida a integridade, o juiz pensa mais no seu amigo do que num indiferente; muito justo quando justo, e como h-de ser justo que perca a sua demanda, poder acontecer que queiram tornar as conseqncias o mais desagradveis possvel para si. - Mas o que V. Ex. me faz a honra de dizer-me aterrador! - Quanto a mim, senhora condessa - prosseguiu o senhor de Maupeou - bem deve pensar que me hei-de abster de tudo; no tenho recomendaes que fazer aos juzes, e como no sou eu mesmo quem julgo, posso falar.

- Ah! senhor, eu j desconfiava de uma coisa. O vice-chanceler olhou sorrateiramente para a velha demandista. - que os senhores Salcios habitando Paris esto ligados com todos os meus juzes, e portanto os senhores Salcios tm muita influncia. - Em primeiro lugar a justia e o direito esto do lado deles. - Quanto cruel, senhor, ouvir semelhantes palavras sair da boca de um homem to recto como V. Ex.. - Digo-lhe que isto tudo verdade, e contudo dou-lhe a minha palavra que desejava serlhe til. A condessa estremeceu; parecia-lhe ver alguma coisa obscura, seno nas palavras, pelo menos nas idias do vice-chanceler, e que se essa obscuridade se dissipasse, veria talvez alguma coisa de favorvel. - Demais - prosseguiu o senhor de Maupeou - o seu nome, que um dos melhores nomes da Frana, j para mim uma recomendao muito eficaz. - Que contudo no me h-de impedir de perder a minha demanda, senhor. - Ah! que lhe hei-de eu fazer? - Oh! senhor - disse a condessa abanando a cabea - como os negcios se fazem! - Parece dizer, minha senhora, que no nosso tempo andavam os negcios melhor. - Sim, senhor, pelo menos assim me parece, e lembra-me com saudades o tempo em que, simples advogado de el-rei no parlamento, pronunciava esses belos discursos, que eu, jovem mulher naquela poca, ia aplaudir com entusiasmo. Que fogo! que eloqncia! que virtude! Ah! senhor chanceler, naquele tempo no havia intriga nem favor, naquele tempo teria eu ganho o meu processo. - Havia naquele tempo a senhora de Phalaris que tentava reinar no momento em que o regente fechava os olhos, e a Souris que se metia por toda a parte a fim de ver se achava alguma coisa para roer. - Oh! senhor, a senhora de Phalaris era to nobre, e a Souris era to boa menina! - Que no havia meio de lhe recusar coisa alguma. - Ou que elas nada sabiam recusar. - Ah! senhora condessa - disse o chanceler rindo com um modo que admirou cada vez mais a velha demandista, tanto parecia franco e natural - no me faa falar mal da minha administrao por amor da minha mocidade. - Mas V. Ex. no pode todavia impedir que eu chore a minha fortuna perdida, a minha casa arruinada. - Eis o resultado da mudana dos tempos, condessa; sacrifique ao dolo do dia, sacrifique. - Ah! senhor, os dolos nada querem com os que vm ador-los de mos vazias. - Como sabe isso? - Eu? - Sim; parece-me que ainda no experimentou? - Oh! senhor, to bom, que me fala como uma pessoa de amizade. - Ora! Somos da mesma idade, condessa. - Tivesse eu vinte anos, e fosse V. Ex. um simples advogado, havia de advogar a minha causa e no haveria Salcios no mundo que nos vencessem. - Infelizmente, senhora condessa, j no temos vinte anos - disse o vice-chanceler soltando um suspiro; - preciso implorar aqueles que os tm, j que a senhora mesma confessa que essa a idade da influncia... Como! No conhece ningum na corte? - Alguns velhos retirados dos negcios pblicos, que se envergonhariam da sua antiga conhecida porque est pobre. Olhe, senhor, tenho entrada no Pao, em Versalhes, poderia l ir se quisesse; mas de que me serviria? Ah! apanhe eu as minhas duzentas mil libras, e ver como sou outra vez procurada. Faa esse milagre, senhor. O chanceler fingiu no ouvir esta ltima frase.

- No seu lugar - disse ele - eu esqueceria os velhos, como os velhos a esquecem, e procuraria os moos que tratam de alcanar partidrios. Tem conhecimento com as senhoras princesas? - Naturalmente j se no lembram de mim. - Tambm pouca influncia tm. Conhece o delfim? - No. - Tambm est muito ocupado com a sua arquiduquesa, prestes a chegar; no tem tempo para pensar noutras coisas; mas vejamos entre os favoritos. - Nem j sei como se chamam. - O senhor de Aiguillon? - Um peralvilho contra o qual se dizem coisas indignas; que se escondeu num moinho enquanto os outros se batiam... Ora adeus! - Ora! - disse o chanceler - nunca se deve acreditar seno metade do que se diz. Procuremos ainda. - Procure, senhor, veja se lhe ocorre algum. - Mas por que no? Sim... No... ora, sim... - Fale, senhor, fale! - Por que se no h-de dirigir pessoalmente condessa? - senhora du Barry? - perguntou a velha abrindo o leque. - Sim; no fundo boa pessoa. - Realmente? - E principalmente muito servial. - Sou de nobreza muito antiga para poder agradar-lhe, senhor. - Pois julgo que est enganada, condessa; ela est procurando ligar relaes com as boas famlias. - Julga isso? - disse a velha condessa, abalada na sua oposio. - Conhece-a? - Oh! meu Deus! no. - Ah! isso mau! Essa tem bastante crdito, parece-me? - Ah! sim, crdito tem ela, mas nunca a vi. - Nem sua irm Chon? - No. - Nem sua irm Bischi? - No. - Nem seu irmo Joo? - No. - Nem o seu preto Zamora? - Como, seu preto? - Sim, o seu preto um forte empenho. - Esse monstrozinho, cujo retrato se vende no Pont-Neuf, e que parece um macaco vestido? - Esse mesmo. - Pois eu havia de conhecer um tal mono? exclamou a condessa ofendida na sua dignidade; - e como havia eu de t-lo conhecido? - Ora, o que vejo, condessa, que pouco lhe importa perder a demanda. - Como? - Pois despreza Zamora. - Mas que pode Zamora fazer nisto tudo? - O que pode? Pode fazer-lhe ganhar a sua demanda, nada mais. - Ele! Esse pretinho, fazer-me ganhar a minha demanda! Ento como? - Basta que ele diga sua ama que lhe agrada que a senhora seja a vencedora. Sabe o que so as influncias... Ele faz o que quer da sua ama, e a sua ama faz do rei tudo quanto quer.

- Ento Zamora quem governa a Frana? - Zamora muito influente - disse o senhor de Maupeou abanando a cabea - e antes quereria estar de mal com... com a delfina, por exemplo, do que com ele. - Jesus! - exclamou a condessa - se estas coisas me no fossem ditas por um homem to srio como V. Ex.... - Ah! meu Deus! no serei o nico que lhe diga isto, toda a gente. Pergunte aos duques e aos pares se esquecem, quando vo a Marly ou a Luciennes, os confeitos para a boca, ou as prolas para as orelhas de Zamora? Eu que lhe falo, eu, que sou pouco mais ou menos chanceler de Frana, pois bem! quer saber o que estava fazendo quando chegou? estava-lhe passando o diploma de governador. - De governador? - Sim, o Sr. Zamora est nomeado governador do palcio de Luciennes. - O mesmo ttulo com que foi recompensado o Sr. Conde de Barn depois de vinte anos de servio? - Exactamente, quando foi nomeado governador do palcio de Blois. - Que degradao. Santo Deus! - exclamou a condessa; - ento a monarquia est perdida? - Pelo menos est muito doente, condessa; e de um doente que est para morrer, entende, arranca-se-lhe tudo quanto se lhe pode arrancar? - Sim, sim; mas ainda para isso preciso ter possibilidade de se aproximar do doente. - Sabe o que lhe seria preciso para a salvo aproximar-se da senhora du Barry? - O qu? - Precisava ser admitida a levar este diploma ao seu preto... - Eu! - Era uma bela introduo! - Julga isso, senhor? - disse a condessa em extremo consternada. - Tenho essa certeza, mas... - Mas... - repetiu a senhora de Barn. - Mas, veja bem, no conhece pessoa nenhuma da intimidade dela? - E o senhor? - Ora! eu... - Sim. - Eu, isso seria mais difcil. - Vamos, decididamente - disse a pobre velha demandista despedaada por todas estas alternativas decididamente a fortuna no quer mais nada de mim. V. Ex. faz-me a honra de me receber como nunca fui recebida, quando nem sequer esperava v-lo. Acontece, porm, faltar-me ainda alguma coisa: nem s estou disposta a fazer a corte senhora du Barry, eu, uma Barn! para chegar a ela, estou pronta a fazer-me portadora de diplomas para aquele horrvel negro, a quem, se o encontrasse na rua, nem mesmo faria a honra de lhe dar um pontap, e eis que nem junto desse pequeno monstro tenho meios de chegar... O senhor de Maupeou comeava novamente a passar a mo pela fronte e parecia pensar em alguma coisa, quando de repente o criado anunciou: - O Sr. Visconde Joo du Barry! A estas palavras, o chanceler bateu palmas em sinal de estupefaco, e a condessa deixouse cair meio desfalecida sobre uma poltrona. - Diga ainda que a fortuna a abandona, minha senhora! - bradou o chanceler. - Ah! condessa, condessa, o Cu, pelo contrrio, combate por si. Depois, voltando-se para o criado sem dar tempo condessa para sair da sua estupefaco, disse: - Mande entrar. O criado retirou-se; porm voltou um instante depois precedendo o nosso conhecido Joo du Barry, que entrou, de perna tesa e com o brao ao peito.

Aps as cortesias do estilo, e quando a condessa, trmula e indecisa, tentava erguer-se para se retirar, e como para obedecer leve inclinao de cabea que o chanceler lhe dirigia para dar a entender que estava terminada a audincia, o visconde fez nova cortesia e disse: - Perdo, senhor, perdoe-me, minha senhora, rogo-lhe que... Se Sua Excelncia quiser ouvir-me, tenho apenas duas palavras que lhe dizer. A condessa de Barn sentou-se novamente sem se fazer rogar; o seu corao nadava em alegria e palpitava de impacincia. - Talvez que eu o incomode, senhor? - balbuciou a condessa. - Nada! De modo nenhum! s dar duas palavras a Sua Excelncia; vou roubar-lhe dez minutos de trabalho precioso, o tempo necessrio para fazer uma queixa. - Uma queixa, diz o senhor? - perguntou o chanceler ao senhor du Barry. - Fui assassinado! Sim, senhor, assassinado! Bem entende que no posso perdoar essas coisas. Vilipendiem-nos, faam-nos canes, caluniem-nos, pacincia, a isso sobrevive-se; mas que no venham assassinar-nos, com os diabos! - Explique-se, senhor - disse o chanceler fingindo-se assustado. - Explico-me em duas palavras, mas no quero interromper a audincia desta senhora. - A Sr. Condessa de Barn - disse o chanceler apresentando a velha ao visconde du Barry. Du Barry e a condessa recuaram com elegncia para se cortejarem com tanta gravidade como na corte o teriam feito. - Eu ficarei para depois, senhor visconde - disse ela. - Senhora condessa, no me atrevo a cometer um crime de lesa-delicadeza. - Fale primeiro, senhor, fale, para mim apenas se trata de dinheiro, para o senhor um negcio de honra, pela ordem natural o seu negcio de maior urgncia. - Minha senhora - disse o visconde - aproveitarei o seu delicado oferecimento. E contou a sua histria ao chanceler, que o ouviu com toda a gravidade. - Carece testemunhas - disse o senhor de Maupeou depois de um momento de silncio. - Ah! - exclamou du Barry - nisso reconheo eu o juiz ntegro que s quer deixar-se influenciar pela verdade irrecusvel. No tem dvida, eu arranjarei testemunhas... - Senhor - disse a condessa - h j uma testemunha que est pronta. - Qual ? - perguntaram ao mesmo tempo o visconde e o senhor de Maupeou. - Eu! - disse a condessa. - A senhora! - exclamou o chanceler. - Queira dizer-me, senhor, essa questo no teve lugar em Chausse? - Sim, minha senhora. - Na estao das mudas? - Sim. - Pois bem! Eu sou testemunha. Passei duas horas depois no lugar em que o atentado se praticou. - Realmente, minha senhora? - perguntou o chanceler. - Ah! minha senhora, enche-me de favores - disse o visconde. - Por tal sinal - prosseguiu a condessa - que em toda a aldeia se no falava noutra coisa. - Cuidado! - disse o visconde - cuidado! Se consente em servir-me neste negcio, os Choiseul acharo provavelmente algum meio de a fazer arrepender. - Ah! - disse o chanceler - e tanto mais fcil lhe seria isso nesta ocasio, porquanto a senhora condessa tem actualmente uma demanda, cujo bom resultado me parece muito duvidoso. - Senhor, senhor - bradou a velha levando as mos fronte - caio de abismo em abismo. - Apoie-se um pouco no senhor visconde, ele lhe prestar um brao slido. - Um s - disse du Barry - mas conheo algum que tem dois bons braos e que lhos oferecer de boa vontade. - Ah! senhor visconde - bradou a velha - esse oferecimento do corao?

- Sim, minha senhora, servio por servio, aceito os seus, aceite a senhora os meus. Est dito? - Aceito, senhor, oh! e com grande prazer. - Pois bem! Minha senhora, eu vou neste momento visitar minha irm: digne-se acompanhar-me na minha carruagem... - Sem um pretexto, sem a prevenir? Oh! senhor, nunca me atreverei... - Tem um motivo, minha senhora - disse o chanceler entregando condessa o diploma de Zamora. - Senhor chanceler - exclamou a condessa - V. Ex. o meu anjo da guarda, e o senhor visconde a flor da nobreza de Frana. - Estou s suas ordens, repetiu o visconde mostrando o caminho condessa, que saiu com a maior rapidez. - Agradeo em nome de minha irm - disse Joo em voz baixa ao senhor de Maupeou; obrigado, meu primo. Mas no desempenhei bem o meu papel, hem? - Perfeitamente - disse Maupeou - mas conte tambm como representei o meu. Em todo o caso, cuidado, a velha esperta. Neste momento voltava-se a condessa. Os dois homens inclinaram-se fazendo uma profunda e cerimoniosa cortesia. Em baixo achava-se uma carruagem magnfica, cujos criados vestiam librs da casa real. A condessa, inchada de orgulho, subiu para ela. Joo fez um sinal e a carruagem partiu. Depois da sada de el-rei de casa da senhora du Barry, depois de uma recepo curta e aborrecida, como el-rei o havia anunciado aos cortesos, a condessa tinha ficado s com sua irm Chon e seu irmo, o qual no se havia mostrado logo, para que no fossem constatar o estado da sua ferida na realidade bem leve. O resultado do conselho de famlia tinha sido que a condessa, em vez de partir para Luciennes, como o dissera a el-rei, tinha partido para Paris. A condessa possua na Rua de Valois um pequeno palcio que lhe servia a ela e a toda a sua famlia, que sem descanso corria por montes e vales, quando os negcios ou os divertimentos reclamavam a sua presena em Paris. A condessa instalou-se em sua casa, pegou num livro e esperou. Durante esse tempo, o visconde disps as suas baterias. Contudo a favorita no tivera nimo de atravessar Paris sem de vez em quando pr a cabea fora do postigo. Um dos instintos das mulheres bonitas mostrarem-se, porque conhecem que so boas para serem vistas. A condessa portanto mostrou-se de modo, que a notcia da sua chegada a Paris espalhou-se por tal forma, que das duas horas at s seis recebeu umas vinte visitas. Foi um favor da divina Providncia, porque sem essas visitas teria a pobre condessa morrido de aborrecimento; mas graas a essa distraco, passou o tempo em conversar e rir. Eram sete horas e meia da tarde quando o visconde passou com a condessa de Barn diante da igreja de Santo Eustquio. A conversa na carruagem foi sobre as hesitaes da condessa em aproveitar-se de uma tal felicidade. Da parte do visconde, era a afectao de uma certa dignidade de protector e admiraes sem-nmero sobre o feliz acaso, que proporcionava senhora de Barn o conhecimento com a senhora du Barry. Por sua parte, a senhora de Barn no se cansava em dirigir elogios civilidade e afabilidade do vice-chanceler. Apesar dessas mentiras recprocas, no deixava a carruagem de avanar, e chegaram a casa da condessa s oito horas menos alguns minutos. - Permita, minha senhora - disse o visconde deixando a velha numa sala de espera permita que v prevenir a senhora du Barry da honra que a aguarda. - Oh! senhor - disse a condessa - no consentirei que a incomode por minha causa.

Joo aproximou-se de Zamora, que estivera por dentro da janela a espreitar a chegada do visconde, e deu-lhe uma ordem em voz baixa. - Oh! que engraado pretinho - exclamou a condessa. - Pertence senhora sua irm? - Sim, minha senhora - disse o visconde - um dos favoritos. - Dou-lhe os parabns. Quase no mesmo instante abriu-se de par em par a porta da sala de espera, e o criado introduziu a condessa de Barn na grande sala, em que a senhora du Barry dava as suas audincias. Enquanto a demandista examinava, suspirando, o luxo desse encantador aposento, Joo du Barry tinha-se dirigido para o gabinete de sua irm. - ela? - perguntou a condessa. - Em carne e osso. - No desconfia de coisa nenhuma? - De coisa nenhuma. - E o vice? - Andou optimamente. Tudo conspira a nosso favor, minha amiga. - Ento no nos demoremos mais em conversas, para ela no desconfiar. - Tens razo, porque me parece que esperta como um grilo. Onde est Chon? - Bem sabes que est em Versalhes. - Cuidado em que no aparea. - Recomendei-lho muito. - Vamos, princesa, faa a sua entrada. A senhora du Barry empurrou a porta do seu toucador e entrou. Todas as cerimnias da etiqueta, prprias daquela poca, foram escrupulosamente desempenhadas por estas duas actrizes, preocupadas ambas com o desejo de se agradarem reciprocamente. A senhora du Barry foi a primeira que tomou a palavra. - J agradeci a meu irmo, minha senhora disse ela - por me haver proporcionado a honra da sua visita; resta-me agradecer-lhe a sua lembrana. - E eu, minha senhora - redargiu a demandista encantada - no sei as expresses que deverei empregar para lhe patentear toda a minha gratido pelo delicado acolhimento que me faz. - Minha senhora - disse por sua vez a condessa fazendo uma mesura respeitosa - cumpro o meu dever para com uma senhora da sua alta jerarquia, e desejaria ser-lhe til para qualquer coisa. E feitas as trs mesuras do estilo, de ambos os lados, a condessa du Barry ofereceu uma poltrona senhora de Barn, e puxou outra para si. V O DIPLOMA DE ZAMORA - Minha senhora - disse a favorita condessa queira falar, estou pronta a escut-la. - Permita, minha irm - disse Joo que ficara de p - permita que eu evite que a Sr. Condessa de Barn tenha o carcter de uma solicitadora; a senhora condessa no pensava nisso por forma alguma. O senhor chanceler encarregou-a de uma misso junto de si, e nada mais. A senhora de Barn lanou um olhar agradecido sobre Joo e apresentou condessa du Barry o diploma que erigia Luciennes em pao real, e conferia a Zamora o ttulo de governador. - De modo que sou eu sua obrigada, minha senhora - disse a condessa depois de lanar um golpe de vista sobre o diploma - e se eu tivesse a fortuna de achar tambm uma ocasio de lhe ser til... - Oh! minha senhora - exclamou a demandista com uma vivacidade que encantou os dois irmos; - isso coisa muito fcil.

- Como, minha senhora? Rogo-lhe que fale. - J que faz a honra de me dizer, minha senhora, que o meu nome lhe no totalmente desconhecido... - Ora, uma Barn! - Deve talvez ter ouvido falar numa demanda, que deixa vagos os bens da minha casa? - Disputados pelos senhores de Salcios, creio eu? - Sim, minha senhora! - Sim, sim, estou ao facto dessa questo - disse a condessa. - Uma noite destas, falava Sua Majestade nisso a meu primo o senhor de Maupeou. - Sua Majestade! - exclamou a demandista Pois Sua Majestade falou na minha demanda? - Sim, minha senhora. - E em que termos? - Ah! Pobre condessa! - exclamou por sua vez a senhora du Barry abanando a cabea. - Ah! Demanda perdida, no verdade? - disse a velha com uma expresso de angstia. - Para falar a verdade, minha senhora, receio muito que sim. - Sua Majestade disse-o? - Sua Majestade, como muito prudente e delicado, no emitiu a sua opinio, mas parecia olhar para esses bens como pertencentes j famlia dos Salcios. - Oh! Santo Deus, minha senhora, se Sua Majestade estivesse ao facto do negcio, se soubesse que por cesso depois de uma obrigao satisfeita... Sim, minha senhora, satisfeita, as duzentas mil libras foram restitudas. No possuo os recibos, mas tenho as provas morais, e se eu pudesse advogar pessoalmente ante o parlamento, mostraria por deduo tudo quanto afirmo. - Por deduo? - interrompeu a condessa que nem palavra percebia de tudo quanto a senhora de Barn lhe dizia, mas que no obstante parecia prestar a mais sria ateno sua questo. - Sim, minha senhora, por deduo. - A prova por deduo admitida - disse Joo. - Ah! julga isso, senhor visconde? - exclamou a velha. - Julgo, sim - respondeu o visconde com suprema gravidade. - Nesse caso, mostrarei por deduo que essa obrigao de duzentas mil libras, que com os juros acumulados forma hoje um capital de mais de um milho, hei-de provar que essa obrigao, datada no ano de 1406, deve ter sido paga por Guy Casto IV, conde de Barn, no seu leito de morte, em 1417, porque por seu prprio punho se acham escritas no seu testamento as seguintes palavras: No meu leito de morte, no devendo nada aos homens; e pronto a comparecer perante Deus... - Ento? - disse a condessa. - Ento! bem entende; se ele nada devia aos homens, porque j tinha pago aos Salcios. A no ser isso, teria dito: Devendo duzentas mil libras, em vez de dizer: No devendo nada. - Sim, incontestavelmente o haveria dito interrompeu Joo. - Mas no tem outras provas? - Alm da palavra de Casto IV, no, minha senhora; mas era este o que chamavam o irrepreensvel. - Mas a obrigao de dvida est em poder dos adversrios? - Est, verdade - disse a velha - e exactamente o que complica a demanda. Deveria ter dito que era exactamente essa obrigao o que esclarecia a questo, mas a senhora de Barn via as coisas do ponto de vista que lhe era mais favorvel. - Ento, minha senhora, sua convico que os Salcios esto pagos? - disse Joo. - Sim, senhor visconde - respondeu imediatamente a senhora de Barn - essa a minha convico. - Mas - redargiu a condessa para seu irmo, como se acabasse de perceber bem a fundo a questo quer que lhe diga uma coisa, Joo, que esta deduo, como diz a senhora de Barn, muda terrivelmente o aspecto do negcio?

- Terrivelmente para os meus adversrios prosseguiu a condessa; - os termos do testamento de Casto IV so positivos: No devendo nada mais aos homens. - Nem s claro, mas at mesmo lgico disse Joo. - No devia nada mais aos homens, portanto tinha pago o que lhes devia. - Portanto, tinha pago o que lhes devia - repetiu a senhora du Barry por sua vez. - Ah! minha senhora - exclamou a velha condessa - permitisse Deus que fosse a senhora o meu juiz! - Antigamente, num caso destes no se teria recorrido aos tribunais - disse o visconde Joo; - o juzo de Deus teria decidido a questo. Quanto a mim, estou por tal forma convencido da justia da sua causa, que lhe juro, se um semelhante costume estivesse ainda em prtica, oferecer-me-ia por campeo da senhora condessa. - Oh! senhor! - como lhe digo; entretanto, no faria mais do que fez um dos meus antepassados, du Barry Moore, que teve a honra de unir-se por casamento com a famlia real de Stuart, quando combateu pela jovem e formosa Edite de Scarborough, obrigando o seu adversrio a confessar publicamente que havia mentido com quantos dentes tinha na boca. Mas, infelizmente prosseguiu o visconde soltando um suspiro de desprezo - j no vivemos nesses tempos gloriosos, e hoje, quando pessoas como ns querem discutir os seus direitos, tm que sujeitar-se a uma chusma de becas, que no percebem uma frase to clara e explcita como esta: No devendo mais nada aos homens. - Oua, meu caro irmo, h trezentos anos que essa frase foi escrita - disse a senhora du Barry - e preciso ver se no h o que no Palcio da Justia chamam a prescrio. - No importa, no importa - disse Joo - estou convencido que se Sua Majestade ouvisse a senhora condessa fazer a exposio do seu negcio, como acaba de a fazer agora perante ns... - Oh! havia de o convencer, no verdade, senhor? tenho essa certeza. - E eu tambm. - Sim, mas como poderei fazer-me ouvir? - Seria preciso para isso que me fizesse a honra de vir um dia visitar-me a Luciennes, e como Sua Majestade me faz a honra de me ir l ver muitas vezes... - Sim, minha querida irm, tudo isso muito bom, mas depende do acaso. - Visconde - disse a condessa com um sorriso encantador bem sabe que confio bastante no acaso, e que no tenho motivo para me queixar dele. - Todavia o acaso pode fazer que durante oito, quinze ou mesmo vinte dias, a senhora de Barn se no encontre com el-rei. - verdade. - E entretanto a sua demanda deve julgar-se na segunda, ou tera-feira. - Tera-feira, senhor. - Estamos hoje em sexta-feira de tarde. - Oh! Ento, preciso tirar da o sentido - disse a senhora du Barry de um modo desesperado. - O que devemos fazer? - disse o visconde parecendo meditar profundamente. - Diacho! - E uma audincia em Versalhes? - disse timidamente a senhora de Barn. - Oh! no alcanar isso. - Talvez com a sua proteco, minha senhora? - Oh! a minha proteco de nada serviria; el-rei odeia tudo quanto oficial, e neste momento tem um negcio que muito o preocupa. - A respeito dos parlamentos? -perguntou a Sr. Condessa de Barn. - No, a respeito da minha apresentao. - Ah! - disse a velha demandista. - Porque, naturalmente sabe, minha senhora, que, apesar da oposio do senhor de Choiseul, apesar das intrigas do senhor de Praslin e apesar dos esforos da senhora de Grammont, Sua Majestade El-Rei decidiu que eu havia de ser apresentada.

- No, minha senhora - disse a velha demandista - eu no sabia. - Oh! pois coisa decidida - disse Joo. - E quando h-de verificar-se essa apresentao, minha senhora? - Proximamente. - Eis o caso... el-rei quer que seja antes da chegada da senhora delfina para poder levar minha irm s festas de Compigne. - Ah! Entendo. Ento est para ser apresentada? disse timidamente a condessa. - Sim. A Sr. Baronesa de Alogny... conhece a baronesa de Alogny? - No, senhor. Ah! J no conheo pessoa alguma; h vinte anos que me retirei do pao. - Pois a Sr. Baronesa de Alogny que lhe serve de madrinha. El-rei tem dispensado muitos favores a essa baronesa; seu marido foi feito camarista, o filho entra no corpo de guardas com promessas de entrar na primeira vagatura de tenente; o seu baronato erecto em condado, os vales sobre o bolsinho de el-rei so-lhe permutados contra aces de crdito, e no dia da apresentao h-de receber vinte mil escudos em moeda sonante. Tambm ela est com uma pressa que isso se faa! - Pudera no! - disse a condessa de Barn sorrindo. - Ah! mas agora me lembro!... - exclamou Joo. - O que ? - perguntou a senhora du Barry. - Que desgraa! - exclamou saltando sobre a sua poltrona - que desgraa no ter eu encontrado oito dias mais cedo a Sr. Condessa de Barn em casa do nosso primo o vicechanceler. - Por qu? - Porque nessa poca no tnhamos ainda tratado coisa alguma com a baronesa de Alogny. - Meu caro - disse a senhora du Barry - fala como uma esfinge, mas no o entendo. - No entende? - No. - Aposto que a senhora condessa entende? - Perdo, senhor visconde, mas tambm no percebo. - H oito dias no tinha ainda madrinha? - No h dvida. - Ento, minha senhora... talvez eu tome liberdade demasiada? - No, senhor, fale. - A senhora condessa ter-lhe-ia servido, e o que el-rei faz pela senhora baronesa, t-lo-ia feito pela senhora condessa. A demandista abriu muito os olhos. - Ah! - disse ela. - Ah! se soubesse - prosseguiu Joo - a boa vontade com que Sua Majestade lhe tem concedido todas estas mercs! No foi necessrio pedir-lhas, ele mesmo tem tido a lembrana de as oferecer. Assim que lhe disseram que a baronesa de Alogny se oferecia para madrinha de Joana, disse: Ainda bem, estou farto de aturar todas essas desdenhosas que so mais soberbas que eu, pelo que parece... Condessa, apresentar-me- senhora baronesa, no verdade? Tem ela alguma demanda, algum crdito sobre o Estado, alguma dvida fazenda pblica?... Os olhos da condessa dilatavam-se cada vez mais. - H s uma coisa que me amofina um pouco acrescentou el-rei. - Ah! Havia ento alguma coisa que amofinava Sua Majestade? - Sim, uma nica. s uma coisa que me amofina, que para apresentar a senhora du Barry teria querido um nome histrico. E dizendo estas palavras, Sua Majestade olhava para o retrato de Carlos I, por Van Dyck. - Sim, entendo - disse a velha demandista Sua Majestade fez essa observao por causa daquela aliana dos du Barry Moore com os Stuarts, da qual h pouco me falou. - Exactamente.

- O facto - respondeu a senhora de Barn num tom impossvel de explicar - o facto que nunca ouvi falar dessa famlia de Alogny. - Entretanto - disse a condessa - uma famlia distinta e nobre. - Ah! Santo Deus! - exclamou repentinamente o visconde Joo erguendo-se um pouco da poltrona em que estava sentado. - Ento o que isso - perguntou a senhora du Barry fazendo os maiores esforos para conter o riso na presena das contores de seu irmo. - O senhor picou-se talvez? - perguntou com cuidado a velha demandista. - No - disse Joo deixando-se novamente cair sobre a poltrona; - no! uma idia que eu tive. - Que idia? - perguntou a condessa rindo; - quase que o ia deitando ao cho! - Deve ser muito boa! - disse a senhora de Barn. - Excelente! - Diga-a. - S tem um inconveniente. - Qual ? - que se no pode executar. - Diga sempre. - Mas receio com isso que fique algum com pena. - No importa, fale, visconde, fale. - Lembrava-me que se participasse senhora de Alogny essa observao que fazia el-rei olhando para o retrato de Carlos I... - Oh! Visconde, isso seria muito incivil. - verdade. - Ento no pensemos mais nisso. A velha suspirou. - pena - prosseguiu o visconde, como falando consigo mesmo - os negcios caminhavam ss. A senhora condessa, que tem um nome distinto e que mulher de esprito, oferecia-se para o lugar da baronesa de Alogny. Ganhava a sua demanda, o senhor de Barn filho era nomeado para um alto lugar, e como a senhora condessa tem feito grandes despesas nas diferentes jornadas em que tem andado por causa da demanda, dar-se-lhe-ia uma indemnizao. Ah! uma fortuna assim no se oferece duas vezes na vida de uma pessoa! - No - exclamou a Sr. Condessa de Barn, atordoada com esse golpe inesperado. O facto que na posio da pobre demandista, todos teriam exclamado como ela, e como ela teriam todos ficado abatidos sobre a poltrona. - Olhe, meu irmo - disse a condessa com um acento de profunda comiserao - afligiu a senhora condessa com as suas palavras. No era bastante j o haver-lhe eu dito que nada podia pedir a el-rei antes da minha apresentao? - Oh! Se eu pudesse fazer adiar o julgamento da minha demanda! - S a adiariam por oito dias - disse a senhora du Barry. - Sim, por oito dias - disse a senhora de Barn; - dentro de oito dias h-de verificar-se a sua apresentao. - Sim, mas el-rei estar em Compienha daqui a oito dias, el-rei estar no centro das festas e divertimentos, ter chegado a delfina... - verdade, verdade - disse Joo - mas... - O qu? - Espere; tive uma nova idia. - Qual , senhor, qual ? - perguntou a velha. - Parece-me, sim... no... sim, sim, sim! A senhora de Barn repetia com ansiedade os monosslabos de Joo. - Disse sim, senhor visconde? - perguntou ela. - Parece-me que achei um meio.

- Fale. - Oua! - Estamos ouvindo. - A sua apresentao, por ora, ainda um segredo, no verdade? - Decerto, s a senhora... - Oh! Descanse! - exclamou a demandista. - Portanto ainda segredo a sua apresentao, e ignora-se que encontrou uma madrinha. - Sem dvida; el-rei quer que a notcia se espalhe com estrondo, quando tudo estiver feito. - Ento tenho o que quero, desta vez. - Com certeza, senhor visconde? - perguntou a senhora de Barn. - Temos tudo - repetiu Joo. A velha condessa prestava toda a sua ateno. Joo chegou a poltrona em que estava sentado para junto dela e de sua irm. - A Sr. Condessa de Barn portanto ignora, como todos, que est para ser apresentada, e que achou uma madrinha. - Decerto, e ainda o ignoraria se no mo houvesse dito. - preciso fingir portanto que no esteve connosco, que ignora tudo, e que vai pedir uma audincia a el-rei. - Mas a senhora condessa de parecer que ma negar? - Pede uma audincia a el-rei, oferecendo-se para ser madrinha da condessa, percebe? Deve ignorar se ela tem ou no tem madrinha. Pede portanto uma audincia a el-rei e oferece-se ao mesmo tempo para madrinha de minha irm. Da parte de uma mulher da sua jerarquia, esse oferecimento sensibiliza el-rei. Sua Majestade recebe-a, agradece-lhe e pergunta o que pode fazer para lhe ser til. Fala ento na sua demanda e mostra as suas dedues. Sua Majestade ouve o que a senhora lhe diz, recomenda o negcio, e ganha essa demanda que julga perdida. A senhora du Barry fitava na condessa um olhar ardente; esta havia provavelmente adivinhado o lao. - Oh! Eu, mesquinha criatura - disse ela com vivacidade como quer que Sua Majestade... - Basta! Parece-me pelo menos ter mostrado boa vontade - disse Joo. - Se unicamente se trata de boa vontade... - disse a condessa hesitando. - A idia no m - atalhou a senhora du Barry sorrindo; - mas talvez que mesmo para ganhar a sua demanda repugne senhora condessa empregar tais embustes? - Tais embustes! - redargiu Joo; - ora adeus! E quem h-de ter conhecimento desses pretendidos embustes? - A senhora condessa tem razo - disse a velha esperando sair-se bem deste negcio empregando um desvio - eu preferiria prestar-lhe um servio mais verdadeiro para assim conciliar a sua amizade com mais firmeza. - Isso seria muita bondade da sua parte - disse a senhora du Barry com um leve tom de ironia, que a senhora de Barn percebeu perfeitamente. - Pois bem! - disse o visconde Joo - ainda tenho um meio. - Um meio? - Sim. - De tornar mais verdadeiro e real esse servio? - Ora, visconde, pelo que vejo d em poeta. Cuidado! O senhor de Beaumarchais no tem decerto uma imaginao mais frtil. A velha esperava com ansiedade a exposio desse meio anunciado por Joo. - Ponhamos de parte a zombaria - disse Joo. Vamos a saber uma coisa, minha irm, tem muita intimidade com a senhora de Alogny, no verdade? - Decerto!... bem o sabe. - Seria ela capaz de se formalizar se a no aceitasse por madrinha? - Pode ser.

- Est sabido que no lhe dever ir dizer queima-roupa que el-rei observou que no era nobre bastante para uma semelhante misso, mas como a mana mulher de esprito, dir-lhe- outra qualquer coisa. - E depois? - perguntou a senhora du Barry. - Depois, ela cederia Sr. Condessa de Barn essa ocasio de fazer fortuna e de lhe prestar um servio. A velha estremeceu. O ataque desta vez era directo. No havia possibilidade de dar uma resposta evasiva. Contudo ela achou uma. - Eu no quereria por forma alguma fazer uma aco desagradvel a essa senhora; entre gente de bem preciso guardar certas convenincias. A senhora du Barry fez um movimento de despeito, que tratou logo de disfarar por causa dos sinais que lhe fazia seu irmo. - Deve notar, minha senhora, - disse ele - que lhe no proponho coisa alguma. Tem uma demanda, isso acontece a todos; deseja venc-la, tambm natural. Parece estar perdida, e isso desespera-a; apresento-me no meio do seu desespero muito comovido de simpatia por si; interesso-me nesse negcio que me deve ser indiferente; procuro um meio para o tornar a seu favor quando est j quase todo contra. Fiz talvez mal, mas no falemos mais nisso. E Joo levantou-se. - Oh! senhor - exclamou a velha com um aperto de corao que lhe mostrou os du Barry, at quele momento indiferentes, ligados todos contra a sua demanda; - oh! senhor, pelo contrrio, reconheo e admiro a sua bondade! - Quanto a mim - disse Joo com uma bem fingida indiferena - tanto me importa que