Memórias da caixa preta

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memórias da caixa preta

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Relatório de projeto de conclusão de curso.

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m e m ó r i a s d a c a i x a p r e t a

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Bauru, 8 de outubro de 201118:36:59

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As fotografias melhores seriam aquelas que evidenciam a vitória do fotógrafo sobre o

aparelho: a vitória do homem sobre o aparelho.

Quem contemplar um álbum de um fotógrafo amador estará a ver a memória de um aparelho,

não de um homem.

Vilém FlusserFilosofia da caixa preta

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Sempre tive um certo contato íntimo com o ato fotográfico. Vivi a transição dos filmes Kodak para arquivos .jpeg. Fui inscrita em todas as redes soci-ais que tivessem a imagem como foco principal. Vi o mercado substituir rapidamente a tecnologia das câmeras e hoje vejo o aparelho celular ganhando um respeito inédito por parte dos profissionais da foto.

Minha história com a fotografia começou de ver-dade com a aquisição da primeira câmera que pude chamar de minha: uma Sony Cybershot modelo DSC-W5, oferecida em 2005 pela minha mara- vilhosa Tia Carmem. Uma câmera popular, mas que possuía uma qualidade muito superior às de preço equivalente disponíveis no mercado hoje em dia. Nessa época, era muito comum sairmos entre amigos, pela cidade, buscando imagens do cotidi-ano. Acho muito interessante observar que ainda naquele momento, de transição das tecnologias, era incompreensível para muitas pessoas nos verem fotografando folhas secas no chão ou belos pôres-do-sol, pois a ideia era de desperdício. Mas com a fotografia digital tudo era objeto de registro, que posteriormente publicaríamos nos nossos fotologs.

Antes, com a foto de filme, a maioria das pes-soas que possuíam câmeras em casa só as retiravam do armário em ocasiões especiais e economizavam cliques para apenas o que fosse muito necessário. Os custos eram muito grandes (filme + revelação), além do limite de fotos (36, na maior parte das

vezes) estar sempre ali em contagem regressiva nos ameaçando e angustiando. Minha câmera tinha capacidade para mais de 1000 fotos, o que era a mesma coisa que o infinito. Errar um clique se tor-nou perdoável e não custava nada.

Desde então nunca fiquei sem câmeras por perto, mas houve muitos momentos em que me questionei a respeito dessa prática. Achava que a fotografia era inferior às outras artes por, muitas vezes, o resultado de uma foto estonteante não ser mérito daquele que manuseia o equipamento. Elementos como sorte e acaso podem favorecer muito o produto de uma imagem fotográfica, o que é relativamente impen-sável noutras formas de arte.

Além disso, nunca me agradou a ideia de fotogra-far cegamente aquilo que está diante de mim, digo, fotografar algo na primeira vez em que tenho contato. Tenho o hábito de me familiarizar com aquilo que será meu objeto de registro. Preciso conhecer com meus próprios olhos antes de abrir o olho da câmera.

Partindo dessas reflexões, tentei perseguir neste trabalho alguns dos caminhos que traçarão o futuro da fotografia. Apesar de recente, a “caixa preta” já foi alvo de muitas polêmicas e estudos desde sua in-venção, e ainda está num rápido processo de desco-bertas. Por isso, quero contribuir com essa história através do meu próprio relacionamento com aquela que é a uma das responsáveis pela geração de um novo mundo, o mundo codificado.

São José do Rio Preto, 12 de janeiro de 200606:25:23

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São José do Rio Preto, 7 de setembro de 200909:32:54

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Poucas coisas são tão cruéis quanto a relação entre Fotografia e Tempo. Fotos são fragmentos de tempo enquadrados. A decisão é sua: quanto tempo o olho da câmera precisa para que a luz se converta em uma imagem e aprisione o que reflete aquele presente? Foto é síntese, espelho de algo que é, ou melhor “da-quilo que foi”, para Roland Barthes. Ainda segundo ele, a fotografia passa uma ideia de morte, pois a imagem gravada é uma presença no tempo que não existirá jamais.

Decidido que iria fazer um trabalho no campo da fotografia, acabei resgatando um livro que li em 2009 e do qual nunca me esqueci: “Filosofia da Caixa Preta”, do familiar filósofo Vilém Flusser. Desde que tive contato com essa obra, sempre me lembro do trecho parafraseado logo acima.

Achei que essas informações se relacionavam mui-to profundamente com a minha ideia de fotografia, pois sempre acreditei que uma imagem tinha mais chances de afetar outras pessoas justamente quando se libertasse de sua natureza mecânica e voltasse, no inconsciente de cada um que a vê, a ser o que é em sua essência. Pensei que as fotografias deveriam sem-pre insinuar o quanto foram elaboradas antes que chegassem àquela fração de segundo no tempo que as transformariam em “morte”.

Seguindo esses devaneios, queria falar de uma fotografia fora das câmeras, fora dos papéis, das te-las. A fotografia a olho nu, aquela que aconteceu

e eu não tinha equipamentos eletrônicos em mãos para comprovar, mas estão comigo porque eu vi com meus próprios olhos. Imagens de coisas que podem ou não ter acontecido comigo e minha memória brincou com elas, aprimorando detalhes, omitindo outros. Lapidando-as da forma que eu preferiria me lembrar delas.

Por isso minha primeira ideia para o trabalho de conclusão de curso foi a confecção de um “instante fotográfico”, onde cada convidado do espetáculo seria livre para levar consigo a “fotografia” que lhe fosse mais memorável. Projetar um momento, um instante único, como todos são, mas projetado para este fim: ser um instante. Com isso, só dese-jo mostrar que a fotografia não pode ser definida e limitada como uma arte de apertar um botão, mas como o próprio nome sugere: “escrever com luz”.

De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo. O mundo, cheio de departamentos, não é a bola bonita caminhando solta no espaço.

(Adélia Prado)

Robert (Mapplethorpe)confiava na lei da empatia, segundo a qual seria incapaz, por sua vontade, de se transferir para um objeto ou uma obra de arte,

e assim influenciar o mundo externo. Ele não se sentia redimido pelo trabalho que fazia.

Não buscava redenção. Procurava ver o que os outros não viam, a projeção de sua imaginação”

Patti SmithSó Garotos

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let there be light!Desde que há luz, há fotografia. Mas o significado

em latim do termo se refere a um tipo de escrita dife-rente das que existiam antes do século XIX. A inven-ção desse método definitivo de gravação de luz veio agregar significativamente o valor dos documentos históricos, além de levantar suspeitas místicas sobre sua verdadeira natureza.

Rosalind Krauss, em seu livro “O Fotográfico”, fala dos populares retratos mortuários que surgiram em 1850 e eram uma das principais fontes de ren-da dos fotógrafos comerciais da época. Talvez hoje seja difícil não considerar minimamente macabra a fotografia “pós-morte”, mas ela é fundamental para compreender como se relacionava a espiritualidade à fotografia.

De tudo o que se pode dizer sobre a breve história da fotografia, essa abordagem sobrenatural é um dos segmentos que mais me encanta, e que, em certa me-dida, tento resgatar neste projeto. Além da fotografia pós-morte, não se pode deixar de falar sobre a foto-grafia de espíritos ou “Spirit Photography”, iniciada por William H. Mumler por volta de 1860.

“Segundo Balzac, cada corpo na natureza se compõe de séries de espectros em cama-das infinitamente superexpostas, laminadas em películas infinitesimais em cada um dos sentidos em que a ótica percebe este corpo. Como o homem jamais pode criar - ou seja, construir algo sólido a partir de uma aparição, do impalpável, ou do nada fazer uma coisa -, cada operação daguerreana vinha então supreender, destacar e reter ao aplicar-se uma das camadas do corpo visado. De onde se conclui que o dito corpo, a cada nova operação, sofre a perda evidente de um espectro, ou seja, uma parte da essência constitutiva”.

(Nadar, Quand j’etais photographe, 1900)

(Victor Hugo em seu leito de morte, Nadar - 1855)

(Fotografias de William H. Mumler)

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(12:31, Croix Gagnon/Frank Scott - 2011)

Com essa técnica é possível ver espectros de fantas-mas nas fotografias, o que foi posteriormente con-testado. Mas, desconsiderando a veracidade ou não de tais imagens, o importante é ressaltar o quanto a fotografia balançou o século XIX com novidades que poderiam levar o homem a uma busca do seu próprio conhecimento, sendo não apenas uma metalinguagem da vida, mas inclusive da morte.

Há ainda trabalhos recentes que buscam conexão entre a fotografia e o imaterial. Em meio a muitas fotos de light painting feitas nos últimos anos, o incrível trabalho de Croix Gagnon e Frank Schott impressiona pela ousadia. Eles escanearam “fatias” do corpo de um prisioneiro americano executado em 1993 e projetaram-nas tridimensionalmente.

Esses exemplos demonstram como a fotografia sempre se envolveu com muitos questionamentos, seja enquanto como histórica, instrumento de estu-dos paranormais ou até mesmo arte.

Crê-se que a maior contribuição da fotografia foi de fato o registro indubitável da “realidade”.

Mesmo sendo a escrita uma transcrição do pensam-ento, e não apenas um traço do mundo material, a fotografia foi utilizada principalmente para servir de espelho dos fatos e preservar o passado nos livros de história que se sucederiam.

A fotografia artística nasceu simultaneamente à fotografia documental, porém com certa rejeição. Pensadores como Benjamim e Roland Barthes, do século XX, dedicaram obras inteiras às deriva-

ções dessa nova forma de arte que, como já suspeitavam, seria o pontapé inicial para uma revolução tecnológica que se viria a ser desencadeada.

“No campo do imaginário, a fotografia repre-senta este momento muito subito em que, para falar a verdade, não sou nem sujeito nem objeto, mas sim um sujeito que se sente transformado em objeto: então eu vivo uma micro-experiência de morte, me tornando verdadeiramente um fantasma”.

(Barthes, A câmara clara, 1979)

No aclamado livro “Só garotos” (2010), da multi-artista Patti Smith, fica bastante claro na narrativa de seu envolvimento com o escandaloso fotógrafo Robert Mapplethorpe que, por volta dos anos 1960, a fotografia ainda não era aceita e respeitada enquan-to as demais formas de arte. Ambos, Patti e Robert, eram jovens artistas em busca da expressão máxima de suas sensibilidades e fizeram parte de uma geração que entendeu as questões de reprodutibilidade escan-caradas por Benjamim. Patti relata que Robert havia sempre desejado se tornar um artista múltiplo, mas, no desenvolvimento de sua carreira ele costumava se expressar melhor por desenhos, colagens ou com a forma de se vestir e viver. Mesmo ele, que entraria para sempre para o grupo dos fotógrafos mais influ-entes do século XX, inicialmente tinha resistências com essa expressão artística.

Isso evidencia que de fato a possibilidade de re-produção da obra trouxe destruição aos pilares sa-grados da arte; que até então era vista como uma forma de aproximar o homem de deus (“deus” aqui não possui sentido religioso, mas pode ser enten-dido como algo “intangível”). No entanto, a foto-grafia trouxe um elemento a mais à relação entre o humano e o divino: a máquina. A interferência do objeto “câmera” na produção artística pode ser comparada à invenção do primeiro computador, e por isso há tantos livros sobre fotografia na primeira metade do século XX. “Filosofia da Caixa Preta”, de Vilém Flusser, que parte da fotografia para ques-tionar o mundo tecnológico que estava sendo cons-truído pelo homem dessa época, é atualmente uti-lizado para reflexões não sobre fotografia, mas sobre a digitalização ocasionada pelos computadores.

“A controvérsia travada no século XIX entre a pintura e a fotografia quanto ao valor artístico de suas respectivas produções parece-nos hoje irrelevante e confusa. Mas, longe de reduzir o alcance dessa controvérsia, tal fato serve, ao contrário, para sublinhar sua significa-ção. Na realidade, essa polêmica foi a expressão de uma transformação histórica, que como tal não se tornou consciente para nenhum dos antagonistas. Ao se emancipar dos seus fundamentos no culto, na era da reprodutibilidade técnica, a arte perdeu qualquer aparência de autonomia. Porém a época não se deu conta da refuncionalização da arte, decorrente dessa circunstância. Ela não foi percebida, durante muito tempo, nem sequer no século XX, qaundo o cinema se desenvolveu. Muito se escreveu, no passado, de modo tão sutil como estéril, sobre a questão de saber se a fotografia era ou não uma arte, sem que colocasse sequer a questão prévia de saber se a in-venção da fotografia não havia alterado a própria natureza da arte.”

(Benjamim, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, 1955)

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17(Robert Mapplethorpe - 1981)

18(Adrien Tournachon - 1854)

o homem-máquinaEm “Filosofia da Caixa Preta” podemos com-

preender melhor o impacto do aparelho fotográ-fico na nossa relação com a “realidade”. No livro, Flusser se preocupa com esse novo mundo no qual as imagens tomam um sentido diferente. Para ele, as imagens são fenômenos, ou seja, é através delas que nos relacionamos com o mundo. Imagem seria tudo aquilo que vemos e que podemos transferir da tridimensionalidade para a bidimensionalidade.

Flusser atenta para o fato de que toda imagem é superfície, e aí reside sua principal tensão: a de que, com a cultura das imagens, nós nos tornamos indivíduos desinteressados em quebrar as super-fícies. A função da filosofia, através das palavras, sempre foi destruir as superfícies na tentativa de encontrar aquilo que está além do que se pode ver.

Sem a palavra, segundo a filósofa brasileira Már-cia Tiburi, não há pensamento. A escrita é o ins-trumento para produção de pensamento linear contra o caráter absoluto de uma cena. O verbo, ou seja, a palavra, é cego, mas ele permite criar imagens visíveis. Hoje, por conta da fotografia, as imagens não precisam do verbo. Logo, uma cul-tura de imagem tira tanto o interesse da palavra

(Benjamim, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, 1955)

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“É diante de um aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante o dia de trab-alho. À noite, as mesmas massas enchem os cinemas para assistirem à vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do aparelho sua humanidade (ou o que parece como tal aos olhos dos espectadore), como coloca esse aparelho a serviço do seu próprio triunfo.”

quanto o interesse em que-brar superfícies. O homem imagético, ou “iconoclasta”, acredita que as imagens são verdades absolutas e, por-tanto, perde sua capacidade de reflexão, criando assim a “sociedade do espetáculo”, termo inventado por Guy Debord para se referir a uma sociedade em que a imagem é o verdadeiro capital.

A imagem técnica, que provém da câmera fotográfica, é uma produção hu-mana, resultado de um desenvolvimen-to tecnológico humano. No entanto, a imagem técnica pode ver mais do que um ser humano. Uma fotografia téc-nica possui muito mais detalhes do que nossos olhos são capazes de perceber, e, devido a isso, acabamos tomando como verdade o que está fixado quimicamente no papel. Enquanto as imagens eram apenas preto e brancas ainda podia ha-ver uma distinção entre a técnica e a re-alidade, mas, a partir da invenção das imagens coloridas, o homem passou a confiar cegamente que as imagens eram sim a mais pura e fiel transcrição da reli-dade.

(Adrien Tournachon - 1854)

(Todd McLellan - 2010)

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(Martin Parr - 2012)

que possamos enxergá-las, pois, as histórias sim-ples já não podem mais ser vistas. Na série “Too much photography”, do fotógrafo Martin Parr, o questionamento é justamente esse. Parr faz fotos metalinguísticas de um grande número de pessoas reunidas num mesmo local com câmeras aponta-das para registrar. Afinal, o que parece é que hoje

“Atualmente os filmes (imagens) são fechados, enclausurados, não há mais espaço para inserir o sonho. O que você vê é o que você recebe”, diz o cineasta Win Wenders.

O excesso de imagens que existe hoje signifi-ca que não temos capacidade de prestar atenção em nada. As histórias tem que ser absurdas para

(Talbot, O lápis da natureza, 1844)

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as pessoas se importam mais em fotografar do que verem propriamente o que estão fotografando.

Entretanto, é uma ilusão pensar que podemos dominar os aparelhos acreditando que eles nos permitem fazer o que quisermos, ou seja, sermos melhores do que eles por manipulá-los como quisermos. Na verdade, só podemos tirar do aparelho aquilo que ele pode nos oferecer, ou seja, nossas possibilidades estão incritas dentro das possibilidades do aparelho.

É nessa afirmação que reside a questão da cul-tura digital, para Flusser. Segundo ele, esse tipo de relação com o aparelho resultará na perda do corpo. Os aparelhos, que hoje não significam ape-nas câmeras fotográficas, incluem a televisão, o micro-ondas, o caixa-eletrônico e o computador, são exemplos do mundo na ponta dos dedos. Sem corpo, o mundo fica condicionado ao aparelho, ou seja, limitado às possibilidades finitas que ele pode nos oferecer.

“Com efeito, o olho da máquina fotográfica poderia enxergar nitidamente em locais onde o olho humano nada veria senão trevas. Infelizmente, porém, este raciocínio é por demais refinado para ser introduzido com proveito em algum romance realista ou história moderna de cavalaria. Pois que desfecho obteríamos se pudéssemos imaginar que os segredos do quarto escuro se reveflam por testemunho inscrito em papel!”.

A série de tv inglesa “Black Mirror” fala sobre isso. Cada episódio é independente dos outros, no entanto, têm em comum as críticas duras ao mundo de hoje. No terceiro episódio, intitulado “The Entire History Of You”, vive-se num tempo em que as pessoas pos-suem uma espécie de controle remoto que lhes permite rever momentos gravados na memória com possibili-dade de selecionar exatamente a data que procuram , “dar zoom” nas memórias, projetá-las como com um datashow para que qualquer um possa vê-los. Enfim, é como se cada indivíduo fosse uma câmera de vídeo.

A crítica reside principalmente na falta de privaci-dade que se vive hoje em dia, em que tudo é divulgado publicamente na rede. Mas além disso, fica claro que a ideia de “sermos” a câmera não está muito longe de acontecer. Apenas é questionável o modo como na série as imagens são tratadas, pois não há um “trata-mento” individual das memórias. Elas simplesmente aparecem como imagens de um equipamento.

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a arte de verObservamos que o aparelho só nos dá possibi-

lidades que estão dentro do conjunto de possibili-dades próprias dele. Mas o escritor José Saramago, no documentário “Janela da alma”, atenta para o fato de que nossa visão também está limitada ao próprio aparelho humano: “Nós vivemos dentro de uma possibilidade de ver que é nossa”. Sabemos, por exemplo, que os falcões possuem uma visão muito mais sofisticada que a humana, e que os cães enxergam muito menos do que nós. Sendo assim, também só vemos o que os nossos olhos podem enxergar. Mas será que a experiência de enxergar se limita apenas ao olhar?

No seu livro “A arte de ver”, Aldous Huxley segue com o pensamento do filósofo C. D. Broad que cria uma equação para a arte de ver:

Sensing + Selecting + Perceiving = Seeing

Desta forma:> sentir não é o mesmo que ver;> os olhos e o sistema nervoso sentem, mas a men-

te faz a percepção;> a habilidade de percepção está relacionada com

as experiências acumuladas do indivíduo, em outras palavras, da memória;

> visão limpa é o fruto de sensibilidade e percep-ção calibrados;

> desenvolvimento da percepção tende a ser acom-panhado de desenvolvimentos da sensibilidade e do produto de ambos, que é a visão.

(Teste de daltonismo)

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A grande diferença entre a visão humana e a visão do aparelho é que o nosso movimento de olhar vai além da captação de uma imagem pelo olho. Nós enxergamos com os ouvidos, com a pele, com o es-tômago, e, o mais importante, com os sentimentos. “O que vemos é constantemente modificado pelo nosso conhecimento, nossos desejos, anseios e cul-tura”, diz o neurologista Oliver Sacks.

Para o poeta Manoel de Barros, “não é pelo olho que as coisas entram”. Segundo ele, o olho pode ver, mas só a imaginação pode TRANSVER, inventar um novo mundo, afirmando ainda que, para um artista, essa transfiguração seria a coisa mais impor-tante. Olhar é interpretar. É um esforço conjunto de todos os mecanismos do corpo para a produção de um registro que não pode ser apenas visual, mas interligado com todos os sentidos.

Costumo dizer que a vida imita o tumblr. O tumblr é um site responsável pelo compartilhamento rápido de imagens, principalmente. Ele serve como refer-ência e inspiração para aqueles que trabalham com imagens. É comum deparar-se com pessoas vestidas de determinada forma idêntica a de alguma foto compartilhada no tumblr. Mas é esta justamente a sua finalidade: o tumblr é (só mais um) espelho do mundo. Estou usando o tumblr como exemplo, mas ele é apenas um dos canais.

Estar em contato com aquilo para o qual o mun-

do inteiro volta seu olhar é interessante e produzir coisas nesse sentido faz com que nos sintamos vivos e conectados. Mas apesar de achar muito positivo estar ligado nas discussões em voga no globo, acho que existe, simultaneamente, uma apropriação de ideias numa escala nunca vista anteriormente. É uma dificuldade coletiva de encontrar identidade. Cada vez mais é difícil ser quem se é, enxergar o mun-do com os próprios olhos e não com os olhos dos outros, um olhar pronto.

Acredito que a fotografia sem equipamento é um passo para o encontro com o olhar próprio, pois além do teor subjetivo, ele é biológico, orgânico, ou seja, ele é exclusivo, possui o DNA.

(Evgen Bavcar, Janela da Alma, 2001)

“Não devemos falar a língua dos outros, nem utilizar o olhar dos outros, porque, nesse caso, existimos através do outro. É preciso tentar existir por si mesmo.”

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Cantar ciranda é como fotografiaFaz morada na memória desde o primeiro dia

Siba e céuCantar ciranda

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Sem me pressionar demais, tentei deixar essas ideias me levarem espontaneamente para alguma direção. Lendo, pensando e principalmente conver-sando com amigos, cheguei num ponto que me per-mitia visualizar a execução deste brainstorm. Dentre as pessoas que me ajudaram muito a desenvolver a ideia do TCC estão Renato Gaviolli, Lucas Odahara, Pedro Oliveira, Alexandre Simão, Patrícia Pimenta, Rafael Arrivabene, Luiza Sequeira e Rafael Nakaoka. Agradeço imensamente a esses pela paciência das longas conversas!

Numa delas, percebi que estava tentando abraçar o mundo, tentando englobar muitas teorias, pois uma das minhas maiores dificuldades sempre foi fazer delimitações, selecionar, eleger o que é mais impor-tante. Logo, elenquei algumas palavras que julgava serem as mais representativas das minhas intenções:

fotografia, memória, afeto.

Desde o início, eu queria mostrar que a arte de olhar não dependia de equipamentos e que, na re-alidade, o tratamento que cada cérebro dá à capta-ção das cenas através do olhar é que cria peculiari-dades artísticas e únicas. Pesquisando na internet, descobri que já existe tecnologia capaz de extrair imagens do cérebro para a tela de um computador. (https://sites.google.com/site/gallantlabucb/publi-cations/nishimoto-et-al-2011 e http://pinktentacle.

com/2008/12/scientists-extract-images-directly-from-brain/ )

Sim, era exatamente isso o que eu queria. A crueza das imagens como nós as enxergamos. É nisso que acredito quando penso no futuro da fotografia. Mas, apesar de alguém já ter pensado nisso, é provavel-mente algo muito primitivo e caro, ou seja, inaces-sível. Mas sim, é no que eu acredito. Logo, pensei em fazer o seguinte: reproduzir, com a maior fidelidade possível, memórias visuais que tenho da minha in-fância.

Quais as minhas intenções com essas fotos? Inevi-tavelmente utilizarei câmera para produzi-las, mas explicarei porque isso não torna a ideia incoerente. O que pretendi fazer é uma simulação. Para o re-sultado que queria obter e com as ferramentas que possuo, minha alternativa ainda foi utilizar a câmera fotográfica, mas propondo um futuro sem ela. As fo-tos, depois de serem captadas pela câmera passarão por uma intensa manipulação até se transfigurarem nas minhas memórias, o mais próximo possível que elas possam chegar do que imagino. Gostaria de faz-er isso sem que, ao mesmo tempo, ficasse muito pes-soal ao ponto de impedir que outras pessoas sejam tocadas e resgatem suas próprias memórias. Sem essa troca o trabalho não teria sentido.

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(Reconstrução de imagem cerebral, Universidade da Califórnia, 2011)

Modificando o DNA da fotografiaVivemos numa época em que sabemos que a

câmera mais moderna que comprarmos hoje estará completamente obsoleta em pouco tempo. Isso não ocorre apenas com o mundo da fotografia, mas se extende por todo o universo do desenvolvimento científico do qual usufruímos. Diariamente mais novidades surgem em todos os âmbitos tecnológi-cos, e em meio a todos que trabalham para isso está Miguel Nicolelis, neurocientista brasileiro conhecido pelo empenho em fazer paci-entes tetraplégicos voltarem a andar ape-nas pelo poder do pensamento.

Imagine um mundo onde poderemos re-alizar tudo através do pensamento: é para isso que Nicolelis trabalha. Com sua teoria INTERFACE CÉREBRO-MÁQUINA, seu trabalho baseia-se na ideia de que é possível captar sinais do cérebro e enviá-lo a outro “avatar” robótico. “O pensamento é uma onda elétrica que se espalha pelo cérebro, ou seja, o pensamento nada mais é do que um campo elétrico, um campo magnético. Só é preciso captá-lo e medí-lo”, afirma.

Os estudos de Nicolelis, a longo prazo, se aplicarão a muito mais pesquisas do que seu significativo estu-do na área dos deficientes físicos. Sua revolucionária maneira de decodificar o cérebro logo atingirá o campo da arte.

“Desafio a mente a pensar em coisas a que não es-tou habituado. É como um exercício físico”. Segun-do o cientista, esse é um exercício bastante cansa-tivo, mas que amplia a capacidade de fazer novas conexões neurais e, portanto, fortalecer a rede cere-bral. Por isso, seus projetos estão voltados para a área de educação, pois ensinar a pensar é uma forma de manter-se saudável e, ao mesmo tempo, pode criar algo útil para toda a humanidade.

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memória fotografadaQuando me propus a fazer este trabalho,

exercitei a procura de memórias dentro de mim. Tudo que vivemos está ali, registrado em alguma parte, mas o mais difícil é encontrar os acessos. Numa visita rápida à cidade em que vivi até os 9 anos de idade, vários cenários me fizeram acessar memórias com as quais dificilmente eu me depa-raria sem estímulo. Todos os vídeos da nossa vida estão gravados, o que se deteriora com o tempo é a

Aqui estánum papela cidade que houve(e não me ouve)com suas águas e seus manguesaqui está(no papel)uma tarde que houvecom suas ruas e casasuma tardecom seus espelhose vozes (voadasna poeira)uma tarde que houve numa cidadeaqui estáno papel que (se quisermos) podemos rasgar

(Ferreira Gullar)

nossa capacidade de encontrá-los dentro do cérebro.O que acho fascinante também é o fato de que,

muitas vezes, podemos nos lembrar de coisas que jamais nos aconteceram. Essa capacidade do cére-bro é uma das que mais me interessa neste trabalho, bem como a invenção de acontecimentos, pois tam-bém os deformamos, de acordo com nossa própria (in)consciência. Nenhuma imagem passa por nós sem filtros. Estamos permanentemente esculpindo esses “vídeos”. Nossas lembranças quase sempre omitem ou distorcem detalhes do que aconte-ceu. Transformar o ordinário em extraordinário é a chave para criar lembranças fortes. As memórias são armazenadas na forma de conexões semiperma-nentes entre neurônios. Quando você se lembra de

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(Eternal Sunshine of the Spotless Mind, Michel Gondry, 2004)

“E minha pessoa de hoje não passa de uma pedreira aban-donada, que julga igual e monótono tudo quanto encerra, mas de onde cada recordação, como um escultor grego, tira inúmeras estátuas. Falo em coisas revistas por que, atuando os livros nisso como coisas, o modo pelo qual se abria sua lombada, o grão de seu papel podem ter conservado, tão viva, como as frases do texto, a lembrança de como eu imaginava então Veneza e de meu desejo de visitá-la. Mais viva até, pois estas por vezes perturbam, como certas fotografias, que nos fornecem do modelo uma imagem menos fiel do que nossa memória”.

(Michel Proust, Em Busca do Tempo Perdido)

alguma coisa, essas conexões se tornam instáveis e quimicamente sujeitas a modificações e distorções. A cada vez que você acessa uma memória, ela pode ser alterada. As memórias ficam instáveis quando as acessamos justamente para permitir que novas informações sejam agregadas a elas. A readaptação das memórias é um processo natural que acontece a todo momento sem que seja perceptível. Não temos total controle sobre esse mecanismo, nem os cientis-tas estão convictos do nosso poder sobre ele. Para o psicólogo Paul Fraisse, o presente demora em torno de três segundos para se converter em passado e ser arquivado na nossa memória.

Michel Proust foi um escritor francês que pro-duziu uma obra divida em sete livros chamada

“Em Busca do Tempo Perdido”, publicada entre 1913 e 1927. Os estudos sobre sua obra jamais foram interrompidos, sendo utilizados em áreas como filosofia, jornalismo, crítica literária, psi-canálise e também fotografia. Sua relação com essa última foi bastante diferente da de muitos escri-tores da época. Proust era fascinado pela arte e até passou a transportar os recursos da fotografia como profundidade de campo, foco, enquadra-mento, para a sua narrativa.

O escritor, que sempre será lembrado por sua batalha travada contra o tempo, foi o primeiro a estudar a fundo a relação entre memória e fotogra-fia. Proust questionava a capacidade da imagem fotográfica gerar recordações, mas deixa claro em alguns trechos que as fotografias não seriam capazes de substituir os registos feitos pela memória.

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Bauru, 12 de março de 201216:50:23

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referênciasEntre as buscas que fiz, dois trabalhos saltaram aos

meus olhos.

(Micro, por Debbie Carlos - 2004/2006)

Debbie Carlos é uma fotógrafa muito conhecida por seu trabalho Human Nature, em que traz animais empalhados num cenário artificial que reproduz seu habitats. Nesta série, Micro, a ideia foi a seguinte:

“Examinando antigos negativos esca-neados de minhas fotos, frações ampliadas dessas fotos de repente pareceram mais in-teressante para mim do que as imagens em sua totalidade. Formas incertas surgiram, as quais pela qualidade das imagens, me fizeram lembrar da maneira como eu me lembro das coisas, pessoas e eventos. Lem-bramos de detalhes, enquanto coisas maiores às vezes nos fogem”.

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O outro trabalho eu encontrei numa busca por “Fotografia sem câmera”.

(Moons, Susan Derges - 2004/2006)

Difícil de acreditar, mas essa imagem não foi feita com uma câmera fotográfica. Susan é conhecida

por seus experimentos com fotogramas, e esta foto é resultado da imersão de um pa-pel fotossensível nas águas de um rio.

Três tópicos me ocorreram vendo essas imagens:

> o fim das interfaces tecnológicas, como câmeras fotográficas;

> a artificialidade em tentar diagramar os elementos dentro de uma foto;

> a ilusão da nitidez (não enxergamos em HD).

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Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma

de percepção cuja capacidade de captar “o semelhante no mundo” é tão aguda, que graças a reprodução

ela consegue captá-lo até no fenômeno único.

walter benjaminA obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica

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produçãoO projeto consiste em fotos produzidas através

de câmera fotográfica digital e manipuladas no software Adobe Photoshop. Tratam-se de imagens que representam memórias do cotidiano infantil. As fotos transmitem uma perspectiva pessoal, que tenta imitar o olhar humano e suas possíves dis-torções. Por estarem num contexto infantil, dividi o trabalho em três partes, havendo quatro fotogra-fias para ilustrar cada uma delas.

A divisão consiste em:> olhar para baixo;> olhar para cima;> olhar adiante.

Apesar da memória em geral buscar registrar os acontecimentos mais grandiosos e importantes que nos ocorrem, tentei buscar imagens simples do cotidiano que pudessem acessar o maior número de pessoas possível e fiz essa distinção pelo ângulo do olhar.

Quando crianças, estamos descobrindo ainda o mundo, e o chão é o que está mais próximo dos olhos, por isso o “olhar para baixo”.

Também, por sermos pequeninos, tudo está aci-ma de nós, e, portanto, o “olhar para cima”.

E é claro, mesmo que não busquemos ver, o que está à nossa frente se apresenta a nós inevitavel-mente, por isso o “olhar adiante”.

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(Processo de produção)

olhar para baixo

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Aprendo mais com abelhas que com aeroplanos.É um olhar para baixo que eu nasci tendo.É um olhar para o ser menor, para oinsignificante que eu me criei tendo.O ser que na sociedade é chutado como umabarata – cresce de importância para o meuolho.Ainda não entendi por que herdei esse olharpara baixo.Sempre imagino que venha de ancestralidadesmachucadas.Fui criado no mato e aprendi a gostar dascoisinhas do chão -Antes que das coisas celestiais.Pessoas pertencidas de abandono me comovem:tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.

(Manoel de Barros)

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olhar para cima

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Há uma solidão no céu.

(Emily Dickinson)

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olhar adiante

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Encontro de dois.Olho no olho.Cara a cara.E quando estiveres perto eu arrancarei os seus olhos e os colocarei no lugar dos meus.E tu arrancará os meus olhose os colocará no lugar dos teus.Então, eu te olharei com teus olhos e tu me olharás com os meus.

(Fernando Pessoa)

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agradecimentosUm trabalho como esse significa muito mais do

que apenas um trabalho. Ele representa os 4 anos e 6 meses mais intensos da minha vida e me torna grata a muitas pessoas.

Mãe, por sonhar meus sonhos comigo. Ane, por me estimular a sonhar mais do que eu conseguiria sozinha. Vó, por ser a pessoa mais linda do mundo. Tia Carmem e primos, por todo o afeto sincero.

Rafael Nakaoka, por acreditar nas besteiras que eu digo e ser meu melhor amigo e companheiro. Meus amigos Lucas Odahara, Pedro Oliveira, Luiza Sequeira, Rafael Arrivabene, Renato Gavi-olli e Patricia Pimenta, por me proporcionarem conhecimentos mais valiosos que qualquer aca-demia pode oferecer.

Dorival Rossi, por me orientar e instigar ao lon-go desses anos.

Pessoas que dividiram seus lares comigo em Bau-ru: Bruna Geromel, Chiara Zanotti, Diego Xavi-er, Matheus Scarlatti, Taís Malheiros, Ana Paula Macagnani e Laura Pessoa.

Marcella Pachelli, pela revisão deste trabalho e a grande amizade compartilhada.

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bibliografiaFLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Annablume, 2011

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KAPLAN, Louis. Where the Paranoid meets the paranormal: Speculations on Spirit Photography. Art Journal, Nova Iorque, Vol. 62, n 3, p 19-69, College Art Association, 2003

HUXLEY, Aldous. The art of seeing. Londres: Chatto e Windus, 1974

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SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003