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    MEMORIAL DO CONVENTO DE JOS SARAMAGO E ANTNIO JOS DA

    SILVA, O JUDEU: ENTRE HISTRIA E FICO UMA S IDEOLOGIA: A

    PULVERIZAO DE OLHARES E VERDADES

    Andra Cristina de PAULA1

    Universidade Federal de Uberlndia (UFU)

    [email protected]

    Resumo: Este trabalho analisar o romance Memorial do Convento, de Jos Saramago, investigando os principais

    elos de interseo entre Literatura e Histria nesta obra, relacionando a esfera ideolgica desse autor que tende a

    refletir e questionar os problemas sociais portugueses ao estilo crtico de Antnio Jos da Silva, o Judeu, o qual

    no economizou esforos ao denunciar a corrupo e as transgresses polticas, morais e religiosas, sobretudo dos

    principais representantes de Portugal do sculo XVIII, atravs de suas irreverentes peas teatrais.

    Palavras-chave: Memorial do Convento; Metafico historiogrfica, O Judeu

    De um lado tem-se Jos Saramago, romancista portugus contemporneo que se

    destaca pela construo de romances que redimensionam os diferentes dados e elementos

    histricos, problematizando os fatos sociais e pulverizando os olhares, sobretudo para

    aspectos silenciados e/ou omitidos pela histria; de outro, tem-se Antnio Jos da Silva,

    um dos maiores teatrlogos portugueses, depois de Gil Vicente, que se destaca pela

    elaborao de peas teatrais que convidam o seu pblico a refletir sobre temas sociais,

    polticos e religiosos do sculo XVIII, atravs do riso.

    Saramago e Antnio Jos da Silva assumem uma postura de resistncia aos

    costumes e aes praticados em Portugal no sculo XVIII e prope reflexes sobre esse

    ambiente histrico, utilizando-se de gneros literrios distintos o primeiro, o romance, e o

    segundo, a comdia mas semelhantes quanto ao objetivo da sua escritura: possibilitar o

    surgimento de vozes que ainda no haviam tido oportunidades de emergir, como a voz dos

    excludos.

    Embora Jos Saramago e Antnio Jos da Silva se preocupem em refletir sobre a

    atual conjuntura de uma poca, ambos no enunciam de um mesmo lugar, isto , so sujeitos

    que tomam o mesmo objeto como referncia (a sociedade portuguesa do sculo XVIII), mas

    com um distanciamento temporal diferente. Saramago um escritor do sculo XX, j o Judeu,

    um comedigrafo do sculo XVIII, o que significa que enquanto o segundo busca, atravs de

    1 Possui graduao em Letras, mestranda em Teoria Literria e desenvolve o projeto de pesquisa intitulado: A

    religiosidade na voz de Pena Branca e Xavantinho.

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

    mailto:[email protected]

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    suas peas, criticar aspectos sociais e religiosos de sua poca, o primeiro (re)visita o passado,

    com o olhar do presente, resultando numa viso amplificada e crtica dos fatos.

    Percebe-se, dessa forma, que o romance de Saramago no busca retratar ou

    representar a sociedade tal qual descrita pela histria, como acontece no romance histrico

    tradicional, em que a histria se apresenta como processo, como condio prvia do

    momento presente (ROCHA, 2007, p. 53), apontando, no raramente, para um futuro slido

    e glorioso. No romance histrico tradicional, o narrador se coloca numa posio posterior

    quilo que narrado, ou seja, ele sempre fala de um tempo anterior, deixando emergir uma

    ideia de algo acabado, fechado, concluso.

    Em Memorial do Convento, o que se observa uma postura que transcende a

    construo de uma tradio, muitas vezes idealizada pelos historiadores, em que os fatos

    giram em torno daqueles que detm o poder. Essa postura vem ao encontro de uma nova

    tendncia de estudos a respeito da relao entre histria e fico, nomeada por Linda

    Hutcheon (1991) como metafico historiogrfica, em que h a problematizao da histria,

    com o intuito de desestabilizar os significados at ento cristalizados por ela. Para Hutcheon,

    a metafico historiogrfica demonstra que a fico historicamente condicionada e a

    histria discursivamente estruturada. (HUTCHEON, 1991, p. 158).

    A histria, que no sculo XIX havia reivindicado o estatuto de cientificismo, de

    objetividade, por fazer a sntese de acontecimentos por meio de usos de fontes primrias, que

    so os documentos, atravs das notas de rodap, citao, ilustrao, etc., revista, sobretudo

    por Barthes (2004) e Hyden White (1992), os quais relativizam a verdade do texto histrico,

    criticando, pois, a historiografia.

    No sculo XIX, portanto, a histria via-se como fonte do real, mostrando-se algo

    irrefutvel. Nesta poca, o romance histrico tradicional ganha espao. Entretanto, a partir do

    sculo XX, a histria passa a ser revista, pois o que predominar a retrica; a verdade parte

    da interpretao do historiador, e, sendo assim, nenhuma verdade existe, constatao essa que

    vai ao encontro do pensamento nietzscheano, quando diz que a verdade no seno a

    solidificao de antigas metforas (NIETZSCHE, apud BARTHES, 2002, p. 57).

    Barthes levanta questes como a afirmao de que o texto histrico apresenta um

    discurso e sua organizao, portanto, subjetiva. Segundo Barthes, em seu texto Aula, cada

    vez que um historiador desloca o saber histrico, no sentido mais largo do termo e qualquer

    que seja seu objeto, nele encontraremos simplesmente: uma escritura (BARTHES, 1987, p.

    21). O autor utiliza o termo escritura como sinnimo de literatura, deixando claro que essa

    est inserida no discurso do historiador e que, portanto, seu trabalho final (texto) no

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

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    imparcial, mas o resultado de escolhas, combinao e posicionamentos sobre essas escolhas, e

    que sua pesquisa histrica resultar em uma narrativa em que prevalecer a interpretao que

    se far dos acontecimentos. Sobre isso Hyden White diz:

    Os acontecimentos so convertidos em histria pela supresso ou

    subordinao de alguns deles e pelo realce de outros, por caracterizao,

    repetio do motivo, variao do tom e do ponto de vista, em suma, por

    todas as tcnicas que normalmente se espera encontra na urdidura do enredo

    de um romance ou de uma pea (WHITE, apud RAMOS, 2008, p. 40).

    Sendo assim, o signo da histria deixa de se comprometer com o real, mas com o

    inteligvel, com o construto, isto , com aquilo que poderia ser ou aquilo que poderia ter sido.

    A histria passa ser vista como um gnero textual, em que a ideologia move a construo do

    texto histrico, surgindo a seguinte questo: qual o discurso que faz melhor girar a roda da

    histria? Hyden White fala da ideologia e da postura assumidas pelo historiador que

    implicaro na viso que se ter do passado, do presente e do futuro.

    Alcides Freire Ramos, em sua obra Canibalismo dos fracos, faz algumas

    consideraes importantes sobre a relao histria e fico. Segundo ele, embora ambas se

    assemelhem quanto organizao (em narrao) que se d de forma literria, a histria se

    diferencia da literatura por desejar produzir um efeito de verdade, atravs dos relatos, das

    citaes, ilustraes, etc:

    Hoje em dia, sabemos que um trusmo afirmar que um texto escrito por

    um historiador, do ponto de vista narrativo, compartilha muitos elementos

    com os textos escritos por uma romancista. Roland Barthes, Hyden White,

    Michel Certeau e Peter Gay, cada um a seu modo, mostraram isso de

    maneira muito convincente. luz de suas proposies possvel concluir

    que a escrita da histria, como discurso, organiza-se sob a forma de uma

    narrao literria, s que se diferencia desta na medida em que procura

    produzir um efeito de realidade/verdade por meio da citao de documentos

    (o que, em ltima anlise, permite a verificabilidade) (RAMOS, 2002, p.

    39).

    Nesse sentido, Saramago, adotando um pensamento que ultrapassa os conceitos de

    romance histrico tradicional, prope em Memorial do Convento uma reinterpretao da

    histria a partir de pontos e aspectos especficos, resgatando o painel histrico de Portugal do

    sculo XVIII, durante o reinado de Dom Joo V. Segundo Rocha, a metafico

    historiogrfica procura re-apresentar o passado (e no represent-lo) e isso feito por meio da

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

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    ficcionalizao pardica, irnica e, por vezes, satrica das personalidades e acontecimentos

    histricos (ROCHA, 2007, p. 59).

    Certamente um dos poderes mais representativos do sculo XVIII era o exercido

    pela Igreja, a qual, em nome da f, buscava controlar o pensamento e comportamento das

    pessoas. Em Memorial do Convento, Saramago constri uma narrativa que direciona o olhar

    do leitor para a ao da Igreja Catlica em Portugal, posicionando-se contra suas atitudes

    muitas vezes ambiciosas, preconceituosas e anticlericais. Na referida obra de Saramago,

    possvel perceber, por exemplo, a troca de favores entre a Igreja e a Monarquia, quando Dom

    Joo V promete edificar um convento em Mafra a pedido de Frei Antnio, como prova de

    devoo, caso Deus abenoasse a rainha com uma gravidez.

    Outro ponto so as constantes referncias Inquisio. Segundo Joaquim

    Verssimo Serro (1980), a introduo do Santo Ofcio em Portugal teve como objetivo

    controlar a ao de pessoas que no acreditavam, pensavam ou se comportavam conforme os

    padres e regras impostos pela Igreja Catlica. Segundo Adriana Reis Brun, os principais

    alvos do Santo Ofcio eram os cristos novos2 da burguesia em ascenso e os letrados, que

    disputavam com o cl