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    LUGAR COMUM N37-38, pp. 95-

    Memria-mquina

    Murilo Duarte Costa Corra

    1 ...quarenta anos depois...

    Aproximar-se de um tema pouco ou quase nunca abordado por Deleuze--Guattari que, em um duplo do gesto nietzschiano, jamais ocultaram sua prefe-rncia pelas potncias ativas do esquecimento em relao aos fardos imobilistas

    de toda forma de memria. No se trataria, no entanto, precisamente disto? re-atualizarO Anti-dipo quarenta anos depois desse aerlito haver descido terra(DOSSE, 2010, p. 175); prosseguir alguns passos mais no projeto de conjurar onegativo e faz-lo no seio essencialmente problemtico da memria. Duplo gestomultiplicador: fazer a memria de O Anti-dipo e fazer de O Anti-dipo umamemria, como quem engendra uma memria coalescente com o presente e osdevires, e se deixa entrar nas linhas de fora envolvidas pelos campos do ser e dodesejo que, in extremis, coincidem.

    Que a proposta possa dizer-se temerria, o presente nmero deLugar Co-mum, dedicado aos quarenta anos de O Anti-dipo, parece evoc-la singularmenteao assumir a tarefa de produzir-se como uma sua instncia de comemorao (deco + memorare). O livro de Deleuze-Guattari constitui um acontecimento que nocessa, ainda hoje, de encadear-se a outras mltiplas sries de acontecimentos queestimam o plural de que feito uma obra e, assim, testemunham o princpio mes-mo antiedipiano: uma contnua gnese do novo. A um s tempo, essa memria emvias de efetuao que se solicita a uma obra infinita, como OAnti-dipo, amparao tour de force a que temerariamente nos propomos.

    Pesquisar a memria em O Anti-dipo quarenta anos depois no implicaprocurar pelos fardos histricos ou inventariar lembranas desligadas do concreto;trata-se, antes, de repetir, com ela, o gesto singularizante e supremo de qualquerfilosofia: criar um conceito. Se Deleuze (2008: 11-21) exigia dos historiadores dafilosofia o dom orbicular da diferena resultado de uma seleo pela potnciacapaz de agir no cerne da repetio , por que Deleuze-Guattari deveriam passarinclumes aos investimentos singularizantes de uma imaculada concepo?

    A partir de um dos elementos no-lidos de O Anti-dipo, procuramosexceder os quadros cannicos das definies transcendentes de memria, que dePlato a Kant constituram afirmaes limitativas e exclusivas de uma memria

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    desontologizada e impotente, a fim de extrair um conceito antiedipiano e maqu-nico de memria, aproximado dos fluxos das produes inconscientes, intensivas,

    selvagens e, a um s tempo, emancipado de toda forma reminiscente servil aoidntico.

    No interior de uma filosofia prtica, que a de O Anti-dipo por isso,Michel Foucault (2001, p. 134) o teria saudado quase em seu crepsculo como oprimeiro livro de tica que se escrevera em Frana aps muito tempo , esse novoconceito de memria exige que se defina o campo problemtico concreto no qualemerge.

    Afim de situ-lo em uma palavra, preciso compreender de que maneira

    a experincia anistiadora brasileira, que se inicia em 1979 e permanece, at hoje,inacabada, no pode produzir-se seno assentada sobre o campo de imannciada memria. Disso dependem suas estratgias, seus cdigos, sua eficcia; dissodependem, igualmente, as infatigveis e nuas repeties de estruturas polticasautoritrias no Brasil contemporneo e a inibio dos potencias revolucionriosda memria.

    2 Memrias-signo

    No momento em que O Anti-dipo publicado em Frana, no ano de1972, regimes polticos ditatoriais encontravam-se em pleno curso na maior partedos pases latino-americanos. O processo continental de esmagamento das fr-geis democracias nacionais latino-americanas desencadeado a partir do golpe deEstado de 1964, no Brasil, alastrando-se sistemicamente nos anos seguintes pordiversos pases da Amrica Latina, como Mxico (1968), Chile e Uruguai (1973),e Argentina (1976).

    No plano econmico, as prticas desenvolvimentistas dos anos 50 e 60

    no apenas no sero desmontadas, como sero adaptadas ao discurso naciona-lista, testemunhando a faceta conservadora do crescimento econmico que, oraassumindo a alternativa da antecipao neoliberal visvel no modelo argentino, ora tornando o Estado o elemento central de interveno poltico-econmicana construo de alianas com o capital multinacional (mas conservando a prote-o do mercado interno, como nos modelos brasileiro e mexicano), acabar porconduzir os pases latino-americanos ao endividamento externo, sem que o cres-cimento econmico tivesse significado outra coisa que no o aprofundamento da

    pobreza (NEGRI; COCCO, 2005, p. 104-107).No campo poltico, a represso, a tortura e o assassinato sistemtico deopositores constituiro, ao longo de algumas dcadas, os paradigmas de exerccio

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    do controle social e da represso estatais contra as insurreies da luta armadarevolucionria (NEGRI; COCCO, 2005, p. 103). Aparelho repressivo que, aps a

    transio em direo ao regime democrtico, no desmontado, no sofre purgas,tampouco reestruturado no Brasil. Pelo contrrio, em pleno funcionamento, oaparato de violncia legal permanece atrelado s estruturas herdadas do regimeprecedente o que poderia explicar, ao menos em parte, a escalada da violn-cia endmica no Brasil e no resto do continente latino-americano ps-ditatorial(PINHEIRO, 2002, p. 240), especificamente estruturada sobre o rapportEstado--cidado que se desenvolve em culturas polticas autoritrias marcadas pelo des-respeito aos direitos humanos e pela lgica da impunidade.

    A memria em disputa: anistia poltica e representao

    Tudo indica que, desde antes da anistia de 1979 at hoje, a memriapoltica brasileira no deixou de ser investida como um campo de disputas pelocontrole dos signos, pela possibilidade de expropriar o ser da memria tornando--a um significante vazio ao qual se pudesse fazer imprimir arbitrariamente umsignificado.

    Seu significado pode assumir indistintamente a faceta humanista da Jus-

    tia de Transio, ou a negacionista, dos contramovimentos; pode assumir indis-tintamente o cariz da histria oficial, a verso dos algozes ou o rosto da narrativadas vtimas. Isso se torna especialmente evidente no momento em que a prote-o aos direitos humanos de agentes de Estado violadores de direitos humanos paradoxalmente invocada como argumento para sustentar a impossibilidade depersecues criminais sob a gide de um Estado democrtico de direito (SABA-DELL; DIMOULIS, 2011, p. 79-102), ou quando uma mtica anistia bilateralintegralmente controlada pelo Executivo (ABRO, 2011, p. 123-124) invocada

    sob o argumento do garantismo penal que no se pergunta sobre a carncia deautoridade internacional ou jurdica das autoanistias. Nos seio dessas antinomias,estes conceitos indeterminam-se ao infinito e conduzem o canevs antropolgicosobre o qual se funda a lgica da proteo dos direitos humanos a um oximoroaparentemente inextrincvel.

    Agenciando dispositivos micropolticos e macropolticos em torno deestratgias de sobrecodificao da memria social, instncias institucionais im-primem sentidos prprios no campo de uma memria social politicamente em

    disputa, como o caso da memria sobre o recente passado autoritrio brasileiro.Se, por um lado, no h memria exclusivamente institucional, as insti-tuies sociais e estatais investem, de longa data, o campo da memria coletiva,

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    ocupando-se da governamentalidade de afetos livres, soldando-os festa, ao luto,erigindo monumentos, preservando documentos, interditando o acesso a eles ou

    abandonando-os ao esquecimento (LE GOFF, 1990, p. 426). No por acaso, em OAnti-dipo, mas tambm emMil Plats, Deleuze e Guattari (2010, p. 264; 2007,p. 144) definiro a sobrecodificao como a operao por excelncia do aparelhode captura do Estado.

    Sem fraturar essa lgica, toda anistia parece operar calcada em um dis-positivo biopoltico de governamentalidade dos afetos que ainda precisaria serdescrito adequadamente. No entanto, os dispositivos anistiadores no se efetuamexclusivamente a partir da represso de contedos mnemnicos, mas por meio de

    uma tcnica mais sutil, que pode ser-lhe coextensiva, de produo da memriamanipulada, subtrada ou extorquida.Os investimentos macropolticos e institucionais sobre o campo mnem-

    nico constituem um dispositivo de governamentalidade que opera no registro dasinscries da memria coletiva, subtraindo seu solo ontolgico. Por isso, mais queimpedir ou reprimir a memria, trata-se de estabelec-la por limitao e identida-de, gerindo-a no interior de um cdigo, e de bloquear e capturar, por meio dele,os afetos desligados sobre o corpo sem rgos, elidindo-os em uma condio es-

    pectral, fantasmtica e, no limite, reduzida ora representao, ora ao imemorial.A operao anistiadora implica um dispositivo que produz a memriaarticulando-a com o apagamento de traos que outrora haviam sido inscritos nocorpo da memria social ou coletiva (sntese de registro); anistiar compreende es-tabelecer estratgias a fim de governar afetos por meio de uma gesto da memriaque s pode ocorrer na medida em que a memria deixe de ser objeto da produ-o social imanente e, abandonando toda ontologia, seja inteiramente vertida noinvestimento macropoltico que reduz suas possibilidades de evocao ao cdigoem que ela pode ser transcrita.

    Como dispositivo de governamentalidade, a anistia opera por meio douso estratgico da tecnologia, separando a memria de sua ontologia, impedindo memria todo carter produtivo que escape ou subverta sua sobrecodificao, afim de anular ou inibir os potenciais de atualizao de seus afetos. Dessa maneira,a memria institucional reduzida condio da lembrana, evocada axiomati-camente nas comemoraes pblicas, cujos contedos permanecem acessveis auma conscincia exclusivamente nos termos do cdigo.

    A memria institucional no , por essa razo, intil, falsa ou descart-vel. Pelo contrrio, na medida em que ela sobrecodifica uma multiplicidade deinvestimentos sociais e individuais da memria coletiva, ela se apresenta como

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    lcus de uma disputa pblica pela memria e pela verdade, transformados emsignos vazios os quais se trata de axiomatizar imprimindo-lhes um sentido cujo

    destino estabelecer a memria coletiva por meio de um cdigo. Trata-se de umaoperao que conjuga reduo, limitao e produo expressiva da memria. Ofato de que o esvaziamento desses signos e a sobrecodificao de seu sentido nose apiam em qualquer ontologia provaria a centralidade da desconexo metaf-sica entre memria e ontologia de que se utiliza estrategicamente o dispositivoanistiador.

    Porm, preciso compreender em que instante, ao produzirem memria,as instituies efetuam essa desconexo entre poltica e ontologia da memria.

    Arriscaramos dizer que essa desconexo se efetua no ponto em que as instituiesarticulam bis e anamnsis, forma de vida poltica e reminiscncia. Na medida emque se axiomatiza o campo da memria sob a forma da recordao pblica e daverdade oficial, anulam-se os devires de formas de vida poltica perturbadoras, in-desejveis ou perigosas; inibe-se, nos signos mesmos, o ponto em que assinalamndices mais ou menos extensos de uma posio intensiva de desejo (DELEUZE;GUATTARI, 2010, p. 158).

    Segundo Aristteles, o homem recebe duas definies pelas quais se re-

    laciona com o animal, separando-se dele: na Poltica [1253a] (ARISTTELES,1989, p. 28), como em Parva Naturalia [451b-452b] (ARISTTELES, 1951,p. 65-67), o homem aparece definido como o produto de uma cesura antropolgi-ca que o designa como o animal poltico e como o animal reminiscente. Os dispo-sitivos anistiadores so dispositivos de governamentalidade biopoltica no ape-nas ao passo em que tornam os afetos e a memria dimenses de um investimentomicro ou macropoltico, mas na medida em que tais investimentos orientam-se aogoverno dos afetos passveis de se agenciarem em modos de existncia polticaque desafiam uma forma de governamentalidade.

    Da mesma maneira que, naPoltica de Aristteles, a forma de vida po-ltica (bis) mantinha uma relao com a vida orgnica (zo) unicamente sob aforma de sua excluso e captura em uma esfera separada, a reminiscncia ofi-cial (anamnsis), simetricamente, produz-se mantendo, com a memria orgnica(mnme), uma relao estabelecida unicamente sob a forma de sua excluso, cap-turando-a em uma esfera parte da existncia poltica. Evocando uma intuio deDeleuze a respeito das sociedades disciplinares, Lazzarato (2005: 69) aponta queo que aprisionado sempre o fora: O que enclausurado o virtual, a potnciade transformao, o devir. Uma ontologia poltica da memria se estabelece so-bre esse fora, interroga-o e deixa-se afetar por ele.

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    Mesmo as leis de anistia, desde a Grcia antiga, incidem a um s temposobre o estatuto jurdico-poltico dos resistentes fazendo-os de novo comungar

    dos direitos civis e sobre a memria, axiomatizando-a (ELSTER, 2006, p. 17-40; BARBOSA, 1955, p. 109). Trata-se, ento, de gerir e, no limite, de destruir,os registros da resistncia, subordin-los a um princpio arcntico que os interdita(DERRIDA, 2001, p. 12-13), ordenar o silncio e o esquecimento, enquanto seproduz uma memria sobrecodificada por meio das narrativas e escrituras da his-tria oficial com sede na representao.

    Os investimentos macropolticos sobre a memria constituem um gover-no biopoltico dos afetos e, por meio dele, visa-se a controlar estrategicamente a

    emergncia de formas de vida poltica cuja inscrio no ser o seu devir testemu-nha. Assim, toda anistia denunciaria o envolvimento da memria em uma polticaque no poderia fundar-se no ser, sob pena de vermos emergir as formas de vidaintempestivas e os afetos polticos livres que se julgava conjurar e conjurar algo, j, antecipar o seu devir por captura.

    Para investir sobre a memria, as instituies apoiam-se tanto sobre dis-positivos tcnicos como sobre o dispositivo metafsico,34 os quais no logramcompreender a memria como uma regio do ser. A tradio metafsica s ser

    rompida a partir de meados do sculo XIX, quando Nietzsche, Bergson e Freudcompreendem a memria como uma regio do ser que se conserva indefinidamen-te em si mesma. No entanto, sua leitura ontolgica da memria s ser assumidaaps o Holocausto evento que representar o ltimo golpe factcio na filosofiada representao, no seio do qual tambm a memria estar em jogo como umconceito capital.

    Dispositivos metafsicos, dispositivos tcnicos

    At a primeira metade do sculo XX, s teramos assistido a leituraspsicolgicas de Nietzsche, Bergson e Freud o que se revelou uma estratgiamicropoltica que investiu a memria da impotncia de reduzir-se a uma simplesfaculdade do esprito, enclausurada no sujeito. O fato de Bergson ter compreen-

    34 A histria da filosofia sempre foi o agente de poder na filosofia, e mesmo no pensamento.Ela desempenhou o papel de repressor. [...]. Uma formidvel escola de intimidao que fabricaespecialistas do pensamento, mas que tambm faz com que aqueles que ficam fora se ajustem

    ainda mais dessa especialidade da qual zombam. [...] O que esmagado e denunciado como no-civo tudo o que pertence a um pensamento sem imagem, o nomadismo, a mquina de guerra,os devires, as npcias com a natureza, as capturas e os roubos, os entre-dois-reuns, as lnguasmenores ou as gagueiras na lngua etc. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 21-22).

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    dido o esprito como objeto de uma metafsica cujo mtodo intuitivo daria acesso prpria ontologia, em radical ruptura com a gnoseologia kantiana, s assumi-

    r seu lugar na histria da filosofia ocidental aps 1945, como testemunharia acomparao entre o verbete Mmoire, do Vocabulrio de Andr Lalande (2010,p. 606-608), datado de 1926, bem como das obras de Maurice Halbwachs (1997),do perodo entre 1925 e 1939, e.g., com as obras produzidas em um perodo pos-terior a 1945; entre elas, o Henri Bergson, de Vladimir Janklvitch (2008),LeBergsonisme, de Gilles Deleuze (2007) e o ltimo dos tomos de Histoire de laphilosophie, dirigida por Brice Perain e Yvon Belaval (2002) e publicada em 1974como parte daEncyclopdie de la Pliade.

    Paralelamente aos investimentos produtores de uma forcluso das onto-logias da memria no pensamento e na metafsica ocidentais, assistiremos proli-ferao de estratgias micro e macropolticas de captura e codificao dos afetos edesejos que investem o campo mnemnico de intensidades, tendo como principalobjetivo controlar, regrar e governar seu potencial poltico. Estaramos, aqui, umavez mais, a nos referir ao corpo a corpo entre homens e dispositivos tcnicos quetm, ou um dia tiveram, a memria por epicentro de sua aplicao.

    Assim como a memria capturada e separada em uma esfera parte

    da ontologia, tambm muito cedo a memria ser sequestrada e sobrecodifi

    cada,constituindo um objeto privilegiado de heterogneos investimentos macropol-ticos. Destacando a memria do devir, recolocando-a em um tempo histrico ehumano completamente estriado e gerido pela autoridade, assistiremos ao esfor-o de uma civilizao por construir dispositivos tcnicos capazes de interditara emergncia e impedir o afloramento das potncias revolucionrias dos afetosimemoriais como parte das estratgias de poder mais importantes das organiza-es macropolticas.

    Da funo poltica e pblica do arconte proscrio da poesia, na Re-pblica de Plato, dos monumentos arquivstica como incumbncia estatal, dasescritas da histria oficial gesto da anistia, cujos primeiros registros histricosremontariam Atenas de 411 a.C. (ELSTER, 2006: 21-32), mltiplos so os in-vestimentos tcnicos e macropolticos sobre a memria visando a capturar, codi-ficar, sobrecodificar e inibir seu potencial subversivo.

    Ainda uma vez, a memria ser capturada e codificada como um dosobjetos privilegiados de investimentos micropolticos: a mnemotcnica antiga, apaulatina reduo da memria a uma faculdade, ou a um objeto de exerccios oraretricos, ora espirituais; os documentos privados, as heranas, as genealogias,os dirios, as biografias, os retratos de famlia; o regime econmico dos segredos

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    dos ofcios no raro, familiares , as sucessivas estratgias que reduziram amemria lembrana e condio de uma faculdade individual, que encontraria

    na psiquiatria, na psicologia e na psicanlise um dos ltimos horizontes de inves-timento biopoltico. Afinal, em todas as estratgias micro ou macropolticas deque se investiu o campo da memria, da poesia platnica anistia institucional, damnemotcnica tcnica psicanaltica, sempre de tecnologias de gesto, supres-so e anulao de afetos e desejos que investem o campo da memria que se trata.

    Mesmo o fato de que boa parte da literatura ocidental sobre a memrias consiga pens-la por analogia a certas mquinas tcnicas deveria constituirmotivo suficiente para pesquisar as condies de emergncia desses discursos:

    Simnides de Ceos compara a memria a um espao arquitetnico no qual seacomodam imagens para construir o conceito de memria artificial por lugarese imagens que mais tarde servir mnemotcnica latina no que logo seguidopor Ccero e Quintiliano (YATES, 2007, p. 17-45); Scrates, no Teeteto platnico,compara a memria a um bloco de cera malevel, depois a um viveiro; Aristteles[450a] (1951: 60) compara ophntasma (pthos deixado na alma por um objetopassado como uma impresso) com a posse de uma imagem fantasmtica, comoocorre na pintura; Jean-Marie Guyau, em 1890, (2010, p. 87-88) compara a me-

    mria ao fongrafo; Freud, em 1925, (2011, p. 267-274) compara o sistema depercepo-conscincia, no qual est necessariamente envolvido um conceito dememria, ao bloco mgico.

    As ontologias da memria no raro encontraram seus limites nos dispo-sitivos tcnicos e nas estratgias de constante interiorizao da memria comoreminiscncia, lembrana e faculdade individuais, que no incio do sculo XXpautaro surdamente as formulaes sociolgicas e crticas de uma memria co-letiva como memria de grupo (HALBWACHS, 1997, p. 137-138).

    O desenvolvimento histrico de uma metafsica que separa a memriado ser e a investe nos campos tico, poltico, prtico e institucional encontrarnos dispositivos mnemnicos objetos de investimentos micro e macropolticos,estratgias de captura e codificao da memria, mas tambm as condies de su-presso e governo de seus afetos e de anulao de seus potenciais polticos comouma coextenso da forcluso da memria das regies do ser e do devir.

    A rebelio da memria

    No prefcio edio italiana deMil Plats, Deleuze e Guattari situavamo projeto de O Anti-dipo a partir de um gesto de agressiva negao e recusa.No rescaldo dos movimentos de 1968, Sonhvamos em acabar com o dipo,

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    ao passo que emMil Plats, a despeito de seu insucesso editorial se comparadoboom antiedipiano, assumiriam uma tarefa mais positiva e ativa: tratava-se, ento,

    oito anos depois, de abordar terras desconhecidas, virgens de dipo, impenetr-veis ao primeiro livro.

    No mesmo texto, os autores resumem em trs os grandes temas de seulivro de 1972:

    1) o inconsciente funciona como uma usina e no como um teatro (questo deproduo e no de representao);

    2) o delrio, ou o romance, histrico-mundial, e no familiar (deliram-se as

    raas, as tribos, os continentes, as culturas, as posies sociais...);

    3) h exatamente uma histria universal, mas a da contingncia (como osfluxos, que so o objeto da Histria, passam por cdigos primitivos, sobreco-dificaes despticas, e descodificaes capitalistas que tornam possvel umaconjuno defluxos independentes) (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 7).

    Sua ambio, propriamente kantiana, era a de realizar o equivalente auma Crtica da Razo Pura no nvel do inconsciente, Da a determinao de

    snteses prprias ao inconsciente; o desenrolar da histria como efetuao dessassnteses; a denncia de dipo como iluso inevitvel falsificando toda produ-o histrica (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 08). Tratar-se-ia de empreen-der uma revoluo materialista por meio da crtica de dipo, denunciando ouso ilegtimo das snteses do inconsciente [...], de modo a recobrar um incons-ciente transcendental definido pela imanncia de seus critrios [...] (DELEUZE;GUATTARI, 2010, p. 104).

    Oito anos depois,Mil Plats filiar-se-ia a um projeto ps-kantiano, que

    visava a construir uma teoria das multiplicidades nelas mesmas, ao passo emque o livro de 1972 no passaria de uma teoria das multiplicidades a partir dassnteses condicionadas ao inconsciente maqunico.

    De 1980 em diante, Deleuze-Guattari erigiriam o rizoma como a melhorexplicao de sua teoria substantiva das multiplicidades, abandonando o vocabu-lrio do simulacro e das mquinas desejantes (DELEUZE apud MARTIN, 1990,p. 8). Ao cabo de suaLettre-Prface aLa philosophiede Gilles Deleuze, Jean-CletMartin (1990), ocupado com a experincia criadora engendrada por seu empiris-

    mo transcendental, Deleuze repete ao jovem autor o conselho de trabalho que,dcadas antes, lhe havia sido endereado por Henri Bergson: ne perdez pas leconcrt, revenez-y constamment (DELEUZE, 1990, p. 09). Cada conceito puro,

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    concebido por meio de uma experincia de tipo muito particular, no-decalcadado emprico, seria, entretanto, inseparvel da passagem de um concreto a outro.

    certo que O Anti-dipo registra, nas trilhas da Genealogia da Moralde Nietzsche, uma duradoura e sombria histria da memria; da aliana intensiva,no corpo pleno da Terra, aliana de filiao direta, no corpo pleno do Dspota e,desta, aliana e filiao capitalistas. A memria no cessa de fazer corpo comrecalques mais ou menos materiais e simblicos. Marcas, escarificaes, codifi-caes, sobrecodificaes e axiomatizaes que inibem seu potencial de afetar nogirovcuo da gesto capitalista: quando a memria convertida em um rgo dosaxiomas nunca saturados o bastante do corpo sem rgos do capital (DELEUZE;

    GUATTARI, 2010, p. 332). A memria designa por mais de uma vez o plano de es-magamento do desejo revolucionrio, parece estar sempre envolvida com ele; poroutro lado, designa tambm um nicho de positividades selvagens, virtuais, incons-cientes, pr-significantes que se confundem com uma espcie de memria biocs-mica, ndice de uma ontologia da memria anterior ao signo, memria puramenteintensiva, qual Michel Serres (2005, p. 11-56), a partir de Bergson, retornarconstantemente perscrutando a memria discreta, opaca e silenciosa da matria.

    Em O Anti-dipo, a histria da memria a histria das suas encarna-

    es: da memria suave, produzida por instrumentos e suportes tcnicos vrios(escritura, linguagem, voz, pedras, papis, documentos, monumentos, moedas,selos) e sobrecodificada pelo registro do aparelho de Estado, memria-marcaclastreana (CLASTRES, 2003, p. 200-202) e, mais aqum dela: um retorno aoser da memria, memria-desejo, memria-afeto desligada da Terra, do cor-po intocvel do Dspota, da axiomtica do capital-dinheiro, liberada como purofluxo-corte intensivo. Memria na pr-histria do homem: a memria antes damemria; a memria sem o homem, sem o signo, emancipada das mquinas tc-nicas, elemento intensivo de agenciamentos livres com as mquinas desejantes, amemria assinala o triunfo selvagem das intensidades.

    Deleuze e Guattari nunca ignoraram a memria como campo de imann-cia. Arrisco dizer que se pode, no limite, lerO Anti-dipo como um uma imensamquina expressiva de produzir a rebelio da memria contra a lembrana lin-guageira; sua revanche contra o dipo que no passa de uma falsa memriaestrutural , mas tambm contra a representao e a expresso que a miraculame, segundo o mtodo da diviso platnica, encarnam pretendentes que se pem areivindicar aos gritos: eu, a expresso, sou a verdadeira produtora de memria!;eu, a representao, sou a verdadeira produtora de memria!; eu, o signo, souo verdadeiro produtor de memria!.

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    As snteses do inconsciente maqunico intervm precisamente para mos-trar que pertence ao ser uma memria desligada do signo e sem palavra. Com

    dipo, tambm a prtica e a cura psicanalticas erigem-se sobre uma forma ex-pressiva da memria. Afinal, como ela poderia deixar de testemunhar em favor deuma lembrana edipiana que se quer, como recalque, a memria profunda de umdesejo mais original?

    por estar na imanncia, por no ser seno imanncia, que o campo damemria, assim como o desejo, no est de forma alguma imune s estranhasaventuras da negatividade e a uma negatividade que no se limita apenas aoapagamento ou manipulao, como parece insistir boa parte da tradio metaf-

    sica que se ocupou do conceito35

    . por compreend-lo como campo de imanncia que Deleuze-Guattari(2010, p. 108) realizam vos absolutos para engendrar uma genealogia da mem-ria que j no mais pessoal, mas poltica, social e econmica. No se trata deescavar, nem de favorecer o florescimento de certas estruturas imemoriais origi-nais; trata-se do gesto do genealogista louco, que libera a pesquisa genealgicado original e do derivado em proveito de uma deriva generalizada. Traando umarede disjunta sobre o corpo sem rgos, Deleuze-Guattari engendram a memria

    como um conceito afi

    rmativo de toda a sua potncia especfi

    ca e a conduzem aoinfinito: a memria ser afirmada, a um s tempo, inclusiva e ilimitadamente,como potncia biocsmica, potncia ontolgica, potncia endividadora, potnciafabuladora, potncia expressiva.

    O ato subversivo que consiste em ler O Anti-dipo tendo a memriacomo um de seus eixos conceituais mais ou menos ocultos a memria bio-

    35 o caso de Friedlander (1992), Le Goff (1990), Ricur (2000), Todorov (2004) e Vidal--Naquet (1995), cuja memria puramente expressiva, desafiada pela soluo final nazista,

    pelo apagamento, pela manipulao, pelo abuso ou pelo revisionismo. No se trata de negar queesses sejam riscos reais, mas no passam de riscos representao do passado s conscinciasindividuais ou coletivas; no dizem respeito seno s foras expressivas que o codificam ousobrecodificam; no dizem respeito ao ser da memria, seno ao passo em que, ao registrarseus afetos, bloqueiam-nos. A maior ameaa memria a prpria representao, no umaforma privilegiada dela. Assim, as experincias-limite nunca so marcadas por crises da prpriamemria, mas da representao. Ao recusar-se a continuar a escrever sobre os campos de con-centrao, Jorge Semprun (2011) no fazia apenas uma opo pela vida como se a memriafosse algo grande demais para si , mas em favor da memria, abandonando a representao.

    Recusar a exigncia de passar o real por uma das formas da representao testemunha umaposio de desejo sem signo em proveito do que Lyotard (2011) chamavafigural, por oposioao figurativo. Cf., ainda, Deleuze e Guattari, 2010, p. 270; (Deleuze, 2007, p. 12 e Deleuze,2006, p. 275-276.

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    csmica contra o signo, a dvida e a m-conscincia instaura uma filosofia doilimitado ao passo em que se afirma a memria em toda a sua rede de disjunes

    possveis, em todas as suas potncias, investimentos e agenciamentos: memorianatura, memoria terr, memoria Urstaat, memoria capital.

    No se trata de negar um uso qualquer da memria, mas de selecionar osusos pela potncia, como Deleuze-Guattari faziam a propsito das snteses ma-qunicas do inconsciente, distinguindo seus usos legtimos e ilegtimos. Se AdrianParr (2008) aproxima-se do problema ao defrontar Deleuze com a cultura memo-rialista do ps-Segunda Guerra Mundial em busca de uma memria utpica36, Maurizio Lazzarato (2006, p. 82-87) quem compreender as implicaes entre

    memria e controle a partir de Gabriel Tarde, mas tambm de Henri Bergson eGilles Deleuze, e a definir como potncia de atualizao do virtual, motorvivo que funciona com energias inorgnicas.

    A memria no est a salvo de capturas e investimentos paranicos, tam-pouco imune a ser lanada a projetos reativos ou de abolio pura. Ela constituio terreno verdadeiramente problemtico sobre o qual se assenta o campo prticode sua produo expressiva. Eis o que coloca a memria antiedipiana se que,a este ponto, j se pode referi-la assim em tenso com o problema ao mes-

    mo tempo ontolgico e poltico de produzir memria no Brasil contemporneo ecompreender de que forma O Anti-dipo deleuzo-guattariano pode constituir umponto de apoio para compreender melhor os entraves sistmicos da produo damemria no Brasil e, mais alm, compreender at mesmo as razes do seu desejo.

    Memria-mquina

    Ao mesmo tempo em que o desejo o princpio imanente da produo,a produo o elemento que promove a identificao da essncia humana da

    natureza e da essncia natural do homem (DELEUZE; GUATTARI, p. 2010,p. 15). Afetado pela vida profunda de todas as formas, encarregado das estrelas edos animais, desfaz-se em proveito da imanncia a ciso entre homem e naturezapara erigir a produo desejante como categoria maqunica que, funcionando porregime associativo, tem o desejo como emissor de fluxos contnuos e operadorde cortes a-significantes. A produo poder dizer-se produo de produo, pro-duo imanente, ao passo em que o desejo insere sempre, e a cada corte-fluxo,o produzir no produto. Cosmos das multiplicidades intensivas e anrquicas cujo

    36 E sabe-se que, em O Anti-dipo, a utopia tomada no sentido de Fourier, de modo que noconstitui ou fornece um modelo ideal, mas se reporta a aes e paixes revolucionrias engen-dradas no corao dos fantasmas de grupo (DELEUZE; GuaTtari, 2010, p. 89-90).

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    nico destino fluir e conectar-se, maquinar o real, produzi-lo como a um ovoinextenso.

    Da mesma forma que na produo social, a produo desejante pode atra-vessar momentos de paradas e formar o corpo sem rgos improdutivo, estril,inconsumvel capaz de tangenciar a morte e fazer dela um objeto do prpriodesejo. Assim como a produo de produo acopla-se a um elemento de anti-produo (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 21) que pode tanto se opor e repeliras mquinas-rgos quanto criar com elas uma nova aliana e miracul-las origi-nando um mundo perverso enfeitiado e fetichista (DELEUZE; GUATTARI,2010, p. 24) que registrar em falso o processo produtivo do desejo, a produo

    social torna-se, por fora de sua relao conectiva com o inengendrado corpo semrgos, coextensiva produo desejante.Ao passo em que um elemento de antiproduo se apropria das foras

    produtivas fazendo com que toda produo, originalmente selvagem e diferen-ciante, parea emanar da superfcie de registro , o sociuspertencer a todos ostipos de sociedade como constante da reproduo social. O esquizo ser definido,nesse sentido muito prprio, a um s tempo comoHomo historia sempre interpe-lado nos termos do cdigo social vigente eHomo natura, sem que isso signifique

    uma oposio profunda.No h diferena ontolgica entre produo desejante e produo social,mas de regime; Homo natura e Homo historia podem confundir-se ao infinito,pois, em cada registro, as mquinas desejantes e o processo de produo pro-duzem um s real que pode dizer-se de modos diferentes: a produo social e adesejante, da qual aquela decorre.

    Da porque um engodo demasiado fetichista tornar a memria a prerro-gativa de um sujeito ou o objeto de uma cultura. Isso seria confundir as instnciasprodutivas do desejo com as superfcies de inscrio e registro que se assentamsobre a produo desejante; confundir produo de real com o movimento obje-tivo aparente de sua inscrio na superfcie indiferenciada dosocius codificador.Adrian Parr (2008, p. 15-53) procura evit-lo por meio das ideias de singularidadee de memria utpica. Se prprio das mquinas desejantes inserir o produzir noproduto, promover a identidade entre produto-produzir, produo social e dese-jante, e, no limite, homem-natureza, ser possvel identificar mquinas desejantese memrias-mquina no campo das intensidades puras que, como os piolhos najuba do leo (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 30), povoam um incriado corposem rgos.

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    Por intermdio desse gesto, assistiremos emergncia da faceta origi-nalmente espinosista do conceito de desejo que, embora remetida ao pequeno

    objeto a de Jacques Lacan, em O Anti-dipo, atravessa pelas obras de Deleuze--Guattari: o desejo esse conjunto de snteses passivas que maquinam os objetosparciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produo jus-tamente porque O ser objetivo do desejo o Real em si mesmo. [...] No o de-sejo que se apoia nas necessidades; ao contrrio, so as necessidades que derivamdo desejo: elas so contraproduzidas no real que o desejo produz (DELEUZE;GUATTARI, 2010, p. 43-44). Na natureza ou na sociedade, ora indiferenciadasdo ponto de vista produtivo, mas no dos regimes das mquinas, o real designa a

    autoproduo pelo desejo.No seio da produo desejante, da maquinao do real, est o desejo: umperptuo diferir-se que persevera em seu ser; isto , em sua diferena de si para sique s se constitui na repetio implicada nas trs snteses do tempo (DELEUZE,2006b, p. 111-187). O conatus, que erige o perseverar em si como princpio ima-nente do desejo, exprime, a um s tempo, uma funo demirgica de organizaodo mundo (BOVE, 1996, p. 19) e a memria envolvida no desejo que retorna asi e repete, incansavelmente, o novo no mundo. No h produo de desejo sem a

    afeco do desejo por si mesmo, e o que seria a memria seno essa afeco sem-pre tanto mais anterior quanto intempestiva do real ou, o que dizer o mesmo, dodesejo por si mesmo? Como intensidade, a memria envolve-se no prprio cernedo real, da produo e do desejo.

    A memria no , portanto, apenas uma expresso mais ou menos fe-liz de sua dupla pertena ao ser virtual do passado e do devir essas instnciasmutuamente coalescentes. A afeco do desejo de si por si, como princpio daproduo de inconsciente e de real, atravessa heterogeneamente condicionadopelas diferenas de regimes de produo das mquinas desejantes como campoduplamente produtivo, a um s tempo, da natureza e da histria: memria-mundoe memria-signo.

    Assim como os pobres, que esto mais prximos de uma economia libi-dinal herbria (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. p. 44) e no do medo abjetoda falta , a memria-desejo, a memria-mquina, j no solicita nada do que lhedeixam; quer apenas as prprias coisas que lhes so incessantemente tiradas,sua pertena ao real, a um ser definido como potncia anarcntica de diferir desi. A mesma autoafeco e autoproduo implicadas na insistncia desejante damemria no registro ontolgico do virtual engendra dinmicas de resistncia his-toricamente condicionadas. Uma vez coincidentes, os processos do desejo e da

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    memria possuem um s e mesmo destino: a efetuao. Eis o que faz dela cona-tus que, perseverando em si, implica j uma dinmica de resistncia um campo

    ontolgico-poltico de disputa pelo virtual, o fora enclausurado, um princpio devariao das formas de vida.

    Se a libido no exige mediao para investir diretamente o campo social,de forma que a produo social unicamente a prpria produo desejante emcondies determinadas (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 46), a memria ser,ainda uma vez, fazendo corpo com osocius que a codifica, elemento de resistn-cia poltica e campo de combates-entre (DELEUZE, 2006, p. 151). Formidvelmquina de assinalar, como signo ou como intensidade livre, uma posio de de-

    sejo capaz de levar setores sociais inteiros a explodir (DELEUZE; GUATTARI,2010, p. 158), a memria pode constituir um dos nomes da poderosa fora inor-gnica de que Deleuze (2003, p. 363) falava em seus ltimos textos. A memria--imanncia: uma vida...

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    Murilo Correa doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito junto ao Progra-ma de Ps-Graduo da Universidade de So Paulo (PPGD/USP). Professor Assistente de In-troduo ao Estudo do Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa (DDP/UEPG). Mestreem Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Ps-Graduao em Direito da Universidade deSanta Catarina (CPGD/UFSC). Co-autor de Dobraduras do Tempo: ensaio sobre a histriade algumas duraes no direito, pela Lumen Juris (2011) e autor de Do mesmo ruptura:ensaios sobre a filosofia do direito e o novo jurdico (no prelo). Contato: http://murilocorrea.blogspot.com.