Memória e identidade regional

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    Revista Eletrnica Cadernos de Histria:publicao do corpo discente do departamento de histria da

    Universidade Federal de Ouro PretoAno II, n. 01, maro de 2007

    ISSN 1980-0339www.ichs.ufop.br/cadernosdehistoria

    Memria e identidade regional:historiografia, arquivos e museus em Minas Gerais

    lvaro de Araujo AntunesDoutor em Histria pela UnicampProfessor Substituto da Ufop

    [email protected]

    Marco Antonio SilveiraDoutor em Histria pela USP

    Professor Adjunto da [email protected]

    ResumoO presente artigo tem por objetivo analisar algumas das relaes estabelecidas entre a produo

    historiogrfica, as prticas de pesquisa e as instituies museolgicas tomando como referncia ocaso de Minas Gerais na primeira metade do sculo XX. Para isso, so recuperados aspectosconcernentes ao debate historiogrfico do perodo e criao de instituies como o Arquivo PblicoMineiro (1895) e o Museu da Inconfidncia (1944). Por fim, so propostas algumas consideraessobre a constituio da memria nos dias de hoje

    Palavras-chavememria; identidade; Minas Gerais; arquivos; museus; historiografia

    AbstractThis article aims to analyze some relations among historiographic production, research practices

    and museological institutions referring, in this case, to Minas Gerais in the first half of the twentiethcentury. For that reason, some of the aspects concerning historiographic debate in that given periodof time and the foundation of institutions such as Arquivo Pblico Mineiro (1895) and Museu daInconfidncia (1944) are taken in consideration. Finally, some remarks about the present memory

    constitution have been proposedKeywordsmemory; identity; Minas Gerais; archives; museums; historiography

    Os debates metodolgicos sobre o tratamento das fontes que embasam a escrita da histria tmresultado, nas ltimas dcadas, no apenas na ampliao do conceito de documento, mas tambm napercepo de que em suas trs dimenses fundamentais o estilo, o contedo e a materialidadeabrem-se a possibilidades de anlises amplas e complexas. Tais possibilidades se referem, de um lado,s condies que estruturaram e estruturam a produo, a conservao, a circulao e o consumodos objetos analisados e, de outro, s aes e regras de sociabilidade que eles engendraram e engen-dram. Em outras palavras, dado que fontes textuais, iconogrficas ou orais so, ao mesmo tempo,informao e suporte, linguagem e coisa, seu tratamento demanda reflexes a respeito tanto dospadres retricos e dos horizontes de significado que elas tm mobilizado em diferentes momentoshistricos, quanto das aes, das relaes sociais e dos circuitos constitudos atravs delas.1 Dessaforma, as distines rigorosas entre fonte histrica e histria como se a primeira fosse o simplesproduto da ltima ou vice-versa - perdem sentido na medida em que as contingncias da produodocumental, bem como os efeitos e as sociabilidades gerados pela apropriao e pela ao das fontes,so constitutivos da histria. A prpria caracterizao de determinados objetos como fonte reme-tem a um dentre os inmeros tipos de apropriao e ao que eles abarcam no decorrer do tempo. Opresente artigo, partindo desses pressupostos, tem dois objetivos. Em primeiro lugar, apresentar bre-ves comentrios sobre as relaes entre arquivo, museu e historiografia nas Minas Gerais da primeira

    metade do sculo XX, particularmente entre 1895 (ano da criao do Arquivo Pblico Mineiro) e1944 (data do incio do funcionamento do Museu da Inconfidncia, em Ouro Preto). Depois, teceralgumas consideraes sobre tais relaes e seus desdobramentos no campo do tratamento dos bensculturais e da conservao e constituio da memria nos dias de hoje.

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    Apropriao seletiva

    A escrita de uma histria que fosse capaz de reconstituir elementos de identidade nacional eregional, como se sabe, interessou os historiadores do Imprio e da Repblica, trazendo constante-mente tona um conjunto de temas relativos s formas pelas quais se deu a formao de MinasGerais. Em consonncia com esses objetivos, constituram-se, em Minas e no Brasil como um todo,

    centros de coleta e armazenamento de fontes histricas, bem como peridicos voltados publicaode documentos inditos e de investigaes histricas. No mbito nacional, o Instituto Histrico eGeogrfico Brasileiro foi um importante ncleo de guarda e sistematizao documental. Criado em1838, o IHGB promoveria viagens exploratrias pelo pas, pesquisas e coleta de documentos em ar-quivos estrangeiros, preocupando-se em conhecer no apenas a histria, mas tambm a dimenso eas caractersticas do territrio da jovem nao. Nos projetos que desenvolveu estavam implicados osinteresses do Estado Imperial, provedor de at 75% do oramento da instituio. A historiografiaproduzida pelo Instituto possua a marca dessa estreita relao com o Estado e com seu plano deconstituio de uma identidade nacional - um plano de unidade forjado no crisol de trs raas e queno desconsideraria as peculiaridades regionais articuladas em torno de uma concepo de histrianacional.2

    Entre as dcadas de 1850 e 1940, o engendramento das narrativas historiogrficas e o desenvol-vimento de arquivos, museus e institutos de pesquisa foram fenmenos to prximos e articuladosque se faz necessrio questionar em nossos dias em que medida e de que maneira a escrita da histriae as estratgias de seleo e guarda de fontes modificaram-se reciprocamente. Nos primeiros anos daRepblica, a criao do Arquivo Pblico Mineiro e de sua importante revista esteve intimamenteassociada revitalizao de uma histria particular que, focando o local e o regional, almejava resga-tar o peso e o papel de Minas na nascente Federao brasileira. Sua organizao inicial coube a JosPedro Xavier da Veiga, poltico e erudito mineiro que, atravs do esforo de recuperao de fontes e daelaborao das Efemrides Mineiras - trabalho vasto e alentado no qual se destacam as informaessobre o cotidiano da vida administrativa na Capitania e na Provncia -, procurou reunir o material

    necessrio para a escrita da Histria de Minas Gerais.De maneira geral, o surgimento do APM promoveu e acentuou trs tendncias basilares deorganizao e hierarquizao das temticas e das fontes disponveis: o recurso corografia comomeio de reconstituio das histrias locais, indispensveis para que se concretizasse a abordagemregional; o uso da cronologia como estratgia de conformao dos documentos e da narrativahistoriogrfica; e a concesso do privilgio a determinados fundos, inserindo-se a correspondncia eos diplomas oficiais no centro da reflexo historiogrfica.3 A histria de Minas publicada por Diogo deVasconcelos entre 1901 e 1918 aponta, nesse sentido, para o vigor dessas tendncias. Ainda queVasconcelos tenha se proposto a realizar um trabalho de carter geral, indo alm do enfoque dascaractersticas locais, a ampla utilizao dos cdices da Seo Colonial e das Cmaras Municipais foidecisivo na orientao historiogrfica de sua obra. Do mesmo modo, o arranjo cronolgico dos refe-

    ridos cdices contriburam sensivelmente para a valorizao do perodo de formao das Minas. Quandose toma como referncia a quarta edio da Histria Antiga e da Histria Mdia de Minas Gerais,publicada em 1974, observa-se que seu autor dedicou, aproximadamente, 200 pginas aos anos inici-ais dos descobrimentos, 500 ao perodo 1707-36 e menos de 100 ao perodo 1750-846.4

    Certamente a preocupao romntica com o resgate das origens explica, pelo menos em parte,as preferncias temticas e documentais de Diogo de Vasconcelos, embora as perspectivas positivistase cientficas tivessem presena marcante na poca. Mas no se pode negligenciar que, se coleta dosprincipais fundos de manuscritos do Arquivo Pblico Mineiro sucedeu o esforo de organiz-los ecoloc-los disposio dos pesquisadores, a Seo Colonial e, atravs dela, o perodo de ocupao dasMinas, mereceram um cuidado especial que teve continuidade nas dcadas seguintes.

    Entre 1924 e 1933, sob a direo ou os cuidados de Theophilo Feu de Carvalho, a Revista doArquivo Pblico Mineiro tratou de publicar ndices descritivos dos doze primeiros livros da SeoColonial e, j nos anos de 1979 e 1980, divulgou a transcrio completa do cdice 23, que guarda oregistro de alvars, cartas e ordens rgias produzidos durante o governo de D. Loureno de Almeida

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    (1722-32).5 Em 1937, o mesmo peridico editou parte dos acrdos da Cmara Municipal de VilaRica na dcada de 1710. Alm da correspondncia trocada pelas principais autoridades da Capitania edo registro de diplomas oficiais, outras sries, no entanto, mereceram ateno especial nas primeirasdcadas do sculo XX em decorrncia das opes conceituais dos historiadores de ento. O desejo deretraar as linhas do povoamento, de destacar as principais personalidades das diversas vilas e fregue-sias mineiras e de testemunhar a propriedade privada levaram publicao constante das cartas de

    sesmaria coloniais nas pginas da RAPM. Somente aps algumas dcadas elas passaram a ser usadasnuma perspectiva mais propriamente sociolgica preocupada em recuperar a complexidade da estru-tura fundiria, o que coincidiu com a edio, na Revista, de um catlogo completo das sesmariasmineiras em 1988. A valorizao das circunstncias e personalidades locais expressou-se tambmatravs da realizao de inmeros estudos corogrficos e memorialsticos sobre os municpios minei-ros. A publicao de vrias memrias histricas escritas no fim do perodo colonial, por sua vez,tinham a vantagem de resgatar vises de conjunto da evoluo poltica e administrativa da Capitaniade Minas Gerais, introduzindo e explicando, de um ponto de vista letrado e oficial, os motivos de suadecadncia. Outro tema crucial, o da Inconfidncia, acarretou a publicao dosAutos de devassa pelaBiblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 1936. Assim, em linhas gerais, formao, povoamento,revoltas, institucionalizao, corografia, municipalidade, exaltao dos antepassados ilustres, fiscalismo,decadncia e Inconfidncia se tornaram os eixos da historiografia mineira, escorados essencialmentenos registros epistolares e de concesso de terras, em ordens e cartas rgias, na produo memorialsticae no processo contra os inconfidentes de 1788-9.

    Essa apropriao seletiva das fontes disponveis sugere que, se as opes metodolgicas e temticasdos historiadores interferem no arranjo e na descrio de fundos, estes tambm modificam a produ-o historiogrfica e a definio de suas tendncias. Como mostra o caso do Arquivo Pblico Minei-ro, a divulgao de sries documentais especficas, de cdices inteiros e de inventrios analticosconcernentes a este ou aquele fundo em particular tende a instituir ou legitimar modelos e enfoquesparticulares. Mas a trajetria do APM remete tambm a formas ainda mais complexas de vinculao,expressas, por exemplo, na biografia de seu primeiro diretor. Xavier da Veiga enfeixou um conjunto

    de atividades e relaes que no podem ser pensadas isoladamente quando se estuda o tema da pro-duo da memria regional em Minas. Ele pertenceu a uma importante famlia de Campanha, quepretendeu a criao de uma provncia separada no Sul de Minas. Comps um grupo de parentes que,como aconteceu regularmente no Imprio, sabiam conjugar intensamente poltica e prelo. Sobrinhode Evaristo da Veiga, o conhecido redator do Aurora Fluminense, dedicou-se vida pblica, fez-sesenador, criou jornais e tornou-se pioneiro da histria da imprensa em Minas. Sintomaticamente,Xavier da Veiga divulgou no primeiro nmero da RAPMuma memria municipal sobre Campanha,bem como escreveu e publicou, em 1898, A imprensa em Minas Gerais: 1807-1897 . Foi tambm omembro do Partido Conservador que aderiu Repblica em defesa da estabilidade, fundando, res-pectivamente em 1878 e 1889, os jornais A Provncia de Minas e A Ordem8 - dado ainda mais signifi-cativo quando se recorda que, durante todo o sculo XIX, e mesmo depois, os peridicos atuaram

    fortemente na constituio de grupos polticos mais coesos, na formao de mecanismos de discipli-na social e na divulgao e realizao de projetos civilizatrios. Nele encontramos, enfim, a articula-o de instncias e circunscries diversas que envolviam os meios polticos e estatais, a imprensa e oArquivo Pblico Mineiro. A trajetria de Xavier da Veiga, por isso, indica como a elaborao de con-cepes, projetos, memrias e estilos historiogrficos era partilhada muito concretamente em circui-tos ampliados e transversais de sociabilidade.

    Museus

    A histria da apropriao poltica da Inconfidncia Mineira e da heroicizao de Tiradentes

    consiste num bom exemplo da necessidade de que se reflita sobre a importncia de circuitos dessaespcie. Diversos estudiosos tm repisado o uso que no sculo XIX fizeram os liberais mineiros dafigura de Tiradentes com o intuito de legitimar o seu iderio e atacar a imagem de D. Pedro I. Osconflitos simblicos envolvendo ambas as personalidades polarizaram monarquistas e republicanos

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    e, mais tarde, republicanos de linhas diferentes, cada um dos grupos encontrando na Inconfidnciaos ideais com que se identificava. Histria da Conjurao Mineira, a polmica obra escrita em 1873por Joaquim Norberto, um monarquista convicto que destacou a transformao de Tiradentes emfrade , terminou, como se sabe, criando as condies para que a imagem do heri fosse sacralizada e

    associada a Cristo. Assim, traos identificados com uma suposta radicalidade, como o carter popularou plebeu, tenderam, principalmente depois de 1893, a ser substitudos por outros que exaltavam um

    perfil cvico-religioso, o que contribuiria para a lapidagem de uma pedagogia do cidado difundida nasescolas, na construo de monumentos comemorativos e em manifestaes populares. Seja comofor, em 1890 o 21 de abril j era feriado nacional.7

    Os desdobramentos dessa histria se entrelaam com a criao do Arquivo Pblico Mineiro,datada de 1895. Como se sugeriu acima, o perodo republicano em Minas, ao buscar a convergnciaentre a consolidao do imaginrio nacional, a implantao de um projeto civilizatrio e a definioda identidade regional, conferiu memria um papel importante. Xavier da Veiga, na longa efemridesobre a Inconfidncia, valeu-se da obra de Norberto, apropriando dela, no entanto, apenas os eptetosque dignificavam Tiradentes.8 Inseriu-se, portanto, na tradio de autores que procuraram reabilitara figura do alferes. A lei que criou o APM previa, seguindo a forte conotao regionalista das orienta-es republicanas e o ensejo de consolidar o lugar de Minas na Federao, a criao de um museu e acontratao de um naturalista-viajante. A proposta baseava-se na concepo museolgica do sculoXIX, adotada por importantes museus brasileiros e calcada em orientaes etnogrficas e enciclop-dicas. Algum material dessa natureza chegou a ser coletado e armazenado pelo APM, compondo oacervo do atual Museu Mineiro. A crtica dos pressupostos evolucionistas, contudo, acarretou, nadcada de 1920, a crise dessa concepo de museu e o surgimento da proposta de modernizar culti-vando a tradio. Tendo como referncia o projeto do Museu Histrico Nacional do Rio de Janeiro,tais mudanas resgatavam o carter propriamente histrico dos museus, conferindo-lhes o papel deinstrumento de culto da tradio, exaltao dos aspectos morais e patriticos do passado e de salva-

    dor do patrimnio histrico e artstico.9 O governo de Antnio Carlos de Andrada representou essanova orientao ao assumir propsitos inovadores e pretenses modernizantes. Entre 1926 e 1930,

    implementou a reforma do ensino de Francisco Campos, inspirada na Escola Nova, apoiou artistas einaugurou a Pinacoteca do Estado (1928). Tais medidas se prestavam a intentos civilizatrios e peda-ggicos, voltando-se formao dos cidados e construo da nacionalidade.

    Pela mesma poca, os esforos pela reabilitao de Tiradentes continuavam em voga e apareciamno trabalho de Lcio Jos dos Santos,A Inconfidncia Mineira, editado em 1920. Esses dois movimen-tos - a mudana nas concepes museolgicas e a consolidao da imagem cvico-religiosa de Tiradentes- encontraram-se num projeto comum depois da Revoluo de 1930, quando o novo governo, embusca de legitimao, recuperou a suposta proposta industrializante dos inconfidentes e identificou oalferes com a luta contra as oligarquias. O movimento modernista foi de fundamental importnciatanto para a consolidao das novas propostas culturais, quanto para a afirmao do resgate dopatrimnio histrico. Ainda na dcada de 1920, as viagens de Mrio de Andrade e de outros moder-

    nistas a Minas redundaram na tese de que era preciso recuperar a singularidade regional e nacionalpara se alcanar a universalidade. Nesse contexto, a arte barroca e o passado colonial foram inventa-dos como expresso autntica da nacionalidade, desdobrando-se no uso da imaginria sacra comosmbolo do refinamento e do bom gosto. Os arquitetos modernistas, por sua vez, se colocaram comoherdeiros naturais do passado barroco, retomando a tpica da modernizao amparada pelo culto datradio. Essa abordagem romntica e passadista do patrimnio, como se sugeriu acima tornou-seainda mais vigorosa na dcada de 1930, principalmente aps a imposio do Estado Novo. Entre1936-8, Gustavo Capanema, um mineiro que servia como ministro da Educao, fez imprimir aprimeira edio sistemtica dosAutos de Devassa da Inconfidncia Mineira, fonte preciosa descobertapor Norberto. Exatamente nesse mesmo perodo foram criados o Servio do Patrimnio Histrico e

    Artstico Nacional, dirigido inicialmente por Rodrigo Melo Franco de Andrade, o Museu da Inconfi-dncia, em Ouro Preto, e o Museu do Ouro, em Sabar. Capanema tinha estreitas ligaes com osmodernistas e encomendara a Mrio de Andrade o projeto de criao do SPHAN.

    O Museu da Inconfidncia, que como tal passou a funcionar somente em 1944, se tornou poss-

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    vel em decorrncia da conjugao do projeto museolgico modernista com a afirmao da imagemsacralizada da Inconfidncia, fenmeno que antecedeu e sucedeu sua criao. Se essa sacralizaofoi, pelo menos em parte, o resultado de disputas intelectuais, sua popularizao dependeu muito dosmeios de comunicao. Como no podia deixar de ser, Tiradentes e a Inconfidncia comearam aocupar espao na imprensa ainda no sculo XIX, e especialmente com o movimento republicano. Nadcada de 1930 e nas seguintes, os jornais no somente dedicaram-se com certa constncia ao trata-

    mento desses temas, como tambm levaram-nos, atravs de relatos histricos romanceados, a umpblico mais amplo que no tinha acesso historiografia e ao debate erudito. Valeram-se para isso dereferncias religiosas, de recursos estilsticos tpicos dos folhetins, de verses para o pblico infantil eat mesmo de leituras e dramatizaes radiofnicas. Via de regra tais estratgias apareciam associadasa autoridades e a determinados projetos polticos, em especial queles que se impuseram durante oEstado Novo.10 Assim, o Museu da Inconfidncia nasceu do resgate das ossadas dos inconfidentesdegredados e do levantamento de um panteo que pudesse abrig-las. A coleta de peas e de docu-mentos relativos sociedade mineira setecentista, base da criao do espao museolgico da Casa deCmara e Cadeia e do arquivo histrico hoje sediado na Casa do Pilar, deveria sanar o problema daescassez de testemunhos sobre a Conspirao de Vila Rica . O objetivo do SPHAN consistia empromover a identificao [...] das circunstncias sociais que teriam tornado possvel o evento hist-

    rico .11Esse tipo de relao entre o primeiro plano da temtica sacralizada do Museu, representado pelas

    ossadas e pelo panteo, e o pano de fundo que destacaria seu sentido redundou numa exposioorientada fundamentalmente por critrios estticos e organizada segundo a apreciao do decoradorsuo Georges Simoni. O pressuposto de que os objetos e os ambientes expostos constituam essnci-as que falavam por si mesmas perpassava todo o trajeto da exposio, que, terminando no panteo,conferia aos objetos ligados aos personagens da Inconfidncia (como o relgio de Tiradentes) o esta-tuto de relicrio. Ademais, ainda que se levem em conta os limites tcnicos e funcionais enfrentadospelos administradores do Museu da poca, a identificao do material como pano de fundo - termoratificado por seu diretor j na dcada de 1980 para indicar a necessidade de reformas na exposio -certamente contribuiu para que parte expressiva dos objetos de suas colees iniciais, doadas peloBispo de Mariana ou compradas junto ao Instituto Histrico de Ouro Preto, no tivessem registradassuas provenincias.12 Da mesma forma, permaneceram artificiais os vnculos que ligavam o espaomuseolgico e o arquivo histrico.

    O impacto da sacralizao dos vestgios materiais do passado veiculada pelo iderio de defesa dopatrimnio apareceu tambm nas pginas introdutrias que o novo diretor do Arquivo Pblico Mi-neiro escreveu quando do relanamento da Revista em 1937. Ao agradecer sua nomeao ao governa-dor Benedito Valadares e exortar que o peridico voltasse a ser publicado regularmente pois desde1913 havia sido editado apenas em cinco anos esparsos -, Arduino Bolivar definiu o APM como [...]a arca santa, o relicrio imenso onde se guardam os livros do Antigo Testamento da Histria deMinas .13 Lembrou o descompasso entre a precariedade do prdio em que se achava instalado e a

    enorme importncia da instituio, conservadora de um passado histrico

    [...] to magistralmente evocado nas pginas, infelizmente pouco frequentadas, doshistoriogrfos, cronistas, novelistas e poetas, na tela dos nossos pintores, no mrmore e nobronze dos nossos escultores, nacionais e aliengenas, todos atrados e inspirados pelagrandeza e beleza da nossa paisagem e da arquitetura dos nossos monumentos de artereligiosa e profana, espalhados pelas nossas cidades histricas, Ouro Preto, Diamantina,Mariana, Congonhas, Sabar, So Joo Del-Rei, Tiradentes, Caet e outras, - Ouro Preto,sobretudo, a alma parens da nossa civilizao, to bela e justamente cognominada porDiogo de Vasconcelos: a cidade-fortaleza, a cidade-escola, a cidade-templo ...14

    E estimou, por fim, que o governador, em mensagem enviada Assemblia Legislativa, tivessealudido criao de um Museu do Estado onde fossem recolhidos e guardados [...] tantos artefatosesparsos em vrias localidades de Minas [...] , preservando [...] do assalto e da destruio o patrimniorestante e j grandemente desfalcado .15 Assim, no final da dcada de 1930 e durante a de 1940, os

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    circuitos da memria que envolviam os meios polticos e estatais, a imprensa e o APM passaram aincorporar instncias e instituies novas e representativas do novo ideal da mineiridade. Se os mu-seus expunham ao pblico a importncia da Inconfidncia e de seu pano de fundo para a emergn-cia da nao, os espaos artsticos que se constituam, com suas galerias e exposies, destacavam aautenticidade do barroco. O desenvolvimento dos novos valores levou, enfim, elevao de cidadesinteiras categoria de teatro da memria, multiplicando os rgos e os responsveis pela sua preser-

    vao e aprofundando determinadas concepes historiogrficas, acadmicas ou no.Com o tempo, os projetos museolgicos - como o Museu Aberto , desenvolvido em Ouro Preto

    comearam a apresentar-se mais afinados, conscientemente ou no, com o princpio de democra-tizao da memria e do saber. As propostas mais recentes centradas na idia de um museu dofuturo tm procurado conjugar a preocupao em preservar e exibir obras e objetos com a valoriza-o da investigao e da comunicao. Mais do que constiturem depsitos da sacralidade e do mist-rio, caberia aos museus informar de maneira mais vasta possvel, tendo como limites os critrios deconservao e preservao. Nesse sentido, como afirma Jorge Glusberg, o papel desempenhado pelosmeios de comunicao serviria difuso dos acervos dos museus e criao de expectativas de acessodireto s obras, sem a interferncia de intermedirios andinos como os livros e a televiso.16 Pode-sequestionar em que medida a reproduo dessas obras pela imprensa recobriria os originais com umanova aura de sacralidade miditica , mas parece inegvel a contribuio dos meios de comunicaona constituio de identidades em diversos nveis, fomentadas pelo acesso extenso e premente aosmateriais memorveis.17

    Arranjo, descrio e acesso

    Segundo Le Goff, as instituies responsveis pela manuteno e organizao da matria memo-rvel tm no foco de suas preocupaes as articulaes entre o tempo, o espao e o homem.18 Em umaperspectiva mais ampla, pode-se compreender as prprias instituies como instncias da memria,isto , como responsveis por gestos fundadores que resultam da combinao da ao de um grupo

    (os eruditos, homens de toga, funcionrios etc.), com lugares (cartrios, escolas etc.), prticas etcnicas variveis no tempo (a cpia manuscrita, a imprensa, a digitalizao, a classificao etc.).Dessa forma, visto que os prprios arquivos, bibliotecas e museus podem ser entendidos como obje-tos histricos, o espao, o pessoal e a papelada produzida por essas instituies adquirem nova valorao.Como considerou Marc Bloch,

    [...] os documentos no surgem aqui ou acol por artes mgicas. A sua presena ou a suaausncia em determinado fundo de arquivo, em determinada biblioteca, em determinadoterreno, dependem de causas humanas que de maneira alguma escapam anlise, e osproblemas que a sua transmisso levanta, longe de se encontrarem somente ao alcance deexerccios tcnicos, respeitam, eles mesmos, ao mais ntimo da vida do passado, porque

    aquilo que se encontra afinal em jogo no nem mais nem menos do que passagem damemria das coisas atravs de geraes.19

    Se, por um lado, [...] em histria, tudo comea com o gesto de separar, de reunir, de transfor-mar em documentos certos objetos distribudos de outra maneira [...] , essa prpria sistemtica deorganizao, por outro, tem uma relevncia para a histria.20 Tal processo heurstico, que precede oexerccio metdico de transformar objetos, resduos e papis em um ambiente cultural, tem umadimenso temporal relevante para a passagem da memria atravs de geraes e para a prpriacompreenso de mecanismos da operao histrica.

    Ainda que as instituies de ensino tendam a destacar a importncia de trabalhos acadmicos

    e da interpretao de textos, relegando a tcnica e a pesquisa das fontes a um plano secundrio eauxiliar, no h como negar que a histria , essencialmente, uma prtica, uma operao investigativa,como afirma Michel de Certeau. Uma operao que tem variaes no espao e no tempo e que, emfuno das novas necessidades e questes que so colocadas, promove novas leituras de fontes j

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    conhecidas e novas demandas por arquivos e sries documentais at ento intocados. Isso fica evi-dente quando consideradas as mudanas na disciplina e na cincia histrica das ltimas dcadas, quetm exigido a ampliao dos acervos e dos tipos de fontes a serem trabalhados. No Arquivo PblicoMineiro, por exemplo, outras sries documentais, para alm dos cdices encontrados na Seo Colo-nial e nos fundos das Cmaras Municipais, adquiriram especial e renovada relevncia. Esse o casode todo um conjunto de documentos variados e complexos reunidos sob a genrica denominao de

    avulsos ou daqueles que compem a Coleo Casa dos Contos . Da mesma forma, diversos arqui-vos locais, responsveis geralmente pela guarda de registros cartorrios atinentes a regies especfi-cas, vm se tornando cada vez mais importantes e presentes nas pesquisas empreendidas pelos histo-riadores.

    Alm do aumento do nmero de cursos de ps-graduao e da profissionalizao do historiador,a procura por sries documentais e arquivos at ento pouco explorados relaciona-se tambm com asmudanas historiogrficas consolidadas na segunda metade do sculo XX. Sabe-se amplamente que aproliferao de temas e objetos correspondeu diversificao das fontes consultadas. A noo defonte passou a abranger todos os vestgios das aes do homem no tempo, alargando as fronteiras dosdocumentos para alm dos escritos. Ao mesmo tempo, novos procedimentos eruditos desenvolve-ram-se atravs da superao dos limites fixados pelas tradicionais crticas s falsificaes e do resgate

    das condies, dos interesses e das relaes de fora na produo dos documentos.21Uma transformao conceitual e metodolgica em particular contribuiu sobremaneira para a

    fragmentao das fronteiras que tradicionalmente separavam as funes desempenhadas pelos diver-sos tipos de profissionais dedicados ao conhecimento do passado: o alargamento da noo de poder.Em linhas bastante gerais, enquanto o problema do poder permaneceu circunscrito esfera das ins-tituies do Estado, determinados conjuntos de papis e objetos tenderam a ser subutilizados peloshistoriadores, servindo muitas vezes a saberes laudatrios e vagamente enciclopdicos. Por sua vez, aidentificao do poder com o problema da produo social da disciplina, resultado em parte do dilo-go mantido pela historiografia com outras reas do conhecimento, alterou tanto as bases do saberhistrico como as das instituies arquivsticas.

    Hoje, uma histria do poder local no abrange apenas a reconstituio da lgica formal dasinstituies polticas, mas tambm a dinmica microfsica dos dispositivos cotidianos e relacionais decontrole social e as formas de agir sobre o sujeito atuante. Nesse sentido, conjuntos de objetos eambientes inteiros tornaram-se alvo do interesse dos pesquisadores, fenmeno que colocou em xe-que a distino entre arquivo e museu. Em outras palavras, o expressivo alargamento do conceito defonte histrica exigiu que os mesmos questionamentos metodolgicos propostos aos arquivistas fos-sem tambm apresentados aos profissionais que tratam dos acervos museolgicos.22 Assim, se o ar-ranjo e a descrio de papis antigos demandam a investigao das instituies e relaes sociais queos produziram, indispensvel que questes correlatas sobre a provenincia de objetos e ambientessejam ruminadas por historiadores e muselogos. O museu como mera reunio de objetos isolados edescontextualizados, aparentemente portadores de essncias singulares, dificulta o trabalho do histo-

    riador e reproduz vises que empobrecem o entendimento da dinmica histrica.Por outro lado, o relevo alcanado por sries documentais e arquivos at ento pouco exploradostornou premente o debate sobre as condies de acesso s fontes. Os historiadores devem muito dedicao e seriedade de institutos e profissionais responsveis pela guarda de documentos histri-cos. Contudo, boa parte das instituies arquivsticas, como ocorre em outros mbitos da burocraciapblica e privada, padece de limitaes frustrantes. Muitas vezes, sries inteiras permaneceminalcanveis em decorrncia de interdies cujos critrios nem sempre so claros ou justificveis. Aausncia de instrumentos bsicos acarreta o retardamento das pesquisas ou o abandono de fontesriqussimas. Por outro lado, a pouca profissionalizao de certos arquivos deixa o historiador mercde funcionrios ou responsveis que controlam os acervos segundo critrios que vo desde o maisprimrio cime at a restries propriamente ideolgicas. Em alguns casos, alm da falta de funcio-

    nrios ou da privatizao dos fundos pelos responsveis, parece imperar uma regra implcita que podeser descrita parafaseando-se o famoso dito: s autoridades historiogrficas, tudo; ao pesquisador des-conhecido, a lei ou, o que pior, algo que fica aqum da lei, dado que regras mnimas de funciona-mento no so respeitadas.

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    Alm dos cuidados e melhoramentos intrnsecos s instituies arquivsticas, o encaminhamen-to de parte desses problemas tem resultado da conjugao dos esforos empreendidos tanto pelosfuncionrios quanto pelos pesquisadores. Com a ampliao do nmero de fontes e arquivos dispon-veis, o importante trabalho efetuado por investigadores como Feu de Carvalho nas dcadas de 1920 e1930 passou a ser partilhado com professores universitrios que, contando com o auxlio dos rgosde financiamento, tm se preocupado em desenvolver meios de descrio enquanto exploram deter-

    minados fundos. A anexao de instrumentos de pesquisa mais ou menos simples no final de tesesacadmicas tem sido mesmo superada pela elaborao de projetos especficos que almejam descreverde modo complexo os elementos constitutivos de cada uma das peas de uma determinada sriedocumental. Em algumas ocasies, os historiadores participam do prprio arranjo da massa de docu-mentos de um determinado arquivo visto o estado precrio e incipiente em que se encontra. Esseenvolvimento cada vez maior dos pesquisadores na organizao das fontes primrias demanda umconhecimento fundamental sobre a estrutura de arquivos permanentes, pois a soluo de problemascotidianos concernentes disposio das instituies arquivsticas depende, como se disse acima, deuma outra questo essencial: se o princpio crucial do arranjo de fundos e sries documentais consis-te na provenincia, necessrio conhecer mais profundamente a estrutura e o funcionamento dasinstituies que os produziram.

    Caso sejam tomados como exemplo o poder local e os arquivos cartorrios, percebe-se que aindah muito o que fazer. Hoje se conhece algo sobre a estrutura e as funes camarrias e sobre osignificado jurdico de alguns tipos de autos judiciais, como devassas, libelos, testamentos, inventri-os, crditos etc.23 Entretanto, existem ainda lacunas decisivas em relao tanto complexidade funci-onal das prprias cmaras, quanto a nveis tais como o Juizado de rfos, instncia responsvel pelaadministrao de parte dos bens testados, constantemente envolvida em contendas com a Provedoriados Defuntos e Ausentes. O mesmo vale no que se refere aos escrives e tabelies, cujas funes noandamento e no conhecimento dos processos eram mais que essenciais. Quem eram eles do ponto devista social e poltico? Quais suas funes exatamente? Como funcionava a arrematao desses ofciosem Minas? Se havia ofcios comprados ou vitalcios, quais eram eles e como sua privatizao interferia

    na ao da justia? Tomando um outro exemplo dentre inmeros possveis: como eram feitas asexecues? Questes dessa natureza sugerem que a distino entre o papel do arquivista e do histori-ador vem se tornando mais e mais imprecisa na medida em que, por necessidades prticas ou pordesdobramentos metodolgicos, os objetivos de ambos se aproximam e se confundem. Um arquivistaque desconhece o debate historiogrfico em suas linhas gerais corre o risco de produzir formas dearranjo e descrio ingnuas e de ampliar os limites do lixo histrico , privando o historiador demateriais importantes. Mencione-se, por isso, a necessidade de que se acentuem os vnculos entretais profissionais e os cursos de ps-graduao em Histria, o que depende no somente do empenhoindividual de arquivistas dedicados, mas tambm da adoo de polticas de incentivo por parte dasprprias instituies responsveis pela guarda de acervos. Por outro lado, cabe aos departamentos deHistria das universidades incentivarem desde a graduao o estudo dos princpios que norteiam a

    organizao de sries documentais e de arquivos permanentes. Observaes essas que cabem tam-bm s relaes mantidas entre professores universitrios e funcionrios de museus.

    Para alm da troca de informaes entre profissionais das diversas reas mencionadas, ainformtica tem contribudo sensivelmente para o avano das tcnicas de descrio. Inventrios ana-lticos esto sendo confeccionados e disponibilizados em terminais de computadores, permitindo noapenas um acesso mais gil e amplo s informaes, como tambm a formao de bancos de dadosprimrios e o cruzamento de informaes que podem assumir, quase instantaneamente, a forma deestatsticas e quadros demonstrativos. Recursos informticos como o da digitalizao comeam a serpropostos s instituies que tm uma longa histria de restries, viabilizando um melhor acesso sfontes histricas. A virtualizao da memria, contudo, tem uma histria que precede o desenvol-

    vimento dos instrumentos de informtica e que remonta escrita alfabtica e at mesmo aosideogramas, tecnologias intelectuais que conformam ou exteriorizam a atividade mental.24 A impren-sa, por exemplo, pode ser entendida como um procedimento que separa o sujeito do seu saber, ampli-ando a sua durabilidade e o seu alcance espacial. O hipertexto, no entanto, ampliaria ainda mais o

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    raio de transmisso de informao, trazendo ao leitor/autor, por vezes, a possibilidade de modific-lae de edit-la. Se a imprensa, a fotografia e outras inovaes tecnolgicas consistiram em uma verda-deira revoluo no mbito da memria ocidental, como sugere Le Goff, a maleabilidade e o alcance dohipertexto trazem novas questes para a formao das identidades, como bem exemplifica o caso dascomunidades virtuais. A materialidade do papel escrito e as territorialidades nacionais contrastamcom uma dimenso virtual do mundo digital, sem lugar prprio.

    A constituio de uma memria nacional, regional ou local, intimamente associada formaodos museus e arquivos, se depara com novos desafios advindos das formas mais recentes de transmis-so do conhecimento. No campo mais imediato da pesquisa e de dilogo entre a histria, a museologiae a arquivologia, h de se questionar em que medida a reproduo ou a transposio das informaescontidas nas fontes primrias para um outro suporte alterariam ou mesmo limitariam a apropriaodo documento no seu sentido mais amplo, compreendendo aspectos estticos e formais, como foiesboado nas primeiras linhas desse artigo. Nesse sentido, o processo de digitalizao de fontes deveser entendido como reproduo e at mesmo criao de um novo documento e no como sinnimosde substituio ou inacessibilidade aos originais. Em meio s demandas prementes pela formao deidentidades e s angstias e febres modernas, imperativo zelar pelo acesso s fontes e pela democra-tizao da memria social.

    Notas

    1 Para um balano geral do problema, cf. Ulpiano Bezerra de Meneses. Fontes visuais, cultura visual, histria visual. Balanoprovisrio, propostas cautelares.Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 23, n 45, 2003, p. 11-36. O autor, referindo-ses fontes iconogrficas, menciona, por exemplo, a possibilidade de se compreender a arte [...] comoagency, em sua capacida-de de provocar efeitos, produzir e sustentar formas de sociabilidade, tornar empricas as propostas de atuao e organizaodo poder, etc (p. 15). Nesse sentido, o enfoque analtico desloca-se da anlise retrico-conteudista do material iconogrficopara a reconstituio e o estudo da iconosfera .2 Sobre o assunto cf., entre outros, Manoel Luis Salgado Guimares. Nao e Civilizao nos trpicos: o Instituto Histrico eGeogrfico Brasileiro e o projeto de uma Histria Nacional.Estudos Histricos, Rio de Janeiro, n.1, 1988, p.5-27.3 Sobre a importncia da corografia e da cronologia no pensamento de Xavier da Veiga e na organizao do APM, cf. Bruno

    Franco Medeiros & Valdei Lopes de Arajo. A histria de Minas como histria do Brasil: a fundao do Arquivo PblicoMineiro. Revista do Arquivo Pblico Mineiro, ano 43, no prelo.4 Diogo de Vasconcelos. Histria Antiga de Minas Gerais, 4 ed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, 2v.; Histria Mdia de MinasGerais, 4 ed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.5 Mencione-se o fato de Feu de Carvalho, que esteve frente do APM de outubro de 1920 a setembro de 1922, de outubro de1926 a janeiro de 1927 e de maio de 1933 a abril de 1936, ter publicado um importante estudo sobre a Revolta de 1720 em VilaRica. Cf. T. Feu de Carvalho. Ementrio da histria mineira. Filipe dos Santos Freire na sedio de Vila Rica em 1720, BeloHorizonte: Edies Histricas, s.d. Sobre a abordagem de Feu de Carvalho no referido trabalho, cf. Laura de Mello e Souza.

    Teoria e prtica do governo colonial: Dom Pedro de Almeida, conde de Assumar , inO sol e a sombra, So Paulo: Cia. dasLetras, 2006, p. 185-252.6 Cf., sobre a biografia de Xavier da Veiga, a introduo de Edilane Almeida Carneiro e Marta Melgao Neves sEfemridesMineiras (1664-1897), 3 ed., Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1997, 2 v.7 Cf. Jos Murilo de Carvalho. Tiradentes: um heri para a Repblica , in A formao das almas, So Paulo: Cia. das Letras,1990, p. 55-73; e Joo Pinto Furtado. Monumentos , inO manto de Penlope, So Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 31-75.8 Joo PintoFurtado. Op. cit., p. 256.9 Cf. Letcia Julio. Colecionismo Mineiro , in Colecionismo Mineiro, Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura, 2002,p. 19-79.10 Cf. Thas Nvea Fonseca. A Inconfidncia Mineira e Tiradentes vistos pela imprensa: a vitalizao dos mitos (1930-60),Revista Brasileira de Histria, So Paulo, n 44, v. 22, 2002, p. 439-62.11 Como atestou recentemente o atual diretor do Museu da Inconfidncia, ainda hoje sobremaneira imbudo das concepesque costuraram Inconfidncia e mineiridade. Cf. Rui Mouro. O Museu da Inconfidncia , inO Museu da Inconfidncia, SoPaulo: Banco Safra, 1995, p. 6.12 R. Mouro. Dois enfoques sobre a documentao do perodo colonial em Minas Gerais,Anurio do Museu da Inconfidn-cia, Ouro Preto, n VIII, 1990, p. 195-202.13Revista do Arquivo Pblico Mineiro, ano XXV, v. 1, p. II.14 Idem, p. XIV.15 Idem, p. XIX.16

    Cf. Jorge Glusberg. Museus no Futuro. So Paulo: Fundao Memorial da Amrica Latina, 1997. p. 3-4 e 13.17 Como afirma Jacques Le Goff, [...] a memria um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual oucoletiva, cuja busca uma das atividades fundamentais dos indivduos e das sociedades de hoje, na febre e na angstia . Histria e Memria. 2.ed. Campinas: Editora Unicamp, 1996, p.476.18 Idem, p.433.

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    19 Marc Bloch. Uma Introduo histria. So Paulo: Brasiliense, 1981, p.66.20 Michel de Certau.A escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1982. p. 79.21 FONTAINE, Laurence. A atividade notorial. (mimeo) Traduo indita de Beatriz Ricardina Magalhes do texto: L activitnotoriale. Annales, Paris, Mars/Avril, 1993.22 Cf. Antnio Manuel Hespanha. Organizao arquivstica e histria do poder,Vrtice, Lisboa, 2 srie, n. 4, 1988, p. 11-2.23 A ttulo de exemplo, mencionem-se trs trabalhos: Graa Salgado (coord.).Fiscais e meirinhos, 2 ed., Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1985; Helosa Bellotto. Glossrio de tipologia documental luso-brasileira (sculos XVI a XIX). Documentos daCapitania de So Paulo no Arquivo Histrico Ultramarino, Lisboa, 1998, mimeo. Renato Pinto Venncio. Estrutura do Senado

    da Cmara. In: Termo de Mariana: histria e documentao. Mariana: imprensa Universitria da UFOP, 1998, p. 139-41.24 Cf. Pierre Levy. O que o Virtual. So Paulo: Editora 34, 1996.