MEMÓRIA E HISTÓRIA: AS MARCAS DA VIOLÊNCIA

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MEMÓRIA E HISTÓRIA: AS MARCAS DA VIOLÊNCIA Sandra Jatahy Pesavento * Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS [email protected] RESUMO: A partir de algumas representações visuais da guerra (pinturas e fotografias), a autora analisa os processos de destruição/reconstrução da memória coletiva. ABSTRACT: Through of some visual representations of war (paintings and photographs), the author analyses the process of the destruction/reconstruction of the collective memory. PALAVRAS-CHAVE: Memória – Representações da violência – Guerra – Ruína KEYWORDS: Memory – Representations of the violence – War – Ruin A violência é antiga, parece ser mesmo congênita na trajetória do homem sobre a terra, ou mesmo antes, se remontarmos aos mitos ancestrais... Pois o texto sagrado não fala de uma guerra nos céus, entre o Arcanjo São Miguel, o mais forte e fiel a Deus, e Lúcifer, o mais belo anjo – cujo nome assinala “aquele que porta a luz” –, guerra esta que simboliza a vitória do bem sobre o mal? Também a perda do Paraíso, celebrada no poema de Milton, implicou na ocorrência de uma outra violência original, desta vez entre Caim e Abel, marcando a presença do primeiro assassinato e da maldição de Deus ao fratricida: “Vai e sê maldito sobre a * Professora Titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A luta dos anjos. Gravura de Gustave Doré para ilustração da obra O paraíso perdido, do poeta inglês John Milton, na publicação de 1866.

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MEMÓRIA E HISTÓRIA: AS MARCAS DA VIOLÊNCIA

Sandra Jatahy Pesavento* Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS

[email protected]

RESUMO: A partir de algumas representações visuais da guerra (pinturas e fotografias), a autora analisa os processos de destruição/reconstrução da memória coletiva. ABSTRACT: Through of some visual representations of war (paintings and photographs), the author analyses the process of the destruction/reconstruction of the collective memory. PALAVRAS-CHAVE: Memória – Representações da violência – Guerra – Ruína KEYWORDS: Memory – Representations of the violence – War – Ruin

A violência é antiga, parece ser mesmo congênita na trajetória do homem sobre

a terra, ou mesmo antes, se remontarmos

aos mitos ancestrais... Pois o texto

sagrado não fala de uma guerra nos

céus, entre o Arcanjo São Miguel, o

mais forte e fiel a Deus, e Lúcifer, o

mais belo anjo – cujo nome assinala

“aquele que porta a luz” –, guerra esta

que simboliza a vitória do bem sobre o

mal? Também a perda do Paraíso,

celebrada no poema de Milton, implicou

na ocorrência de uma outra violência

original, desta vez entre Caim e Abel,

marcando a presença do primeiro

assassinato e da maldição de Deus ao

fratricida: “Vai e sê maldito sobre a

* Professora Titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A luta dos anjos. Gravura de Gustave Doré para ilustração da obra O paraíso perdido, do poeta

inglês John Milton, na publicação de 1866.

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terra!”.

A tal ponto a violência foi um dado a marcar a trajetória do homem que um dos

quatro cavaleiros do Apocalipse revelados a

São João em Patmos como responsáveis

pelos flagelos que deveriam se abater sobre

a humanidade foi a guerra, personificação

clássica da violência e imortalizada na

célebre gravura de Albrecht Dürer.

Os mitos, bem o sabemos, são

narrativas que revelam e explicam, de

forma cifrada, as verdades sobre a vida e

assim, mesmo estes mitos ancestrais,

atemporais e transhistóricos, falam de

coisas identificáveis na existência dos

homens: a violência jacente nas relações

humanas a marcar a difícil convivência

através do tempo.

Como descendência de Caim, os

homens não deixaram de construir, ao

longo dos séculos, imagens e discursos sobre o fenômeno da violência, forma de

enfrentamento que se revela associada a outros tantos conceitos e práticas, como a

destruição, a morte, o aniquilamento da identidade, individual e coletiva, a intolerância,

a dificuldade de conviver com a diferença, a construção da exclusão social e a prática de

atos cruéis contra populações indefesas. Dos tempos dos mitos ancestrais aos tempos de

hoje, as diferentes facetas do fenômeno são bem conhecidos e presentes a todos,

exibindo-se no cotidiano da vida de todos os dias.

Ora, se as representações fazem parte deste sistema de dizer o mundo, através

de idéias, imagens e práticas, a realidade, como referente necessário para as construções

simbólicas de sentido a que damos o nome de imaginário, não cessou de fornecer

exemplos, visíveis ou discursivos desta violência, sempre renovada.

Gostaríamos, contudo, de enfocar uma das formas de exercício da violência,

dada pela guerra. A partir da guerra, pretendemos analisar certas representações que

resultam desta prática, através das ruínas e pelo efeito que provocam, na

Albrecht Dürer. Os quatro cavaleiros do Apocalipse. c.a. 1497.Veneza, Biblioteca do

Museu Correr.

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destruição/reconstrução da memória coletiva. Assim, imagens da violência trazidas pela

marcha para a guerra e pela escalada da violência, anunciando a tragédia do conflito

mundial são recorrentes ao longo dos anos trinta e extremamente significativas na sua

exemplaridade. Quem por exemplo, deixa de olhar sem emoção O rosto da Guerra de

Salvador Dali ou O anjo do lar, de Max Ernst ou a muito famosa Guernica de Pablo

Picasso?

A unir a todas estas obras clássicas, encontra-se o espectro da tragédia, do

desespero e da violência, engajando os artistas na mesma lógica de representação

pictórica. Era preciso mostrar o horror, expressar o inexpressável. Para o historiador,

tais obras operam como rastros de uma emoção, resgatas pelo olhar destes leitores

privilegiados do real que são os artistas, que nos legam visões transfiguradas da vida,

mas dotadas de sentido.

Sem dúvida que o horror de uma cidade bombardeada ou de um campo de

concentração não pode ser repassado, mas se não fossem as narrativas e as imagens, e

também as vozes, transmitidas desde o passado, como chegar até lá, na tragédia que não

presenciamos e na qual não

fomos atores? Não podemos

esquecer que cada historiador

verdadeiramente acredita na

possibilidade de representar o

passado, animado pelo desejo e

vontade de chegar lá, neste

tempo escoado e que ele

reconfigura pelo discurso, a

partir das marcas de

historicidade deixadas, que ele

interpreta.

Na pintura de Salvador Dali, os signos da morte e do mal comparecem sobre o

fundo do solo árido da Espanha: as caveiras que nas órbitas e na boca repetem ad

infinitum a visão da destruição e as serpentes a lembrar a onipresença das violentas

forças maléficas. O horrendo ser de Max Ernst, como alegoria da moderna barbárie, está

a transformar-se, ser inacabado a sugerir que pode assumir ainda outras aparências, está

a lembrar, pelo seu título, que o inimigo está dentro: da nação, do lar, de cada um.

Salvador Dali. O rosto da guerra, 1940.-1

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Que dizer então de

Guernica, esta tela tantas vezes

vista, analisada e comentada?

Mais uma vez, todos os

elementos do simbólico

comparecem para demonstrar a

impotência diante da brutalidade

da guerra: a mãe com o filho

morto nos braços, qual moderna

pietá, o homem tombado com a

espada quebrada, o clamor aos

céus, aparentemente em vão, um

braço que estende uma luz,

impotente diante da tragédia de uma cidade em chamas, etc, etc. A leitura da imagem

pode prosseguir, a ler cada vez mais detalhes, mas sempre a dizer que a única resposta

encontrada parece ser esta da arte, de expor a violência da guerra, denunciá-la, despertar

a emoção, estilhaçar as formas e os corpos, tal como a vida real se incumbia de fazer.

Max Ernest. O anjo do lar.1937.-1

Pablo Picasso. Guernica.1937.-1

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Mas, para esta reflexão que busca estabelecer conexões entre a memória,

história e violência, selecionamos outro tipo de representação relacionada aos efeitos da

guerra. Trata-se de algumas fotos, que operam como indícios deste processo de

violência acima descrito, também pertencentes à história contemporânea.

Como exemplo de nossa reflexão, partamos desta foto de Kabul, no

Afeganistão, tirada no já longínquo ano de 1996, marca de uma guerra que se faz antiga

e que ainda não acabada, não cessa de renovar-se, tragicamente.

Como toda a representação, a foto guarda este caráter ambíguo: de ser e não, ao

mesmo tempo, a coisa representada. Pelo seu aspecto técnico, a foto é produção de uma

imagem da realidade, ou seja, necessita de que algo ou alguém se coloque na frente da

câmera para que a imagem se produza. Assim, a fotografia apresenta um componente

mimético de ser imagem ou representação de algo, imagem que, uma vez produzida

enquanto foto permite visualizar aquele referente mesmo na sua ausência.

Mas, por outro lado, a fotografia é sempre obra de alguém, o fotógrafo que cria

a imagem, que seleciona o objeto, estuda o ângulo, capta o momento. Além disso, há

que contabilizar aquilo ou aquele que é fotografado, que se dá a ver, que olha a câmara,

que imprime vida, gestos, maneiras, emoções e sensibilidades. E, por último, há o

espectador, pois a imagem é feita para ser vista. Este descobrirá na foto novos detalhes e

Kabul, Afeganistão, 1996 II. 1

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significados, para além daqueles que foram criados pelo seu autor ou pelo personagem

fotografado.

Nossas fotos escolhidas estão marcadas pela exibição das ruínas e pela

intervenção do homem, no sentido de recuperar a memória ameaçada. É justamente sob

este ângulo que gostaríamos de analisá-las: na sua dimensão de ruína, este singular

cronotopo – unidade de espaço e tempo – que desperta a imaginação.

Sendo destroço, resto, caco, pedaço em decomposição de um todo que se

desfaz, a ruína fala, de um modo impressionante, sobre outros tempos, para além do

presente. A ruína fala através da materialidade visível que exibe, mas, sobretudo,

através daquilo que é invisível, mas que é sugerido, imaginado, sonhado ou temido.

Como refere Walter Benjamin,1 a ruína se inscreve sob o signo do trágico e lembra a

condição da história de se realizar como catástrofe, levando a pensar no declínio, no

conflito e na decadência. Antes dele, o Conde de Volney2 já havia estabelecido, no final

do século XVIII, ao contemplar os escombros de Palmira, uma reflexão sobre a

capacidade filosófica das ruínas de provocarem a meditação sobre a ascensão e a queda

dos impérios.

Assim, a ruína contém a virtualidade do declínio e é desta condição que retira

sua força, permitindo sonhar o passado, despertando a memória e provocando a emoção

e as sensibilidades. A ruína é fantasmática, produz emoção, é reserva de sensibilidade e

propicia uma transfiguração temporal.

A primeira seqüência destas fotografias diz respeito à destruição da cidade de

Varsóvia na II Guerra Mundial. As fotos exibidas3 têm maior realce se mostrarmos um

antes – na verdade, um depois dos bombardeios de 1944 e 1945, ano em que a cidade

deixou de existir – e um pós, com a imediata reconstrução da urbe, durando estes

trabalhos cerca de pouco mais de dez anos, a partir de 1945. Duas zonas da cidade

foram particularmente atingidas pelo bombardeio alemão: o centro histórico – a Cidade

Velha –, atingida em 1944 e o Ghetto judeu, arrasado na primeira metade do ano de

1945.

1 BENJAMIN, Walter. Origine du drame barroque allemand. Paris: Flammarion, 1987. 2 VOLNEY, Comte de. Constantin-François Chasseboeuf, 1757-1820. In: ______. Ruines ou

Méditations sur les révolutions des Empires. Paris: Desenne, 1791. 3 As fotos constam das seguintes obras:

ZIELINSKI, Jaroslaw. Warshawa – Zburzona i odbudowana / Warshawa – Destroyed and rebuild. Warshawa: Festina, 2004. ANKA, Grupinska; JAN, Jagielski; PAWEL, Szapro. Le ghetto de Varsovie. El ghetto de Varsovia. Wydawca: Parma Press, 2004.

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Se olharmos a primeira destas fotos, constatamos, em primeiro lugar, a

evidência da destruição, que deixa uma cidade de 1000000 de habitantes, deserta e em

ruínas. Mas a ruína, como foi assinalado, tem esta propriedade simbólica de fazer

imaginar, pela contemplação dos destroços que se dão a ver, a totalidade daquilo que foi

um dia. A ruína é, assim, um espaço que dá a ver o tempo. O presente dá margem a

pensar o passado e também o futuro, na medida em que a contemplação da destruição

autoriza a imaginar que aquelas nações que no momento estão no seu esplendor serão,

no futuro, ruínas também.

Comecemos pela primeira foto, da Praça da Cidade Velha (Rynek Starego

Miasta), verdadeiro coração urbano, casco antigo de todas as sociabilidades da urbe,

desde séculos. A destruição é total, esqueletos de prédios compõem com os cacos do

chão. Tudo tombou, tudo se torna pó e cascalho, como que a reafirmar a sentença de

Hegel de que a ruína atinge o seu limite absoluto ao tornar-se areia: os templos, que

simbolizavam o espírito, devem se destruir para exprimir o movimento do pensamento.4

Por outro lado, não há como deixar de ter em conta que o movimento de

reconstrução da chamada Cidade Velha e que implicou na inserção de Varsóvia na lista

da UNESCO, que indexa as heranças culturais do mundo, foi algo que mobilizou a

população desde o imediato pós-guerra. Representa um esforço de anamnese,

4 Apud LEVECQUE, Jean. L’abécédaire de la philosophie. Paris: Flammarion, 2001, p. 100.

Varsóvia em 1944. Rynek Starego Miasta. Praça da Velha Cidade. Untitled-1

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determinado por uma vontade de lembrar. A cidade em ruínas mostrava dramaticamente

os riscos do esquecimento, pela perda sofrida do seu patrimônio.

A foto atual, mostrando a reconstrução da praça da Cidade Velha, colorida e

animada, freqüentada por

grupos de turistas e também

pelos habitantes, com seus

prédios a exibir os detalhes de

uma diversidade arquitetural

que se harmoniza no entorno

do espaço público central,

choca pelo contraste com a

imagem anterior. O fato das

duas fotos serem,

respectivamente, em preto e

branco e a cores auxilia neste

contraste, fazendo da primeira foto um rastro de morte e da segunda uma marca da vida.

Para a consecução desta reconstrução urbana, fora preciso lembrar, formar uma

corrente de ações e de evocações para reconstruir uma “cidade-memória”. Entendemos

este processo não como um pastiche ou uma amostra do fake, mas como uma ação

social de resposta à violência trazida pela guerra e à perda sofrida. Trata-se de uma

busca das suas marcas de referência, onde ancorar os sentimentos de pertença ao

passado. Logo, este projeto de reconstrução trouxe para a comunidade a positividade

das referências identitárias.

Frente à tragédia do vivido,

opõe-se a tarefa coletiva da

cidade a se reencontrar com

o seu passado.

Outra dupla de

fotos permite visualizar a

violência da destruição e

esforço de reconstrução do

passado, da memória e da

Varsóvia. Reconstrução da Praça da Cidade Velha.-1

Varsóvia. 1944.Cidade Velha. Rua Piwna.-1

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história. A rua Piwna, também na Cidade velha, reduzida a escombros em 1944, só

poderia voltar a ser cenário de uma vida urbana se o esforço coletivo e positivo do

lembrar reerguesse, com os cacos da memória, um novo cenário. Um cenário de teatro,

talvez. Uma rua de fantasia, como se fosse uma volta ao passado. Colorida e bela, mas

reapropriado pela cidade e seus habitantes, animados pela vontade de lembrar.

Outros locais foram duramente atingidos, como uma outra pequena praça, em frente

ao Palácio Real e tendo ao centro a coluna do rei Sigismundo III Wasa. O palácio em

Varsóvia. Reconstrução da Rua Piwna.-1

Varsóvia. 1944.Coluna de Sigismundo e Palácio Real.-1

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questão foi, realmente, reduzido a pó, a coluna quebrada, a devastação sendo quase que

total. Como símbolos da nação, o Palácio e a coluna de Sigismundo foram reerguidos e

totalmente reconstruídos. Não contemplada pela foto, a coluna quebrada jaz à direita do

Palácio, como uma espécie de “ruína-monumento”, a fazer lembrar que este local um

dia foi destruído pela guerra.

Relatos orais, palavras escritas, fotos, pinturas,

pedaços e cacos da cidade que existiu um dia fizeram

destes reconstrutores de Varsóvia os reputados artífices de

uma “cidade–imagem”, calcada no desejo de reencontrar o

passado e possuir uma memória. Logo, nesta reconstrução,

a dimensão do “autêntico” se apaga diante do desejo

manifesto de construir uma representação de parte do

tecido urbano perdido.

Chega a ser patético o resultado de algumas

destas ações de intervenção, como, por exemplo, a visão

Varsóvia. Reconstrução da Coluna de Sigismundo e Palácio Real.-1

Varsóvia. Detalhe interno da Basílica.-1

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dos detalhes que sobraram no interior da catedral, assinalando a presença deste

remanescente em uma parede interna totalmente reconstruída.

Já o Ghetto, arrasado em sua

totalidade – salvo a igreja, esta marca ariana

isolada no território judeu – deu margem a

uma reurbanização, no período socialista, a

mostrar que, mesmo nas reconstruções, o povo

– e o governo, sem dúvida – fazem escolhas e

a memória é, sobretudo, seletiva. Nos anos 50,

no lugar onde havia o Ghetto, foi erguido o bairro

de Muranów, modificando totalmente a paisagem.

O que lembrar, o que esquecer, o que é

incorporado no arquivo de memória como

expressão de um passado partilhado pela

comunidade e que passa a se revestir de

positividade para a história de um povo é também

fruto de escolhas.

Diante do ambiente totalmente outro, transformado pelo tempo, a memória das

vítimas é evocada em um monumento: o monumento

aos heróis do Ghetto, de N. Rappaport e L. Suzin,

criado em 1948 para registro e lembrança do ocorrido,

dialoga, na dramaticidade das formas e gestos de seus

personagens, com outros tantos marcos memoriais do

Holocausto.

Passemos a uma segunda seqüência de fotos,

que permitiria confirmar o poder da ruína de ser um

cronotopo que permite a evasão do pensamento. Trata-

se da foto do bombardeio de Dresden, na Alemanha,

somente um ano depois da destruição de Varsóvia, em

1945. A imagem é patética, trágica e emocionante. A

contemplação dos destroços da cidade alemã remete às

visões polonesas da guerra. Em Dresden, as ruínas haviam despertado a capacidade de

buscar ver o passado na contemplação do presente. Levavam também a pensar, tal como

Ghetto de Varsóvia, 1945.-1

Varsóvia. Reconstrução do Ghetto. Bairro de Muránow.-1

Varsóvia. Monumento. Ghetto

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sugere Benjamin, na realização da

história como catástrofe. E, talvez como

o Conde de Volney, diante da

contemplação dos restos de Palmira, a

cena de Varsóvia em ruínas poderia levar

à reflexão de que aquele que se mostrava

no apogeu, dotado de um poder

destruidor, seria ele também, um dia

ruína.

A estátua em primeiro plano,

situada no topo da catedral, mostra um

panorama de destruição, de abandono, de

desconsolo, diante da tragédia que se

abateu sobre a cidade. A bela Dresden, a

chamada Florença do Elba, dotada de

um passado glorioso, centro da refinada casa reinante dos príncipes de Saxen, se mostra

em escombros. A figura parece uma imagem da desolação, espécie de anjo da história,

com os braços abertos, mas sem as asas, perdidas talvez, com a esperança de paz, a

lamentar o desastre. Foi a vez da Alemanha ser reduzida a cacos, assim como ela

própria tinha destruído, durante

a guerra, outras tantas cidades.

A imagem é forte e

expressiva enquanto repre-

sentação da guerra e da

violência e seguramente tem o

poder imaginário de recompor

tempos e espaços. O centro

histórico, mais uma vez, não

fora poupado, a mostrar o

esqueleto do que fora a cidade.

Mas, neste ano de

2006, Dresden foi elevada à

condição de ser uma das capitais culturais da Europa, a exibir uma cidade reconstruída e

Desden. 1945.Ruínas.-1

Dresden 1945 III.-1

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muito bela, mesmo que a positividade

destas obras, para muitos de seus

cidadãos, não seja consensual. “Não se

deve substituir o que o tempo roubou por

fantasmas reconstituídos”, reclamam

aqueles que queriam conservar as ruínas

como uma espécie de

chaga ou testemunho

do horror da guerra, a relembrar o que chamam de “lado escuro” da

história alemã.

Talvez, tais cidadãos tivessem na mente a imagem de

Berlin, que erigiu as ruínas de sua catedral como um monumento

em memória da guerra, tendo a seu lado erguida a nova igreja, a

estabelecer o contraste entre as

duas edificações e a sugerir uma idéia de fênix para

o renascer da cidade. No coração da Berlin, a ruína

convertida em memorial é bem um exemplo da

função precípua da memória: lembrar, para não

esquecer.

Se a guerra tem o seu lado trágico, a reação

diante do seu saldo pode ser positiva, no sentido

buscar a reconstrução para salvar a memória, a

história, a identidade de um grupo. Diante da

violência bruta, o esforço de retomar a vida, e como

ela, o desejo de um passado, de uma história, de uma

memória, de uma identidade.

Uma esperança, talvez, mas que nem sempre é possível concretizar. Uma

imagem de Bagdá em 2003 mostra o impacto da guerra do Iraque sobre a fachada do

Museu Nacional de Antiguidades: acima, um relevo assírio; abaixo, o buraco aberto

pelo obus. A imagem é, no mínimo, eloqüente. Se pensarmos que lá, nesta região, teve

lugar pioneiro aquilo que se convencionou chamar de civilização – foi o berço da

escrita, da agricultura, da roda – o ato é e bvm si, de extrema barbárie. Temos

Dresden hoje. Ds82m

Dresden reconstruída.-1

Berlin. Ruínas da catedral.-1

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conhecimento dos fatos pela imprensa: o Museu saqueado, a Biblioteca Nacional,

incendiada.

A destruição não se ateve só a estes marcos culturais da cidade, como se sabe.

Perto de Ur, as ruínas do zigurat que atestam o surgimento das cidades na milenar

Suméria e evocam a lendária torre de Babel foram também danificadas, pois a seu lado

se encontra uma base militar iraquiana. A situação é complexa, pois se por um lado o

bombardeio foi norte-americano, por outro os iraquianos constroem seguidamente bases

militares junto a monumentos, o que faz com que estes sejam os primeiros conjuntos a

serem vitimados na explosão da guerra.5

Comentando o horror da guerra contra a cultura, não só de um povo, mas de

toda a humanidade, o historiador Robert Darnton escreveu:

Bibliotecas e museus fornecem o material com que a identidade é constituída. Existem também outras fontes – mitos, cerimônias e as demais manifestações culturais que são estudadas pelos antropólogos. Mas as sociedades complexas passaram por tantas experiências que sua história precisa ser sempre redefinida. Se os documentos forem destruídos, a memória coletiva, o orgulho que consiste nos laços que unem um povo a seus ascendentes, sofre danos. Bibliotecas e museus

5 CRUICKSHANK, Dan. Victimas monumentales. El patrimônio iraquí, entre la guerra y el abandono –

Arquitectura viva (88), Madrid, enero-febrero 2003, p. 35.

Bagdá.2003. Museu Nacional.1

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não são templos de culto aos antepassados, mas têm uma importância decisiva para responder à questão de quem se é a partir do conhecimento de quem se foi. Este tipo de conhecimento tem que ser sempre renovado. Se a possibilidade de substituí-lo for destruída, uma civilização pode ser estrangulada.6

Nesta medida, há dimensões do fenômeno que não tem condições de encontrar

formas positivadas de compensação simbólica das perdas sofridas. Se a reconstrução de

Varsóvia ou de Dresden possibilitou uma ação de resgate de uma memória social

ameaçada, a destruição das bibliotecas e museus implica, talvez, perdas irreparáveis.

Com elas, perdem-se os rastros que possibilitam a escrita da história, o que

entendemos ser, verdadeiramente, uma catástrofe cultural.

6 Darnton, Robert. Nós, os vândalos. Humboldt. (87) Ano 45, 2003. Bonn, Goethe-Institut, p. 34.