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DOUGLAS CAPUTO DE CASTRO MEMÓRIA DE MONTANHA EM AREIA DE PRAIA Subjetivação e Interstícios em Otto Lara Resende PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA Junho de 2013

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DOUGLAS CAPUTO DE CASTRO

MEMÓRIA DE MONTANHA

EM AREIA DE PRAIA

Subjetivação e Interstícios

em Otto Lara Resende

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E

CRÍTICA DA CULTURA

Junho de 2013

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DOUGLAS CAPUTO DE CASTRO

MEMÓRIA DE MONTANHA

EM AREIA DE PRAIA

Subjetivação e Interstícios

em Otto Lara Resende

Dissertação apresentada ao Programa de

Mestrado em Letras da Universidade Federal de

São João del-Rei, como requisito parcial para a

obtenção do título de mestre em Letras.

Área de Concentração: Teoria Literária e

Crítica da Cultura

Linha de Pesquisa: Discurso e Representação Social

Orientador: Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

Junho de 2013

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MEMÓRIA DE MONTANHA EM AREIA DE PRAIA:

SUBJETIVAÇÃO E INTERSTÍCIOS EM OTTO LARA

RESENDE

Banca Examinadora

Guilherme Jorge de Rezende – UFSJ (Orientador)

Tatiana Maria Longo dos Santos e Nogueira Figueiredo – USP (Titular)

Antônio Luiz Assunção – UFSJ (Titular)

Luiz Ademir de Oliveira – UFSJ (Suplente)

Prof. Dr. Cláudio Márcio do Carmo

Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Mestrado em Letras

28 de junho de 2013

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao fomento recebido pelo UFSJ, sem o qual

seria muito difícil realizar o Mestrado.

Em segundo, gostaria de agradecer ao meu orientador, professor Guilherme, pela

paciência e dedicação ao longo de dez anos de contato que extrapolou a academia.

Ao amigo, meus sinceros agradecimentos por tudo que fez por mim.

Agradeço ainda aos professores do curso de Letras e de Jornalismo, os quais

contribuíram sobremaneira para minha formação profissional e pessoal.

À minha família, agradeço também pela paciência com meu estresse durante a

realização do mestrado.

Aos amigos, todos eles, agradeço pelo entendimento da ausência necessária durante

o percurso desse projeto.

Por fim, agradeço a todas as vozes que perpassam a minha quando da escritura desse

trabalho

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar a diluição das identidades de Otto Lara

Resende em fronteiras porosas. A incorporação da cultura do outro gera lugares de

fala que o autor imprime em seu discurso, o que pode legitimar o poder de nomear

ou qualificar determinados recortes sociais a partir do que diz sobre e para eles. Por

isso, afirmo que Otto aglutinou em seu artefato textual um discurso de interseção: o

sotaque regional conviveu harmoniosamente com a pronúncia cosmopolita. Mas ao

analisar como isso se dá, vejo que ocorrem alguns processos de construção da

realidade. Primeiro, a mise-en-scène discursiva do autor produz uma realidade de fato

representada, ou seja, o mundo fenomenológico é apropriado e ressignificado pelo

imaginário de Otto. Segundo, quando aciona esse mecanismo de apropriação e

ressignificação, o cronista o faz em um lugar institucionalizado, isto é, dentro dos

normativos editoriais do jornal Folha de São Paulo. E terceiro, as identidades

construídas por Otto relatam um mundo representado através do deslocamento entre

espaços e tempos distintos. A memória é chamada a cumprir a missão de desconstruir

o passado para reconstruir o presente através do discurso. Esse fato não é gratuito,

pois desconstruir significa uma eterna travessia entre um lugar e outro e a

reconstrução incessante de imagens ofuscadas pelo labirinto da mente. Com isso, o

que é dito sobre o passado não é o passado, mas sua reconstrução por um agente

discursivo. Isso pode gerar um lugar de poder, pois ao usar o campo simbólico como

meio de transmissão dessa realidade de fato representada, Otto não escapa da

atribuição de nomes e adjetivos daquilo que experienciou ao longo da vida. Dessa

forma, esta dissertação observa como o sujeito encontra-se num eterno devir que

recupera do passado as bases para o entendimento e construção da realidade.

Palavras-chave: campo, desconstrução, discurso, poder, simbólico, Otto

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ABSTRACT

This paper aims to analyze Otto Lara Resende’s identities dilution in porous borders.

The incorporation of other cultures generates speech places that the author prints in

his speech, which can legitimate places of power to appoint or declare certain

clippings social from what you say about and for them. Therefore, I say that Otto

coalesced in his artifact textual intersection speech: the regional accent coexisted

harmoniously with cosmopolitan pronunciation. But analyzing how this happens, I

see occurring some processes of construction of reality. First, author’s mise-en-scène

discursive produces a reality in fact represented, in other words, the

phenomenological world is appropriated and reinterpreted by Otto’s imaginary.

Second, when triggers this mechanism of appropriation and reinterpretation, the

chronicler does it institutionalized place, that is, within the Folha de São Paulo

newspaper normative editorial. And third, the identities constructed by Otto reported

a world represented by moving between different spaces and times. Memory is called

to fulfill the mission of deconstruct the past to rebuild the present through of

discourse. This fact is not free, because deconstructing means an eternal journey from

one place to another and incessant reconstruction of overshadowed images by the

labyrinth of the mind. Thus, what is said about the past is not the past, but its

reconstruction by a discursive agent. This can lead to a place of power, because when

using the symbolic field as a means of transmission of this factual reality represented,

Otto does not escape from the naming and adjectives assignment which he

experienced throughout life. Thus, this dissertation observes how the subject is an

eternal becoming who recovers from the past the foundation for the understanding

and construction of reality.

Keywords: field, deconstruction, discourse, power, symbolic, Otto

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ---------------------------------------------------------- 09

Capítulo I

OTTO: “IMÓVEL E SEMOVENTE”

1.1 Infância medieval -------------------------------------------------------

15

1.2 “Juventude tem cura, basta esperar” ---------------------------------- 30

1.3 Um flâneur com sotaque minero --------------------------------------- 43

Capítulo II

PLEASE? UMA CACHAÇA, UM CHOPE E UM SCOTT, UAI!

2.1 Reflexões preambulares ----------------------------------------

58

2.2 “Minas está onde sempre esteve” ---------------------------- 59

2.3 “O mais carioca de todos os mineiros” ---------------------- 78

2.4 Ideologia e poder simbólico no lugar de fala de Otto ----- 101

Capítulo III

IDENTIDADES INTERSTICIAIS: LIMINARIDADE,

ENTRE-LUGAR E DESCONSTRUÇÃO EM OTTO

3.1 Cartografias porosas e espaços desterritorializados no discurso de Otto--- 112

3.2 O “Eu” entre vários lugares e vários tempos: um híbrido errante -------- 128

3.3 Desconstruir para reconstruir: différance e suplemento em Otto -------- 139

CONSIDERAÇÕES FINAIS -----------------------------------------------------

159

REFERÊNCIAS --------------------------------------------------------------------- 162

ANEXOS ------------------------------------------------------------------------------ 166

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“Digo: o real não está na saída

nem na chegada:

ele se dispõe para a gente é

no meio da travessia”. (ROSA, João Guimarães

Grande Sertão: Veredas)

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INTRODUÇÃO

“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta1”. O verso de Mário de Andrade canta a clivagem

que o sujeito da década de 1920 já passava consigo mesmo. Não por acaso a Semana de Arte

Moderna de 1922 selou a desconstrução de paradigmas e ‘antropofagicamente’ devorou iguais e

estranhos. Imediatamente à digestão, o movimento modernista ressignificou o espaço da cultura

em ambientações múltiplas, polifônicas. O processo mimético atravessava o indivíduo e a catarse

era obtida com a produção de peças inesperadas, as quais traziam os vestígios dos artefatos

passados. Com isso, o homem assumia uma posição de ser atravessado por diferentes vozes que

se construíam no “através”, na dimensão do “entre”.

Dimensão que marca o paradoxo da ausência/ presença. Presente em um determinado ponto

cartografado, o sujeito pode deslocar-se e efetivar sua presença em outros espaços e tempos. Ao

ensejar tais deslocamentos, o ser flui com facilidade pelas membranas de fronteiras porosas, as

quais já foram rigidamente demarcadas e cimentadas para dizer não a quem quisesse romper sua

liminaridade. No entanto, a barreira não resistiu muito. Foi uma questão de tempo para que os

sujeitos forçassem a porta e atravessassem livremente os interstícios que os enclausuravam em

identidades fixas no tempo. Com a possibilidade de trânsito, o ser virou uma figura multifocal.

Sua imagem foi construída como no caleidoscópio.

A evidência das rupturas é uma das marcas do cosmopolita, aquele que abre mão de um lugar

fixo para ser um nômade moderno a circular e absorver os traços de diversas culturas. Também

é o caráter do ser exilado. Ao gastar boa parte do seu tempo com as memórias da terra natal,

circula por fluxos de imagens e tempos que são construídos pela memória, pela representação de

sua origem. Não é difícil de perceber que nesse jogo de “travessia” incessante, o ser divida-se

em vários pedaços para se reconstruir de maneira multifocal. Aos seus olhos de vespa, várias

imagens se juntam para edificar um novo mundo rompido em milhares de pedaços.

Um desses seres desconstruídos é Otto de Oliveira Lara Resende (doravante Otto). Nascido dia

1º de maio de 1922 em São João del-Rei, aos 17 anos já era jornalista da tradicional imprensa

mineira. Sua vocação para as letras fez-se desde cedo, quando ainda frequentava a escola primária

1 Disponível em: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/mario-de-andrade/eu-sou-trezentos.php Acesso em:

04/05/2013

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do pai no interior de Minas Gerais. Por meio das aulas com o professor Benone

Guimarães, o menino teve acesso aos clássicos como Machado de Assis. Mas a

cidadezinha do interior não

comportava seu vigor intelectual e ele cumpriu a missão de atravessar a fronteira. Em

1938, aos 16 anos de idade, mudou-se com a família para Belo Horizonte, onde

estudou direito e tornou-se jornalista.

O primeiro trabalho oficial de Otto para a imprensa foi com o texto “Panelinhas

literárias”, no qual defendia aquele que considerava uma “glória”: Alceu Amoroso

Lima, cujo pseudônimo é Tristão de Athayde. Nos rompantes da juventude incurável,

Otto circulava pelos espaços boêmios da jovem Belo Horizonte e no encontro com

amigos como Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino,

Paulo Mendes Campos, o jornalista se fragmentava em trezentos para depois

reconstruir o discurso em uma miríade de vozes que compõe sua formação

intelectual.

Além disso, como vários outros mineiros, Otto tornou-se um ser diaspórico com a

ida para o Rio de Janeiro em 1945. No “encontro marcado” com amigos à beira da

orla carioca, ele jamais abriu mão das imagens de Minas que se formavam em sua

cabeça. No entanto, seu passadismo conviveu bem com as novas identidades que

assumia “à beira do mar aberto”. Descer as Alterosas e flanar pela areia de praia,

como cachoeira que corre para águas salgadas, transformou Otto em sujeito múltiplo,

intersticial. Seu presente, para sempre devassado pelas memórias de infância e

juventude em terras mineiras. Mas o futuro contista e cronista não desistia de seu

itinerário errante. Ganhou o mundo e sua metamorfose identitária legitimou-se nos

flancos, nos nacos de cultura que absorveu por suas andanças.

Isso remete a uma questão crucial, que me debruço a analisar. Como o encontro com

tantas dimensões construíram uma figura fragmentada discursivamente e atravessada

por outras vozes que insistem em assombrar a produção textual do narrador Otto?

Além disso, sinto a necessidade de acrescentar a esse problema mais uma questão

perturbadora: como essas vozes fantasmagóricas podem engendrar locais de poder

que nomeiam e qualificam certos recortes culturais como o mineiro e o carioca? A

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partir desses problemas de pesquisa, empenho-me no trabalho de desvendar as

liminaridades que ecoam das vozes que Otto imprime ao seu espectro textual.

Essas indagações desembocam no objetivo geral desta dissertação: entender se os

mecanismos de deslocamento são capazes de subjetivar o indivíduo, ressignificar a

realidade e ainda gerar estruturas de poder que naturalizem determinadas culturas por

meio do olhar que é lançado por e para elas. Entendo que, no substrato da errância

sem fim de Otto, os vestígios dos vários recortes sociais pelos quais circulou

emergem de sua produção textual como vozes não-latentes, mas presentificadas no

discurso fronteiriço do cronista. Apesar de parecerem exíguos, são esses pedaços de

dimensões diferentes que concorrem para composição discursiva de Otto.

Ainda tenho como objetivos específicos analisar como essas citações indiretas, que

são apropriadas pelo jornalista, podem formar um mosaico discursivo e também

legitimar certas dimensões de poder. Esses espaços são privilegiados, pois ocupam a

centralidade midiática moderna, um dos locus responsáveis pela formação social da

realidade. Ao escrever para um jornal de grande circulação como a Folha de São

Paulo, Otto ocupa um espaço cartográfico que pode nomear e qualificar certos grupos

sociais de forma pública. Com isso, o jornalista agencia determinados lugares de fala

que constroem as representações do mundo segundo o universo imaginado pelo

autor. É nesse sentido que os espaços são ressignificados e seus agentes podem ser

subjetivados segundo cartografias determinadas pelos filtros que passam o mundo

representado institucionalmente. Como ser social, o sujeito institucionalizado acaba

por reproduzir e naturalizar certas construções da realidade, com isso, creio também

que seja fundamental figurar entre meus objetivos a trajetória de vida de Otto, pois é

ela que oferece subsídios para que se encontrem os artifícios que emergem da fala do

narrador para projetar o mundo social.

Para analisar como isso acontece, tomo como objeto as crônicas que Otto produziu

para o jornal Folha de S. Paulo entre maio de 1991 e dezembro de 1992. No período,

o jornalista escreveu 523 crônicas, publicadas no pé da página dois do diário. Otto

titubeou se aceitaria o cargo de articulista diário. Preocupado com o ritmo do jornal,

o jornalista acabou aceitando o convite, mas recusou a folga semanal. Só em agosto

do primeiro ano de Folha de S. Paulo é que passou a tirar um dia descanso, às terças-

feiras. Apesar de ter analisado todas as crônicas, disponíveis no site da Folha de S.

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Paulo, que mantém um acervo com quase a totalidade de suas edições, recortei o

corpus de análise em nove crônicas2, as quais foram selecionadas com base na

presença do léxico referente a Minas Gerais e ao Rio de Janeiro, ou seja, apenas

entraram na dissertação texto com palavras referentes aos estados supracitados e seus

gentílicos.

A escolha de tal objeto justifica-se pela relevância social que assume, ao questionar

a Mineiridade e a Carioquice como algo forjado por uma elite que pretende manter-

se no poder. Além disso, a existência de poucas pesquisas sobre Otto demanda um

novo olhar de relevância acadêmica para a constituição social dele. Isso abre espaço

para que sejam questionados atributos até então tidos como verdadeiros e

inquestionáveis, ao passo que se busca entender como se deu a constituição de

identidades múltiplas produzidas em lugares de fala baseados nas relações de poder,

ancorados em determinados discursos fundadores e em determinadas ideologias.

Minha proposta, portanto, coaduna com a área de concentração do Programa de

Mestrado em Letras da UFSJ ao tomar um objeto simbólico – as crônicas de Otto –

como passível de investigação discursiva e identitária. Além disso, ele se mostra

factível, pois, em pesquisa de Iniciação Científica anterior (2006-2007), realizada em

parceria com o professor Dr. Guilherme Jorge de Rezende, obteve-se um estudo

exploratório que forneceu as bases para a dissertação que ora se apresenta.

Com base nessa pesquisa exploratória sobre a cultura da mineiridade em Otto Lara

Resende, quando da Iniciação Científica (2006-2007), a dissertação irá percorrer um

trajeto que faz dialogar, e também se enfrentar, teorias que sustentam a Mineiridade

e a Carioquice como práticas sociais construídas pelo discurso, pela identidade e pela

ideologia. No que se refere à análise empírica do corpus, optei por espalhá-la ao

longo de toda a dissertação, pois, ao lidar com muitas teorias diferentes, correria o

risco de não conseguir articular categorias de pesquisa que são fundamentais como a

Mineiridade, a Carioquice, a ideologia, a subjetivação, o entre-lugar, a desconstrução

dentre outras.

2 As crônicas estão apresentadas na íntegra, mas recortadas em parágrafos entremeados por minha análise. Para

facilitar a leitura, elas se encontram linearmente expostas na seção de anexos.

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Parte das crônicas que Otto produziu durante sua estada na Folha de S. Paulo foi

compilada por Matinas Suzuki Jr. no livro Bom dia para nascer. Mas, essa seleção,

com 193 textos, é insuficiente para se conhecer a produção jornalística de Otto. Por

isso, por meio do acervo digital disponibilizado pela Folha Online, o primeiro passo

da pesquisa consistiu no download de todas as publicações do cronista naquele jornal,

num total de 523 arquivos.

O segundo passo da pesquisa foi focado na leitura e fichamento da literatura, que se

subdivide da seguinte forma: no capítulo primeiro, traço um perfil de Otto com base

em artigos, biografias, dissertações e ensaios. Também serviram como suporte os

livros em que Otto se revisita enquanto sujeito social, como Três Ottos por Otto Lara

Resende (2005) e O príncipe e o sabiá e outros perfis (1994). Este perfil será

conectado à cultura da Mineiridade e da Carioquice como elemento sócio-histórico

dos dois estados que constituem os discursos de Otto.

Essas teorias serão afrontadas com estudos de identidades, pois acredito que a

Mineiridade e a Carioquice não são algo sólido que não possam ser postos à prova.

Essas identidades são construtos produzidos de forma a preservar o establishment.

Assim, o capítulo segundo tratará da Mineiridade e da Carioquice enquanto

formações subjetivas. Constam do referencial teórico autores como: Althusser (1980)

Gramsci (1987), Bakhtin (2006), Thompson (1995), Bourdieu (1989) e Foucault

(1996).

No capítulo segundo, discuto ainda a formação da Mineiridade e da Carioquice por

meio do discurso. A construção do poder, o acionamento da ideologia e a constituição

da identidade só são possíveis graças à comunicação e aos discursos socialmente

produzidos. Decompor essas camadas que formam o poder simbólico em torno de

Minas Gerais e do Rio de Janeiro será o objetivo deste capítulo.

Já no capítulo terceiro, reflito como os deslocamentos do autor são fundamentais para

compor sua escritura. Ao deslizar pelo tempo e pelo espaço, Otto constrói realidades

imaginárias que não reconhecem fronteiras, mas que se alinhavam nos interstícios

porosos de sua errância. Assim, a dissertação tem uma orientação crítica no sentido

de desconstruir a Mineiridade e a Carioquice como algo naturalizado, e de observá-

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las de uma perspectiva que busca estabelecer lugares de poder ideologicamente

construídos nas crônicas de Otto.

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Capítulo I

OTTO: “IMÓVEL E SEMOVENTE”

1.2 Infância medieval

e os sinos são-joanenses não fossem mudos noturnais, o canto deles entoaria dobres

festivos para comunicar a estreia telúrica daquele que dedicou uma vida inteira à

comunicação. Mas não, o próprio recém-nascido seria capaz de soltar uma frase

mirabolante para pedir silêncio e discrição em torno de sua chegada ao mundo, como o fez mais

tarde, conforme atesta Murilo Melo Filho (apud SANTOS, 2002): “Brincando, dizia que já

nascera cansado, porque viera ao mundo justamente no Dia do Trabalho, 1o de maio de 1922”

(p.88). Otto não era sujeito3 dos badalos, apesar de ter sido sempre muito badalado por onde

passou. Mesmo se quisesse silenciar os repiques que ressoavam seu “eu” público, não

conseguiria ruir torres e campanários que ecoavam e plangiam – misto de um sense of humour

com uma melancolia que lhe eram característicos – o seu gigantesco universo de encenação

como autor e personagem de um roteiro escrito em cifras para serem interpretadas de improviso.

Por isso, não é um pecado afirmar que quem ousa dizer algo sobre Otto, muitas vezes, será

obrigado a parodiar um dito popular, pois “quem conta um Otto, aumenta vários Ottos”. Já pelo

nome, um palíndromo, que se pode ler de trás-pra-frente e vice-versa, é possível prever o indício

de um sujeito que não se encerra em si, mas que transita em várias direções. Antonio Fernando

De Franceschi (2002), ao epigrafar o livro “Três Ottos por Otto Lara Resende”, explica como

o caráter onomástico do escritor e jornalista são-joanense concorreu para a formação de sua

história:

Não por outro motivo o título deste volume alude à multiface de Otto Lara Resende,

ilustrada pelo próprio autor no desenho reproduzido na última capa, com três caras num

mesmo eixo horizontal transformadas no autógrafo de seu nome palíndromo. Apesar de

legível por qualquer lado, esse nome “sem princípio nem fim”, que é a efígie de seu

dono, encerra um mistério (p.IX).

3 Para autores como Pêcheux, sujeito e indivíduo não possuem o mesmo estatuto. Enquanto o primeiro carrega

consigo as marcar da interação social, o segundo estaria, até certo ponto, afastado das influências subjetivas

designadas pelas relações societárias.

S

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O mistério aludido por Franceschi (2002) pode ser expresso em uma pergunta simples, mas com

difícil resolução: Quem é Otto? Profissionalmente, ocupou diversas funções e acreditou carregar

consigo um estigma: “Sempre fui funcionário, que fatalidade” (RESENDE apud

MEDEIROS, 1998, p.42). Um dos primeiros empregos de Otto foi no Serviço do

Imposto Territorial da Secretaria de Finanças de Minas. Mas, ao lado da fatalidade,

havia o homem fadado às Letras Literárias e Jornalísticas. Nelas, Otto trouxe consigo

toda a imaginação, todo enleio que se pode criar em torno de uma figura pública.

Desde aqueles que beiram o anedotário popular, como a famosa peça de Nelson

Rodrigues – “Bonitinha, mas ordinária, ou Otto Lara Resende” – ou as tiradas

melancólicas, como as que afirmam que “o mineiro só é solidário no câncer”. Entre

tantas passagens, cunhadas por Otto ou postas em sua boca, todas concorrem para a

formação de sua figura mítica. Conforme atesta Lêdo Ivo (apud SANTOS, 2002):

Otto era uma aura, um halo, a fugacidade de um resplendor. A reverência com que o

seu nome era mencionado num coquetel ou numa mesa de bar, na redação da Manchete

ou na Câmara dos Deputados, numa sala ministerial ou num táxi, remetia a uma

entidade rara e misteriosa, ao patamar de um mito. Quando Otto Lara Resende entrava

numa redação de jornal, os repórteres aturdidos exclamavam: – “É o Otto.” E os

estagiários mantinham um silêncio respeitoso diante da aparição formidável (p.74.

Grifo do autor).

Otto protagonizou, para sempre, a mise-en-scène daqueles nascidos na Tradicional

Família Mineira (TFM). Mesmo com atuações em outros palcos, nunca deixou de

lançar os olhos para o cenário primeiro, aquele que definiu boa parte dos seus exatos

70 anos de vida. Não por acaso, ao se referir a si mesmo, fazia questão de pronunciar

a importância que as Alterosas tiveram em sua formação de sujeito constituído

socialmente:

Eu nasci no fundo da Idade Média. São João del Rei, no dia primeiro de maio de 1922,

era uma comunidade de alta Idade Média. O peso daquele décor barroco, agravado pela

massa física das igrejas que aprisionam a cidade numa proteção apavorante, imprime

na alma da gente uma marca indelével (RESENDE apud MEDEIROS, 1998, p.19. Grifo

do autor).

Os antepassados mais remotos de Otto foram fazendeiros na microrregião dos

Campos das Vertentes. “(…) A cidadezinha onde nasceu minha avó hoje chama-se

Ritápolis; é de amargar, mas há piores” (1994, p.206). No entanto, seu pai, Antônio

de Lara Resende, embrenhou-se por outras veredas. O velho Lara Resende, órfão aos

nove anos de idade, foi enviado aos 14 para o educandário do Caraça, no Belo Vale,

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região central de Minas Gerias. No imaginário4 popular, esse colégio despertava um

sentimento de medo e repulsa que deixava os jovens estudantes aflitos apenas de

ouvirem o nome do local.

Depois de passar pela domesticação pedagógica, com a rígida formação do que houve

de mais tradicional na educação mineira, o pai de Otto mudou-se, aos 19 anos, para

São João del-Rei. Na nova cidade, fundou sua própria escola: o Instituto Padre

Machado. Apesar de nunca ter sido estudante do temido Caraça, Otto foi marcado

pela influência do colégio austero. Prova disso está no que diz Benício Medeiros

(1998) sobre o futuro jornalista: “Foi entre as tristezas e os livros que cresceu,

portanto, o menino Otto Lara Resende” (p.21).

Já a figura materna de Otto, apesar de ser lembrada como um anjo etéreo, tem menor

proeminência nas biografias sobre o autor. Maria Julieta Oliveira ocupava o papel

que cabia às mulheres dentro da tradição patriarcal mineira. Cuidava dos afazeres

domésticos, das miudezas com serviçais; mas, acima de tudo, era a matriz

reprodutora de ancas largas para o marido. Maria Julieta somou, para os dias atuais,

a incrível marca de 20 filhos, dos quais Otto era o quarto. Desse número hiperbólico

de descendentes, apenas 14 ultrapassaram os dois anos de vida.

Otto nasceu por volta das 4h da manhã, no dia 1º de maio de 1922, ano de fundação

do Partido Comunista, época do movimento Tenentista de direita e da Coluna Prestes

de esquerda, da Semana de Arte Moderna. O meninão veio ao mundo com quatro

quilos e oitocentos gramas. Envolto pelo manto da religiosidade, a reza do terço foi

a primeira coisa que ouviu depois de deixar o útero materno. “D. Elvira Rodrigues,

casada com Pedro Rico, vizinha pegada, assistiu ao parto. Segurava a mão de mamãe,

rezando o terço de Nossa Senhora da Conceição (passa conta por conta e diz: ‘Nossa

Senhora da Conceição, valei-me’. Padre Nosso e Glória ao Padre)” (RESENDE,

2002, p.18).

4 É importante que fique claro que meu pensamento acerca do imaginário coincide com o de Castoriadis, para quem o conceito é empregado “(…) quando queremos falar de alguma coisa ‘inventada’ – quer se trate de uma invenção ‘absoluta’ (uma história imaginada em todas as suas partes), ou de um deslizamento, de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras significações que não suas significações ‘normais’ ou ‘canônicas’” (CASTORIADIS apud ARRUDA, 1989, p.87).

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Ao falar de sua infância, Otto se definia como “(…) um pobre menino do Matola de

São João del-Rei” (2002, p.25), bairro da cidade natal, que hoje é considerado região

central de São João del-Rei. Além da ladainha entoada pela vizinha rezadeira, outros

rituais mineiros marcaram sua vinda ao mundo. O cordão umbilical de Otto foi

enterrado ao pé de uma roseira, para evitar que ratos o devorassem, superstição para

impedir que, quando adulto, a pessoa se tornasse um ladrão.

Como bom filho do catolicismo, Otto deixou de ser pagão após um mês de

nascimento. Foi batizado às 14h de um domingo, na Igreja Nossa Senhora do Pilar

de São João del-Rei. O padrinho, escolhido por Antônio de Lara Resende, era o

escritor católico Jackson de Figueiredo que, por causa da agenda lotada, não pôde

comparecer ao evento.

A infância ao pé de igrejas, pessoas e ruas medievais compuseram o cenário da obra

de Otto, tanto a ficcional quanto a jornalística. As “marcas indeléveis” a que o

jornalista referiu-se anteriormente tiveram seu rascunho traçado no Instituto Padre

Machado. Sob a égide do professor Benone Guimarães, Otto foi introduzido ao

mundo da literatura. Não por acaso, o rigor acadêmico começou pelos cânones

literatos. E logo cedo se encontrou representado nos textos machadianos. “(…) A

descoberta de Machado de Assis, de sua visão cética, marga, de sua ironia, de seu

sense of humour, desvendou um mundo para mim. Aos catorze, quinze anos, eu

talvez fosse mais amargo e mais pessimista do que o Machado (…)” (RESENDE

apud MEDEIROS, 1998, p.23. Grifo do autor).

Vem também dessa época, na década de 1930, a primeira incursão de Otto no

jornalismo. Imediatamente ao artigo de estreia publicado no jornalzinho do Instituto

Padre Machado, do qual Otto havia sido eleito gerente pelos colegas, veio o gosto

amargo dos cortes severos do editor:

Benone não apenas orientava o jornal, como nele também escrevia. E revia, ou

repassava, as colaborações dos alunos com certo rigor purista. Lembro-me de um texto

meu que, depois de passado pelo seu crivo caracense, me pareceu desfigurado. Sofri e

escondi a decepção. Um artiguinho meu saiu com o título de “Sem título” – espécie de

protesto vão contra pequenas restrições aos títulos que me ocorriam. E uma vez, talvez

nesse mesmo número, em vez de gloriosamente assinar o meu nome, recorri ao infame

trocadilho: Oh tu! Sem qualquer maldade ou transferência de culpa, hoje me pergunto

se a idéia5 de assinar assim o meu nome foi minha mesmo… (RESENDE, 1994, p.256).

5 Nas citações diretas que aparecem na dissertação, optei em manter a ortografia antiga. Apenas no meu texto

emprego as novas regras ortográficas.

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Apesar de tolhido pelo austero copidesque6, Otto não enxergou a edição como algo

corrosivo, mas como um estímulo para aquilo que ele considerava um dos maiores

sofrimentos da vida: escrever. Apesar de paradoxal, a assertiva é validada com a

seguinte passagem do aprendiz de jornalista: “(…) Benone louvou minha precisão

vocabular, o que me fez bem. Eu estava convencido de que tinha vindo ao mundo

para escrever, para lutar com as palavras, por mais vã que fosse essa luta. O elogio

me caiu bem” (RESENDE, 1994, p.258).

Além de Benone Guimarães, o primeiro incentivador, outra figura emblemática

deslizava entre as brumas oníricas do jovem que havia se proposto à missão da

escritura: Tristão de Athayde, pseudônimo do escritor católico Alceu Amoroso de

Lima, era uma voz que retumbava como a “glória” da intelligentsia brasileira.

Distante geograficamente do menino acostumado ao sotaque mineiro, o carioca Lima

era posto num pedestal e ocupava o que os estudos culturológicos de Edgar Morin

(1997), mais tarde, chamariam de “Olimpianos”, ou seja, aqueles poucos mortais que,

por sua proeminência social, passaram a desfrutar de um status de deuses moradores

do Olimpo. Pelo menos era assim que Otto considerava o escritor.

Tanto é verdade, que o primeiro contato com Lima avizinha uma ação ambientada

quase num espaço surreal. Otto descreveu a cena como “o encontro com a glória”. O

jovem “asmológico”, neologismo ‘ottolararesendiano’, estava em uma cadeira de

balanço, posta ao lado de uma janela, para se recuperar de uma crise da doença que

lhe seguiu pelo resto da vida. Foi quando, de sua nave mágica, Lima aterrissou à sua

frente. Otto lembra-se do êxtase que lhe causou a aparição do ídolo. “Minha

perplexidade e meu espanto aumentaram até proporções dantescas quando vi a glória

descer de suas altitudes olímpicas para, como qualquer mortal, tomar café com

biscoito de polvilho e pão de queijo” (RESENDE, 1994, p.23).

Mas Otto aprendeu desde novo a adorar outros ídolos. Os santos católicos eram os

seus preferidos. Sabia o nome e o tipo de milagre que ‘prometiam’ cada um deles. O

hagiólogo mirim era um leitor contumaz da Bíblia, a qual era sua companheira nas

intermináveis madrugadas insones até o fim da vida. Além disso, não passava

6 No jornalismo praticado antigamente, copidesque (do inglês copy desk) referia-se à revisão do texto para ser

publicado. O encarregado dessa função observava normas editoriais, gramaticais entre outras coisas.

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domingo sem missa, como prega um dos dez mandamentos entregues por Deus a

Moisés, segundo a tradição cristã. Como discutirei, posteriormente, o dogmatismo

católico exerceu forte influência no sujeito discursivo analisado nesta dissertação.

Vários dos escritos de Otto abordam o tema da religiosidade. No entanto, o caráter

dogmático do artefato textual do cronista é perpassado por um sincretismo dos

hábitos sacros e profanos. Ao mesmo tempo em que carrega a cruz da ortodoxia

católica, o jornalista brinca com o hagiológio em momentos de tensão. Por ora, não

vou me estender neste assunto, pois, como disse no parágrafo supracitado, abordarei

a religiosidade como elemento da chamada subcultura da Mineiridade. Agora,

interessa-me apenas vislumbrar a importância que o catolicismo teve na vida de Otto.

Tal característica vai ser fundamental para entender o seu posicionamento ao longo

de sua obra cronística.

Para referendar o que acabei de argumentar, cito uma resposta de Otto em uma

entrevista que concedeu a Paulo Mendes Campos, nos idos de 19757. Feita por meio

de carta, outra paixão de Otto. O jornalista que virou fonte tenta esquivar-se repetindo

a pergunta do entrevistador. Mas acaba por se revelar uma espécie de missionário

dos preceitos religiosos:

(…) Quem é OLR? Batizado, católico sem muita indagação, pouco prático, como dizia

o Mário de Andrade, individualista, temeroso e temente, sentimental e meninamente,

ledor de vida de santo, comovível por todo ato de bondade, de doação, de solidariedade,

cheio de fantasias sobre a vida que devia ser e não é (RESENDE, 1994, p.298).

O final da citação acima, novamente, demonstra um Otto paradoxal. Sempre inquieto

com questões terrenas e metafísicas8, trazia a tradição do catolicismo mineiro

apegado a um asco e criticismo às carolas e beatos que lançavam incensos sulfurosos

a respeito da Palavra. Em outra entrevista, desta vez concedida ao repórter Leo Gilson

Ribeiro, publicada no Jornal da Tarde, dia 31 de janeiro de 1936, e posteriormente

reproduzida em livro, é em tom amargo que Otto se refere à experiência pueril de sua

infância quase monástica. “(…) A Minas da minha infância foi sufocantemente

religiosa. A montanha estava ensopada de religiosidade, impregnada de peitismo, de

7O material reproduzido aqui se encontra disponível no acervo legado por Otto ao Instituto Moreira Salles, com

sede em São Paulo. No entanto, vários destes documentos estão disseminados em livros que tratam da vida do jornalista. 8 Utilizo o termo em seu sentido mais prosaico como algo que não está a serviço dos nossos sentidos físicos. Por

enquanto, não interessa a discussão filosófica em torno do tema.

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fideísmo, de cristianismo – bem e mal interpretado, genuíno e falso, de bom teor e

farisaico” (RESENDE, 2002, p.71). Apesar de bom católico, Otto tinha suas

ressalvas contra a ala mais conservadora da Igreja. Já funcionário de O Diário, teria

esbravejado, junto a Hélio Pellegrino, contra a visita do arcebispo de Belo Horizonte

à redação: “Morra dom Antônio dos Santos Cabral” (MEDEIROS, 1998, p.41).

Esse halo, ora acompanhado de tridentes, como acentuou Otto, está ligado

eminentemente ao tradicionalismo e rigor da família mineira. Ser um católico

praticante não só representava uma demonstração pública de fé, mas era sintoma de

pertença ao establishment das mais altas hierarquias sociais. No entanto, para receber

a credencial desse nicho, não bastava ajoelhar-se devotamente diante da nave e do

sacerdote falador de latim. Era preciso acumular posses para integrar a confraria dos

homens bons.

Em seu único romance, O Braço Direito9, que colegas de Otto brincam ter-se

transformado em O Braço Esquerdo, devido às infinitas modificações que o autor

fez no enredo, ao longo de toda sua vida, a história retrata bem o catolicismo do autor.

Ao citar Antonio Callado, Guilherme Jorge de Rezende afirma que “(…) O Braço

Direito, um negro hino à arte, é o livro mais religioso da literatura brasileira, o nosso

‘maior romance católico, apostólico, romano” (CALLADO apud REZENDE, 2001,

p.90). Não por acaso, no interior de suas páginas, é claro o modo seccionado pelo

qual se dividia o interior da igreja. A certa altura da obra, o protagonista do romance,

nomeado uma única vez, na última página do livro, sente a amargura e a culpa por

ter posto os pobres do Asilo da Misericórdia, local que tomava conta, à frente do altar

mor. Laurindo Soares Flores é repreendido com um olhar de desagravo do sacerdote

e, rapidamente, entende que sua atitude havia representado um insulto aos confrades

com lugares privilegiados na casa de Deus. Bastou isso para a personagem, que

apresenta traços de neurose, punir-se como quem carrega a pesada cruz da culpa de

ter nascido do pecado original encenado voluptuosamente por Adão e Eva.

9 O livro foi reescrito cinco vezes, durante 30 anos. Otto tinha compulsão pela forma perfeita. Por isso não conseguiu acabar a obra em vida. Coube a Ana Miranda lançar o livro em 1993, a partir de orientações deixadas pelo escritor.

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Mas a infância são-joanense de Otto excedia a demonstração pública de fé e status.

Era na esfera íntima que a Tradicional Família Mineira se consumava por excelência.

Ao escrever um dos vários perfis que fez do poeta Carlos Drummond de Andrade,

Otto desvenda mistérios de alcova identificadores da legitimação do modus operandi

que ditava as regras de postura na hierarquia patriarcal das Alterosas:

O pai, que morreu em 1931, (…) era o chefe genuíno de uma família mineira dos velhos

tempos: severo, orgulhoso, autoritário, fechado em silêncios impenetráveis, corajoso,

viril. Em casa ou fora de casa, impunha respeito e distância – temor reverencial que é o

halo marcante dessa espécie de pater familias que, em Minas, freqüentemente projeta a

sua presença na vida da cidade e se transforma no coronel, chefe de autoridade

incontrastável (o velho Andrade foi com alguma repugnância vereador de Itabira). Dono

da Fazenda do Pontal e de outras propriedades, era bem um exemplar da sociedade

agrária que sucedeu, no solo pedregoso, o esgotamento das Minas.

A mãe, que morreu em 1948, ocupava na constelação familiar o lugar que compete às

donas de casa na austera sociedade mineira: sensível, tímida, consumia-se nos trabalhos

domésticos, com a ajuda de criados e agregados, entre os quais sobrevive, transfigurada

pelo lirismo do poeta, a figura de sua babá preta siá Maria (RESENDE, 1994, p.27).

O universo infantil ottolararesendiano não se distingue muito do drummondiano.

Talvez repouse aí o que psicanalistas chamam de mecanismos de identificação e

projeção. Enquanto o primeiro remete à ideia de se ver no outro, o segundo acrescenta

a noção de uma mise-en-scène tal qual a performada pelo ídolo. E não é um exagero

dizer que Drummond foi um dos mestres para Otto, pois foi justamente o itabirano

um dos protagonistas das incontáveis histórias sobre a primeira geração de poetas

mineiros, além de um dos desbravadores do Movimento Modernista em Belo

Horizonte.

Foi por meio dessa criação, que oscilava entre a rígida educação recebida no colégio

do pai e o desbravamento do universo através das leituras precoces, que Otto

construiu seus fragmentos identitários. No entanto, ressalto que o ambiente

doméstico e suas memórias preservadas em relevo foram seminais para a formação

do locutor10, descolado de sua origem geográfica e temporal, mas conectado a ela

incessantemente pelo fio das reminiscências que, como palmeiras e sabiás saudosos

de sua terra, não deixavam Minas sair do lugar em que ela sempre esteve.

10 Não emprego esse termo filiando-me aos conceitos de diferentes correntes de estudos da liguagem. Utilizo-o como

sinônimo do sujeito que diz alguém que não ele. Além disso, tomo locutor como sinônimo de enunciador,

desvinculando-me do quadro de posições de sujeitos proposto por Charaudeau ou das definições de Ducrot.

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A análise da crônica “Nossa rica virtude”, publicada dia 09 de abril de 1992 na Folha

de S. Paulo, é um exemplo de como o passadismo mineiro exerce forte influência

sobre o autor:

NOSSA RICA VIRTUDE

RIO DE JANEIRO, 09/04/1992—Não sei se você é do tempo em que

pobre passava na porta de sua casa e, bem-educado, tocava a

campainha. Você, ou alguém por você, atendia. Com uma lata na mão, o

pobre pedia um resto de comida, pelo amor de Deus. Você dava ou não

dava, segundo tivesse comida e disposição. Se dava, punha na lata o

sobejo do dia. O pobre, reverente, lhe agradecia. E louvava o seu bom

coração. Deus lhe pague e lhe dê em dobro. Amém, dizia você.

O início do primeiro parágrafo evidencia um estilo peculiar das crônicas, que Otto

apropria-se muito bem: os escritos quase dialogais. O enunciador interpela o

interlocutor convidando-o a participar da história narrada. Apesar de não vir expresso

um ‘eu’ marcado pelo uso da primeira pessoa verbal, o efeito de sentido produzido é

o posicionamento desse locutor que conta algo sobre a personagem Otto.

Disso resultam dois lugares de fala inscritos no texto. O primeiro é ocupado por

aquele que diz para alguém alguma coisa. Nesse caso, é o sujeito que escreve a partir

de um local e de uma temporalidade bem demarcados, ou seja, um locutor lotado no

Rio de Janeiro, dia 09 de abril de 1992. No entanto, a voz que perpassa o locutor está

localizada em outro espaço e em outra temporalidade, constituindo o segundo

posicionamento, o da personagem Otto.

O processo resultante desse deslocamento é que outro sujeito, que não o locucional,

é dito por aquele inscrito no presente. No entanto, a enunciação deste outro ‘eu’

requer uma desconstrução do momento de escrita para que o enunciador possa se

reconstruir na presença localizada no passado. É por meio da memória que ele

(re)cria a ambientação que é um dos motes centrais da narrativa, ou seja, há um

processo de desconstrução do presente para construir outra personagem distinta

daquela que interpela o leitor.

Sustento tal argumento por meio dos vocábulos “tempo” e “casa”. Eles são os

responsáveis pela criação dessa esfera mítica que une o passado ao presente e que,

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juntos, constroem um todo significativo. Isso encontra ressonância em toda a ação

narrada imediatamente após o léxico supracitado. É no espaço doméstico da infância

que Otto se posiciona para contar algo que pode não mais fazer parte do cotidiano do

enunciador, outra característica da crônica. Isso porque, como vem inscrito no início

do parágrafo, o locutor não é categórico ao afirmar que os interlocutores vêm do

mesmo tempo que aquele acionado por ele enquanto personagem da narrativa.

Nesse momento, a descrição é evocada como elemento criador das experiências

vividas por outro Otto, o não-cronista. O pobre chegava à casa, pedia comida e era

recebido com a devida cordialidade e hospitalidade que a presença da memória

permite ao locutor construir. O andrajo recebia o “sobejo do dia” e agradecia com o

que tinha a oferecer: a glória do Senhor. Como já disse, as marcas da experiência

infantil de Otto são sobras fartas que nutrem sua “lata” diária de inspiração. Não é

sem motivo que a benção do pobre é destacada na narrativa. O efeito de sentido

produzido aqui é o da religiosidade laudatória, pela qual “o pobre menino do Matola”

foi moldado socialmente. Fato ratificado no parágrafo seguinte da crônica:

Era um rito civilizado. A gente até conhecia o pobre de vista e de nome.

Freguês pontual, procurava não incomodar. Passava entre uma refeição

e outra. Se eram dois ou três, tratavam de se entender entre eles. O

pobre vinha uniformizado de pobre. Tinha cara de pobre, cabelo de

pobre, barba de pobre. Olhar de pobre. Uns olhos humildes que se

voltavam para baixo. Um leve brilho só lhe era permitido quando

pronunciava o santo nome de Deus.

Se, no primeiro parágrafo da crônica Nossa Rica Virtude, o locutor interpela o leitor

sem usar nenhum marcador linguístico que denuncie explicitamente seu ‘eu’

localizado na presença do passado, aqui ele evoca a figura de Otto por meio do dêitico

“a gente”, equivalente coloquial da primeira pessoa do plural ‘nós’. Essa inclusão na

ação narrativa, mais uma vez, vem marcada pelo caráter da religiosidade. Retomo o

enunciado “rito civilizado” como elemento que reitera o enredo cristão do qual Otto

foi personagem. Assim como em missas católicas há o ofertório de símbolos da

cultura cristã, alimentar o pobre seguia um protocolo, praticamente institucional,

como o das celebrações religiosas.

O locutor, deslocado em outro ‘eu’ do passado, narra a passagem por meio do caráter

eucarístico com o qual Otto foi acostumado na infância. O ‘freguês’, que podia ser

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cristão, cumpria a missão religiosa de chegar no horário devido. Sem afetação, como

devem ser os ritos, os desprovidos de alimento terreno não causavam alvoroço diante

da porta de casa, que também pode ser identificada como um lugar de respeito, o

altar. Apesar de o cronista relatar a falta de primor estético dos pobres, que é um dos

apanágios já atribuídos aos mineiros por alguns estudiosos da área11, eles se

apresentavam como se estivessem trajados com roupa para ir às missas dominicais.

Chegavam todos “uniformizados”.

A presença do uniforme alça dois elementos importantes para entender o

deslocamento do enunciador de volta ao tempo pueril. O primeiro acentua o caráter

ritualístico da cena. Os pobres eram uniformizados e não andrajos fantasiados. A

caracterização respeitosa é enumerada pela descrição do figurino dos pedintes:

cabelo, barba, olhar, tudo autêntico. Mas é justamente aí que reside o segundo aspecto

do deslocamento do locutor. Ao se valer do tempo pretérito para construir sua

narrativa, ele cria uma linha divisória e produz o efeito de sentido que o pobre

contemporâneo ao ‘eu’ que escreve não possui mais o aspecto reverencial que tinha

antigamente em relação às famílias abastardas.

Sem me arriscar a um psicologismo infundado, não posso me furtar à segregação

econômica transcrita acima. Na soleira da porta, o pobre é um sujeito respeitado, mas

que nunca é nomeado. Na realidade, mais parece um cão com olhar triste a abanar a

calda por algumas migalhas. Trata-se de um processo de zoomorfismo que se opõe

ao antropomorfismo, já há muito estudado no livro “Vidas Secas” de Graciliano

Ramos.

Além da animalização do pobre, aponto a discriminação do pária social travestida

pela cordialidade e hospitalidade mineira. Sustento essa hipótese a partir do elitismo

no qual Otto cresceu. Citado por Marcel Henrique Ângelo (2005), John Wirth dedica

especial atenção ao processo de construção da imagem da família em Minas Gerais,

a partir das posses que detinha:

Explica o historiador que a crença dos mandatários de Minas numa realidade local

satisfatória “era mais do que um prazer político ou o gosto jornalístico pela hipérbole.

11 Abordarei a questão da Mineiridade no capítulo seguinte.

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A freqüência com que esse tema aparece nas memórias e na literatura ficcional mostram

ter sido uma marca do regionalismo mineiro” (WIRTH apud ÂNGELO, p. 36).

O excerto supracitado permite-me defender o argumento de que a submissão

respeitosa dos pobres com “olhos humildes que se voltavam para baixo” funciona

como índice da institucionalização doutrinária da elite societária da infância de Otto.

Apesar de não poder afirmar a extinção desse pobre sacramentado e desse elitismo

da família das Alterosas, a volta ao passado funciona como elemento diferenciador

do pedinte contemporâneo.

Como de pé diante de um coronel ou do padre prestes a ofertar a hóstia, o alimento

divino, o brilho no olhar só aparecia reverencialmente em tom de agradecimento ao

alimento telúrico oferecido pelo morador rico da casa. Esse ritual é alinhavado

imediatamente ao parágrafo seguinte da crônica:

As crianças da casa conheciam cada um dos que estendiam a mão à

caridade pública. Ou familiar. Um ou outro pobre era meio tantã.

Engrolava palavras, podia cheirar mal e vestir andrajos que

desconheciam água e sabão. Um tipo assim aceitava roupa velha. Daí a

uns dias voltava nos trinques. Melhorava o visual. Às crianças se

recomendava cuidado. Caridade, sim. Mas nada de intimidade. O pobre

podia estar doente. A pobreza em si não era contagiosa, ao contrário da

riqueza. Mas doença de pobre era um horror.

As crianças, das quais Otto fazia parte, já que se denunciou por meio do dêitico “a

gente”, também atuam na construção do enredo ritualístico e elitista da cena. Podem

ser comparadas aos coroinhas que ajudavam o padre, nesse caso, o dono da casa, a

dividir o pão com quem era desprovido dele. A caridade prosseguia com a doação de

roupas para aquele que não tinha o que vestir.

No entanto, a beneficência parava por aí. Os postos hierárquicos deviam ser

respeitados. “Às crianças se recomendava cuidado”, pois caridade não devia ser

confundida com intimidade. Tal elemento desvela o aspecto hierático e conservador

da infância de Otto e ratifica a diferenciação em castas nutridas tenazmente pela

sociedade mineira. O sujeito das Alterosas é hospitaleiro, mas, ao mesmo tempo, é o

taciturno, o desconfiado que demarca seu território e não permite a proximidade

íntima do forasteiro.

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Há, no parágrafo acima, as marcas mais evidentes da elitização, à qual se deu o

processo de assujeitamento do jovem em vias de formação. Ele aprendeu a manter o

devido distanciamento do pobre. O pobre é o leproso que não pode ser tocado. E é

de forma escancarada que isso é enunciado no texto – “doença de pobre era um

horror”, apesar da pobreza não ser contagiosa.

No entanto, quando se trata do processo de enriquecimento, é por meio de uma ironia

fina que o locutor afirma o desejo por um patrimônio vultoso. Se pobreza não é

transmitida como doença, a riqueza demandava a proximidade com os mais

abastados da sociedade, pois era por meio do contato direto com o vírus de uma

economia exitosa que também se alcançavam os postos favorecidos da sociedade.

No parágrafo seguinte da crônica, o enunciador denuncia o desnivelamento da

sociedade. Se em Graciliano Ramos, a “Cachorra Baleia” tem nome e chega a sonhar

com perdizes caindo do céu diretamente para seu deleite gastronômico e os dois

filhos de Fabiano, protagonista da trama, não são nomeados, em Otto, as diferenças

sociais servem para caracterizar as personagens que participam da crônica ora em

análise:

Quando o pobre não trazia a sua própria lata, um desmazelo, a família

dispunha de uma vasilha para a emergência. Podia ser um prato

rachado, ou de folha-de-flandres. Nem o cãozinho nem o gato podiam

comer nessa vasilha. Bicho de estimação é delicado. Pega doença à toa.

Se o pobre tinha uma úlcera, ou um defeito físico evidente e feio, tinha

o cuidado de não o exibir. Nunca ninguém lhe perguntava se doía.

Doesse ou não, isto era lá com ele.

O enleio narrado pelo locutor deslocado no passado reforça a construção pitoresca

do pobre. A posição de sujeito atribuída ao pedinte por Otto marca a desfiguração do

mendicante e constrói uma identidade negativada para pessoa que bate à porta e

solicita um prato de comida. O ethos12 engendrado é o do desmazelado, do sujo, do

andrajo portador de doenças mágicas do medievo. Mais do que isso, o mendigo é o

kafkiano zoomórfico que recebe os restos em vasilhas exclusivas para “emergência”,

quase médica, do quadro de infecção social que ameaça a segurança da família nobre.

12 Utilizo o termo no sentido de “modo de ser”, desvinculado, portanto, da abordagem de Maingueneau.

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Vislumbro tal caracterização no tratamento que recebem os animais domésticos da

Infância de Otto. A sucata oferecida como prato ao pobre é vetor de doenças de alta

periculosidade. Os bichos estimados não podem compartilhar do recipiente, pois são

posicionados como bebês suscetíveis às máculas de todos os tipos que podiam conter

na “vasilha” em que se colocavam os restos.

A antítese gerada entre o rico e o pobre revela a posição elitista do locutor localizado

na presença passada, mas que trouxe para o ‘eu’ presente as marcas da educação que

recebeu enquanto criança. Chego a essa conclusão com o fecho do parágrafo, pois ao

pobre não era permitido exibir as chagas acumuladas por meio do nivelamento social

ao qual estava confinado. A hospitalidade parava no prato de comida. O resto não

cabia à caridade familiar, a qual se distanciava o máximo possível de um Gregor

Samsa metamorfoseado em barata suja que insistia em invadir o espaço sagrado da

família.

No último parágrafo da crônica, Otto alça um locutor irônico e prevalece a posição

de sujeito elitista que susteve ao longo do texto:

Era um tempo em que se respeitava a intimidade do pobre, mesmo sem

estar garantida pela Constituição. As crianças bem-educadas não

perguntavam por que o pobre era pobre. Nem por que não tinha casa

pra morar. Ou comida pra comer. Curiosidade tinha limite. Se o pobre

cheirasse a álcool, aí dele. Há de ver que lhe deram dinheiro. Perdia

ponto e até a comida, se logo não se corrigisse. Vício, não, de forma

nenhuma. Bem-comportado, o pobre abrilhantava o escrínio de nossas

virtudes.

O respeito ao pobre era uma lei. As crianças eram rigidamente educadas por meio de

uma cultura recatada. Como se costumava dizer em Minas, bastava um olhar rígido

do pater familias para conter os rompantes pueris dos mais afoitos. Daí o tom

respeitoso com quem quer que fosse. Mas, se a curiosidade tinha limite, a

investigação da vida social era alvo de um verdadeiro voyeurismo. Prova disso está

no fato do repúdio ao alcoolismo do pedinte. A rigidez da TFM já mantinha reservas

com o pobre só pelo fato de ser pobre, maior era a exclusão quando aquele se

entregava aos prazeres terrenos. A domesticação dos vícios era o que garantia o

sustento pela “mão caridosa” que lhe entregava a vasilha. Por isso, era preciso

corrigir-se, amestrar-se.

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A ironia com que me refiro à “mão caridosa” é marcada pela posição de sujeito alçada

no final da crônica. Isso porque, além de “bem-comportado”, o pobre era a escada

que “abrilhantava” o cofre de virtudes da família das Alterosas. A subjetivação de

Otto é algo mais complexo que discutirei no próximo capítulo. Mas, antes, sinalizo

o fato de que sua formação infantil atravessou os anos e registra marcas impagáveis

em seu discurso.

O afã pelo trânsito contínuo entre o presente e a presença no passado, por meio da

memória, foi, sem dúvida, um dos temas centrais da escrita de Otto. Não por acaso,

Medeiros (1998) acentua que:

Os seus livros são produto dessa vertente sombria de sua personalidade. É neles que se

exibe por dentro. O universo temático de Otto é o interior de Minas da sua infância,

povoado de tédio, de culpa e de cânticos à sombra e à luz de centenárias igrejas. Retratou

com graça, humanidade e economia de recursos o pedaço de um Brasil mítico onde os

personagens transitam entre a mentalidade de chã e a transcendência dourada do barroco

(p.15).

A constatação de tal evidência vem marcada no livro de contos “Boca do Inferno” e

em seu único romance, “O braço direito”. Em ambas as obras, Otto desvela um

universo sombrio em torno de jovens que são desenhados como adultos

malevolentes, capazes de atitudes que não cabem ao estereótipo angelical que é

atribuído à tenra idade. Seja pelo fato de matar um gato só pelo prazer, como acontece

em um conto de “Boca do Inferno”, ou pela presença constante em brigas e

dissimulações que só poderiam ser atribuídas a homens feitos, como as narradas por

Laurindo Soares Flores em “O braço direito”; o universo pueril que vem à tona na

obra de Otto ratifica o seu próprio mundo aprisionado entre montanhas, rituais

católicos e a tradição da família patriarcal de Minas Gerais. Na passagem seguinte,

apesar do uso da terceira pessoa, Otto revela muito de si ainda na época em que viveu

em São João del-Rei:

Em seu vocabulário, há uma palavra insistindo em todas as páginas, malbaratando a boa

ordem alfabética: a palavra – infância. Convêm, porém, prevenir que dela deve ser

retirada toda a possível ingestão de aurora sem nuvens, iluminada em céu de

tranqüilidade alva. A infância, temporariamente submersa no descontrole caótico da

adolescência habita o homem jovem e lhe apresenta nas mãos pequenas as grandes

chaves da câmara escura que só a custo ousa devassar.

(…)

(…) No entanto, uma indisfarçável aurora se insinua por trás da nebulosa cinzenta.

Todos os acidentes são postos de lado e as forças se disciplinam num único sentido,

onde a infância se redime e a maturidade se explica (RESENDE, 2002, p.10-11).

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O trecho supracitado é o algoritmo-chave que resolve a conflituosa relação que

atormenta as memórias do locutor, ao se transportar para o ‘eu’ vivido ainda na

primeira idade, um dos momentos de maior perturbação que vazam das memórias de

Otto. Não por acaso, a metamorfose para idade adulta vem-lhe arrematada por uma

de suas famosas frases, a qual nomeia a seção seguinte desta dissertação.

1.2 “Juventude tem cura, basta esperar”

Se o remédio para a juventude é esperar o tempo passar, o antídoto para Otto demorou

bastante para fazer efeito. Junto da família, mudou-se para Belo Horizonte (BH), na

Rua Alagoas, em 1938, aos 16 anos, quando o pai do futuro cronista transferiu o

Instituto Padre Machado para a pacata capital Mineira. Pacata apenas na rotina

citadina, pois para Otto e seu grupo de amigos jornalistas e poetas, a cidade, fundada

em 12 de dezembro de 1897, fervilhava em ‘inferninhos’ do centro boêmio.

Numa época em que escritores e jornalistas vestiam a toga como pré-requisito para a

escritura, Otto foi para BH com a ideia de se tornar advogado. Mas os tribunais que

esperava enfrentar eram outros: os das letras, sejam em que gênero fosse. E o face a

face com o júri composto por um vocábulo vastíssimo não foi nada fácil. Prova disso

é que uma das frases que imortalizaram o frasista imortal foi pronunciada em tom de

desabafo: “escrever é de amargar” (RESENDE, 2002, p.51).

No entanto, as amizades que formou e cultivou ao longo de toda sua vida foram

fundamentais para adocicar seu gênio beletrista. Com Paulo Mendes Campos, a

história era antiga. Vinha da escola católica de São João del-Rei. Na adolescência,

Campos apresentou o uísque para o amigo. Além da paixão pela bebida escocesa, os

dois eram viciados em basquete. Os amigos ainda namoraram a mesma garota, sem

que nenhum dos dois soubesse. “Em Belo Horizonte, Otto e Paulinho ficaram mais

próximos ainda. Freqüentavam juntos um curso de inglês perto da Praça da

Liberdade, que lhes abriria cancha para decifrar, à noite, pelo rádio, apesar da estática

insuportável, o noticiário da BBC de Londres” (MEDEIROS, 1998, p.38). E a

parceria não parou nisso. “(…) [I]nventávamos pseudônimos transparentes como

Otto Mendes e Paulo Lara, pequeno monstro de duas cabeças e quatro mãos”

(RESENDE, 1994, p.207). Assim, Paulinho, como era carinhosamente chamado por

Otto, transformou-se numa espécie de “alter Otto” do cronista.

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Outro da roda que integrou a geração belo-horizontina de Otto também vem dos

tempos da infância. Mas o autor de “O Encontro Marcado” só adentraria realmente

o universo ottolararesendiano na juventude. No entanto, como quase tudo na vida de

Otto beirou o acaso, vem do próprio punho do cronista o primeiro encontro

(des)marcado com Fernando Sabino:

(…) No ano seguinte [1932] fui a Belo Horizonte e, na rua Sergipe, na associação de

escoteiros Fernão Dias, encontrei um menino esperto que queria passar choque em todo

mundo. Tinha um fio elétrico solto no salão e ele me chamou para lhe dar a mão. Não

dei, que não sou bobo. Se tivesse dado, tinha levado um choque e todo mundo ria de

mim. Isto tem cinqüenta anos, o que quer dizer que esse menino está completando

sessenta anos no próximo dia 12 de outubro: Dia da Descoberta da América, de Nossa

Senhora Aparecida e Dia da Criança. Pouco importa: Fernando Sabino é agora um

sexagenário. Hesitei muito se devia contar, mas a esta hora já é público e notório. Um

certo pudor me diz para calar. Depois vão dizer que é patota. Ou panelinha, como se

dizia quando nós começamos a escrever. Mas afinal cinqüenta anos de amizade não são

assim de se dar com o pé. Fernando nasceu empelicado. Tudo que ele faz dá certo. É o

trapalhão mais organizado e mais eficiente que conheço. Com aquele ar avoado, é

danado de jeitoso. Nestes sessenta anos, só não conseguiu me dar o tal choque. Mas

temos nos dado as mãos incessantemente. (RESENDE, 1994, p.254).

O último a se juntar ao trio foi o psicanalista Hélio Pellegrino. No entanto, na leitura

que Humberto Werneck (1992) faz do livro “O encontro marcado”, de Sabino, eram

três os personagens principais do grupo. Por ser mais novo e por não seguir a carreira

das letras, o médico, morto em 1988, estava mais distante. Mas o quarteto que

compôs a geração belo-horizontina de 1940 ficou famoso e recebeu vários nomes.

Dois dos principais saíram da cabeça de Otto: “Os adolescentes definitivos” e “Os

quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”. O grupo também foi chamado de

“vintanistas” por Mário de Andrade, referência à precocidade literária da turma que

deixou Minas Gerais para se aventurar no Rio de Janeiro.

Antes dessa geração, contudo, o filão de poetas que ganhou proeminência na capital

mineira foi puxado pelo itabirano Carlos Drummond de Andrade no início dos anos

1920. Apesar de separados pelo tempo, os grupos de diferentes idades assumiram

uma cumplicidade que movimentou BH e tornou a cidade um celeiro de escritores

que protagonizaram cenas de nonsense:

Belo Horizonte, cidade de traçado geométrico, povoada de árvores, ladeiras e tranqüilos

funcionários públicos, a rigor só se distinguia das cidades do interior pela sua falta de

caráter, pela ausência daquele “sortilégio das cidades mortas de Minas, que são as

cidades mais vivas de Minas”. Seria fácil escandalizá-la? Os mais afoitos, além das

farras ingênuas do Cabaré da Olympia, aventuravam-se pela noite boêmia em

rapaziadas que o anedotário da época guardou até os nossos dias (e muitas, depois,

seriam macaqueadas pela minha geração, na década de 40): trocar o número das casas,

arrancar as placas de dentistas, médicos e advogados afixadas, como era hábito, no

portão ou na porta da rua, subir pelo arco do viaduto pela estrada de ferro, em busca de

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uma vertigem que um descuido poderia transformar em acidente fatal, quase suicídio,

atear fogo na casa das namoradas rebeldes para depois, bombeiros voluntários, ajudar a

apagá-lo, tomar carraspanas homéricas que o silêncio frio das madrugadas engolia e

sepultava na indiferença, com um ou outro incidente policial… Eram, no fundo, uns

bons rapazes, filhos de famílias, na tentativa mais ou menos vã de dar vazão a uma

juventude inconformada com o estilo compassado e sisudo da vida mineira, com o

famoso “senso grave da ordem” de nossa imperturbável província. A cidade íntima e

acolhedora podia, por isso mesmo, mansamente inspirar os versos de Alguma Poesia13:

“Debaixo de cada árvore faço minha cama/ em cada ramo dependuro meu paletó”

(RESENDE, 1994, p.34).

Apesar de modorrenta, a nova cidade de Otto permitiu que o adolescente estreasse,

de fato, no jornalismo. Nos anos de 1930, abrir e fechar jornal na provinciana BH era

algo corriqueiro. Nessa época, dois periódicos disputavam a preferência do público.

De um lado o Estado de Minas, que já se assegurava como “grande jornal dos

mineiros”; de outro, a Folha de Minas, oposicionista que perdurou por três décadas.

Mas, como abrir um jornal não era tarefa das mais difíceis, em 1935, apareceu O

Diário, lançado pela “Boa Imprensa S.A.”, que em pouco tempo sustentaria o título

de “maior jornal católico da América Latina” (WERNECK, 1992, p.96), já que por

trás da empresa encontrava-se a arquidiocese da capital mineira. O Diário resistiu até

a década de 1970.

Com 18 anos, Otto estreou como profissional no jornalismo. Começou em O Diário,

no qual seu pai era diretor-gerente. O futuro cronista costumava brincar com seu

início de carreira: “Entrei no jornalismo exatamente como cachorro entra na igreja:

porque achei a porta aberta” (RESENDE apud MEDEIROS, 1998, p.45). Seu

primeiro artigo, em 1940, foi intitulado “Panelinhas Literárias”. Baseado em notícias

vindas de jornais cariocas, Otto entrou em defesa da “glória”, ou seja, do seu primeiro

ídolo infantil, Alceu Amoroso Lima. “(…) estudante em Belo Horizonte,

experimentei a emoção de publicar o primeiro artigo na imprensa. Minha estréia se

deu com uma tentativa pífia de defender Tristão de Athayde contra ataques que lhe

tinha feito certa publicação literária” (RESENDE, 1994, p.23). Eduardo Frieiro,

citado por Werneck (1992), afirma que os patrões de O Diário – com o autoconferido

“o maior jornal católico da América Latina” – “só dão indulgências e absolvições”

(p.50), já que eram módicos os salários pagos aos colaboradores. No entanto,

respeitando a lei máxima do capitalismo, era preciso continuar.

13 Livro de Carlos Drummond de Andrade.

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E a voz do menino são-joanense perpassava com tamanha força o discurso do Otto

belo-horizontino que, quando o estudante de direito foi a uma palestra de Oswald de

Andrade não se conteve às indiretas proferidas contra Alceu. Levantou-se no meio

do público, subiu em uma cadeira e esbravejou em defesa da “glória”. A palestra

virou uma cena de quiprocó, com ataques vindos do palco e do público e com uma

possível simulação de desmaio da esposa de Andrade. Otto se lembra do desfecho da

contenda: “(…) Só mais tarde pude entender como aquele bafafá todo agradara ao

supostamente enfurecido Oswald de Andrade, que me convidou, como seu aguerrido

adversário, para um jantar regado a bons vinhos e excelentes piadas” (RESENDE,

1994, p.24).

Já em O Diário, Otto ‘reexperienciou’ as inseguranças do foca14 dos tempos do jornal

do colégio. Nem mesmo conseguia passar por jornalista. João Etienne Filho, um dos

principais articuladores do periódico de estreia de Otto chegou a designar ao rapaz

as funções de contínuo. O “(…) sujeito magro, pálido, cara meio esverdeada”,

segundo Etienne, realmente entrou para o jornalismo como cachorro entra em igreja.

“Sem saber que se tratava de um filho do diretor-gerente do jornal, pediu-lhe que

fosse entregar em casa de Guilhermino Cesar uns exemplares da revista literária

Mensagem, da qual era secretário” (WERNECK, 1992, p.100).

Apesar das peripécias com os amigos, dos ensinamentos dos dinossauros literatos, a

experiência juvenil em BH limitava a personalidade cosmopolita de Otto. Por isso,

ao referir-se à eleição de Juscelino Kubitschek para o cargo majoritário na capital

mineira, descreveu a cidade a partir de uma paráfrase poética de Drummond. BH era,

para Otto, o misto de cidade velha com traços modernos apenas no artificialismo

arquitetônico que lhe impuseram:

Em ritmo de carro de bois, à sombra maternal e perene das montanhas, a família mineira

coçava as perebas, dormitava a sesta e dependurava em cada árvore o seu paletó, tal

qual está no Poeta [Carlos Drummond de Andrade], que por sua vez vinha também da

remotíssima geração vinte anos mais velha do que nós. Há muito esgotadas betas

grupiaras, Minas respirava ainda o ar fino e azul de seu recatado e tuberculoso

horizonte: Belo Horizonte, velha cidade! moderna apenas nos brilhos vidrilhos do

“Noturno” andradino” (RESENDE, 1994, p.73).

O “recato e tuberculoso horizonte” é uma das lembranças mais fortes que ficou na

cabeça de Otto. Assinalo tal assertiva por meio da análise da crônica “Infelizcidade”,

14 Jargão jornalístico que designa jornalistas inexperientes.

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publicada pelo cronista na Folha de S. Paulo, dia seis de junho de 1992, em que Otto

mantém um “diálogo” constante com Carlos Drummond de Andrade:

INFELIZICIDADE

RIO DE JANEIRO, 06/06/1992 – Freguesia de Nossa Senhora da Boa

Viagem do Curral del Rei está situada em campos amenos, na extensa

planície de uma serra onde manam imensas fontes de cristalinas e

saborosas águas. A atmosfera é salutar. O clima da região é temperado.

Está circundada de pedras e outro materiais que se podem fazer

soberbos edifícios. A natureza criou este lugar para uma famosa e linda

cidade. Abra aspas lá em cima e feche-as por favor.

O título da crônica é um trocadilho que alça uma posição antitética em relação ao

primeiro parágrafo. Nele, parece ouvir-se a voz do locutor, o qual se apropria de um

discurso indireto como seu e produz um efeito de sentido laudatório em torno da

descrição de BH, então Curral del Rei. Bastante adjetivado, o excerto ressalta os

valores naturais do local, propícios à construção de uma “famosa e linda cidade”.

No entanto, a apropriação é dissolvida na última oração do parágrafo. Isso porque o

locutor revela não ser o autor original do discurso, pois solicita ao leitor da crônica

que coloque aspas no texto. Tal indício revela que o locutor pode não fazer coro com

a descrição elaborada em torno da futura BH, já que chega a clamar, “por favor”, o

uso dos sinais gráficos que atribuem a autoria do discurso a outrem.

No parágrafo seguinte, o cronista explica o porquê do discurso indireto e a

necessidade do leitor, por ele próprio, atuar como co-realizador do texto:

Isto é um trecho de uma carta do Padre Francisco de Paula Arantes,

escrita em 1829. Foi citado pela Mônica de Azevedo Meyer, que

coordenou em Belo Horizonte o recente 5º Seminário Nacional sobre

Universidade e Meio Ambiente. Pois veja só: nesse pedaço do paraíso,

em 1897, era instalada a capital de Minas. Na virada do século, em

1900, a aprazível cidade tinha 13.472 habitantes. 55.563, em 1920. Só

em 1940 iria chegar aos 200 mil. Sem nenhum medo de ser feliz.

Logo no início o “eu” locucional atribui o trecho descritivo, cunhado em 1829, ao

Padre Francisco de Paula Arantes. Por citar algo já citado por Mônica Azevedo

Meyer, em um seminário universitário realizado em BH, o locutor opta pelo não uso

das aspas. Isso porque, na linguagem jornalística, termos metodológicos da academia

como ‘apud’ não são permitidos.

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Feitas as ressalvas sobre citação textual, o locutor se posiciona diante do crescimento

da cidade. Aquilo que ele chama de “pedaço do paraíso” existiu, mas, em 1897, data

de fundação da capital mineira. Depois disso, enumera o crescimento populacional

da cidade. No entanto, é com uma fina ironia que o cronista celebra os 200 mil

habitantes que a cidade alcançou em 1940. Seu último enunciado – “Sem medo de

ser feliz” – é alinhavado a outro parágrafo que gera o sentido de insatisfação com o

aumento da populacional belo-horizontino por parte da personagem Otto e não do

locutor:

Agora você imagine o susto do pobre do padre Arantes, se

desembarcasse hoje naquele sítio. Bom profeta até que ele foi. Mas não

podia imaginar que o bicho homem fosse capaz de degradar uma

cidade até o ponto a que chegou. Triste Horizonte. Sim, é o nome do

poema de Carlos Drummond de Andrade. A BH dele era uma província

saudável, de carnes leves pesseguíneas. Um remanso muito manso, que

nada tinha a ver com a brutal BH de hoje.

A insatisfação que cito em minha análise vem marcada logo no início do parágrafo,

com o susto que o padre levaria com a dimensão cosmopolita que a cidade adquiriu

com o passar do tempo, muito diferente do sítio descrito pelo religioso nos idos de

1829. Neste ponto da crônica, apenas, é que o posicionamento de reprovação ao

crescimento desordenado é enunciado por Otto.

Ele acusa o homem de degradar a paisagem natural e, com um tom saudosista e

lamuriante, inverte o nome da cidade para “Triste Horizonte”15, mas o faz por meio

da apropriação de uma poesia de Drummond. As três linhas finais do excerto são uma

reprodução do poema do itabirano. Com isso, afirmo que a voz do locutor é

subjetivada pela do poeta de Itabira, o qual se recusou a voltar a Minas e acusava a

cobiça que desfaz pedras em dinheiro.

O discurso do locutor se mistura a outras vozes que concorrem para a construção do

lugar de fala de Otto em relação à cidade. A polifonia é ouvida nitidamente no trecho

abaixo:

15 Poesia em prosa de Carlos Drummond de Andrade publicada em 1976. Nela, o poeta itabirano trava um diálogo

consigo e explica sua decisão de não retornar à capital mineira. O texto encontra-se disponível em:

http://guayaberamineira.blogspot.com.br/2009/05/triste-horizonte-carlos-drummond-de.html Acesso em:

01/11/2012.

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Os parnasianos, Bilac à frente, chamavam BH de cidade-jardim. Em

1924, no seu famoso “Noturno”, Mário de Andrade cantava os poros

abertos da cidade, que aspiravam com delícia o ar da terra elevada.

Posso dizer que ainda era assim a BH do meu tempo. Bando

peripatético de jovens, fruíamos inocentes, ou não tanto: a alegria da

noite e a ausência de males na jovialidade infantil do friozinho.

Em primeiro lugar, o locutor evoca autores do parnasianismo, movimento cultural do

século XIX encabeçado por Olavo Bilac, para nomear a “cidade-jardim”. Com isso,

ele é perpassado por interlocutores e só assim pode celebrar a “cidade-jardim”,

experienciada um século antes de sua escritura. Novamente, para reiterar o tom

pesado duma BH contemporânea à crônica, o locutor volta ao passado e vale-se do

poema, escrito em 1924 por Mário de Andrade, que constrói um discurso com

valência positiva sobre a capital mineira. Quanto à posição de Otto, vale a sua

insatisfação: “(…) Belo Horizonte era chamada Cidade Jardim, imagine como

estávamos longe do câncer de hoje” (RESENDE, 2002, p.90). Para referendar o que

o próprio cronista pensa sobre a cidade na qual morou, ele precisa acionar outra

personagem: um Otto da presença passada que permite ao locutor enunciar o ritmo

urbano do local. Apesar das considerações resumidas que tece sobre sua passagem

por BH, elas dão um pouco da dimensão laudatória e reminiscente que Otto nutre em

relação ao passado na capital mineira.

Por meio da primeira pessoa do discurso e verbos flexionados no passado, o locutor

desconstrói o ‘eu’ presente e reconstrói o ‘eu’ do passado na BH de seu tempo. Essa

viagem cria uma oposição com o presente, pois naquela época era possível aprender

passeando pelas ruas da cidade, a qual possuía ainda uma inocência não abalada pela

modernização. Até o ambiente noturno, que poderia conter males, era infantilizado e

a voz pretérita informa que as sensações da noite, o entorpecente do corpo era o frio

característico das Minas Gerais.

Entre as névoas das montanhas Alterosas, que segue a cartilha aristotélica do

Humanismo, que se aprende passeando por cenários bucólicos, aparece boa parte

daquilo que os forasteiros chamam de mistério de Minas. Um exemplo disso é

Orlando de Carvalho que, a todo custo, tenta entender a alma mineira:

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Quem são esses mineiros misteriosos, que discutem os clássicos na rua, como os gregos

na sua cidade? Esses mineiros diplomáticos e desconfiados – que sabem que não se

controla a palavra, depois de proferida – falam pouco, só o necessário e o necessário

dentro do possível – esses mineiros são um mistério para o Brasil. Leram os clássicos e

aprenderam a lição – que neles está – de que o princípio da democracia é a virtude

humilde do povo. São personalidades que se bastam, que não viajaram nunca para o

exterior (sic), como Emílio Moura, ou mal atravessaram a fronteira na velhice, como

Milton Campos. Nem por isso deixaram de ser cidadãos universais, refletindo as

inquietações e aspirações da humanidade de seu tempo e que, no fim da vida, escorrem

sabedoria, como o Sena do poema de Drummond” (CARVALHO apud RESENDE,

1994, p.176).

Esses cidadãos universais, porém, nunca perderam o sotaque mineiro. Carregam

consigo imagens do passado que compõem boa parte de suas obras. Otto é um

exemplo nítido desse sujeito do mundo que vez e outra pronuncia, como um lorde

britânico, o cantado “uai” que posiciona suas origens, conforme acentua Medeiros

(1998): “(…) A este quadro bucólico, pintado pelo Otto adulto e temperado (…) se

mesclava, no entanto, o choque surdo de invisíveis conflitos. Tal dicotomia não

deixou de ser útil. Alimentou texto e subtexto de várias gerações de escritores

mineiros (p.35)”.

Assim, mesmo que o passado seja construído por meio de um quadro na parede e que

o presente tenha borrões e uma sensação de não pertencimento, é esta diferenciação

entre os vários Ottos que enche sua obra de tons coloridos e não permite a tonalidade

monocromática que pode aparecer em discursos que execram a contemporaneidade

e só veem cores no que se foi, no que está registrado no cárcere de uma memória

arquitetada para mostrar apenas as belezas paralisadas em instantâneos registros

fotográficos amarelecidos pelo tempo.

No entanto, por mais pessimista que seja o discurso, o locutor sinaliza que não foi

ele que estacionou no tempo, mas o Otto da juventude. As mudanças trazidas por

uma série de fatores alteram as formas, as percepções de contato com o mundo. Prova

disso é que o locutor aciona a primeira pessoa do plural e se insere como um dos

personagens responsáveis pela nova ordem mundial. Com isso, ao mesmo tempo em

que Otto se posiciona no passado, o “eu” cronístico expia as transformações da esfera

pública que Otto chama de “câncer”.

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Outro dia eu estava em Los Angeles e vi o que foi o pavoroso quebra-

quebra. Todo mundo começou na mesma hora a discutir – o que fazer?

Que fizemos de nossa cidade? Perguntavam-se, perplexos, mil e um

scholars. Muito mais do que lá, é o caso também de repetirmos nós a

indagação. Aqui juntamos à miséria um monte de horrores. A urbs

inviável. Monstruoso ajuntamento, úlceras à mostra. No Rio, até o mar,

incansável lavadeira, está podendo dizer que BH não tem nem um [?]16

uma menina violentada, coitadinha.

Por mais desproporcional que seja a comparação entre Los Angeles e BH, a analogia

é apenas pano de fundo para que Otto cobre a si e aos outros, através do locutor, as

mudanças negativas de BH. À “urbs inviável” foi acrescentada a “miséria [e] um

monte de horror”. Imediatamente à percepção de “úlceras” que causam enjoo à

presença do passado, Otto confessa, por meio do locutor, sua responsabilidade pelo

sentimento de não-pertença ao “admirável mundo novo” que, abruptamente,

descortina-se à sua frente:

(…) Mudei, mudamos. E não mudei nada. O mundo é que mudou pra burro. Aquela

história que você [Paulo Mendes Campos] conhece melhor do que eu. Parece que de

repente, tendo eu fechado os olhos, tiraram o cenário, mudaram a peça. Eu tenho de

rebolar para não ficar ridículo, anacrônico, cruzado medieval. No fundo, estou mais

perto do meu avô do que dos meus filhos, culturalmente falando, e culturalmente aí

sociologicamente falando, integralmente de resto (RESENDE, 2002, p.25).

A citação acima integra a entrevista em tom de diálogo que Otto concedeu a Paulo

Mendes Campos. Nela, Otto reconhece, diferentemente de trecho anterior da crônica,

que foi ele quem parou no tempo e não o locutor que narra a história. O jornalista,

que nunca substituiu sua máquina de escrever pelo computador, alça uma posição de

sujeito “anacrônico”. Apesar das tentativas de adaptação ao novo modelo urbano-

social, Otto confessa se sentir muito mais perto das gerações passadas do que das

posteriores a si.

Entendo que, com tal argumento, o cronista acaba por acionar um dos elementos

fundamentais de sua escritura: a tradição. Na perspectiva de T.S. Eliot (1989), para

se constituir o tradicional, é necessário que haja pelo menos dois eixos centrais: 1)

ter sentido histórico. O texto cadáver é simultâneo à produção contemporânea do

autor, portanto é a convivência do elemento atemporal e do elemento temporal que

fazem um escritor tradicional; e 2) possuir um sentido de ordem, já que as obras que

16 O símbolo [?] indica que não foi possível transcrever a palavra do original. Apesar do acervo da Folha Online

disponibilizar todo seu arquivo no site, algumas páginas apresentam manchas ou borrões de tinta que inviabilizam

a leitura. Neste caso, persisti no uso da crônica, pois a palavra ausente não interfere em minha análise.

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convivem com o passado devem estar de acordo com o pretérito. Assim, o que é mais

grandioso no escritor não é sua peculiaridade, mas as carnes podres que manifestam

a presença no corpo vivo do autor; como atesta o próprio Otto, “(…) Sou um

sobrevivente sobre os escombros de valores mortos” (p.31). Apesar de considerar o

universo europeu, aciono Eliot (1989) para referendar o discurso ottolararesendiano:

[…] Ela [tradição] envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico, que podemos

considerar quase indispensável a alguém que pretenda continuar poeta depois dos vinte

e cinco anos; e o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do

passado, mas de sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever não

somente como a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento

de que toda a literatura europeia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu

próprio país tem uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea (p.38).

Apesar de afirmar o distanciamento da geração dos filhos, Otto abre espaço para este

híbrido que constitui sua escritura. Quando o cronista diz que está mais próximo do

avô, ele não nega sua presença dentro da nova formação societária, mas afirma que

os cadáveres que compuseram sua formação têm ressonância privilegiada em sua

identidade que, por este motivo, pode ser considerada construída num ambiente

policultural.

Ao se preocupar com a criação de cânones, Ítalo Calvino (1993) destaca que, para

uma obra se constituir como um Clássico, ela não pode prescindir de elementos,

vozes que marcam sua travessia ao longo das gerações. “Os clássicos são aqueles

livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam

a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que

atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)” (p.11. Grifo

do autor).

Seguindo a linha de raciocínio de Calvino (1993), um clássico é atemporal, no sentido

de que não precisa estar deslocado no tempo para se constituir enquanto tal. Sua

genealogia o torna clássico. Contudo, é preciso assinalar o local em que este clássico

é lido, sua relação com a marcação temporal presente. A tradição, neste sentido, é

um diálogo constante entre mortos e vivos. Ela permite que um autor se situe entre

outros e isso é o que concentra o valor tributário da estética. A harmonia entre o

antigo e o novo se dá na medida em que um se ajusta ao outro. No constante diálogo

entre os dois tempos, diz Eliot (1989), é a capacidade de ajuste do novo que é

sintomático de sua qualidade, o que não deve ser confundido com uma mera

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comparação entre duas obras temporalmente distintas, pois, conforme disse, uma se

nutre da outra para legitimar sua perenidade na história.

Por isso é que Eliot (1989) chama a atenção para o fato de que em arte nunca se deve

falar em aperfeiçoamento. Tal evidência decorre do fato de que não se aposentam os

mortos, daí a recusa ao termo aperfeiçoar. Em lugar dele, deve empregar o

acionamento de uma autoconsciência que recobra aquilo que o passado não é capaz

de realizar sobre si mesmo. “Mas a diferença entre o passado e o presente é que o

presente consciente constitui de certo modo uma consciência do passado, num

sentido e numa extensão que a consciência que o passado tem de si mesmo não pode

revelar” (p.41).

Porém, com a literatura moderna e pós-moderna, a tradição não pode ser considerada

apenas como elemento do passado presente no contemporâneo. Ao lado da tradição,

aparecem a ruptura, a descentralização e a desterritorialidade. Segundo Gerd

Bornheim, citado por Vera Lúcia Ramos de Azevedo (2008), “se tornou impossível

a abordagem do conceito de tradição, independentemente desse seu corolário atual

que é a ruptura”, uma vez que “tradição e ruptura se espelham reciprocamente, e a

dialética dos dois termos esclarece a quantas andamos nessa grande esquina que é a

história de nosso tempo” (2008, p.03).

O sujeito que escreve não é aquele filiado a uma única tradição, mas um ser

cosmopolita por natureza. Diferentes formações culturais e diferentes matizes da

tradição perpassam sua estrutura. Por isso, a cada página que escreve, acaba

interpelado por diferentes sustentáculos de tradições localizados num descontínuo

par espaço/tempo. Melhor do que isso, o autor contemporâneo é aquele que busca

uma determinada tradição para destituí-la, em seguida, sem o menor pudor.

Esse discurso é reiterado quando Otto veste o jaleco do comunicólogo e analisa as

mudanças que foram introduzidas em seu campo de trabalho. “(…) O mundo hoje é

do samba, da MPB, do cinema, da televisão, do McLuhan, do satélite. Sou, somos,

de uma geração em voz baixa, que cochicha, sussurra, nessa algazarra da chamada

Comunicação, a abelhante, azucrinante aldeia global” (RESENDE, 2002, p.64).

Na fala acima, Otto não se reconhece como membro desse novo paradigma de

comunicação, pois são inevitáveis as marcas da azucrinante aldeia global em sua

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(des) construção identitária. Mas, aliada à figura do passado, surge o cronista do

presente, que reconhece a si como um híbrido entre tempos distintos. Não por acaso

Otto afirmou que “quem quiser descrever o universo tem que falar de sua própria

aldeia. E minha alma é formada por sinos, igrejas barrocas e as imagens de infância

em São João del-Rei”.

Mas para descrever o universo, BH era uma pequena vila que não comportava

tamanha ânsia do autor de escrever o mundo. Sua permanência na capital durou sete

anos. Em 1945, depois de muito ruminar, fez as malas, desceu a montanha e fincou

raízes nos solos arenosos do Rio de Janeiro. “Vivíamos sob uma ditadura e o mundo

se engalfinhava na guerra. Mas a mocidade tem tanta força que não há apocalipse,

verdadeiro ou falso, que apague a sua luz” (RESENDE apud MEDEIROS, 1998,

p.38).

Sua ida para o Rio, como não podia deixar de ser, contou com ensaios mirabolantes.

Como um Quixote mineiro, Otto por pouco não montou seu Rocinante e saiu

desvairado atrás de sua musa, a Cidade Maravilhosa. Tal episódio aconteceu de fato,

mas a voz sensata de um Sancho Pança ainda mais sensato atrasou a partida:

(…) Mineiro no Rio, você [Paulo Mendes Campos] também se lembra. Assim que

acabei o direito, e foi duro esperar, quase vim com você, quando o Virgílio Melo Franco

me ofereceu uma carona de carro, ali em frente, como é que chamava aquela casa da

esquina da avenida com a rua Tupis?, topei a carona, ele é que, sabendo que eu tinha

ainda umas provas, paternalmente me disse pra fazer as provas e vir depois. Eu vim

correndo, depois de todos aqueles apelos moleques seus e do Fernando [Sabino]. Eu

queria e não queria, por motivos que, espero, você tenha se esquecido, que dor

(RESENDE, 1994, p.301).

Apesar de Paulo Mendes Campos não revelar, Medeiros (1998) conta que a dor que

impulsionou a ida de Otto para o Rio foi uma desilusão amorosa. Ele nutria uma

paixão não correspondida por Ione Gianetti, uma moça que frequentava bares para

discutir literatura, comportamento nada ortodoxo para uma mulher mineira dos anos

1940, e filha de um ex-prefeito de BH, Américo René Gianetti.

Além disso, Minas Gerais, as montanhas mineiras em torno da antiga Curral del Rei

não era o cenário adequado para a mente inquieta de Otto. Dominada pela

religiosidade e pela família patriarcal, Minas Gerais era provinciana demais para os

projetos intelectuais do futuro jornalista: “O clima não combinava (…) com Otto,

que além de tudo cultivava, tal qual Drummond, uma certa, quase sempre reprimida,

vocação para galhofa” (MEDEIROS, 1998, p.35).

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Otto decidiu sair da “lerda e acolhedora capital mineira” (RESENDE apud Medeiros,

1998, p.46) e fazer a vida na efervescente capital federal. É novamente Medeiros

(1998) que explica como foi a travessia:

Repetindo a saga de muitas gerações de mineiros, Otto transferiu-se para o Rio em 1945.

Já devia ser um projeto pessoal antigo, que amadureceu aos poucos até o dia da grande

decisão. Fixar-se na capital, longe da família implicava numa mudança radical de vida.

Era também libertar-se do controle familiar, do universo estreito de interesses que Belo

Horizonte lhe oferecia e da falta de perspectivas próprias da província. Fora tudo isso,

é fácil imaginar o poder de sedução que o canto da sereia carioca exercia não só sobre

os mineiros, mas sobre a população do Brasil em geral naquela época. Coração da

República, o Rio – sem pivetes e assaltos à luz do dia – era também a mais deslumbrante

cidade dos trópicos, cantada e decantada mundo afora (p.54).

Atraído também pelo canto da Bossa Nova, quando ainda tinha 25 anos, no final de

1945, o advogado recém-formado finalmente conseguiu se decidir. Tomou acento

em um avião da Panair, que Otto lembra pagar 220 cruzeiros pela passagem, e foi,

para nunca mais voltar, para o Rio de Janeiro.

No seu primeiro ano como carioca, em 1946, engatou um namoro com Helena

Pinheiro, neta do ex-governador mineiro João Pinheiro. A mudança para o status de

namorados ocorreu nas areias de Copacabana. Helena já morava no Rio desde 1943,

quando seu pai, Israel Pinheiro, político em ascensão e contemporâneo de JK,

assumiu a presidência da Companhia Vale do Rio Doce. Mas o casal se conheceu

ainda em BH, por intermédio de um amigo em comum, Marco Aurélio Matos, numa

festa de réveillon em 1945.

No entanto, o namoro era cercado por todos os lados, já que a tradicional família

mineira não permitia ao pretendente avançar o sinal:

Quando Otto e Helena saíam, havia sempre um parente da moça, em geral a irmã

Coracy, homônima da mãe, para fazer o papel de “pau de cabeleira”, como se dizia em

Minas. Era quem, no linguajar de hoje, acompanhava os namorados, cumprindo sempre

a ingrata missão de “segurar vela”. Mãos dadas era permitido. Mas à vista de todos.

Quando não estavam na matinê do cinema Metrópole, o casal participava das “missas

dançantes” do Minas Tênis Clube, que reunia a boa sociedade local. Só podia acontecer,

realmente, em Minas. Chamavam-se “missas dançantes” porque começavam em

horário esdrúxulo, logo após a missa das onze. Os jovens saíam da igreja, purificados,

e, depois de comungar, iam direto para o baile – rigorosamente familiar, nem precisava

dizer (MEDEIROS, 1998, p.66).

Até o casamento, foram dois anos de namoro e noivado. Otto e Helena se casaram na

Igreja do mosteiro de São Bento em 1948. Passaram lua-de-mel em Cabo Frio.

Ficaram juntos 44 anos, até que a morte dele os separou. Tiveram quatro filhos:

André, Bruno, Cristiana e Heleninha:

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Otto se considerava “casadíssimo”. Fazia o gênero do pai que dá conselhos e

acompanha de perto os estudos dos filhos. Bonachão, tinha a mania de perseguir as

crianças para cortar-lhes as unhas, mesmo que fosse à força. Aos domingos, levava os

filhos pequenos à missa, que, no Rio, podia ser na Igreja de São José ou na N.Sra. da

Conceição. Com o tempo foi largando esse hábito, ou obrigação, que vinha dos tempos

de São João del Rei. Converteu-se num “mártir sem fé”, como dizia. Mas manteve até

o fim o ritual de ler a Bíblia todos os dias. Era a primeira coisa que fazia ao acordar.

Ainda na cama, abria o Livro e recitava pelo menos um versículo, em voz alta, para a

mulher ouvir (MEDEIROS, 1998, p.70).

O casamento com Helena configura o enlace com a tradição mineira. Pertencente à

família tradicional de Minas Gerais, a musa de Otto, mesmo que moradora do Rio,

carrega consigo a imagem poética das mulheres das Alterosas, criadas dentro do

regime patriarcal. A mudança para o Rio de Janeiro, portanto, não anulou o Otto

mineiro que, de longe, observava e vivia intensamente a paisagem na qual passou 25

anos de sua vida, sua “pequena pátria, Minas”.

1.3 Um flâneur com sotaque minero

Quando um mineiro deixa seu estado, é corriqueira a expressão que ele “desce a

montanha”. Minas Gerais, no imaginário popular, seria um lugar encantado, um mar

de morros que guarda tradições indevassáveis pelos estrangeiros, um universo

taciturno, que se encerra em si, com aversão ao novo e ao que vem de fora. Para

descobrir o mundo, desnudar as experiências do já citado McLuhan, só mesmo

escalando a montanha, mas no sentido contrário, de cima para baixo.

E foi justamente o que fez Otto no final de 1945. Aos 25 anos de idade, Minas Gerais

era claustrofobicamente sufocante para ele. Só mesmo cruzando a fronteira, ou

descendo a montanha, iria flanar, à beira do mar aberto, no destino preferido da

“rapaziada” das Alterosas. O Rio de janeiro era o lugar ideal para fruição de seu

gênio. A “atávica atração pelo mar”, explica Francisco Iglésias (apud WERNECK,

1992, p.187), teria levado os mineiros, até a década de 1960, preferencialmente para

o Rio de Janeiro. Apenas em meados desse decênio é que o movimento migratório

se concentraria em São Paulo, com salários mais polpudos. Otto confirma o que disse

o historiador:

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O Rio era então uma fatalidade. Não se emigrava de Minas para São Paulo, como depois

veio acontecer com freqüência. Nem para Brasília, que não existia. A vida cultural

estava basicamente no Rio, apesar da importância de São Paulo e até de outras capitais,

como Porto Alegre. O Fernando casou e mudou-se. O Paulo veio encontrar o Pablo

Neruda, que passava pelo Rio. Eu vim crivado de dúvidas, num momento muito sofrido.

Aqui encontrei acolhida nos amigos que já eram indispensáveis. Além dos mineiros,

muitos outros, como o Rubem Braga, que chegou a me hospedar em sua casa, e o

Vinícius, de quem nunca me afastei” (RESENDE, 2002, p.97).

Descer a montanha significava a busca por espaços com menos restrições ao

desenvolvimento das ideias contidas nas cabeças de gerações imperativas. Não por

acaso, após uma visita à ainda provinciana Belo Horizonte dos anos 1940, o poeta

Vinícius de Moraes traduziu suas impressões sobre a cidade através de artigo com

título e subtítulo um tanto quanto sugestivos: “Carta contra os escritores mineiros:

por muito amá-los”.

O discurso de Moraes causou uma confusão tremenda. Otto, ao se lembrar do tal

texto, é perpassado pela voz do estrangeiro e, se não concorda, pelo menos endossa

a fala do poeta da Bossa Nova que foi publicada no literário O Jornal: “Foi um

barulho dos diabos “(…) Um deus nos acuda. Todo mundo meteu o bedelho no

debate e saíram dezenas de artigos, sobretudo, claro, em Minas Gerais. Gente houve

que achou que o Vinícius queria que os mineiros deixássemos de ser mineiros”

(RESENDE apud WERNECK, 1992, p.129). Na realidade, acentua Otto, Moraes se

indignava era contra o pesado conservadorismo e o preconceito que dominavam a

tradição montanhês.

Tradição que Otto levou consigo para as areias cariocas. Apesar de já ser jornalista

em Minas, a indefinição vocacional acompanhou Otto montanha abaixo:

(…) Desde muito cedo, me descobri escritor. Desde sempre. E acabaram com a nossa

festa, Paulusca! [Paulo Mendes Campos] Acabaram? Tem aí gente assim que diz que

não. A culpa é minha. Aliás, a culpa de tudo foi sempre minha. Professor: fui no ginásio,

gostei muito. Sempre desconfiei que eu dava bom professor, devia continuar. Vim pro

Rio com essa intenção. Arranjei uma carta do doutor Alceu [Amoroso de Lima] tão

elogiosa, para o São Bento, que fui adiando, não deu para ir lá, era longe, eu trabalhava

no Globo, no Diário de Notícias, em tanto lugar, em tanto jornal, acabei deixando o

magistério, retomei episodicamente, sempre gostei (RESENDE, 2002, p.34).

Apesar da paixão pelo magistério, Otto, na citação acima, já deixa entrever que o

jornalismo ocuparia praticamente todo o seu tempo. Aliás, o mineiro já foi para o Rio

de Janeiro com vaga garantida em um jornal da então capital brasileira:

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Foi Edgar da Mata Machado que me levou para o Diário de Notícias. (…) Eu vinha de

um curral mineiro em que Edgar professava com calorosa admiração; intimou-me, eu

fui. A despeito da incansável trabalheira, como o jornal tinha de fechar cedo, isto é, em

princípio às onze horas da noite, ainda encontrava tempo não só para colaborar

dominicalmente no Diário Carioca, como por lá passar com freqüência quase diária,

diária e noturna; com esticadas no restaurante Colombo, não a confeitaria,

burguesmente fechada àquelas horas, além dos jornalistas fiéis na estacada diária –

Prudente, Pompeu – e os que se revezavam, como eu, ali às vezes aparecia o prof.

Pereira Lira, chefe da Casa Civil da Presidência da República” (RESENDE, 1994, p.81-

82).

Ainda em Minas Gerais, Otto chegou a editar o suplemento literário do Diário de

Minas. Já no Rio de Janeiro, passou por quase todas as grandes redações: Diário de

Notícias, O Globo, Diário Carioca, Correio da Manhã, Última Hora, Manchete,

Jornal do Brasil, TV Globo. Isso tudo num período de dez anos. Mas Otto não se

encerrava nas letras jornalísticas; em casa, insistentemente, confeccionava e

colecionava seus escritos literários, que demorou muito para publicar, pois,

confessional, afirmava padecer de “bibliofobia”, um horror que sentia ao ter que reler

os próprios textos. Além disso, não abria mão da herança epistolar que recebeu do

pai, respondia uma a uma, apesar da demora, as cartas endereçadas a ele. Parte dessas

missivas foi publicada recentemente pela Companhia das Letras, no livro “O Rio é

tão longe”, em que o autor mantém um diálogo íntimo com Fernando Sabino.

Na época em que Otto chegou ao Rio de Janeiro, estabeleceu-se em uma pensão no

Posto 4, em Copacabana. O sonho do magistério ficou latente, pois a correria com a

imprensa tomava todo o seu tempo. Apesar do jornalismo da década de 1940 servir

como um bico ou como possibilidade para se alcançar outros interesses, como um

cargo político, Otto se desdobrava em periódicos com políticas editorais quase

opostas. A emulação travada pelos diferentes lugares de fala que ocupou foi uma das

responsáveis pela construção do jornalista como figura mítica. Colunista do Diário

de Notícias e de O Globo, o jornalista alçava duas posições que entravam em

conformidade com as brigas travadas entre seus dois patrões: Orlando Dantas, dono

do Diário, e Roberto Mario, herdeiro do Globo. “(…) Otto escrevia editoriais num

jornal defendendo uma posição, e no outro criticava-a, mantendo, assim, uma

inflamada polêmica consigo mesmo” (MEDEIROS, 1998, p.61). Essa é uma das

histórias que reforçou o mito e acabou por gerar o personagem Otto Lara Resende.

Um dos primeiros empregos de Otto no Rio foi na revista Manchete, em 1954. A

publicação da família Bloch queria fazer frente à revista O Cruzeiro, de Assis

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Chateaubriand. A entrada do jornalista mineiro trouxe leveza para a publicação, o

que rapidamente conquistou o público. Ao se lembrar dos patrões, Otto se refere ao

espírito errante que possuíam:

(…) Conheci-os então de perto: almas eslavas, brasileiras, judaicas, russas, cariocas.

Particularíssimas, humanas, universais. Em dado momento, no que seria a decolagem

para a notoriedade que hoje os cerca, os Bloch eram um só torvelinho: uma família

unida pela desunião (1994, p.150).

Pouco antes da década de 1960, Medeiros (1998) sinaliza que Otto “(…) tenha

conseguido, por meio de algum pistolão, uma transferência de matrícula para o Rio.

Pulou de secretaria em secretaria até ser nomeado procurador do antigo Distrito

Federal, a partir de 1960, Estado da Guanabara” (p.59). No entanto, o funcionário

público não conseguia permanecer por muito tempo em um lugar. Nesta época, quase

excomungado pelo seu livro de contos “Boca do Inferno”, mudou-se com a família

para a Europa:

Em 25 de março de 1957, OLR consegue afastamento da função de controlador

mercantil da Prefeitura do Distrito Federal (RJ) por 12 meses a contar de 1º de março a

fim de ministrar aulas de Estudos Brasileiros na Bélgica, Holanda e Luxemburgo

(Benelux). (…) Otto e sua família apenas voltam ao Rio de Janeiro em 8 de agosto de

1959, após dois anos e quatro meses exercendo, a maior parte do tempo, função na

Chancelaria da Embaixada do Brasil em Bruxelas e ministrando aulas de Estudos

Brasileiros na Universidade de Utrecht, na Holanda (nota de rodapé, 2002, p.45).

No início de 1960, depois de voltar da Europa, Otto deixou o cargo oficial no

Itamaraty para assumir novamente a função de jornalista. Foi editor do Jornal do

Brasil e, ao lado de Jânio de Freitas, conseguiu valorizar jornalisticamente a

publicação, antes vista apenas como um panfleto de classificados. Nesta mesma

época, contribuía com a revista mineira Alterosa.

Já em meados dos anos 1960, Otto se dividia entre os estúdios da recém-fundada

Rede Globo e o Jornal do Brasil. Em 1966 decidiu enfrentar as câmeras e, ao vivo,

apresentava o quadro O pequeno Mundo de Otto Lara Resende, o qual fazia parte do

Jornal de Verdade da emissora carioca. A época global de Otto foi seguida de uma

boemia que desagradou à sua esposa Helena. Dizem que foi por intermédio dela, já

que vinha de família com forte influência política, que Otto conseguiu novamente

vaga no Itamaraty, mas para trabalhar fora do Brasil, em 1967.

Otto foi adido cultural em Lisboa durante o governo Costa e Silva. Retornou ao Brasil

em 1969. Mas sua recepção em Portugal não foi das melhores. Em 1942, Otto

escreveu artigo intitulado “O gado humano”, referindo-se a Portugal. Três décadas

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depois, era adido cultural em Lisboa. Suas convicções juvenis, já esquecidas, foram

relembradas na Terrinha: “Só fui reencontrá-lo em Portugal, pela mão amável de um

diplomata português que me deixou deitar um olho no magro e nem sempre veraz

dossiê que arquivava as minhas peraltices anti-salazaristas” (RESENDE, 1994, p.97).

De Portugal, Otto trouxe uma lembrança impagável, sua filha Heleninha, que na

época lhe rendeu um artigo elogiadíssimo na revista Pais & Filhos.

Depois que retornou de Portugal, Otto voltou a trabalhar no Jornal do Brasil até

1974. Anos que assumiu a diretoria da Rede Globo, a convite de Walter Clarck. Na

época, o jornalista mineiro atribuiu o apelido à emissora de “Vênus Platinada”. E foi,

no maior canal de TV aberta brasileira, que protagonizou uma cena episódica como

mineiro conciliador:

(…) Na Rede Globo, trabalhando com o então todo poderoso Walter Clark, o escritor

costumava dizer que era um “walter ego”. Quando Clark deixou a casa, em 1977, foi

Otto quem redigiu as duas cartas que selaram o seu afastamento: a do diretor, pedindo

demissão, e a do proprietário da rede, Roberto Marinho, lamentando-a e aceitando-a.

Nos anos 40, foi redator, ao mesmo tempo em O Globo e no Diário de Notícias, tendo

nascido, dessa dupla militância, a lenda de que polemizava consigo mesmo por meio

dos editoriais (WERNECK, 1992, p.105).

Lenda ratificada pelo próprio Otto, pois como afirmava, “(…) A coisa que mais

admiro no mundo é ponte. Tenho a sedução dos contrários (…)” (1994, p.308). Em

artigo intitulado “Visceralmente conciliador”, Rezende (2001) confirma a

idiossincrasia conciliatória do jornalista mineiro. “(…) Ele se orgulhava de ser essa

voz, essa mão que apazigua interesses e temperamentos distantes, (…) Exerceu assim

essa missão política – que, na verdade, mais tinha mesmo era de cristã – de aliviar as

tensões e de promover a fraternidade” (p.85).

A demissão da Rede Globo, em 1984, veio em forma de um bilhetinho azul – o

chamado Love Letter. O motivo da saída dele ainda não é conhecido de todo.

Aconteceu com a entrada do executivo Roberto Irineu Marinho. Otto caiu em

depressão. Não aceitou o convite para voltar, que partiu do próprio Roberto Marinho,

o doutor. Ficou assim até 1991, quando assumiu a coluna diária na Folha de S. Paulo.

Mas, em 1979, indeciso, Otto entrou na disputa por uma cadeira da Academia

Brasileira de Letras (ABL), o que se tornou um grande evento midiático. Ele venceu

a disputa e virou o imortal da cadeira de número 39. Afonso Arinos de Melo Franco,

ao recepcionar Otto na academia, fez um libelo aos mineiros: “Eles são moderados,

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prudentes, reservados, conciliadores, poupadores e matreiros, de fala mansa e

matizada. Mas são também impetuosos, inovadores, não raro, boquirrotos, de índole

ousada e corajosa” (MELO FRANCO apud FILHO, 2002, p.84).

Mestre na arte do bate-papo, seu discurso de posse foi em tom autocrítico, sem o

rigor verborrágico da ABL: “Aceito o vosso gesto leviano e atencioso de acolher-me

(…) sem que tenha de renegar ou retirar qualquer palavra atirada contra vossas, agora

nossas vidraças. É possível assim que, jovem, eu não tenha sido suficientemente

iconoclasta, pecado que ainda posso, quem sabe, vir a recuperar” (RESENDE apud

MEDEIROS, 1998, p.118).

As pazes foram feitas com o jornalismo apenas em 1991. Mas, aceitar o convite para

Folha demandou muita ruminação de Otto. Na época, era colunista dominical de O

Globo. O chamado para assumir uma coluna diária de 30 linhas na pesada página

dois do jornal paulistano demandaria muito esforço. A entrada do jornalista mineiro

iria substituir Newton Rodrigues. Nesta época, os conflitos entre o diário e o governo

Collor colocava a cabeça a prêmio de funcionários do jornal que sinalizassem uma

aproximação inapropriada com o executivo. Carolina de Bartolo Chagas (2006), que

produziu uma dissertação sobre o viés cronístico de Otto explica o imbróglio que

envolveu a Folha, Rodrigues e Collor:

Newton esteve com o presidente Fernando Collor de Mello sem comunicar ao jornal.

Os anos Collor foram especialmente tensos para a Folha de S.Paulo, como se verá mais

adiante, e a atitude do colunista desagradou à direção do periódico, que preferiu demiti-

lo. O nome de Otto Lara Resende foi indicado à Folha pelo então editor-executivo

Matinas Suzuki Jr. e prontamente aceito por Otavio Frias Filho, diretor de Redação

(Mimeo).

Otto estava reticente, pois não queria voltar a assumir o noticiário de política. Mas,

o jornal permitiu ao jornalista que se pautasse com os assuntos que melhor lhe

conviessem. Mesmo assim, o jornalista escolado encontrou dificuldades com a nova

função: “Estou tendo uma dificuldade enorme para escrever apenas 30 linhas diárias

para a Folha. Sou muito prolixo. [...] A volta à crônica diária é uma grande novidade

para mim. Estou ainda pegando a embocadura, experimentando. Não tenho ainda a

resposta do público” (RESENDE apud CHAGAS, 2006. Mimeo).

Mas o retorno da audiência veio imediatamente à sua estreia. Rezende (2001)

comenta que principalmente o público feminino ficou deslumbrado com o texto de

Otto e que ele “(…) logo aprendeu a lidar com sua nova função. Com frases curtas,

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uma erudição nada pretensiosa, em que mesmo a palavra mais desconhecida ganhava

ares de simplicidade (…)” (p.93). Não por acaso, ao se referir à estada de Otto na

Folha, Chagas (2006) lembra que “o trabalho de Otto foi poeticamente definido por

Matinas Suzuki Jr. (então diretor executivo da Folha e responsável pela ida de Otto

para o jornal), como um raio de luz que adentrava pela soleira daquela página”

(Mimeo).

Apesar dos tempos difíceis que precederam a entrada de Otto na Folha, o causeur de

todos os momentos foi imortalizado como um grande frasista. Tudo improvisado,

Otto retirava de sua cartola mágica tiradas que ninguém esperava ouvir. Suas pílulas

verbais tinham efeito imediato entre os amigos. Um exemplo disso é Nélson

Rodrigues, o perseguidor predileto de Otto. Os dois se conheceram na redação de O

Globo e logo começaram as blagues rodriguianas ao carioca com sotaque mineiro.

Uma das mais famosas é sobre os dizeres espontâneos do cronista. “A grande obra

de Otto Lara Resende é a conversa. Deviam pôr um taquígrafo atrás dele e vender

suas anotações em uma loja de frases” (RODRIGUES apud MEDEIROS, 1998,

p.84).

No mundo de volúpias rodriguianas, Otto aparece duplamente inscrito. Ora é a pessoa

de carne e osso, ora a personagem mais inusitada. Isso conferiu ao jornalista mineiro

uma perseguição que culminou com a peça “Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara

Resende”. Nela, o jornalista mineiro é citado o tempo todo, mas a sua inserção vem

com uma de suas frases mais famosas: “O mineiro só é solidário no câncer”. Otto, o

“pudico”, não gostou nada dos holofotes voltados para si. Recusou-se a assistir à peça

e ainda teve que conviver com seu nome estampado nos cartazes por cinco meses.

Na ocasião, afirmou que: “Com o Nelson, só a tiro!”. O uso de sua frase também o

irritou. “(…) Ele conhecia bastante a alma dos mineiros e as idiossincrasias da

província. Podia vir a ser apontado como traidor da causa mineira”. Apesar deste

desentendimento entre o dramaturgo e o jornalista, os dois nunca deixaram de ser

amigos. “O Nelson praticamente me incorporou ao seu universo afetivo. Eu tinha um

certo horror àquele mundo, mas ele me estimulou muito um lado trágico que via em

mim e que eu não queria reconhecer” (RESENDE apud MEDEIROS, 1998, p.92).

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Apesar dos dois viverem em planetas diferentes, eles eram próximos o suficiente para

manter uma forte amizade até o fim. Em entrevista à Folha de S. Paulo, depois da

morte de Rodrigues, em 1980, Otto diria:

(…) O Nelson era um cara sombrio, com aquela obsessão sexual toda. Eu era um pudico,

muito mais do que hoje. Eu tinha certeza de que não podia me entender com aquele cara

tão exagerado, mas nos tornamos grandes amigos. Eu tinha uma visão dele como uma

coisa demoníaca e ele percebeu imediatamente isso. Então é curioso que nós tenhamos

exercido um sobre o outro, eu mais sobre ele, uma atração muito forte, pelas nossas

diferenças, até pelas nossas hostilidades (RESENDE apud MEDEIROS, 1998, p.85).

Essa capacidade de aglutinar amigos em torno de si é outro relevo que contribui para

formar o mineiro já ambientado aos hábitos cariocas. Conforme acentua Medeiros

(1998), “Convivia com o Otto exibido, das tiradas de espírito e das frases de efeito,

o Otto inacessível, noturno, trancado em si mesmo, arredio às vezes até aos mais

próximos” (p.15). O dualismo observado pelo biógrafo do cronista revela como este

se desconstruía continuamente entre suas múltiplas identidades, mas com destaque

para as duas principais: a mineira e a carioca.

Até aqui, privilegiei a voz da Mineiridade que ecoa das memórias de Otto na voz do

locutor das crônicas. Mas, como bem definiu Medeiros (1998) no parágrafo anterior,

o jornalista era perpassado por outros discursos responsáveis por sua clivagem

identitária. Uma delas era a carioca. A incorporação da Carioquice não veio de modo

abrupto. Otto foi se acostumando ao novo espaço social que concorria para seu

pluralismo:

“(…) A vida era ler e escrever. Mas ninguém podia viver de ler e escrever. Era ainda

pior do que hoje. O jornal nos segurava até tarde. Eu começava cedo aqui no Globo e

entrava pela noite no Diário de Notícias. Saía voando da rua da Constituição para ir

pegar uma carona do Costa Rego, junto com o Paulo, no Correio da Manhã. Levamos

um tempão para descobrir que era possível chegar à avenida Gomes Freire sem dar a

volta pelo largo da Carioca...” (p. 207).

O texto a seguir, publicado dia 11 de setembro de 1991, na Folha de S. Paulo, mostra

a Carioquice de Otto. No entanto, é possível escavar os rastros deixados pelo mineiro:

SUSPENSE CARIOCA

RIO DE JANEIRO, 11/09/1991— A esta altura do ano, o dia ainda está

frio. Vou dar uma volta para desenferrujar as pernas. Na farmácia, vejo

que os preços voam alto. Aumento de cem por cento num frasquinho

de nada. O balconista sorri. É isso aí. Nem dá mais vontade de

comentar. O controle de preços, se existe, deve estar sendo feito pelo

Ministério da Aeronáutica, em convênio com a Nasa. Estico a

caminhada até a banca de jornais mais bem fornida.

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Já no título da crônica, Otto traz o elemento do Rio de Janeiro. A narrativa em

primeira pessoa do presente aproxima o locutor do sujeito por trás do texto, pois

descreve uma cena na qual ele próprio está inserido. Publicado dia 11 de setembro,

o texto possivelmente foi escrito na Primavera, daí a constatação dos dias frios,

contraponto ao “calor sulforoso carioca” que Otto escreve em outra de suas

publicações.

Contudo, a marca do carioca aparece na crônica com o hábito de caminhar. Carlos

Lessa (2005), ao traçar um perfil histórico-geográfico sobre a formação urbana do

Rio de Janeiro, acentua que os espaços públicos da cidade foram privilegiados em

detrimento dos privados, o que reforçou a ocupação da rua pelos cariocas. “O Rio é

uma cidade dispersa, feita para caminhar. Sua unidade está no Centro, que no século

XIX, junto ao porto, integrava o coração pulsante carioca. Mas vieram os bondes e a

cidade se interiorizou” (2005, p.11).

A interiorização da cidade, acompanhada do progresso, no entanto, não foi suficiente

para retirar do carioca uma de suas principais marcas identitárias: o de flanar pelas

orlas de praias e ruas da cidade. Segundo Adriana Facina (2004):

A cidade produz seus tipos sociais, que são espécies de porta-vozes dessas experiências:

o flâneur, o cronista, o indivíduo de atitude blasé traduzem formas diferentes de sentir

a cidade. Benjamin, em seus trabalhos sobre Baudelaire, identifica no flâneur aquele

que, por não ter um lugar específico, por transitar entre vários mundos, tem uma

percepção privilegiada e, ao mesmo tempo, distanciada da cidade (Benjamin, 1991).

Simmel também nos fala de uma atitude típica da vida das grandes metrópoles, a atitude

blasé, que, ao gerar distanciamento e certa indiferença, protege os indivíduos de “um

estado psíquico inimaginável” que resultaria do estabelecimento de “relações positivas”

com um número excessivo de pessoas e da exposição exagerada aos estímulos

psicofísicos desse ambiente (FACINA, 2004, p.152. Grifo da autora).

O andar descompromissado de Otto revela os tipos sociais supracitados. No entanto,

defendo a posição de que atitude blasé, forma de defesa ao hiperestímulo sensorial

imposto pela metrópole moderna, não condiz com o cronista. Chego a tal conclusão

a partir do fato de Otto ser compromissado com aquilo que o rodeia. O preço dos

remédios é um exemplo disso. O humor, acentuado pela frase sobre controle de

preços dos medicamentos feito pela aeronáutica em convênio com a Nasa, enfatiza

essa percepção atenta do mundo à sua volta, o que descaracteriza a postura blasé. No

entanto, o flâneur que estica a caminhada é o traço mais forte, neste parágrafo, da

Carioquice de Otto.

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Ressalto, porém, que os rastros do mineiro perpassam os passos do carioca. É com

um sense of humour que o locutor comenta os valores cobrados pela farmácia,

também é, com certa avareza, que reclama do aumento em “um frasquinho de nada”,

característica atribuída aos mineiros. O arremate característico deste locutor que

recupera a sua mineiridade através da personagem Otto é estabelecido por meio da

discrição. Ele evita comentar o aumento dos preços, como o faria um homem das

Alterosas, e sai do local já metamorfoseado no flâneur carioca, que estica a

caminhada até a banca mais próxima para atualizar sua leitura de jornais, o que fazia

com uma voracidade que impressionava:

Com tanta leitura atrasada, me encho de revistas. Vamos ver o que

dizem os Estados Unidos, a França, a Inglaterra. Deve ser tudo mais ou

menos a mesma coisa. Até as capas se repetem, ao dar notícia do que

vai pela URSS, quatro letras que em 1934 eram título de um poema de

Murilo Mendes: "Volta para a comunidade dos filhos de Deus, ó

pródiga, ó generosa. E verás a dança múltipla dos irmãos que te

aclamam, ó irmã transviada".

Neste parágrafo Otto acentua o hábito de leitura do qual nunca abriu mão. Além da

sua ração de leitura diária da Bíblia, as editorias dos jornais tomavam horas e horas

do seu dia. Devassar as páginas dos periódicos desmente a preocupação do cronista

com a sua própria criação textual, a qual considerava cinzenta e sem vínculo com a

realidade. Mas, o volume hiperbólico de jornais e revistas que Otto consumia mostra

que a cumplicidade dele com a leitura jamais permitiria um texto opaco em relação

à realidade:

(…) Várias vezes, sobretudo num período em que era moda exigir-se das pessoas

posições afirmativas, mesmo esquematizadas, tipo pão, pão, queijo, queijo, em relação

a tudo, Otto expressou o medo de passar aos leitores como um jornalista que não tomava

posições muito claras em relação aos fatos. Chegou a temer a pecha de alienado. As

cobranças do psicanalista Hélio Pellegrino – amigo influente e bem-definido

publicamente – com certeza o balançavam. O estigma da mineiridade o marcava. Seu

terreno ideal era o da ambigüidade, a qual pôde exercer, de forma plena, na sua ficção

(MEDEIROS, 1998, p.17. Grifo do autor).

Na citação acima, Otto, que colecionou milhares de leitores fiéis, especialmente no

período que “trouxe leveza” para a página dois da Folha de S. Paulo, ratifica o que

disse na crônica, ora em análise. De um tema prosaico, uma caminhada

descompromissada, seguida da leitura de periódicos, o locutor evoca um Otto que se

perde em corredores, com paisagens desenhadas por Murilo Mendes, sobre a antiga

União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

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E, conforme acentuou Otto, ler é um ato que permite o encontro consigo mesmo. É a

possibilidade de deixar o presente para reencontrar-se com a presença do passado.

Isto é o suficiente para desenrolar a “bobina” da memória do leitor fiel. Mas a leitura,

que dura o tempo da viagem pelo mundo do fantástico, há de cessar e o sujeito é

reintroduzido à realidade que o circunda. Este corte de lucidez vem na continuação

da crônica:

Pouco movimento na rua. Comércio fechado. Sábado de manhã. 7 de

Setembro. Só agora me dou conta de que é feriado. De pé tomo um

chope em homenagem ao Hélio Pellegrino. No bar Jóia não vejo o Tarso

de Castro. Esse pessoal anda muito relapso. Quando dou por mim,

infleti (como diria o Emilio Moura) à direita, na rua J. J. Seabra.

Segunda-feira vão inaugurar o Quadrifoglio Caffé. Do Baixo Lagoa pra

cá, o pedaço está se tornando o "quartier des restaurante". O fino.

O locutor não percebe logo de início, mas a constatação da falta de movimento nas

ruas só vem quando o personagem Otto se lembra do feriado de sete de setembro.

Imediatamente à descoberta do dia de folga, vem um hábito tipicamente carioca. Otto

senta-se em um bar para tomar chope. Não por acaso um dos hábitos cultivados pelos

cariocas é o de comer fora, diferentemente da família patriarcal mineira que prefere

o silêncio à mesa da sala de jantar. Como explica Lessa (2005), no Rio, “(…) As

confeitarias prosperaram, sendo a Pascoal a referência do final do século (XIX). A

casa Jacó, a partir de 1887, produz na rua da Assembleia o que virá a ser uma paixão

do Rio: o primeiro chope do Brasil” (p.168).

Contudo, conforme lembra o locutor, o brinde da tulipa de chope de Otto é feita de

forma intangível. Vem em forma de homenagem ao amigo Hélio Pellegrino e à turma

“relapsa” que não tem frequentado a boêmia carioca. Seguido da Carioquice

ambientada no antigo bar Joia, região nobre próxima à Lagoa Rodrigo de Freitas, o

locutor continua a narrativa com seu personagem flâneur. Otto segue sua caminhada

e puxa da memória uma expressão de Emílio Moura para dizer que dobrou seu

itinerário no sentido da Rua J.J. Seabra. No local, outra verificação. A Lagoa estava

passando por reformas que em breve transformariam a localidade num recanto de

restaurantes finos. A sequência da ação narrativa é acompanhada dos passos do

flâneur:

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Entre o hospital do INPS e a igreja de São José, vou indo, distraído.

Ninguém nesta quadra. Epa, lá vêm dois tipos estranhos. Estão se

aproximando altos, um de busto nu. Cabelos, roupas, jeito, parecem

que saltaram de um videoclip. Já não dá pra mudar de rumo. Muito

menos de calçada. Um deles tem uma faca na mão. Uma faca só lâmina.

Cinco, quatro, três metros. Está cortando uma ripa. Ou afiando a faca.

Uma peixeira.

Otto, assim como Ulisses de James Joyce, descreve o cenário “irlandês” dos

caminhos que segue pelo Rio de Janeiro. Hospital, igreja tudo é fotografado pelo foco

narrativo do locutor que usa a memória de Otto. Mas, como um corte inesperado de

câmera cinematográfica, a crônica assume o gênero de suspense fílmico, como atesta

o próprio título da crônica. Isso acontece na medida em que outros dois personagens

“saltaram de um videoclip” na frente de Otto. Para uma cena rodada no telão, faltou

apenas o áudio. Os sentidos do leitor são aguçados pela descrição exata do locutor.

À Alfred Hitchcock, Otto vê os dois indivíduos, ouve os passos na calçada e

aterroriza-se com a faca empunhada na mão de um dos dois, que hiperbolicamente

chama de “peixeira”. Aliada à descrição cênica, o efeito de suspense é

superdimensionado pela aproximação de Otto com os outros “dois tipos estranhos”,

que se aproximam em ordem decrescente de metros do protagonista da crônica. E,

graças às deixas características da narrativa policial e à elucidação do crime no final

da história, é que o locutor prende a atenção do leitor:

Entrei num conto do Borges e o jeito agora é sair. Dois bandidos e

nenhuma dúvida. Fundos da Igreja de São José. Mais um passo, a hípica.

Vozes, gente, cavalos. Aí meu Deus, São José está de costas.

Assaltantes? Pararam. Bem diante de mim. São José, valei-me. O de

busto nu me dirige a palavra. Estou mais frito do que um ministro do

Collor. Ah, sim. A rua J. J. Seabra? Essa aí, aponto. Seguem adiante o

meu pulso está um pouco acelerado. Tentação de olhar para trás: lá se

vão os dois meliantes. Cidade cordial, o Rio. Assusta, mas não mata.

Ao se referir ao conto de Jorge Luis Borges, Otto produz o efeito de sentido de que

estava perdido. Nosso Aleph subjetiva a cena e estereotipa as duas personagens à sua

frente como “bandidos”. O labirinto da cena envolve a Igreja e a hípica, todas na

região da Lagoa Rodrigo de Freitas. A tensão aumenta com a presença de vozes, de

gente, de cavalos. O fantástico toma conta da descrição. Aqui, além do locutor, dois

Ottos personagens aparecem. Um é o mineiro, apegado à religiosidade e que vê em

São José o místico capaz de resolver o imbróglio. Outro é carioca, que com seu único

santo de devoção, acredita ser capaz de enfrentar qualquer desafio. E, como não podia

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deixar de ser, até nos momentos de crise, aparece o sense of humour de Otto – “Estou

mais frito do que um ministro do Collor”.

O clímax da cena vem com a resposta de Otto sobre a pergunta dos dois sujeitos, que

o locutor omite do enredo. Eles queriam saber qual era a Rua J.J. Seabra. Novamente,

o locutor personagem atribui um estereótipo negativo par a dupla, sem camisa e com

uma faca na mão, garante-lhes o vocábulo “meliante”. Apesar de ganhar ares

superdimensionados de cena fílmica, a violência urbana passou a ser um tema

constante nos textos do cronista. Medeiros (1998) afirma que uma espécie de

síndrome do pânico tomou conta de Otto, principalmente depois que o jornalista

matou atropelada uma criança:

O impacto das transformações sociais que golpeavam as grandes metrópoles

brasileiras começavam a bater, literalmente, à sua porta. Otto, que já circulara pelas

ruas de um Rio idílico, passava a conviver, como todo cidadão, como o medo e a

paranóia típicos destes novos tempos globalizados. Em novembro de 1989, seu

apartamento na Rua Alexandre Ferreira, na Lagoa, foi assaltado. Três homens, que se

diziam “ligados ao Cartel de Medelín”, mantiveram sua mulher, Helena, e a filha

Heleninha, então com 21 anos, sob a mira de revólveres, enquanto recolhiam tudo o

que existia de valor na casa. Otto estava ausente. “Dei sorte de chegar dois minutos

depois de terem ido embora. Eu estava armado e iria reagir” (RESENDE apud

MEDEIROS, 1998, p.125).

O corajoso coronel mineiro não chegou a utilizar o seu rifle contra os assaltantes.

Contudo, no fim da crônica o locutor empunhou uma de suas armas mais poderosas:

a fina ironia. Apegado à tradição passadista, ao “Rio idílico”, não podia ser diferente.

Caracteriza a cidade como um espaço “cordial”, que “assusta”, mas que não mata.

Otto recusava-se a escrever um livro dedicado às suas memórias, talvez porque

tivesse a dimensão exata do tom memorialístico que imprimiu aos seus textos. Um

exemplo disso é sua crônica inaugural para o jornal Folha de S. Paulo. Não por acaso

publicada em seu aniversário de 69 anos, dia 1º de maio de 1991. O título do texto,

“Bom dia para nascer”, foi imortalizado pela compilação que o jornalista Matinas

Suzuki Jr. (1993) fez de algumas dessas crônicas, no período em que o jornalista

mineiro permaneceu no diário paulistano, entre maio de 1991 e dezembro de 1992.

Apesar do corte entusiástico, o texto acaba por revelar um Otto reminiscente, como

alguém que para diante de um espelho e revive o tempo expresso nas rugas e na

calvície grisalha, que o jornalista afirmava acumular.

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A velhice que batia à sua porta parecia tirar o fôlego do escritor, que chegou a

reclamar da insistência de Fernando Sabino, para que publicasse as cartas que os dois

trocaram durante toda uma vida:

“(…) Pois o Fernando cismou que eu devia publicar pelo menos parte das cartas que

lhe tenho escrito ao longo de mais de quarenta anos. A idéia me horroriza. Tenho cada

vez menos ânimo para escrever cartas, mas há em mim um demônio epistolar. É o meu

algoz. Se houvesse reencarnação, eu devia ter sido escriba ou escrivão nos séculos

passados. Sou grafômano e espistológrafo, duas coisas abomináveis. Basta ver as

palavras. Se dependesse de mim, eu parava de escrever cartas. Parava de escrever tudo

estou cansado de ser datilógrafo” (RESENDE, 1994, p.253).

No entanto, Otto nunca aposentou sua máquina de escrever. Na semana em que

morreu, mesmo enfrentando a difícil convalescença de uma cirurgia, permaneceu

com sua crônica diária para a Folha de S.Paulo. Tamanha era a lucidez do jornalista,

que fez um balanço de sua vida:

“(…) Hoje estou maduro, como diz Heleninha: careca e velho: Velho Careca, mas lindo

(ela morde e sopra). Acumulo careca com cabelo branco. De repente, olha aí a vida

passando. Ultimamente, passaram-se muitos anos. O Rubem tem razão. E a gente vai

ficando com esse cabedal, no fundo continuamos, esperamos, vamos vivendo, os filhos,

essa coisa. Sonho com um pouco de calma, parar, viver mais para mim, nunca fui de

muita agitação, mas cedi, concedi muito, vida social estéril, bate-papo, eu sempre em

falta com todo mundo, ninguém em falta comigo. Conheci muita gente, passei por

muitos lugares, tive muitas encruzilhadas, aprendi um pouco, no fundo não me deixei

tocar, sou um coração inclinado à misericórdia, tenho raivas passageiras, faço cá meus

juízos sobre coisas, fatos e pessoas, alguns julgamentos impublicáveis, o que seria

interessante dizer é cedo ou é inconveniente, vou calando, vou saindo com o rabo entre

as pernas, (…) Às vezes eu me sinto como alguém que esqueceu alguma coisa em algum

lugar. Não sei que coisa, que lugar. Nem sei que alguém. Eu. Quem sou eu? Abraços,

abraços, abraços” (RESENDE, 1994, p.306).

Os muitos abraços parecem profetizar o que estava para acontecer, conforme

acentuou Otto: “(…) Penso na morte o tempo todo. Busco fazer um pacto com ela.

Leio tudo que descubro sobre o tema” (2002, p.65). E de tanto aludir ao tema, a

traiçoeira noturna com foice na mão, chegou para aquele que nasceu e renasceu várias

vezes em vários bons dias.

Uma hérnia de disco tirava o sossego do cronista que batia a máquina. Perfeccionista

do tipo que chegou a afirmar que sofria de “bibliofobia”. A tal hérnia com que

padecia Otto, contudo, o impedia de se sentar para poder escrever. Como sua esposa,

decidiu-se operar da mesma doença. Mas, segundo Medeiros (1998), a família se

queixa de que o cronista teria sido vítima de erro médico:

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Foi internado no Hospital da Beneficência Portuguesa, na rua Santo Amaro, na Glória,

aos cuidados de uma equipe médica comandada por um cirurgião renomado, Paulo

Niemeyer. No dia seguinte à suposta intervenção salvadora, realizada a 9 de dezembro

de 1992, logo se percebeu que as coisas não tinham indo bem. Para surpresa geral, os

médicos decidiram conduzir Otto, de novo, à mesa de operações. A explicação para essa

segunda cirurgia não satisfez a família, que começou, a partir daí, a suspeitar de erro

médico. Otto, apesar de gozar de excelente saúde, com 70 anos completados seis meses

antes, não tinha mais idade para submeter-se a anestesia geral duas vezes em período

tão curto. De todo modo, ele recebeu alta no dia 14 e voltou para casa, na Rua Frederico

Heyer, na Gávea. Seu aspecto físico, na fase pós-operatória, não agradava a família.

Fazia fisioterapia, mas não parecia melhorar. Até que numa noite acordou uivando de

dor. Helena [esposa] chamou a ambulância. Otto foi sedado com morfina e retirado de

casa numa maca, de madrugada. Não retornaria (p.13).

Novamente na Beneficência Portuguesa, Otto só fez piorar. Passou por um estado de

demência, e o médico responsável pelo tratamento recusava-se a aceitar a ajuda de

outra de equipe, ameaçando a abandonar o caso. Na madrugada de 28 de dezembro,

Otto não resistiu. Assim como em seu conto “Elo partido” (1975), deve ter se

questionado: “– Quem sou eu? – perguntou à mulher de branco que acabava de entrar.

Dócil, conquistado, nem ao menos quis ouvir a resposta. Já não havia nomes, nem

rostos”. Sorrateira madrugadora, a morte não se fez de rogada, caminhou entre

Helena e Otto, o qual já havia asseverado: “A morte é noturna. À noite, todos os

doentes agonizam” (RESENDE apud Medeiros, 1998, p.13).

E assim partiu Otto. No entanto, deixou como legado uma vastíssima obra jornalística

e literária que até hoje evoca a admiração em torno do autor e personagem de cenas

indeléveis. A porosidade que se desmancha com o morrer das ondas foi leitmotiv

para que Otto também se desmanchasse em memórias de sua “Pequena Pátria,

Minas” e de sua interminável e quixotesca andança mundo afora.

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Capítulo II

PLEASE? UMA CACHAÇA, UM CHOPE E UM

SCOTT, UAI!

2.1 Reflexões preambulares

isudo, alto, loiro, olhos claros, nazista. Imediatamente à combinação desses atributos

tem-se construído o estereótipo17 de um alemão. O mesmo se dá quando a referência é

para uma pessoa de olhos puxados, tez amarela e alto nível de inteligência: um japonês.

Nesse último, a alteridade dos vizinhos é subsumida como a nipônica, já que alçados tais

apanágios, todos os orientais podem ser subjetivados como procedentes do Japão. O mesmo

acontece com o Nordeste brasileiro. Representados midiaticamente em narrativas seriadas, os

personagens daquela região acabam por ter, quase todos, sotaque soteropolitano. Por certo, os

traços genéticos podem ser definidores de grupos sociais específicos, como os alemães ou os

orientais; no entanto, quando o discurso joga com a caracterização e marca sujeitos como

pertencentes a determinados recortes societários, tem-se não apenas um artificialismo cultural,

como também um lugar de poder garantido àqueles que definem posições subjetivadas de um

espectro humano localizado.

Tais considerações complementam o capítulo primeiro, pois, se naquela seção demonstrei os

deslocamentos de Otto por diversas culturas regionais, também conhecidas como subculturas,

agora, empreendo uma análise que estabelece como os papéis sociais são teatralizados e

construídos institucionalmente a partir de cenários que tomam para si e são tomados por discursos

previamente elaborados por vozes legisladoras de um establishment que se efetiva através da

sobreposição contínua de diferentes campos de atividades do homem. Para isso, tomo como

referência, por ora, os dois principais lugares de fala de Otto: Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Apesar de evidentes, as leituras que ecoam do ideológico, do simbólico e do poder, ressalvo que,

enquanto pesquisador, devo me posicionar de uma forma que não engesse a análise a partir dessas

correntes teóricas. Por isso, aproprio-me de searas sociológicas com o objetivo de

17 Uso o termo no sentido prosaico, sem vinculação a uma teoria.

S

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identificar determinadas idiossincrasias que podem não ser referendadas apenas por

discursos gerados institucionalmente, mas efetivadas em um modus operandi de

determinada sociedade.

Como no capítulo anterior, cotejo a empiria – crônicas de Otto – e o quadro teórico

estabelecido por diferentes estudiosos. Assim, para não correr o risco de alinhavar

retalhos incomunicáveis, quero demonstrar que uma leitura transdisciplinar é

fundamental para o que me proponho nesta parte da dissertação. Para alcançar tal

objetivo, dividi o capítulo em três momentos: num primeiro, discuto a chamada

cultura da Mineiridade e sua formação discursiva a partir das memórias presentes

nos textos ottolararesendianos. Em seguida, empreendo um estudo da Carioquice por

meio da influência que os aspectos geográficos e urbanos produziram sobre o carioca.

Na terceira parte de minha análise, evidencio como os ditos18 sobre a cultura dessas

regiões podem ser interpelados por discursos oriundos de diversos campos, que

operam maquinalmente sobre a subjetivação e a construção dos lugares de poder

consolidados no imaginário social.

Apesar do estranhamento que pode causar, promovo um enfrentamento entre autores

que – academicamente – foram separados por um muro que os impede de dialogar.

Um exemplo pode ser visto quando estabeleço um encontro entre teorias marxistas e

de subjetivação. Creio que o engessamento monolítico das posturas científicas não

contribui para uma racionalidade analítica que toma o social como objeto. Ao se falar

de um tema tão complexo, penso que diferentes vozes teóricas são seminais para

elaboração de um quadro amplo de pesquisa que não se pretende encerrar por si, mas

abrir uma possível interlocução colaborativa com pesquisadores de diversas áreas.

2.2 “Minas está onde sempre esteve”

O título que nomeia esta seção foi escrito por Otto em 1961, quando da posição do

então governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, em relação à crise gerada pela

renúncia do presidente Jânio Quadros. Chamado às Minas Gerais, o jornalista

escreveu o “Manifesto dos Mineiros”, um documento que reafirma a conciliação e a

ponderação do Estado no que se refere aos períodos conflituosos do cenário político

18 Entendo por dito algo cristalizado socialmente e que concorre para a formação do imaginário sobre aspectos de

determinados recortes culturais.

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nacional. Nesse caso, o imbróglio era por conta da posse do vice de Quadros, João

Goulart. À época, ministros militares queriam impedir que Jango, em visita oficial à

China, chegasse ao executivo. Representantes das Forças Armadas temiam a ligação

do futuro presidente com os partidos Comunista e Socialista Brasileiros. Mas, por

meio da “Campanha da Legalidade” – a Constituição previa a posse do vice se o

presidente se afastasse – Jango chegou ao poder no dia oito de setembro de 1961, o

que frustrou o militares até o golpe de 1964.

Apesar do tom conciliatório que Otto imprimiu ao texto, ele teria afirmado mais tarde

que era favorável à posse de Goulart. Não por acaso, os bastidores da imprensa

brasileira informam que a entrevista de Jango a Otto para a revista Manchete, nas

vésperas de sua deposição pelos militares, teve as respostas formuladas pelo próprio

Otto, que não se cansava de reiterar sua veia apaziguadora. “Sou visceralmente

conciliador. A coisa que mais admiro no mundo é ponte19”. A partir da própria

citação do jornalista, aparece um problema central sobre a cultura regional. Quem

são esses mineiros, conciliadores, os quais vivem na ponte e são convocados a

apaziguar os humores que o país enfrenta nos momentos de crises? São eles

simplesmente produto de uma genética assegurada pelas fronteiras de seu estado

natal ou são representações que assumem um ethos que é atribuído a si e por si?

Em artigo apresentado ao XV Congresso de Ciências da Comunicação na Região

Sudeste em 2010, defendi o argumento de que “(…) mais que estar conectado ao

Estado por certidão de nascimento, a Mineiridade é uma representação simbólica que

confirma as idiossincrasias dos sujeitos de Minas Gerais” (CASTRO, 2010, p.01). A

assertiva responde parcialmente as questões feitas no parágrafo anterior. Apesar de

ainda preservar tal pensamento, a reflexão mais apurada sobre o ser mineiro me leva

a crer que, de fato, há idiossincrasias que os diferenciam de pessoas de outras

localidades. Não compactuo com a responsabilidade genética pela formação do

sujeito, mas entro no circuito das construções sociais herdadas que preservam certos

costumes dos moradores das Alterosas:

19 Disponível em http://ims.uol.com.br/hs/ottolararesende/ottolararesende.html Acesso em 14/01/2013.

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A abordagem da identidade regional supõe (…) desvendar as elaborações produzidas

por sujeitos sociais que não se constituem em meras ilusões, mas em momentos

fundantes do próprio real. A constância dos discursos regionalistas testemunha a

existência de um fenômeno cujo significado provoca o seu conhecimento (ARRUDA,

1989, p.42).

À prática desses hábitos que são engendrados pela sociedade mineira, estudiosos

chamaram Mineiridade. Foi a partir dos movimentos libertários dos conjurados,

segundo Arruda (1989), que se inventou a tradição de Minas. A bandeira e seu dito

“Libertas Quae Sera Tamem” é o símbolo máximo da urdidura que conecta o passado

próximo com o discurso presente sobre a Mineiridade. A tradição, portanto, passa a

se constituir de outra forma nas sociedades contemporâneas. Aliás, o que é

considerado tradição deve ser visto com parcimônia, pois, conforme atesta o

historiador Eric Hobsbawm (1984), alguns caracteres inscritos no espectro

tradicional não passam de costumes produzidos artificialmente para figurarem nesse

locus:

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas

por regras tácita ou abertamente aceitas: tais práticas, de natureza ritual ou simbólica,

visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que

implica, automaticamente uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que

possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (p.09).

No entanto, é preciso definir os termos supracitados e estabelecer uma diferença entre

tradição e costume. Segundo Hobsbawm (1984), a tradição deve ser vista como

invariável e fixa. Os costumes, por sua vez, permitem mudanças nas formas sociais

e atuam como um passado que sanciona as rupturas. Ainda é preciso estabelecer outra

ressalva entre os termos que orbitam a tradição. Para Hobsbawm (1984), rotinas e

convenções são demandas técnicas e estão, numa concepção marxista, localizadas na

infraestrutura ou base econômica. Já a tradição ocuparia a superestrutura, lugar da

ideologia. Nesse sentido, a tradição operaria como forma de inculcação social já que

escamoteia as relações classicistas que são travadas cotidianamente.

A partir do posicionamento do historiador, entendo que a questão da Mineiridade

comporta tanto uma construção simbólica da realidade quanto uma fatia do real

realizado. Não é difícil perceber como esse duplo mecanismo opera sobre a cultura

de Minas Gerais. Por um lado, há lugares de fala marcados socialmente que nomeiam

e caracterizam os geralistas. É o caso, por exemplo, da conciliação, que tende a

atribuir um locus de poder ao discurso apaziguador formulado pelos políticos das

Alterosas. Por outro lado, creio que é justamente a tradição que penetra, através dos

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costumes, o modo de ser dos mineiros, lhes conferindo uma aura20 consubstanciada

entre uma vivência rural intensa e uma urbanização que pode atender às demandas

solicitadas por uma economia globalizada – entendida num sentido vertical.

Conforme Marcel Ângelo (2005):

É também conhecida a importância da exploração do ouro nesse processo, que, no

século XVIII, gerou o aparecimento de uma vida urbana – e, como conseqüência disso,

a formação de uma sociedade mais dinâmica, dentro da qual constituiu-se uma classe

média composta por uma elite letrada, que incluía funcionários públicos, profissionais

liberais e membros da Igreja. Criou-se, dessa forma, as vilas, diferentes das sedes rurais

que até então controlavam a vida no interior do país (p.25).

Assim, a cultura da Mineiridade não seria um empreendimento experiencial, dado

seu caráter marcado no cotidiano mineiro, mas uma tradição inventada, pois é

justamente no presente que os discursos recorrem ao passado áureo para construir

uma representação simbólica do homem de Minas Gerais. Tendo em vista que a

atividade mineradora apareceu por volta do século XVIII, e as consequências sociais

desse segmento econômico demoraram algum tempo para se consolidarem, um

discurso presente marcadamente tradicional não se referenda, pois comparados a

outros eventos históricos, o garimpo seria algo muito recente para ter se estabelecido

como uma tradição. Prova disso é que a decadência do período aurífero ocorreu ainda

no mesmo século. Imediatamente a isso, gestou-se em Minas um movimento

centrífugo em relação aos locais de produção aurífera, e as fazendas tornaram-se uma

nova forma de atividade econômica, pois eram elas quem abasteciam com seus

produtos os mercados de São Paulo e, principalmente, do Rio de Janeiro. Com isso,

a apropriação recente de um discurso sobre a tradição mineira alegoricamente

definida pelo período dourado não se fundamenta, pois a brevidade dessa atividade

e sua proximidade com o presente representam, de fato, uma invenção de tradições.

A partir de estudos sobre a identidade, a analista do discurso Dylia Lysardo-Dias

(2008) explica como o fenômeno do regionalismo arquiteta-se dentro das dinâmicas

das fronteiras imaginadas:

(…) ao eliminar os contrastes, os discursos regionalistas reorganizam os

acontecimentos históricos e re-significam os fatos sociais de forma a elaborar uma visão

diferenciada em relação a outros “posicionamentos regionais”. Como toda identidade,

a identidade regional é uma construção relativa à dinâmica dos atores sociais, à sua

forma de habitar o mundo e à relação que entre eles se estabelece (p.03).

20 Uso o termo no sentido prosaico, sem levar em conta os estudos de Walter Benjamin sobre o conceito.

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Um exemplo disso encontra-se na obra de Alceu Amoroso Lima (1983), Vozes de

Minas. Nela o autor lista aproximadamente 70 categorias21 que procuram descrever

o ser mineiro. Seu argumento sobre a formação social de Minas Gerais, no entanto,

fundamenta-se no aspecto geográfico do estado. Ao defender que “o fenômeno

mineiro é condicionado, todo ele, pela Montanha” (p.43), o autor acaba por construir

uma posição sociológica que joga com a Geografia Física, o que pode excluir as

interações sociais e a produção discursiva como ponto de constituição do conjunto

de práticas que perpassam as identidades construídas a partir dessas interlocuções

dentro desses espaços. Apesar de não descartar por completo os estudos sobre a rede

de relacionamentos travada entre os sujeitos de Minas Gerais propostos por Lima

(1983), o espectro de sua sociologia, no que concerne à formação morfológica da

geografia mineira, não me fornece os subsídios necessários para uma discussão mais

crítica do processo. Na citação abaixo, fica evidente que seu pensamento a respeito

das identidades dos “montanheses” está concentrado na questão geográfica:

A terra se levanta em grandes serranias que separam todas as regiões do resto do país.

Sobe-se a Minas. O mineiro desce ao litoral e aos outros Estados. Minas está em dois

planos. Para se chegar do litoral ao coração da província é preciso passar por duas

serranias. Cada uma delas basta para fechar o horizonte. Para dar a toda região o seu

aspecto de isolamento. A terra é áspera e deserta. O homem se sente pequeno e perdido.

(…) A montanha, a verdadeira montanha, é inabitável, inóspita, fechada. Levanta-se

como um obstáculo. Como uma negação. Como um limite. Se a colina é o sorriso da

terra, a montanha é a cara fechada. É o sobrolho baixo. É a barreira. O homem da

montanha sente, a cada momento, o horizonte fechado. Daí sua taciturnidade. Sua

concentração. Sua fidelidade. (…) Trata-se de uma organização de convivência em que

os valores de segurança, de permanência, de intensidade, de tradição ou por vezes de

rotina (que é a corrupção da tradição) – prevalecem sobre os valores de risco de

agitação, de superficialidade e de progresso. (…) pois a sociologia de Minas significa

afinal a vida social do mineiro e portanto a psicologia da coletividade, em complemento

à da pessoa – vemos a primazia dos valores de perenidade sobre os valores de

atualidade. O grupo mineiro vive sempre em função da duração. É uma vida grupal feita

para durar e não para desfrutar apenas o momento que passa. Daí a deliciosa e preciosa

inatualidade, tanto da psicologia como da sociologia mineiras (LIMA, 1983, p.43).

A montanha imporia à alma mineira limites intransponíveis. Levado ao pé da letra, o

estudo de Lima (1983) pode descartar a possibilidade de interação com o que vem de

fora. Escrito em 1983, o texto constrói um lugar utópico em que as influências

externas são inexistentes. Mas, como defenderei no capítulo seguinte, a presença da

21 Não integra meu estudo a conceituação essencialista do ser mineiro. No entanto, os aspectos residuais de sua

formação se tornam importantes para o entendimento do universo descrito. Abro esse parêntese para justificar,

portanto, a categorização em torno dos qualificativos que são atribuídos aos geralistas. Ressalto, porém, que algumas

dessas categorias estarão presentes ao longo de minha análise, pois elas oferecem um suporte para que se possa

discutir a subjetivação que se encontra ligada à constituição dessas identidades.

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mídia reterritorializou o sistema de cartografias, tornando as fronteiras espaços

porosos que possibilitam a interlocução entre sujeitos deslocados no espaço e até no

tempo. De fato, a obviedade dos morros como um limite da visão orgânica é

indiscutível, mas assumir tal condicionante como fator único que implica

taciturnidade, remete a um discurso gerado a partir de uma posição de um mundo

mágico, uma esfera mitológica de entendimento da realidade. Não afirmo com isso

que não seja possível a criação de mundos a partir de um ponto de vista mítico, mas

entendo que uma verdadeira sociologia de análise deva levar em consideração outros

elementos como o dogmatismo religioso, as manifestações artísticas, os jogos

políticos, os produtos simbólicos e, um dos aspectos mais importantes, as vozes que

atribuem os qualificativos aos mineiros. Isso ocorre mais comumente na descrição

da literatura dos viajantes, como os europeus que cruzavam o estado anotando, a

partir do seu ponto de vista estrangeiro, a impressões acerca dos autóctones:

“(…) o paulista, embora reservado, sente-se mais à vontade com os estrangeiros do que

seu primo [mineiro]; este último pode ser descrito como acanhado (…) Ambas as

províncias são igualmente hospitaleiras (…) o paulista tira o chapéu, dá um bom dia

cordial e responde de boa vontade a todas as perguntas. O mineiro nos olha bem antes

de tirar o chapéu, muitas vezes sua mão fica suspensa (…) imaginando, infantilmente,

se o estranho irá, ou não, corresponder o cumprimento (BURTON apud ARRUDA,

1989, p.84).

Que mineiro se assumiria infantilizado diante do forasteiro? Penso que é no cabedal

de discursos como estes que são forjadas as identidades que concorrem para a

naturalização e essencialidade da cultura de Minas Gerais. Sugiro, com isso, que o

campo discursivo tende a superdimensionar e criar paradigmas que operam num

sentido oposto ao do comportamento realizado na esfera das interações diárias entre

os membros do grupo. Sustento tal argumento com base no estudo de Simone Maria

Rocha (2003) sobre a recepção de personagens mineiros estereotipados pela

televisão. Após pesquisa empírica de campo, Rocha (2003) conclui que “Ele

[discurso da mineiridade] continua muito presente no imaginário das pessoas. Não

exatamente no comportamento. É o espírito da política mineira que ainda informa as

plataformas e os arranjos políticos, agora inseridos num contexto mais amplo” (s.p.).

No entanto, Lima (1983) defende que a “Missão de Minas” seria preservar os traços

do passado e impedir que o progresso destruísse os princípios morais que guiam a

Mineiridade. Para alçar tal posição, o autor arquiteta (1983) arquiteta como

imperativos ministeriais do estado: 1º) preservação da primazia moral; 2º) família

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coesa, fecunda e fiel e 3º) missão de ordem preservativa, reformadora e

compensatória. É preservativa na medida em que cabe a Minas resguardar a imagem

da tradição e do passado. É reformadora porque cumpre ao Estado corrigir o que o

tempo corrompeu. E é compensatória, pois como centro do Brasil, deve funcionar

como ponto de equilíbrio. Assim, o autor conclui que “Minas não é o Brasil. Mas

está naturalmente fadada a ser o centro de gravidade do Brasil” (p.124). Seu

postulado reflete uma visão tradicionalista, a qual já identifiquei no capítulo primeiro

quando Otto, ao conhecer Lima, cunhou a expressão “encontro com a glória”.

Integrante da ala conservadora da Igreja Católica, as vozes de Minas que perpassam

a sociologia de Lima (1983) ecoam um tradicionalismo assaz, no qual a perspectiva

é muito mais doutrinária do que sociológica.

Se o trabalho de Lima figura como um rococó profético sobre Minas Gerais e Rocha

(2003) afirma que esse recorte cultural é substanciado menos no comportamento do

que no discurso, então seria correto afirmar que não existe uma cultura da

Mineiridade de fato? Dependendo da perspectiva que se adote é possível dizer que

sim. No entanto, entendo que há um conjunto de práticas societárias que podem ser

tomadas como elementos verdadeiros da cultura da Mineiridade. A evidência disso é

mais fácil de ser percebida a partir da diferenciação entre os conceitos que orbitam

as identidades alçadas pelos e para os mineiros:

“(…) Aliás, a própria preservação do tempo anterior, ao fazer parte do universo social

seguinte, já aponta para as peculiaridades dessa sociedade, que continuou a olhar para

trás, com um misto de nostalgia e apreço exagerado, demonstrando o aparecimento de

certo deslocamento entre as visões que se formaram e a realidade de Minas setecentista.

Noutro plano, a permanência dos dias passados no imaginário demonstra a incapacidade

da teia social de gerar novos projetos ou, pelo menos, a impossibilidade de uma classe

social lidar, adequadamente, com a sua realidade e se controlar, com mais segurança,

as virtualidades futuras. (…) De qualquer forma, a realidade social de Minas no século

XIX, encaminhou-se para certa autonomia, criando uma sub-cultura singular, fruto do

amálgama entre o passado e o presente, que se poderia denominar por mineirismo. O

mineirismo constitui, portanto, a expressão de uma sub-cultura regional. A

manifestação cotidiana do mineirismo é a mineirice, enquanto um modo de

aparecimento das práticas sociais inerentes aos mineiros e que servem para distingui-

los de outros tipos regionais. A mineiridade exprime, em contrapartida, uma visão que

se construiu a partir da realidade de Minas e das práticas sociais. Por fundar a figura

abstrata dos mineiros, a mineiridade tem as características do mito: estes ao

identificarem [-se] com essa construção absorvem o pensamento mítico e colaboram

para a sua permanência; o mito quando politicamente instrumentalizado, adquire

dimensão ideológica” (ARRUDA, 1989, p.198).

A hipótese sustentada por Arruda (1989) se aproxima de uma sociologia preocupada

com o entendimento da cultura de grupo. Apesar de situada no nível ideológico, ela

incita uma discussão mais ampla sobre os campos que podem interferir na construção

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das identidades dentro de um espectro mais amplo de interação. A relevância da

presença do mito reside justamente no fato de poder-se atribuir a essas formações

identitárias o setor do imaginário, ou seja, formulações que não estão ancoradas à

realidade, mas que de alguma forma advêm dela e naturalizam as formações

discursivas como o comportamento de regra de determinado recorte societário.

Portanto, seguindo a lógica de Arruda (1989), a “mineirice” é transubstanciada em

Mineiridade. Acrescento, entretanto, que o mito não é apenas instrumentalizado pela

ideologia, a ele se juntam outras perspectivas que abordarei na seção final do

capítulo.

Nesse ponto, ao tomar a formação discursiva sobre a Mineiridade como um evento

situado no campo mitológico, é essencial que seja definida sua conceituação dentro

da perspectiva que trabalho. Entendo que as características do mito clássico, ao

exemplo de Platão e sua Caverna, funcionam como elo entre a ordem de objetos e as

possibilidades de associações imaginárias que os sujeitos estabelecem com o real, de

forma tal que o novo elemento constituído através dessa ligação guia-se por um

processo de verossimilhança, o que fixa limites entre as práticas e as analogias

produzidas pelo imaginário.

Acontece, porém, que entre a analogia e a prática podem aparecer elementos

perturbadores do processo, o que compromete a estabilidade do caldo que se havia

formado a partir da miscibilidade entre o analógico e o prático. Dessa constatação,

chego a um ponto seminal da formação discursiva da Mineiridade. Ela não apenas

estabelece uma rede de relacionamento entre o comportamento e aquilo que é dito

sobre ele, como também pode sofrer influências ‘maquínicas’ que acabam por gerar

um esquema de subjetivação e um consequente locus de poder constituído. Ressalvo,

no entanto, que o fio da navalha temporal que corta o espaço das formações

discursivas da Mineiridade, a partir do momento em que se apropria do mito para sua

explicação, não pode ser considerado como uma narrativa linear. Isso acontece

porque, na instância de produção, o acontecimento perde seu caráter factual e

tampouco obedece aos grandes eventos do processo de feitura histórica, marcado em

uma linha do tempo rígida, de forma tal que passado, presente e futuro misturam-se,

produzindo um limite temporal ‘ahistórico’ e abstrato. Segundo Arruda (1989), um

exemplo disso consiste na volta constante da teatralização da era do ouro. Ao citar

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Mirian de Barros Latif, a autora toca na questão quixotesca dos mineiros por meio de

uma dicotomia. Enquanto o desvario pela busca de ouro é análogo ao cavaleiro

andante cervantino, o medo de perder a riqueza conquistada, a avareza com a fortuna,

reproduz o perfil de Sancho Pança, o qual possui a voz consciente, o superego, que

perpassa o imaginário construído ao redor do mineiro. Transpassando esse espírito

para política, portanto, os mineiros acumulam o apanágio do conservadorismo ao

mesmo tempo em que a reforma caracteriza sua construção identitária:

(…) Com o mito recria-se a tradição, por meio de ‘um processo de formalização e

ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição

da repetição. No processo de criação da tradição, o uso sistemático da história serve de

fonte legitimadora de práticas sociais e de material que integra as diferenças. Esses

discursos que, ao mesmo tempo, obscurecem e revelam a natureza da vida social, são

momentos integrantes de uma dimensão ritualizada das práticas. Entre os mineiros, uma

manifestação de cunho ritualístico expressa-se no gosto de falar sobre Minas”

(ARRUDA, 1989, p.94).

Dessa forma, a história é apenas mais um substrato, entre outros tantos, para a

construção das identidades mineiras. Em artigo que defendi no “VI Congresso de

Produção Científica da UFSJ (2007)”, argumento que esse tempo cíclico é

fundamental para a sobrevivência da mitologia mineira, pois, sem ele, o presente não

estaria entranhado pelo pretérito e, tampouco, ecoaria os projetos que se baseiam em

discursos sobre os momentos grandiosos em que Minas esteve no centro da atenção

do país, como palco privilegiado de ação política. Arruda (1989) aponta três períodos

econômicos que deram força ao imaginário que se criou sobre o mineiro.

O primeiro reside no século XVIII, quando Minas Gerais experimentou sua grande

produção aurífera. É também o momento do afluxo de um grande número de

estrangeiros que esperavam prosperar financeiramente de modo fácil e rápido. Do

ponto de vista cultural, a vinda de pessoas de outras regiões do Brasil e de outros

países contribuiu para a formação de um cadinho não saboreado por nenhuma outra

província brasileira. Contudo, é preciso ressaltar que o movimento de concentração

dos imigrantes, não se localizou em determinada região do estado, mas provou um

movimento centrífugo na cartografia demográfica mineira. Esse vaivém de pessoas

“loucas” pela riqueza é acompanhado de perto pelo imaginário e mítico Dom Quixote

de la Mancha. Como apontam estudiosos da Mineiridade, o desvario era interminável

e a narrativa é a mesma – personagens correndo atrás do seu tesouro ou seu final

feliz. Apesar dessa dimensão quixotesca, o movimento pendular dos mineiros foi

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contraposto ao de outro elemento crucial da narrativa, a personagem Sancho Pança.

Sua voz pode ser comparada à sobriedade, à consciência que fixa os montanheses

dentro dos vales. O fiel escudeiro de Quixote é a voz que diz que é hora de parar.

Terminou. Mesmo que para isso tenha que perder sua imaginária ilha encantada.

Já no final do setecentos, aparece o segundo momento que concorre para a criação

do ideário sobre Minas Gerais. Imediatamente à decadência da exploração aurífera,

aparecem as fazendas voltadas para subsistência das vilas que foram sendo criadas

ao longo do apogeu dourado. Nesse período, também vigoraram os engenhos. Apesar

da proibição do governo colonial, a administração fazia vistas grossas, pois era

preciso garantir o sustento da economia da província.

A passagem do século XVIII para o XIX é o terceiro momento econômico que

compartilha da criação da imagem de Minas Gerais. Houve uma intensificação da

vida agrária, porém o movimento era de dispersão, centrífugo. Minas tornara-se um

dos principais postos de abastecimento do país e, pelo estado, passavam uma leva de

atravessadores que intensificaram o contato principalmente com o Rio de Janeiro e

São Paulo. Com isso, houve um notável crescimento urbano e um movimento regular

nas vendas, as quais eram o núcleo da cidade. Esse comércio, geralmente, era de

algum fazendeiro poderoso da região. Apenas algumas cidades, como Barbacena,

foram consideradas polos, já que apresentavam maior variedade de mercadorias.

O aspecto de desenvolvimento econômico experimentado por Minas Gerais,

portanto, também deve ser considerado como construtor das identidades mineiras,

pois ele não só revela as relações das forças produtivas do estado, como acentua os

vários mecanismos de articulação social que se formaram na constituição do grupo

como peça chave da política nacional. Isso me leva a crer que o discurso passadista

sobre as Alterosas recobra não somente o campo ideológico, mas outros espaços que

se imbuem de construir a importância do estado e de seus vultos mais famosos como

“o coração pulsante” do Brasil, a Pátria dentro da Pária:

(…) Com olhos voltados para o passado, o povo de Minas Gerais busca os grandes

feitos de sua terra e de seus homens para compartilhar sua identidade. Um exemplo

clássico, também empregado por Arruda, é a figura de Tancredo Neves. Comparado ao

mártir Tiradentes, o político de São João del-Rei, personificou, quando eleito

presidente, os ideais de liberdade já pregados na Conjuração. Além disso, sua morte é

comparada ao sofrimento de Jesus no Calvário, o que torna Tancredo ‘salvador da

pátria’ (CASTRO, 2007, p.05).

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Até agora, evidenciei alguns atributos que demarcam a construção sociológica que

se fez e se faz de Minas Gerais. No entanto, é por meio da empiria que é possível

constatar como o comportamento é codificado pelo discurso de forma tal que as

práticas suplantam seu campo de ação e passam a ser pensadas através de uma

perspectiva assentada no imaginário coletivo. Para tal, tomo como análise a crônica

“Difícil porque simples”, publicada por Otto, na Folha de S. Paulo, dia 18 de outubro

de 1991:

DIFÍCIL PORQUE SIMPLES

RIO DE JANEIRO, 18/10/1991 – Da minha parte, gostei dessa alcunha –

república do pão-de-queijo. Pode existir fora de Minas, não sei. Mas em

Minas, o pão-de-queijo é uma quitanda especial. Superior. Se você não

sabe o que é, não procure no dicionário. O dicionário é insípido.

Provável que nem registre a palavra. Cumpre sabê-la na boca, no

remoto paladar, inconsútil. Gosto, aroma, vista, é tudo junto. Uma só

onda que envolve. Impregna. E volta sempre, pavloviana.

A inserção de Otto no discurso é imediata. Ele se pronuncia por meio do pronome

possessivo “minha”, e assume uma posição de concordância e ratificação perante um

acontecimento nomeado por outro sujeito: a aparição de uma “república do pão-de-

queijo”. Tal república a que se refere Otto é Minas Gerais. O emprego do termo

república, no entanto, deve ser analisado com cuidado, pois pode gerar efeitos de

sentidos variados. O primeiro passo, portanto, requer conceituá-lo. Entendo por tal,

um sistema político em que a forma de governo é representativa e eletiva. Assim,

algo que presta serviço ao público22. Não por acaso o termo vem do Latim res

publica, que significa “coisa pública”. A esse sentido, conecto a ideia de nação com

agentes políticos que governam um povo dentro de limites temporal e territorial, e

um conjunto de regras asseguradas pelo poder judiciário.

Por meio dessa caracterização, Minas Gerais figura como um estado independente

do resto do país. E esse discurso não é à toa. Remete à historiografia libertária que

serve de suporte aos discursos políticos que se apropriam da mineiridade. A fundação

dessa característica se liga à Conjuração Mineira e seu mais proeminente ator:

Joaquim José da Silva Xavier – Tiradentes. Junto dele, forjaram-se no imaginário

22 Não é meu objetivo questionar a ética e os valores praticados a partir do termo. Empreendo tal classificação, de

forma empírica, apenas para evidenciar meu pensamento sobre a construção de Minas a partir de pontos de vistas

múltiplos.

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social os apanágios que colocam as Alterosas como centro pulsante do Brasil, uma

pátria dentro de outra:

Dos frios textos oficiais anteviu-se a idéia de que Minas é o ‘verdadeiro centro do

Brasil’, conferidora da unidade brasileira, por haver contrabalançado as forças

centrífugas durante a colônia. Resta simplesmente a passagem para conceitos como o

de equilíbrio político, considerado vocação natural dos mineiros: ‘Ocupando o centro

da país, contendo um pouco de todas as outras regiões, as Minas Gerais foram e

continuam sendo a terra da ordem e da liberdade, das tradições e da esperança’.

Enquanto síntese, Minas emerge ligada a um destino inelutável, qual seja o de garantir

a ordem e a liberdade, quer a segurança frente aos princípios dissolventes, tornada

essência de liberdade, quer a preservação da herança no âmbito das mudanças futuras.

(…) Visto serem as Minas mera abstração política, tais profissões de fé atribuem aos

políticos das Gerais papel prestigioso na preservação das instituições brasileiras

(ARRUDA, 1989, p.70).

Com isso, os mineiros passam a ser tributários de uma figura antitética: ao mesmo

tempo em que são vultos libertários a declamar poesias pela arcádica e barroca Vila

Rica, são também os conciliadores nos momentos de tensão, como quando da eleição

de Tancredo Neves para presidente, momento no qual o cenário nacional estava

ensandecido com a passagem do regime ditatorial para a democracia representativa.

Contudo, como ressalta Arruda (1989), todas essas considerações imputadas aos

geralistas são abstrações políticas, o que entra em consonância com a afirmação de

que o discurso não se apropria do real por um processo de verossimilhança, mas o

incorpora por meio de códigos que ressignificam os comportamentos de fato.

Essa percepção da realidade abstraída resulta em outro efeito de sentido produzido

pelo texto ottolararesendiano. A república não deve ser considerada ao pé da letra,

tal qual figuram nos verbetes de dicionários “insípidos”, sem sabor. Mas manifesta a

cultura de fato experimentada pelos mineiros. Tal constatação cria um problema para

o pesquisador resolver: estou diante da realidade de fato ou da realidade

representada? Creio que a resposta mais adequada seja as duas alternativas. E explico

o porquê. Para Otto, a “república do pão-de-queijo” é uma experiência vivenciada,

cristalizada e naturalizada no estímulo pavloviano diante do objeto comida. No

entanto, ao sair do forno e ser digerido pelo codificador Otto, o alimento é sintetizado

em uma construção discursiva que retira a essência do pão-de-queijo, conferindo-lhe

o sabor do signo significado. Dessa forma, para evitar o abismo do insondável,

proponho o que denomino uma “cultura de fato representada”, ou seja, há uma

simbiose entre o comportamento e o que é dito sobre o comportamento, criando

identidades mistas, já que são vividas e ressignificadas discursivamente. Essa

evidência é corroborada na continuação da crônica:

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A violência e a torta de maçã, dizem os americanos, são típicas dos

Estados Unidos. A insólita aproximação me desagrada. Lado a lado, o

sabor doméstico da torta e o horror da violência. Tentativa de dar a

violência como natural. Até inofensiva. Já a república do pão-de-queijo,

não. Junta o ideal republicano ao que há na casa de objetivamente

gostoso. Maternal. A suculenta e universal palavra pão. Duas vezes

simples.

Otto reproduz o discurso norte-americano, o qual toma um objeto – “torta de maçã”

– e uma ação – “violência” – como identificadores da sociedade supracitada. E chama

a atenção para o fato de que a analogia tenta aclimatar a violência como algo

corriqueiro, ao sabor adocicado do comportamento familiar dos americanos, os quais

se sentam à mesa e saboreiam prazerosamente o doce, ao mesmo tempo em que

mísseis cruzam o céu como pássaros cantarolando numa bela tarde ensolarada.

Todavia, o lugar de fala marcadamente assumido por Otto é o do mineiro que defende

sua “república do pão-de-queijo”. Tal qual os estadunidenses naturalizam a violência

pela torta, o cronista junta à quitanda o ideal de liberdade a que me referi

anteriormente, o que gera apenas um deslocamento referencial da analogia. Enquanto

a torta de maçã forma um caldo cultural com a violência, o pão-de-queijo acrescenta

o ingrediente da simplicidade à mineiridade. “A figura da família mineira, evocada

por esse imaginário, foi sempre integrada e suave” (ARRUDA,1989, p.193).

Essa suavidade, expressa pela analogia da analogia, produz no discurso de Otto um

efeito de sentido de que, em Minas, as coisas são resolvidas como uma mãe que afaga

o filho em desespero; a república mineira que pega no colo a república brasileira.

Volta, dessa forma, à questão da centralidade da Federação diante da União e da

prática conciliatória que é atribuída aos políticos geralistas. Apesar de Otto

reivindicar que a sua comparação não possui um viés subjetivo, como o tem a

americana, ele nada mais faz que tomar um costume das quitandas caseiras de Minas

Gerais e instrumentalizá-la em uma construção discursiva, da qual é filha de outra

célula mater congelada para fertilizar o imaginário social com a ideia de simplicidade

e conciliação dos montanheses. Como o fez Lima (1983): “A frugalidade é um traço

tradicional dessa população serrana. Se o nosso século [XX] é cruel e ama a

violência, - a vida mineira é naturalmente inclinada à cordura, à conciliação, às

acomodações, às virtudes da paz muito mais que às da guerra” (p.63). Fato

novamente ratificado por Otto no trecho da crônica “Isto cansa, mas assusta”,

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publicada pela Folha de S. Paulo dia 13 de setembro de 1991: “Nossa vocação é mais

de bombeiro do que de incendiário”.

Diante dessa perspectiva, Otto busca na simplicidade do mineiro o atributo

fundamental para solidificar a condição sine qua non para a prática conciliatória.

Encontro, novamente em Lima (1983), a voz ressoante que perpassa o discurso de

Otto: “O mineiro come pouco e come da comida mais simples possível. Bebe pouco

e não cogitou nunca de fazer grandes vinhos ou mesmo pequenos. A mesa é sempre

um acessório, em Minas. Só para os hóspedes é que a enchem de iguarias” (p.18).

Daí surge a questão da hospitalidade atribuída às famílias de Minas e o reforço da

simplicidade dos costumes como uma marca identitária. Mas, conforme argumentei,

ao serem codificados pelo espectro do discurso, os hábitos passam a integrar uma

cultura de fato representada:

Aí é que está. A dificuldade na simplicidade. Comecei a indagar aqui e

dali e já ia pelo caminho enciclopédico. A receita é fácil. Há várias. De

Ouro Preto, de São João del Rei, de Diamantina. Varia no detalhe, mas o

que importa é jeito. A arte. Como no jardim, se a mão não é boa, nada

feito. A mão para amassar e sovar. A exata pitada de sal. O forno

quente, pré-aquecido. Quanto tempo? Não olhe o relógio. A hora fala,

manifesta. No forno e em você.

Se no parágrafo anterior da crônica, Otto traduziu uma analogia cosmopolita para

outra com sotaque regional, nesse parágrafo, ele busca a afirmação dessa analogia

regionalista por meio do costume. Alguém poderia questionar se as receitas não são

uma metáfora sobre os o movimento da Conjuração ou um reflexo da atividade

mineradora nas cidades citadas, mas isso me levaria a um psicologismo insustentável.

Por isso, opto por uma retificação que o cronista faz de si mesmo em relação à

comparação subjetiva que lançou entre a torta e a violência, o pão-de-queijo e a

simplicidade. Chego a tal conclusão a partir do fato que Otto dispensa o receituário

“enciclopédico” sobre o pão-de-queijo ao passo que afirma que apenas a experiência

pode credenciar a mão das quitandeiras na arte da produção da iguaria mineira.

Para corroborar sua visão de mundo, o cronista descarta o relógio, o tempo

maquinalmente medido para se assar a iguaria. É como se um encantamento que une

os objetos aos seres indicasse toda a lição que nenhum livro de conhecimento pode

representar. Esse tempo que foge dos ponteiros e manifesta-se na alma é apontado

pelos estudiosos da mineiridade como elemento fundamental para a formação da

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subcultura da Mineiridade. Apesar de Lima (1983) destacar a formação geográfica

como determinante do mineiro, ele também encontra na apropriação temporal feita

pelos mineiros um dos elementos formadores de suas identidades. “Tudo, em Minas,

se faz sem pressa. O tempo não conta. Fazem-se sempre as coisas para durar, para

permanecer e não para aparecer, para fingir ou para ganhar tempo. O ritmo de vida, nestas

montanhas, (…) é um ritmo lento, (…) Aqui se vive mais devagar” (p.21).

Por isso, para que o pão-de-queijo dê certo, o relógio é dispensável. Há um tempo mítico e

uma sapiência escaldada que indica o momento certo, certeiro da ação. Esse tempo parado

segue o ritmo que os “verdadeiros” mineiros lhes impõem. Não é um tempo medido grão a

grão pela ampulheta, mas uma formação mítica que habita e joga com a política e com a

cultura dos geralistas, que se constrói e se desconstrói nas palavras encantadas de quem

narram a Mineiridade a partir da “circularidade do seu tempo mítico. Do ir e vir até a

sua ultrapassagem, como nas palavras de Guimarães Rosa: ‘Os tempos mudavam, no

devagar depressa dos tempos’” (ARRUDA, 1989, p.30).

Assim, nessas “muitas Minas”, ainda, conforme Rosa, as identidades são construídas

a partir de um discurso que demarca um território fechado, mas com uma carta de

sabores internos múltiplos, e por um tempo que escorre dentro de um “nonada”, de

um eterno infinito expandido entre galáxias que se intersectam no alinhamento entre

passado, presente e futuro. Os tempos da memória e da presença engendram um

deslocamento de velocidade molecular, tão pequeno que praticamente imperceptível.

O trecho seguinte da crônica de Otto oferece um pouco desse tempo clivado e

unitário, ao passo que esconde os mistérios que os mineiros guardam apenas para si:

No Serro Frio havia a Maria Pão-de-Queijo. Pergunto à Geralda, que é

serrana, quantos pãezinhos cabem num tabuleiro. Para meio quilo de

polvilho, digamos. Polvilho azedo, claro. Nunca contei. Pequenos

segredos que esconde até de si mesma. Não estão na memória. Estão no

sangue, circulam pelo coração. Quem prova é que não esquece. Só não

gosto da bola de grude, dentro. Pão-de-queijo não tem miolo. Já a

Heleninha adora, embatumado.

Aqui, o locutor com lugar de fala no presente desloca sua presença para o passado.

Otto faz isso por meio de suas lembranças da caricata “Maria Pão-de-Queijo”, que

possivelmente recebeu a alcunha por conta de sua famosa quitanda, como acontece

em muitas cidades de Minas Gerais. Atualmente, São Tiago, na microrregião dos

Campos das Vertentes, possui título semelhante: “Terra do Café-com-Biscoito”,

justamente pela fama que conseguiu por meio da produção artesanal do produto. Mas,

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voltando ao deslocamento do autor, isso lhe permite um credenciamento para falar

sobre o assunto. Conhecedor da receita, indica até o tipo de ingrediente que deve ser

usado. Interessante perceber que uma voz corta a de Otto. Geralda o interrompe por

meio da resposta “Nunca contei”. O uso do discurso indireto livre pode disfarçar a

apropriação que o cronista faz do mundo do saber da personagem e conduzir o leitor

a construir uma leitura que interprete como sendo de Otto os segredos do pão-de-

queijo.

Segredos que cumprem guardar no coração, como se fosse algo herdado, acumulado

geneticamente através das gerações. Uma cultura tradicional. Otto afirma que

segredo de quitanda pode ser guardado na memória, tanto é que assinala que “quem

prova é que não esquece”. Seria mais um segredo mineiro a memória que registra no

paladar? Creio que a resposta a essa pergunta mereça uma reflexão cuidadosa. Isso

porque, como evidenciado na cultura mineira, a cozinha e suas receitas são alçadas

como importante elemento que compõe as identidades locais. Esse gênero textual,

portanto, é um dos meio que ajudam a construir a aura mineira, pois o

comportamento, o modo peculiar de produção das quitandas, apropriado pelo

discurso, torna-se uma representação da realidade, o que me permite compreender o

processo de transferência que ocorre de um sentido para outro.

A “cultura de fato representada” é chave para resolução de mais um problema que se

apresenta no excerto da crônica de Otto. Quando ele diz que a cozinheira esconde

segredos de si mesma, contribui e reforça o imaginário social sintetizado sobre as

idiossincrasias mineiras. Tal fato está diretamente ligado ao que é dito sobre a

taciturnidade dos homens que habitam a montanha. Metido consigo mesmo, é com

um olhar “oblíquo e dissimulado” que recebe o forasteiro que “invade” suas divisas.

O capixaba Rubem Braga foi um desses estrangeiros que tentou guarita em Minas,

mas ficou mesmo na soleira da porta:

(…) Os mineiros, eu conheço os mineiros. É de vê-los, os mineiros, quando uma tarde

se telefonam e se dizem – que a Vanessa chegou. Durante dois, três dias, sempre que se

encontram na rua ou em um bar, eles se detêm um instante como duas formigas que se

cumprimentam e anunciam que Vanessa está aí. Eu jamais vejo Vanessa, (…) Creio que

nenhum deles namora Vanessa, mas a presença de Vanessa, e mesmo a simples

iminência da presença de Vanessa, é uma espécie de senha que os faz estremecer. Às

vezes em Milton, às vezes em Abgar, e sinto que Rodrigo telefona a Afonso e

Drummond. Ainda não me expliquei é como vem Emílio Moura. É difícil supor Emílio

Moura numa poltrona de avião ou mesmo dentro de um trem. Parece que Emílio Moura

se desencarna em Minas e se reencarna lentamente nas imediações da casa de Fernando

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Sabino. Então se faz anunciar (…) Lentamente vão chegando Paulo Mendes Campos,

Otto Lara Resende, Hélio Pelegrino (sic), Marco Aurélio Matos, a quem Emílio diz com

doçura – estive ontem com seu pai.

Uma vez eu estava presente – mas de súbito compreendi que ia se realizar um rito

exclusivamente mineiro e achei melhor me retirar. Eles ficam sussurrando (…) fala-se

pouco de literatura, alguma coisa de política, dá notícia de pessoas (…) O mais que eles

falam é segredo mineiro; suspeita-se que debaixo do maior sigilo comentam, pessoas

do Pernambuco, do Rio Grande do Sul e outros países estranhos e certamente bárbaros;

tramam ocupar novos territórios capixabas e sonham com um porto de mar – pois assim

são os mineiros.

No fim de dois, três dias, eu já posso ser admitido à presença de Emílio Moura (à

presença de Vanessa nunca fui) e quase sempre ele nesse momento está dando notícias

(…) de algum filho de Minas. Eu fico quieto (…) (BRAGA apud ARRUDA, 1989,

p.94. Grifo da autora).

Novamente aparece a questão ritualística que integra o mito da mineiridade. Braga é

“proibido” de conhecer Vanessa, metáfora empregada para definir o jeito recatado,

com reservas, com que os montanheses têm com o outro que não integra seu grupo.

Isso, enunciado por um capixaba, permite a afirmação que o discurso sobre o mineiro

foi naturalizado a partir de um lugar gerador de poder. Os nativos de Minas Gerais

são sujeitos hospitaleiros, porém mantêm certa desconfiança, recato de exposição de

uma esfera íntima compartilhada apenas entre os confrades. A ritualização, nesse

sentido, opera como uma maçonaria, apenas aos poucos escolhidos são abertas as

portas da loja, não se permitindo a entrada de cachorro, como acontece na igreja

jornalística de Otto.

A percepção dessa avareza com quem não é autóctone reforça outra construção em

torno das identidades circunscritas às Minas Gerais. Trata-se da Tradicional Família

Mineira. Com toda a sua formalidade, criou no imaginário social uma fórmula de

moral que elude qualquer acontecimento perturbador do que se convencionou chamar

de “bons costumes” e “civismo”. Apesar de não tocar diretamente nesse fato, o trecho

da crônica, ora em análise, demonstra como o ambiente familiar serve de repositório

para o conjunto de práticas que demarcam a continuidade do tempo em Minas.

Enquanto as receitas são colecionadas ao longo das gerações, uma tradição local,

tem-se a salvaguarda de um modus operandi de ação. Isso indica, novamente, a

presença da mitologia, pois o tempo, aqui, não é o da mudança abrupta, mas o de um

estado de coisas paradas em um eterno movimento. A ratificação dessa assertiva,

recupero do próprio Otto, o qual insere a filha – “Heleninha” – na continuidade do

hábito alimentar e identitário do pão de queijo. Cumpre, portanto, à família preservar

as tradições construídas ao longo dos tempos e enrijecer o campo de força às coisas

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novas, dispersivas do rito sacralizado na forma e no gosto da república sem miolo

e/ou embatumada:

“A ritualização do passado como forma de preservar a identidade encontra o seu locus

privilegiado no universo das relações familiares. Os memorialistas mineiros,

principalmente, têm sempre grande apreço por suas raízes. (…) A vida familiar, além

de sóbria, era eivada pelo ritualismo das relações (…) A família era o núcleo essencial

da identificação” (ARRUDA, 1989, p.192).

Assim, era no entreposto das relações parentais que se forjou boa parte das

identidades mineiras. Como núcleo social privilegiado, a família ditava normas e era

indicativa da relação hierática dentro do cenário social. Isso porque os mais

abastados, os pertencentes a determinados clã, tornavam-se figuras centrais na vida

das comunidades. Controlavam a vida política, ditavam os rumos econômicos,

possuíam grande influência espiritual e, acima de tudo, ditavam os “bons costumes”,

a postura social dentro da interação social. Já me referi a esse quadro no capítulo

primeiro, porém ele é recorrente na escrita de Otto, conforme o parágrafo que fecha

sua crônica:

Bisneta de uma quitandeira como a d. Zuzuca, como é que pode? Mas

tanto não nega a raça que me fala da universalidade da nossa quitanda.

Churrascaria, supermercado, restaurante, por toda parte. Inventaram o

pão-de-queijo congelado, que heresia! Venho do forno de barro, do

lado de fora da cozinha. Nunca se sabia quantos estavam sendo

assados. Não dava tempo de contar. Era assando e comendo. Ah, pobre

Brasil, assim mereça essa República!

A vida familiar é refratária às mudanças. Apesar do questionamento de Otto sobre o

gosto duvidoso de “Heleninha”, que prefere o pão-de-queijo “embatumado”, mesmo

sendo neta de quitandeira afamada, isso é motivo suficiente para que o cronista veja

a continuidade de uma linhagem de gosto apurado. A preferência pela “bola de

grude” da temporã de Otto, contudo, é um aspecto que “não nega a raça” e lhe permite

ainda reconhecer os mistérios da cozinha mineira. A insistência da cultura como algo

transmitido geneticamente volta ao centro das atenções, o que reforça o apelo às

identidades orgânicas, genotípicas. Mas, como ressaltei, a cultura, em seu espectro

mais amplo, não é fruto de uma transmissão celular, mas um conjunto de elementos

adquiridos nas interações sociais, isso responde a pergunta retórica de Otto feita no

último parágrafo de sua crônica. A cultura se encontra decantada na tradição e vice-

versa.

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Otto empreende esse reforço no sentido de assegurar as tradições. É num rompante

que ele execra a indústria do pão-de-queijo. A “heresia”, como esbraveja o cronista,

é pensada como a dessacralização da quitanda mineira. Sua produção estandardizada,

em série e vendida a varejo nos supermercados, significa a morte da obra, quase, de

arte, a reprodutibilidade técnica que aniquila a aura do alimento saboreado na

memória gustativa. Essa modernização indicada por Otto é alvejada pelo retorno ao

passado, ao costume da infância ao pé do forno e ao rabo do fogão. Poesia nostálgica

que impede o cronista de se lembrar de números, mas apenas dos aromas, cores e

sabores que salpicam suas reminiscências gustativas. Assim, é nesse tom laudatório

da tradição que excomunga a modernidade que o texto se alinha aos discursos

construídos sobre os mineiros, ratificando a “cultura de fato representada”. O

processo de subjetivação do imaginário social tende para uma ideia do que

representam as tradições das Alterosas para o resto do Brasil:

Minas me parece sadiamente tradicional, não por ser reacionária no sentido nazista,

fascista ou franquista do termo – pois nenhuma coletividade brasileira é mais

naturalmente democrática do que Minas – mas por fazer do passado um elemento vivo

do seu futuro. Minas é uma reação contínua contra as imposições da moda. Uma

afirmação de independência. Uma fidelidade viva aos dados profundos de sua natureza.

Um dos pontos capitais do papel de Minas, no Brasil e afinal no mundo moderno, que

nestas páginas estou tentando analisar, é justamente reagir contra o domínio das idéias

feitas, das panacéias modernas, dos mitos e místicas falsificadas que andam soltas pelo

mundo e que a maioria não oferece resistência. A grande função de Minas é ser fiel a si

mesma contra as ilusões da aventura totalitária. É a função de fiel da balança” (LIMA,

1983, p.43).

O pensamento de Lima (1983) referenda o que acabei de dizer sobre os enunciados

de Otto. Pois, ao contrabalancear o estado com o resto do país, Minas Gerais é

encenada como “fiel da balança”, um modelo para o resto da nação – “Ah, pobre

Brasil, assim mereça essa República!”. A construção discursiva do cronista é alojada

no pensamento de Lima (1983) e vice-versa. Com isso, tal discurso pode ser alçado

a uma posição de poder que quer realçar o valor da tradição frente às “panacéias

modernas” que, para ambos os escritores, são um simulacro de democracia, já que

aniquilam o passado e se reduzem à ideologia marxista que opera não só nas forças

produtivas, mas nos corações e mentes de sujeitos constituídos por meio de “ideias

feitas” além de “mitos e místicas falsificadas que andam pelo mundo e que a maioria

não oferece resistência”.

Ressalto, porém, que o lugar de fala de Lima (1983) e Otto cumpre justamente a

missão de assegurar o mito. Isso ocorre na medida em que os dois se apropriam dos

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acontecimentos do mundo fenomenológico, do comportamento dos indivíduos e os

codificam não só a partir de suas formações pessoais, mas sobre a influência de

instituições que lhe ditaram um modo de ser no mundo. Com isso, reforço minha

hipótese a partir da qual caracterizo essas construções identitárias regionalistas como

uma “cultura de fato representada”, pois se trata justamente da apropriação do

comportamento das pessoas em um discurso mimético, mas que possui filtros e

condicionantes para sua construção, os quais determinam a representação e a

subjetivação do que é dito sobre o recorte social.

Como já disse no capítulo primeiro, Otto não fincou raízes em Minas. Assim que

pôde, arrumou as malas e mudou-se para o Rio de Janeiro. Na época, frente à

modorrenta Curral del-Rei, já batizada Belo Horizonte, a mudança para as praias da

então Capital Federal era equivalente ao deslocamento para outro país. A experiência

com este novo grupo de pessoas provocou em Otto, até certo ponto, a incorporação

dos novos costumes, que resultaram em novo projeto de percepção da realidade. No

entanto, é válido ressaltar que, se o novo se fez presente, as origens mineiras

continuaram assombrando o cronista que nunca deixou de lançar os olhos para sua

terra natal. Mas, para entender como essa miscibilidade de identidades tornou-se

constitutiva do sujeito Otto, é preciso o esboço de uma análise descritiva da cultura

carioca, também chamada de “Carioquice”.

2.3 “O mais carioca de todos os mineiros”

Esse foi o título que Otto recebeu de Medeiros (1998) devido à incorporação do modo

de vida carioca à sua alma mineira. Ser compósito, resultado do cruzamento de

múltiplas práticas sociais, o cronista metamorfoseou-se num híbrido colecionador de

identidades. É o sujeito da fronteira. Aquele vive a se deslocar constantemente entre

cartografias que o credenciaram a ocupar diferentes lugares de fala, desde o “mineiro

de quatro costados”, até o flâneur a vadiar numa malandragem despreocupada pelas

praias do Rio de Janeiro. Assim, Medeiros (1998) aponta os interstícios que

marcaram a vida de Otto:

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Otto Lara Resende, o mais mineiro de todos os mineiros, integrando uma coleção

intitulada Perfis do Rio? Por que não? Dos seus 70 anos, quase 50 foram passados no

Rio de Janeiro. Foi um homem de Copacabana, da Gávea, da Lagoa e do Leblon.

Afirmar que virou carioca seria deslavada mentira. Seu eu profundo, presente

sobretudo, como anotou Afonso Arinos, na ficção que produziu, permaneceu mineiro

para sempre. Mineiro da Rua do Matola, de São João del Rei. Mas o estilo irreverente,

o sense of humour, como ele dizia, os mots d’esprit, o gosto da boutade, a percepção

cômica da realidade e a visão debochada do poder são tipicamente cariocas.

(…)

Digamos que Otto tenha sido, então, o mais carioca de todos os mineiros. Os fatos, pelo

menos, conduzem a essa conclusão temerária (p.07. Grifo do autor).

Entretanto, o que permite dizer que Otto tenha sido “o mais carioca de todos os

mineiros?” Com certeza não foi a simples mudança de Minas para o Rio, tampouco

a assimilação de um estilo de vida novo. Mas entendo que o dito se justifica a partir

do momento em que Otto passa a integrar o conjunto de práticas sociais cariocas e

torna-se um produtor discursivo, perpassado pelos mundos do saber e do fazer, os

quais se encontram inseridos naquilo que Carlos Lessa (2005) chama “(…) o

espetáculo da “ética” da Carioquice” (p.265). Como a Mineiridade, a Carioquice

reflete um conjunto de atributos referidos às pessoas do Rio de Janeiro. No entanto,

diferentemente de Minas, que é alçada à posição de coração pulsante da política

nacional, o centro produtor de riquezas e libertador da pátria, o Rio é construído pela

sua paisagem natural e urbana, e por sua gente cordial. Essas determinantes são

fundamentais para o conjunto de identidades que são enunciadas por aqueles que se

banham em Ipanema ou Copacabana.

O Rio foi o termômetro da renovação brasileira no século XIX. Com a autoestima

em baixa, o país ressentia-se de ter sido o último escravagista do continente, além de

ter ficado para trás na corrida republicana entre os seus vizinhos. Assim, a cidade

surgia como a metrópole progressista do Brasil. Sua arquitetura foi mudada e o ar

provincial cheirava à modernidade. Uma cidade construída numa paisagem natural

singular:

(…) O Rio como projeto e sonho foi, na virada do século, a condensação do Progresso,

tendo na largura das avenidas, na opulência dos bulevares, no faiscar da iluminação

noturna e no circular elegante pela avenida Central sua comprovação inequívoca. A

população, nas calçadas, teria a demonstração concreta da modernidade do brasileiro.

A República fez do Rio o espelho da nação como futuro feito presente (LESSA, 2005,

p.12).

E a fama do “futuro feito presente” correu mundo. Vem de 1912 a alcunha de Ville

Merveilleuse (Cidade Maravilhosa), atribuída à localidade pela escritora francesa

Jeanne Catulle Mendes. O espaço natural com suas praias, seus morros de pedras que

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pareciam feitos por encomenda e a reformulação do espaço urbano, por meio da

“Reforma Pereira Passos23”, entre 1903 e 1906, são tidos como os responsáveis pela

construção da Carioquice. Apesar de apontar que nesse período houve duas reformas,

uma protagonizada pela esfera Federal e outra pela Municipal, o doutor em História

Social da Cultura pela PUC-Rio, André Nunes de Azevedo (2003), considera que os

empreendimentos urbanísticos se deram “(…) sob o pretexto de melhorar a imagem, a

sanidade e a economia da capital federal, a fim de facilitar a imigração de estrangeiros

ao Brasil, causa momentosa da lavoura cafeicultora paulista, em crise de mão-de-obra

desde a abolição da escravidão” (p.40).

Não é de meu interesse discutir as implicações econômicas ou políticas geradas com

as reformas do espaço urbano. No entanto, as formas de relações sociais travadas a

partir de mudanças arquitetônicas na cidade podem revelar identidades que foram

forjadas sobre o carioca. Lessa (2005) ressalta que o jeito desinibido do morador do

Rio foi proporcionado pelo intenso contato com a rua:

O povo do Rio, com residência pequena e precária, sempre se utilizou abundantemente

e de forma desinibida dos espaços da cidade. Foi exaltada a extroversão como

componente típico do comportamento carioca. O clima e a disponibilidade de praias

abertas, lagoas e florestas reforçam essa tendência. Ao considerar o espaço público uma

extensão de sua residência, foram desenvolvidas a cordialidade e a descontração no

convívio (p. 16).

Na citação anterior, o autor toma o processo de urbanização e o clima como

responsáveis pelas identidades cariocas. Como a rua foi privilegiada, o morador do

Rio teria se tornado cordial, um sujeito dado à socialização. É importante ressaltar

esse último aspecto, pois, independentemente da planta idealizada pelo arquiteto, são

os usos sociais de locais públicos que fornecem os vestígios sobre as identidades

transeuntes. Tal pensamento entra em consonância com o da socióloga Linda

Gondim (2011) que, apesar de se referir a Fortaleza, consegue uma tradução sobre as

ambientações que pessoas realizam fora da esfera íntima:

23 Então prefeito da cidade.

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Assim, é possível pensar em “contra-usos” nos espaços requalificados, capazes de

subverter a lógica dos projetos e criar outros lugares, mediante a “[...] demarcação

socioespacial da diferença e das ressignificações que esses contra-usos realizam”. Essa

abordagem implica uma concepção não normativa e dinâmica do espaço público,

condizente com o conceito de sociabilidade proposto por Georg Simmel. Tal conceito

ressalta a forma, e não os conteúdos da interação social. Ou seja, independentemente

desses conteúdos, a sociabilidade significa o convívio prazeroso entre “iguais”, no

sentido de que características “inteiramente pessoais” e fatores “inteiramente materiais”

são abstraídos (p.60).

No entanto, antes de aprofundar a análise sobre o aspecto indenitário construído pelas

relações sociais dentro da paisagem urbana, gostaria de me prender um pouco mais

ao desenvolvimento histórico do Rio de Janeiro. A Capitania Real de São Sebastião do

Rio de Janeiro foi fundada em 1562, como uma reação portuguesa aos invasores

franceses. Por isso, a cidade era um ponto militar estratégico, algo também facilitado

por sua geografia montanhosa. Na época colonial, o Rio funcionava como ponto de

vazão da economia portuguesa. Passavam-se escravos contrabandeados em direção

ao Rio da Prata, mercadorias das Índias em direção à Europa. A cidade vivia uma

dinâmica de grandes centros da época. O século XVIII registra o contato com o ouro

de Minas Gerais, que substitui a prata portenha e intensifica as relações sociais

efêmeras da rua pelo comércio do metal precioso.

A mudança da Capital Federal de Salvador para o Rio se deu em 1736. Com a vinda

da Família Real Portuguesa para o Brasil, em 1808, o Rio de Janeiro passou a ter os

ares de capitalidade. Tal fato se confirmou em 12 de agosto de 1834, com a criação

do Município Neutro do Rio de Janeiro. A cidade tornou-se independente do resto

fluminense e virou sede do governo de D. João VI. Além de concentrar o poder

administrativo e militar, tornou-se palco da vanguarda que aportava no país. Assim,

o Rio passou a ser o centro preferido do Brasil no que tange aos movimentos de

imigração interno e externo:

O Rio foi o umbral aberto ao exterior. Como capital, foi o espaço mais cosmopolita do

país: pelo Rio o Brasil articulou-se com as demais sociedades. Foi a cidade preferida

pelo estrangeiro para fixar-se e tendeu a ser a porta de recepção e incorporação dos

visitantes. Posteriormente foi ponto de atração dos migrantes internos. Lugar onde

nossa sociedade processou seu diálogo interno e sintetizou a polifonia nacional, o Rio

assimilou ideias de fora e de dentro e sinalizou inovações comportamentais para todo o

país (LESSA, 2005, p.67).

A citação acima demonstra que, como em Minas Gerais, a formação societária

carioca deu-se por meio da confluência dos mais diversos tipos. Lessa (2005) chama

a atenção para a polifonia nacional aglutinada e irradiada pelo Rio de Janeiro para

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todo o Brasil. Essa afirmação é essencial, pois ratifica e desdobra aquilo que chamei

de realidade de fato representada. Não se trata mais de pensar apenas no

comportamento e na sua ressignificação discursiva, mas nos lugares de poder que são

formados a partir de determinados lugares de fala. Se para Lima (1983), Minas era o

centro, o coração pulsante do Brasil, para Lessa (2005), é o Rio. Isso demonstra que

não apenas as lutas de classe marxistas definem a formação social, como o poder

simbólico e outros campos são determinantes para construção da imagem de uma

referida sociedade. Dessa forma, à realidade de fato representada é preciso

acrescentar o poder, o qual é gerado a partir da assimilação do mundo

fenomenológico pelo discurso com implicações diretas nas atitudes dos sujeitos.

Novamente é Lessa (2005) quem permite constatar a construção mitológica em torno

do Rio, ao qual o autor atribui a alcunha de “acrópole moderna”. “Ser do Rio não

dependeria da naturalidade, mas de um estado de espírito e da adoção de seus

modismos. Todos poderiam ser um pouco carioca mesmo sem residir na cidade,

desde que adotassem os padrões cariocas de comportamento” (p. 13). É o golpe final.

Para ser carioca nem precisava nascer ou residir no Rio, os modismos, as vanguardas

que a cidade lançava para o resto do país rural eram mais do que suficientes para que

qualquer brasileiro tivesse o sentimento de pertença, de identificação com os

requisitos necessários da Carioquice. Tal fato sublinha que as identidades não são

apenas produtos de práticas sociais, mas reflexos de discursos e centros de

apoderamento de determinados sujeitos. Quero dizer com isso que o Rio era capaz

de sinalizar para o resto do Brasil o padrão de sociabilidade a ser seguido, o que

justifica o fato do poder ser a capacidade de inculcar o outro e determinar seus

comportamentos.

No imaginário social, o Rio ocupa o lugar que o Rei escolheu para viver. Graças à

sua adaptação ao ar cosmopolita metropolitano, a cidade ganha ares de “Paris dos

Trópicos”. Possuía status quem morava na capital brasileira. Mas, além de

brasileiros, os estrangeiros também se interessaram pelo desenvolvimento carioca,

portugueses na sua maioria. O cadinho cultural formou-se a partir de uma cozinha

com uma miríade de ingredientes com sotaques os mais diversificados possíveis.

Essa Paris dos Trópicos, na virada dos séculos XIX para o XX, afirmou a francofilia

como sintomática do modus operandi do se ser carioca, e do resto do país. Pelas ruas,

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na moda, na arquitetura, na literatura, tudo imitava o jeito afrancesado de ser. “Na

entrada do século [XX] prospera no Rio a postura de flâneur: ouvir as ruas para

conhecer as entranhas da cidade” (LESSA, 2005, p.223. Grifo do autor).

Ir à praia era algo proibido. Além da pudicícia, fator considerável naquela época, o

banho de mar era algo pestilento. Na orla, eram despejados todos os tipos de dejetos

humanos. Mais do que isso, numa tentativa mimética do padrão de tonalidade de pele

dos europeus, em especial dos franceses, o sol se tornava um mal dos trópicos a ser

evitado. O uso da praia como forma de lazer só foi incentivado com a vinda de D.

João VI, que acreditava que o local funcionava como terapia para o corpo. E foram

justamente os portugueses que estimularam a praia como um espaço público de troca

de afetos. Para os ibéricos, a orla não podia ser uma propriedade privada, mas um

espaço “socialmente aberto por excelência, que permite a convivência dos mais

variados grupos sociais” (LESSA, 2005, p.169).

Convivência que, no meu entender, não constitui uma identidade monolítica, como

ressaltou Lessa (2005) quando chama o carioca de cordial e extrovertido. Tampouco

sinaliza uma sociabilidade plena, pois conforme Gondim (2011):

A rua, nessas áreas, é lugar de surpresa e variedade. Prazer e estética se combinam com

medo e perigo. Nos lugares freqüentados por playboys de classe média, pessoas e

práticas “indesejadas” também se fazem presentes. Pelas ruas onde circulam

adolescentes em busca de um som legal para dançar, transitam garotas e garotos de

programa em busca de clientes, viciados em busca de drogas, traficantes em busca de

viciados. Os encontros entre esses diferentes sujeitos no espaço público não constituem

manifestações de sociabilidade, pois dificilmente há trocas afetivas entre eles (p.67).

Apesar do contexto ao qual me refiro não ser o mesmo da autora, o pensamento dela

é apropriado na medida em que desmitifica a ideia de sociabilidade total. Ao mesmo

tempo em que o espaço urbano aglutina, ele, por si só, demarca as fronteiras para os

diferentes grupos que circulam por esse locus. No entanto, como forma de acobertar

as separações que são criadas pelas redes de contatos sociais diferenciados, a

urbanização tenta subsumir os locais públicos como pontos de encontro harmonioso

para as mais diversas tribos. Não por acaso, para romper com a pecha de cidade

pestilenta, o Rio investiu boa parte dos seus recursos em mudanças urbanísticas.

Projetos de higienização foram feitos com o objetivo de tornar a cidade menos

provincial. Além disso, a metrópole deveria funcionar como cartão postal para que o

país entrasse de vez no sonhado progresso econômico mundial. Diferentemente de

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Minas, com seu passado colonial tradicionalista, o Rio de Janeiro se pretendia uma

cidade progressista.

Apenas a título de informação, Lessa (2005) lembra que antes da primeira metade do

século XX “a iluminação pública promoveu a vida noturna na cidade e ampliou a

ideia de lazer pela calçada. A criação dos bulevares – avenida central, Passeio

Público, avenida Beira-Mar – desenvolveu o costume social de flanar pela calçada”

(p.204). Outro fator que determinou as práticas sociais cariocas como eminentemente

travadas no espaço urbano fora de casa, foi a presença de bondes pelas ruas da cidade.

Eles facilitaram o acesso aos banhos de mar, já que as construções elitistas ocupavam

as partes altas da cidade.

Para se conseguir o posto de “Paris dos Trópicos”, essas mudanças na urbe foram

inevitáveis. A Reforma Pereira Passos, conforme apontei no início desta seção,

embelezou e higienizou a cidade. Mas o sanitarismo do executivo empurrou a

população de baixa renda para os subúrbios. Dessa forma, as mudanças conjunturais

no Rio não significaram apenas um projeto arquitetônico-urbanístico, mas uma

limpeza social. Aos pobres desassistidos, caberia o êxodo para áreas de difícil

ocupação como os morros, conforme acentua Adriana Facina (2004).

Essencialmente pantanoso, o Rio de Janeiro assistiu a uma sucessão de esboços de

engenharia para que a cidade pudesse crescer e, por incrível que pareça, sanar sua

principal dificuldade: a falta de água para consumo humano. Isso obrigou a

população que aumentava rapidamente, sair do centro antigo da cidade e ocupar

outros espaços considerados como guetos que apinhavam diferentes tipos com suas

práticas sociais distintas.

Apesar de a etimologia registrar que carioca é palavra de origem indígena e significa

casa de branco, referência àquela construída por Gaspar de Lemos24, em 1503, na foz

do rio que receberia o nome de Carioca, a cidade pouco tem da presença indígena no

seu sangue. Isso porque prevaleceu o mulato como tipo genético da cidade, filho das

relações de concubinato entre ibéricos e escravas de origem afro-descente. Outro fato

que chama a atenção na construção social da população carioca foi a proibição de

24 Navegador português do século XVI.

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ciganos no perímetro urbano, o que, de certo modo, desmente a comparação que

Lessa (2005) estabelece com Sófocles. “O Rio é uma Esfinge amorosa. Não come o

viajante. É complacente, qualquer que seja sua resposta. Tende a adotá-lo. É um

labirinto sem Minotauro: não intimida nem ameaça o visitante” (LESSA, 2005, p.09).

Além de “amorosa”, uma Esfinge interesseira, pois desde cedo o Rio de Janeiro foi

depositário das economias acumuladas por outras províncias. Não acredito que isso

seja totalmente negativo, pois entendo que a capitalidade da cidade tem essa função.

No entanto, a Cidade Maravilhosa cultivou e cultiva o misterioso segredo de trazer

para si os objetos de pertença de outras culturas e ressignifica-os a partir do seu

discurso.

Assim, o carnaval nasceu, em grandes bailes na década de 1840, no Hotel Itália. Uma

festa que, diferentemente da Idade Média, era celebrada pela oposição. Enquanto os

populares iam para as ruas seguindo o modelo português de entrudo, proibido na

metade do século, nos bailes apareciam os modelos oligárquicos ligados às máscaras

venezianas, conforme acentua Lessa (2005).

Ressalto ainda que a magnificência do Rio não se estendeu ao povo, apenas à elite

que ilustra as páginas da literatura carioca durante a República Velha. Segundo Lessa

(2005), “(…) A nova cidade seria o cenário para ser povoado por gente civilizada à

imagem e semelhança do parisiense” (p.259). O Brasil era composto pelos mais

diversos tipos regionais. Ao Rio, cabia a imitação europeia, um dândi afrancesado

em areia de praia.

Contudo, a partir da Primeira Guerra Mundial, o carioca devia mostrar-se como um

novo sujeito. Reforçar seu ethos25 de cordial a flanar pelas ruas, de figura sem

preconceito. Esse processo, no entanto, não aconteceu de forma abrupta, mas cedeu

espaço para que se registrasse uma nova aparição do praiano:

25 Emprego o termo em sua forma prosaica, sem referência aos estudos do discurso realizados por Maingueneau ou

Amossy.

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O Rio de Janeiro, cidade aberta a todos, é nesta época o ponto de confluência do olhar

de todos os brasileiros. O carioca seria a síntese, como um heterônimo geral dos tipos

regionais, que ao se explicitarem assumiriam incorporados no carioca, a virtudes e

potencialidade do país. O tipo carioca é construído ideológica e simbolicamente como

o produto combinado e transcendente de todo o país. Como tipo urbano e metropolitano,

passaria a ser o sujeito emissor de sinal para o moderno e para o futuro. O carioca é,

portanto o produto combinado de todo o país. Pela assunção e incorporação do regional

teria dentro de si cada brasileiro. Como o mais sofisticado urbano a sua potencialidade

é a dos brasileiros. A ausência de preconceito é uma exigência de abertura e a garantia

de espaço de participação de todo e qualquer tipo regional ou social brasileiro. Assim

sendo, a frente ampla de todos os tipos regionais expulsaria da cidade ocupantes

pseudoparisienses. O Rio não podia ser a Paris dos Trópicos; teria que ser simplesmente

o Rio (LESSA, 2005, p.263).

É com o olhar crítico que vejo a citação acima. Isso porque, conforme o autor, “o

tipo carioca é construído ideológica e simbolicamente como o produto combinado e

transcendente de todo o país”. Se se trata de uma construção, sou levado a crer que o

carioca, de fato, não é assim: aberto e sem preconceito ao que vem de fora. Apesar

de não ser caracterizado como xenófobo, o efeito de sentido gerado pelo enunciado

supracitado contém em si o seu contrário. Isso significa dizer que para a “ausência

de preconceito” há um par simétrico, que é “a presença de preconceito”, tal

argumento desvela a ideia positivada que Lessa (2005) sugere da formação social do

Rio. Contudo, não me oponho à declaração sobre a presença da heteronímia regional

dentro do espectro carioca. Sua capitalidade foi, sem sombra de dúvida, um atrativo

para a população brasileira e estrangeira. Essa característica permite entender como

marcas idiossincráticas tão distintas perpassam a cultura da Carioquice.

Outro elemento absorvido pela Esfinge carioca foi a mão-de-obra barata dos escravos

forros e migrantes pobres que acabaram por se tornar o embrião social das favelas.

Os menos abastados foram empurrados morro acima, ao lado de quilombos, os quais

convivam com uma elite com ares afrancesados. Mas, ao invés de engendrar uma

guerra de classes, a ocupação, a quase meia-parede, entre pobres e ricos, foi o

elemento simbiótico que permeou, pelo menos nesse primeiro momento, o contato

entre as duas categorias. É verdade que o processo pode ser visto através de seu

aspecto negativo, pois os pobres ofereciam sua força de trabalho a preço de módico

para os ricos; mas, conforme Lessa (2005), não fosse esse tipo de relação, a vida

citadina seria inviável.

É preciso salientar, no entanto, por mais óbvio que pareça, que essa relação de

dependência produziu espaços peculiares. Os cortiços, imundos, tomavam conta do

Rio durante o início da República. Por volta de 1897 e 1898 o Morro da Providência

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constituiu-se como a primeira favela carioca. Sua população era formada

eminentemente por ex-combatentes da Guerra de Canudos (1896-1897) que foram

autorizados a habitar o local. Com isso, a favela deve ser vista a partir da ótica de

uma segregação socioespacial que afugenta os pobres e desocupados da Paris dos

Trópicos, mas que não consegue esconder os párias apinhados nos morros da cidade,

como se tentou fazer em 1992, quando outdoors foram colocados em pontos

estratégicos para camuflar os pobres alcantilados das comitivas internacionais que

participariam da ECO-92.

Nenhuma política pública habitacional foi realizada para sanar esse problema. Já nos

anos 1920, as favelas tornaram-se proeminentes e passaram a ocupar o imaginário

popular sobre a cidade. Segundo Lessa (2005), esses conjuntos habitacionais

representam uma “cidadania alternativa”. A favela é uma “micronação” que produz

os códigos culturais que ela retroalimenta e que ela mesma consome

ininterruptamente. Por isso, a favela ocupa um lugar ambivalente, que produz

representações idiossincráticas segundo o discurso que é construído sobre ela:

(…) Ela pode ser escolhida como uma alegoria, pois reúne o modo de ser e desvela a

criatividade da pobreza urbana. A alegoria é uma fratura entre o manifesto visível e o

significado disfarçado. O produtor da alegoria codifica, e seu receptor a decodifica. Ela

pode ser um código reservado, uma elusão da censura, ou apoio de um processo

pedagógico. Pode ensinar a decifrar algo complexo, tal como uma charada. A favela

carioca é também um tratado concreto, pois resume a narrativa da sucessão e da

variedade de formas de que a pobreza lança mão para subsistir. Observar a favela

permite aproximar-se à ideia de uma pobreza precária e heterogênea. De uma pobreza

cuja complexidade a aproxima por vezes do ininteligível (LESSA, 2005, p.296).

A favela é um elemento do urbano e não algo excluído dele. Sua civilidade integra a

cultura local e é suplemento do processo de formação social com a elite. “O povo

ocupa todos os interstícios e possibilidades criados pelo desenvolvimento urbano”

(LESSA, 2005, p.298). Desenvolvimento que não deve ser visto apenas pelo viés

econômico. Foi na favela que o Rio produziu um de seus principais produtos

culturais: o carnaval. Em 1927, o Bloco Estácio foi a primeira Escola de Samba

carioca. O nascente espetáculo da carnavalização brasileira serviu como um postal

do Rio de Janeiro. Posteriormente, tornou-se produto de exportação, mas com o

objetivo de valorizar a nacionalidade, pois os enredos apenas poderiam falar do

Brasil. O samba é a cordialidade carioca. Traz o favelado para o espetáculo e mistura

todos em um único caldeirão. Pois, como cantou Dorival Caymmi: “Quem não gosta

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de samba/ bom sujeito não é/ ou é ruim da cabeça/ ou doente no pé”. (CAYMMI

apud LESSA, 2005, p.273).

Apesar de Lima (2005) apontar o samba como elemento da cordialidade e integrador

de classes, não posso me furtar à fugacidade dessa rede de relacionamento que

envolve pobres e ricos. Nos barracões das comunidades, os verdadeiros operários do

espetáculo desdobram-se quase um ano inteiro para levar a Escola para a Marquês de

Sapucaí, enquanto os mais abastados compram suas fantasias luxuosas, que, por trás,

carregam o símbolo da visibilidade. Aos pobres da comunidade, as alas, a massa

homogênea. Aos ricos da zona sul, os destaques das alegorias, a visibilidade

midiática, o vedetismo. Isso evidencia a socialização pela rua. Socialização essa que

é reforçada pela codificação midiática do carnaval carioca. Apesar de as escolas de

samba nascerem nas favelas e integrarem pessoas de várias procedências, a

radiodifusão, em especial a TV, logo cuidou de transformar o acontecimento num

espetáculo para ser visto. Com isso, o festejo deixou de ser um produto das

comunidades e tornou-se uma mercadoria da indústria cultural.

Indústria cultural que também criou estereótipos como o do “malandro carioca”.

Diferentemente do caipira mineiro que masca capim ou come mosca numa

pasmaceira moleirona o dia todo, o malandro, ex-escravo praticante de capoeira,

move-se pela clandestinidade e segue o coração para angariar afetos. Ser malandro,

antes de retratar um mal, significa viver bem. Trata-se daquele que não precisa

trabalhar para viver na cidade. “Idealizado no carioca como uma sublimação

combinada da tropicalidade com civilização. O discurso inventou um personagem

que se sustenta em pura vivacidade” (LESSA, 2005, p.264).

Outra figura urbana da Carioquice são os bicheiros. Eles ocupam posição de destaque

na rede de relacionamentos sociais, pois essa ‘profissão’ “(…) dá emprego para quem

tem folha policial suja” (LESSA, 2005, p.231). Apesar de no imaginário popular a

figura do malandro e do bicheiro aparecer negativamente, o verdadeiro parasitismo

social aconteceu quando da vinda da Família Real para a cidade, o que a tornou um

espaço institucionalizado. O Rio passou a concentrar a sede da administração e a

empregar no serviço público aqueles protegidos da elite. O afluxo de gente obrigou

uma elevação da especialização e, por isso, apareceram escolas públicas e órgãos

ligados à cultura, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Arquivo

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Nacional e a Imprensa enquanto empresa capitalista a serviço dos interesses

burgueses.

Assim, o Rio constitui-se nos entremeios, no suplemento de pares lotados em

diferentes espaços e tempos. Uma cidade que, ao tentar apagar as tradições de um

passado que se envergonhava da dependência europeia, pretendia-se progressista e

adaptava-se aos diferentes tipos que habitavam suas ruas, festejadas em

carnavalescos ritmos de praia. O continuísmo dessa festa foi amplamente alimentado

pela política de boa vizinhança travada com os Estados Unidos na década de 1930.

Sob a égide do capitalismo, os americanos criaram zonas de influência, dentre as

quais estava o Brasil. Personagens foram construídos pelos estadunidenses como

forma de cativar o brasileiro sobre a importância do sistema capitalístico:

O Estado exalta o Rio popular como laboratório musical e cênico; trabalha a ideia do

Rio como gente linda, morena, cordial e alegre. O Rio, já definido como metrópole

sofisticada e cosmopolita, passa a ser ao mesmo tempo o espaço de apresentação do

povo carioca, incluído como um ser multifacético com imagem encantadora. Tudo isso

será projeto oficial. Esse significado será assumido pelo imaginário nacional, e objeto

de um programa internacional de construção e difusão da imagem. Foi intensa a

valorização da cultura popular do Rio, e as músicas e a festa do carnaval foram

dimensões oficializadas. As rádios – em especial a Nacional – divulgavam,

continuamente, a voz dos cantores e a música dos compositores populares. Nascem

ídolos nacionais. A apresentação da filmografia e difusão musical norte-americana é

intensa nos anos 30. Em 1934, já estão vulgarizados o Mickey e o Pato Donald. Em

1942, a pedido de Nelson Rockefeller, para a Política de Boa Vizinhança da Segunda

Guerra Mundial, Walt Disney cria o Zeca Carioca (sic). O Alô, amigos tem imenso

sucesso e, em conjunto com Carmem Miranda, difunde-se o clichê do samba-Rio-

exportação. Prospera a manipulação política e até mesmo geopolítica da ideologia da

“Carioquice” (LESSA, 2005, p.271)

Otto transfere-se para o Rio de Janeiro quando a cidade prosperava. Eram os anos

dourados citadinos. A movimentação pós 2ª Guerra Mundial e a vontade de se aliar

e equiparar-se à modernidade europeia transformou o espaço urbano. A Paris dos

Trópicos destaca-se entre as cidades do Brasil e chama para si uma miríade de

pessoas vindas de todas as partes. Todos queriam sentir-se um pouco modernos em

meio às lembranças de uma época obsoleta. No entanto, depois da Guerra diminuiu

o fluxo de estrangeiros, mas o Rio continuou como porto principal dos movimentos

de migração interna. Na década de 1950, aponta Lessa (2005), o Rio era o destino

predileto de mineiros e nordestinos. “No início dos anos 40, 663 mil residentes na

cidade do Rio eram naturais de outros pontos do país. Em 1950 seriam 714 mil, nesta

década, estima-se que a participação dos migrantes internos na cidade em 21,66%”

(p.238).

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O desenvolvimento populacional e a autoestima da sociedade carioca geraram, na

década de 1950, a necessidade de despir-se dos trajes parisienses e assumir sua

tropicalidade de forma mais original possível. Não por acaso, essa década

ressignificou o título da cidade de Paris dos Trópicos para Paraíso Tropical, o qual

produziu um movimento antropofágico que tendeu a incorporar as variantes regionais

que aportavam no Rio. Vejo que, se a “Esfinge amorosa” não devorou, o “Zé

Carioca” cativou e soube como ninguém criar o mito da Carioquice plena:

Na Cidade Maravilhosa, na costa brasileira, estaria o carioca cósmico, como o mestiço

dos mestiços brasileiros. O sertanejo e o caboclo, o gaúcho, o mineiro etc., poderão

migrar gota a gota, para a metrópole e, transformados em cariocas, serão também o

cordial mestiço costeiro metropolitano (LESSA, 2005, p.264).

No entanto, esse Paraíso Tropical cósmico viu seu poder abalado a partir do final da

década de 1950. O sonho de Juscelino Kubistchek para uma capital moderna no

interior do país, salva dos invasores marítimos, tomava do Rio os ares de

capitalidade. Soma-se a isto a hegemonia paulistana no cenário econômico da época.

Como o Rio foi acostumado às regalias de um governo próximo, com cargos

importantes e salários vultosos, faltou ao carioca um espírito bairrista que

reivindicasse a permanência da sede do Governo Federal na cidade. E, com a

mudança para o Planalto Central, o Rio padeceu da falta de uma postura mais

ofensiva na política, já que deixou de ser o sustentáculo de desenvolvimento do

Brasil.

A mise-en-scène política da bancada carioca no Congresso oscilava entre a

controvérsia em torno de contendas com outros interesses nacionais e disputas

bairristas da região fluminense. “A representação reluta e tem dificuldade em fechar

questão em matérias relacionadas estritamente ao interesse regional, como o futuro.

(…) Priorizam-se as controvérsias e alinhamentos políticos supralocais e regionais”

(LESSA, 2005, p.356). Desacostumado do embate político, o carioca remiu culpa

pelas suas mazelas com o discurso de que o governo é o responsável pelos distúrbios

gerados. A decadência carioca intensificou-se com a fusão com a Guanabara. Teve

que repartir o bolo tributário com o resto do estado. Além disso, a disputa

institucional gerou graves perdas, pois patrimônios que eram tutelados pelo

município, tornaram-se patrimônio da esfera estadual ou da União.

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É importante ressaltar ainda a perda hegemônica de centro cultural do Rio. Com o

crescimento de São Paulo, o foco se deslocou para lá. Apesar de possuir a quarta

emissora de TV do mundo, Lessa (2005) diagnostica que o sotaque da Rede Globo é

eminentemente paulistano. É que a produção de cultura segue o ritmo da indústria

cultural. Isso plasmou a glória carioca até meados do século XX, que através do rádio

propalou o samba como ritmo brasileiro.

Mas outro ritmo veio à tona a partir dos anos 1970 e foi fundamental para construir

a imagem de violência atribuída ao Rio. Se o malandro de antigamente não

trabalhava, mas flanava com gingado e malícia pelas ruas do Rio, numa figura

poetizada pelo seu chapéu Panamá e terno engomado, o jovem carioca de hoje pode

até não trabalhar, mas não o faz por opção. A falta de emprego leva-o para o crime.

A possibilidade de enriquecimento fácil e poder são atrativos determinantes para a

entrada nessa vida. Ao lado iminente do risco de morte, convivem o dinheiro, as

mulheres, morenas/mulatas convertidas em periguetes, e sua diversão principal – o

baile funk, uma mise-en-scène de guerra:

Como exorcismo, a galera do funk carioca afirma um padrão masculino violento na

esfera do lazer. Combinam o lúdico com o ethos guerreiro. A simbologia funk percorre

comandos, táticas de guerra, divisão de território no salão de baile, e pratica uma

expressão corporal territorial, antagônica e belicosa. Este exército é quase sempre

inócuo, equivale ao pega clandestino de carros praticado pelos adolescentes ricos. No

funk a violência é teatralizada. Os rituais da galera são próximos aos mitos do jovem

favelado. A galera não é a gangue, porém no baile funk faz de conta que é. O dançarino

mostra seu valor e exorciza a gangue, pois com a galera pode simulá-la com pouco risco.

O bonde do funk, reunião de galeras para ir ou sair de um baile, é ao mesmo tempo uma

rede de proteção mútua e uma expedição simbólica para conquistar o novo território

com o grito, a roupa vistosa, a exibição do tênis. Com o bonde afirma, ao longo do

percurso, que existe, que é alguém no mundo. Faz esse discurso para o mundo fora do

baile (LESSA, 2005, p.336).

Com a batida perfeita, as favelas viram o cenário do crime, do narcotráfico. O pobre

passa a ser visto como perigoso, e a imagem dos morros padece com a guerra

horizontal travada por diferentes gangues que querem controlar a venda de drogas.

As milícias e grupos de extermínio completam o elenco. Mas, nessa dramatização, a

narrativa não pune o enredo sociopolítico. Expia o pobre e a pobreza como causa da

violência carioca.

Assim, o Rio avançou pelo tempo e a evidência de que o mercado global passou, de

vez, a pasteurizar a vida social do carioca, veio com redefinição do espaço urbano

promovido pela Barra da Tijuca. Se no início do século XX a cidade orgulhava-se de

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ser a Paris dos Trópicos, com a pós-modernidade, a Barra inventou moda e

autodefiniu-se a partir do American way of life. Não por acaso, o bairro emergente

parodia a francofilia dos anos passados e torna-se conhecido como a “Miami da

América do Sul”. Essa importação do ethos estadunidense é o reflexo imediato do

impacto da globalização na cidade e sua busca pela retomada da autoestima, abalada

pela violência e pelas favelas:

O morador do Rio pós-moderno tem consciência de sua felicidade e excepcionalidade.

Para o homem da Barra, São Conrado ainda é o velho Rio: não é um resgate da

civilização futura, nem um bairro que cristalize um espaço pós-moderno. Tanto é assim

que, após São Conrado, o cartaz do “Sorria, você está na Barra” é a marca territorial de

transição, do anacrônico e confuso Rio da modernidade para o portal do futuro feito

presente no Rio de pós-modernidade. O visitante da Barra pode ir à praia ou ir ao

shopping. O setor residencial lhe é fechado. Ao longo da avenida das Américas foi

estruturado o subúrbio americano, adaptado à “arquitetura do medo”: no condomínio

existem a piscina e as quadras, fazendo com que nele seja possível viver e praticar

esportes sem ter de ir à praia (LESSA, 2005, p.405).

O espaço da Barra deve ser visto como um simulacro de cidadania. Utilizo o termo

simulacro, pois, vivendo dentro do shopping, a socialização é perpassada pela

ditadura do comércio global. A era pós-moderna é superdimensionada pelo neon que

apaga o luar romântico das rodas de samba e dos malandros da Lapa. O ar refrigerado

substitui a brisa marina. As setas indicativas de direção reprimem o flanar. O carioca

do século XXI é, portanto, o Blade Runner que vê a substituição de uma vida

romanceada pelo brilho incessante da luz dos novos tempos. O planger do violão de

Noel e Cartola não dão mais ritmo à vida moderna, mas a batida eletrônica vinda de

Dubai, Ibiza ou Saint Tropez. O samba chora em guetos clandestinos e ao pobre cabe

a batida do funk, que é vista pelo olhar curioso do rico e do estrangeiro, senão como

um lugar de violência e vulgaridades, como um espaço pitoresco. Mas, por fora dessa

casca pós-moderna, tudo continua sempre onde esteve. O pobre presta serviços ao

rico e a favela rodeia o bairro nobre como forma de subsistir por meio da economia

interpessoal, que se dá entre as diferentes classes. Assim, na Cidade Maravilhosa do

século XXI, ser carioca e integrar a Carioquice significa estar situado num terreno

glocalizado, em que o transnacional e local são indissociáveis.

Mais do que isso, o Rio, pode-se dizer, tornou-se uma cidade ambivalente com a pós-

modernidade. É aquela em que o American Way of Life é privilegiado por uma elite

da Barra da Tijuca, que se fecha em condomínios e shoppings e que importa uma

vivência internacionalizada. Mas, por outro lado, há uma revalorização do território

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local. O malandro que evoluiu do negro capoeira ainda habita a boêmia da Lapa. O

povo, morador de aglomerados humanos chamados favela, apesar do acesso à cultura

industrial, ainda continua prestador de serviço para o rico, vaga pela rua procurando

formas de subsistir. O Rio, assim, é uma cidade dos interstícios. Sua liminaridade

reside na convivência de sujeitos vindos das mais diferentes procedências. Negros,

portugueses, mineiros são apenas alguns dos que compõem o mosaico cultural da

cidade. Essa interpelação de diferenças culturais produziu o malandro, o flâneur.

Trouxe o futebol, da elite, e o misticismo e a racionalidade, da pobreza.

Depois dessa longa consideração a respeito da formação social do Rio de Janeiro, é

possível entender como Otto assumiu, como dele, o discurso da Carioquice nas

crônicas que produziu. Para legitimar a minha assertiva, parto da análise da crônica

“Sombra e Água Fresca”, publicada no jornal Folha de S. Paulo, dia 22 de dezembro

de 1991.

SOMBRA E ÁGUA FRESCA

RIO DE JANEIRO, 22/12/1991 – O verão está no auge. Natal branco lá no

Norte. Aqui, pelo menos no Rio, a neve é o calorão que bota pra fora

toda a Carioquice da cidade. E de seus habitantes, claro. O carioca se

espalha. Por mais festiva que seja a neve, chega um ponto em que

enche. Dá nos nervos. Uma coisa é o cartão postal dos flocos caindo em

silêncio. A neve do Natal é assim. É o ideal, pelo menos. Ou neve grã-

fina das estações de inverno. Outra coisa é a neve que entulha a rua,

suja, plebéia.

O texto de Otto traz sua experiência enquanto sujeito carioca. Isso pode ser

evidenciado com advérbio “aqui”, que marca seu lugar de fala. Além disso, a

construção do “eu” localizado no Rio de Janeiro é alçada em oposição às cartografias

do “Norte”. A partir da evidência de que a “neve” é um empecilho que “entulha a

rua”, Otto constrói as identidades cariocas por meio de um discurso antitético em

relação aos diferentes climas. Se o frio aprisiona, o “calorão” é expansivo e permite

que o carioca exiba sua Carioquice por completo, por meio da ocupação do espaço

público da cidade.

É na rua que o “carioca se espalha”. É nela que pode exibir-se por completo. Tais

colocações, no entanto, são vestígios de uma construção identitária e de um lugar de

apoderamento do discurso. Isso porque é o sujeito discursivo que nomeia e qualifica

os cariocas e não a pessoa Otto. Minha perspectiva coaduna com a de Roland Barthes

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(2004) para quem a hegemonia do autor é uma demanda moderna do capitalismo

burguês de valorização do indivíduo:

(…) Enfim, de fora da própria literatura (a bem dizer, estas distinções tornam-se

obsoletas), a lingüística acaba de fornecer à destruição do Autor um instrumento

analítico precioso, ao “mostrar que a enunciação é inteiramente um processo vazio que

funciona na perfeição sem precisar de ser preenchido pela pessoa dos” “interlocutores”;

linguisticamente, o autor nunca é nada mais para além daquele que escreve, 'tal' como

eu não é senão aquele que diz eu: a linguagem conhece um ‘sujeito’, não uma ‘pessoa’,

e esse sujeito, vazio fora da própria enunciação que o define, basta para fazer ‘suportar’

a linguagem, quer dizer, para a esgotar (p.03).

Tal visão contribui como o minimalismo das teorias da enunciação na medida em

que elimina a pessoa por trás do texto e foca atenção no discurso produzido.

Entretanto, como atenta Barthes (2004) para o caráter obsoleto das distinções fixas

de campos de saber, entendo que é importante escavar as camadas, ou “cascas de

cebola” que compõem o locutor para poder analisar o porquê da construção de

determinada forma de discurso. Assim, o primeiro elemento que observo é que se

trata de um enunciado produzido por um carioca, que legitima discursivamente o

apoderamento em torno da realidade que determina as identidades do carioca. O

nome assinado na coluna marca a credencial que o autor tem para falar e naturalizar

esse discurso.

Essa constatação é oposta à de Barthes (2004). Porém entendo que é possível uma

separação de camadas que envolva o locutor e a pessoa por trás dele. Isso porque não

podemos abrir mão do contexto, do lugar de fala e da institucionalização que existem

por trás dos enunciados. Otto tem suas memórias asseguradas por aquele que escreve,

mas tal escrita é controlada, na medida em que se enquadra dentro da gramática e

política editorial da Folha de São Paulo. Isso pode fazer confluírem o mineiro, o

carioca, o paulistano e as vozes institucionais que regulam o que é publicado.

Assim, há um enunciado que marca determinado establishment, mas, em

contrapartida, há alguém credenciado a dizer aquilo, um nome em particular, e que

acaba por naturalizar o que é dito sobre esses recortes sociais. No caso, o efeito de

sentido produzido no parágrafo da crônica ora em análise é o de que a Carioquice é

tudo aquilo que não é experimentado pelos moradores enclausurados pela neve, isto

é, o carioca é o sujeito livre e da rua, que se sociabiliza nos espaços públicos

justamente pelo fato de a cidade ter privilegiado essas ambientações, além das

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circunstâncias climáticas tropicais que impelem os sujeitos para fora de casa,

conforme assinala Otto na continuação do texto:

Neste sentido é que digo que o calor tem a vantagem de ser mais

festivo. Extroverte. O carioca fala alto, se expande. Na zorra da praia, ou

no botequim, tomando chope, está à vontade. Abraça, dá palmada nas

costas do outro. Se não é, fica íntimo em dois minutos. Que é que há, ó

meu? Está me estranhando? Sabe lidar com o verão, como se lida com

um cão bravo. Quando cheguei ao Rio para viver, foi uma opção

definitiva. Mas eu não sabia o que é trabalhar duro no calor carioca.

Nesse parágrafo, o locutor confirma as construções identitárias do carioca. Seu

discurso relata que o calor é o responsável pela personalidade do praiano. Mas o calor

não trabalha sozinho. Ele permite a elaboração de espaços urbanos que evocam as

pessoas para espaços públicos como a praia, o botequim. Nesses ambientes propícios

para o encontro com outro o carioca “expande [-se]”. Aqui, é possível vislumbrar a

figura do malandro e do flâneur. Isso porque, ao ocupar diferentes locais de

socialização, “fica íntimo em dois minutos”.

É preciso ressalvar, no entanto, que o locutor tenta colocar-se fora dessas identidades.

Há uma voz que fala que o calor é mais festivo, mas quem sabe enfrentar o clima

como se enfrenta “um cão bravo” é o carioca e não o sujeito por trás do texto. Tal

assertiva se confirma com o deslocamento de Otto para o tempo de sua mudança para

a capital fluminense. Gostaria de destacar esse ponto, pois ele denuncia o autoexílio

a que se propôs o cronista. Antes de prosseguir com a análise, é preciso entender o

que significa as expressões em torno do exílio e que, muitas vezes, são alçadas como

sinonímia equivocada do conceito. Refiro-me aqui a exilados, refugiados,

expatriados e emigrados. A atenção dada a esses termos é sugerida por Edward Said

(2003), para quem exilado é aquele que foi banido de sua terra natal e vive como um

forasteiro, “triste e na solidão espiritual”. Quanto aos refugiados, Said (2003) acentua

o caráter político que o conceito ganhou no século XX. Trata-se de um grande

número de pessoas que necessitam de ajuda internacional para serem relocados em

um lugar que não o seu. Por expatriados, entende-se aqueles que por vontade própria

optam em morar em outro lugar, mas cultivam a solidão. Já emigrados, para Said

(2003), são aqueles que podem ter sido exilados, mas que se adaptaram ao novo lugar

e não sofrem com a ausência do lar.

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Tal conceituação leva-me a questionar se seria possível enquadrar Otto em apenas

uma delas. A resposta imediata é não. Isso porque não estamos diante de uma escolha

pura, mas de termos intersticiais. Na pós-modernidade e em países de democracia

liberal, seria complicado delimitar uma pessoa em apenas um dos conceitos em torno

do termo exílio. Posto isso, Otto é um exilado ao passo que deixa as terras mineiras

e nunca volta para elas. Após a publicação de seu livro de contos Boca do Inferno,

Otto narra melancolicamente o lançar de fezes em sua casa, o que se transforma na

metáfora do banimento. Ele também pode ser inscrito na categoria de expatriado,

pois é por meio de decisão própria que decide morar Rio de Janeiro. Mas ele ainda

pode ser considerado um emigrado, já que, do exílio, adaptou-se bem à dinâmica

carioca, ao calorão que desconhecia, mas que ia absorvê-lo.

Nas primeiras linhas de seu Estrangeiro para nós mesmos, Julia Kristeva (1994),

poeticamente, define o exógeno e sublinha a relação tensa que se estabelece entre

esse ‘outro’ e este ‘nós’. O fio da navalha que corta as duas entidades traduz-se no

problema do autorreconhecimento da diferença. Sentimo-nos forasteiros diante do

forasteiro e essa é a condição sine qua non para que o estranhamento seja aplacado.

Trata-se do paradoxo do ser estranho para ser igual:

Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo de minha garganta, anjo negro turvando a

transparência, traço opaco, insondável. Símbolo do ódio e do outro, o estrangeiro não é

nem vítima romântica de nossa preguiça habitual, nem o intruso responsável por todos

os males da cidade. Nem a revelação a caminho, nem o adversário imediato a ser

eliminado para pacificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a

face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que

se afundam o entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em nós, poupamo-nos de ter

que detestá-lo em si mesmo. Sintoma que torna o “nós” precisamente problemático,

talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença

e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às

comunidades (Kristeva, 1994, p. 09).

O estrangeiro não deve ser anulado pelo acolhimento, mas coabitar entre nós. Isso

porque, nós mesmos, tão fragmentados que somos, tornamo-nos estrangeiros em

relação às nossas múltiplas identidades. Quando Otto é interpelado por um repórter

sobre o desejo de voltar para Minas Gerais, a resposta ao entrevistador vem envolta

de um véu de mistério:

No calor da campanha, foram perguntar a Otto Lara Resende, no Rio, se ele voltaria

para Minas Gerais.

“Meu filho, eu não mereço”, escorregou o escritor.

Mais mineira a resposta não podia ser (WERNECK, 1992, p.192).

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Na resposta do cronista, são dois os efeitos de sentido produzido: “sou muito

insignificante diante da glória que é Minas, portanto não mereço retornar”; ou “Minas

é um terror tão grande para mim, que não mereço esse calvário”. Essa ambivalência

na assertiva de Otto responde à pergunta de Kristeva (1994) sobre se possível ser

feliz no exílio. Trata-se de perceber como os diaspóricos trazem o semblante “triste-

alegre” de uma errância com um horizonte ilimitado, mas com a finitude inscrita em

outras cartografias temporais da alma.

O tipo de sentimento do estrangeiro é aquele das liminaridades porosas, ou seja, um

oscilar permanente entre o bem-estar pela fuga da terra natal, mas, ao mesmo tempo

uma tristeza memorialística de retornar o olhar para o outro lado da fronteira. “(…)

Assentada, presente, por vezes incontestável, essa felicidade, entretanto, sabe estar

em trânsito, como fogo que somente brilha porque consome. A felicidade estranha

do estrangeiro é a de manter essa eternidade em fuga ou esse transitório perpétuo”

(KRISTEVA, 1994, p.12).

Entendo que a duplicidade, a cumplicidade com esse ser duplo, instaura um

movimento incessante no estrangeiro. O deslocar parado acentua-lhe a aura de

forasteiro, já que a memória lhe subtrai do hic et nunc e, consequentemente,

desfigura-lhe do grupo em que se insere. Mas é justamente por isso que o limite é

menos recorrente do que o rito de passagem. O jogo que lhe traz vida é a constante

errância que pode ser anulada pela fixação em determinada praça, é verdade, mas que

se renova pela lógica suprema do exilado cosmopolita, o qual não se mantém no cais

por muito tempo. Julgo isso como o grande diferencial das identidades diaspóricas.

Enquanto o ser ancorado possui um corpo domesticado pela fronteira eterna, a marola

ininterrupta em que vive o marinheiro lhe confere uma biografia inigualável. Em

todos os portos, uma vida nova, noite de almirante banhada por diferentes

experiências que lhe aumentam as linhas de seu próprio livro da vida.

A perspectiva de um deslocamento não apenas telúrico, mas temporal, é fundamental

para que se entenda o exilado. Mais que flanar e escolher por entre caminhos que se

bifurcam, o estrangeiro é aquele que imerge das ruínas de outros tempos e emerge no

discurso presentificado. “O paraíso perdido é uma miragem do passado que jamais

poderá ser reencontrada” (KRISTEVA, 1994, p.17), a não ser pelas feições

memorialísticas que lhe perpassam os veios da alma. A partida da terra natal

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ressignifica as posições de sujeito, pois “(…) Na situação de diáspora, as identidades

se tornam múltiplas. Junto com os elos que as ligam a uma ilha de origem específica,

há outras forças centrípetas” (HALL, 2009, p.27). Tais forças são engendradas no

encontro com o novo espaço, com os novos sujeitos e com as novas relações

simbólicas travadas no cenário além da fronteira de origem.

A partir do estudo de Mary Chamberlain, no livro Narratives of Exile and Return,

Hall (2009) enfatiza o caráter mutilador da diáspora. Ela é responsável pela perda do

reconhecimento do “eu” em relação à origem. O retorno, em muitos casos, coloca o

sujeito em uma posição de não-identificação com sua terra, ele se torna estrangeiro

dentro de seu espaço primeiro:

(…) Muitos sentem falta dos ritmos de vida cosmopolita com os quais tinham se

aclimatado. Muitos sentem que a “terra” tornou-se irreconhecível. Em contrapartida,

são vistos como se os elos naturais e espontâneos que antes possuíam tivessem sido

interrompidos por suas experiências diaspóricas. Sentem-se felizes por estar em casa.

Mas a história, de alguma forma, interveio irrevogavelmente (HALL, 2009, p.27).

O panorama de Hall (2009) reflete os processos de migração do Caribe para a

Inglaterra, mas analogamente pode ser aplicado à formação da Carioquice. Enquanto

o Rio de Janeiro foi invadido por uma miríade de estrangeiros, no Caribe houve os

ditames coloniais que construíram um lugar do outro. “Em vez de um pacto de

associação civil lentamente desenvolvido, tão central ao discurso liberal da

modernidade ocidental, nossa “associação civil” foi inaugurado por um ato de

vontade imperial” (p.30). Isso significa dizer que os caribenhos foram feitos

estrangeiros em sua própria terra. Não por acaso o Rio de Janeiro incorporou ao seu

ethos o ar afrancesado que culminou com a alcunha de “Paris dos Trópicos”. Na pós-

modernidade, o ciclo se repete e a cidade torna-se a “Miami da América Latina” o

que evidencia uma formação social e cultural muito mais exógena do que endógena.

Creio que o resultado disso é que nos tornamos cada vez mais estrangeiros e que, ao

lado dessa metrópole cosmopolita, uma leva de seres perecem diante do mercado

simbólico que incorpora uns poucos escolhidos para seu mainstream, ao passo que

relega a grande maioria às margens. Nas beiradas, a massa de anônimos cumpre a

missão de improvisar o que fazer com a cultura do outro que o exila em sua própria

origem. Assim, Otto é um representante desse autoexílio. Lembra-se do passado para

desconstruir sua vida carioca e ser mineiro, mas o trânsito é contínuo e estabelece um

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diálogo entre os dois sujeitos, o que, de fato, corrobora a questão do deslocamento

físico e da proximidade memorialística:

Parece mentira, mas o maior frio que senti na minha vida foi em São

João del Rei. Em junho, julho, sem aquecimento, era de bater queixo.

Tinha de aquecer os lençóis e “quentar” no fogo. E olhe que já estive no

Pólo Norte. Estão vendo que no Rio em dezembro, janeiro, roupa

pesada, eu quase morria sufocado. Até hoje me lembro daquele abafo

úmido e pegajoso na minha pele. Dava vontade de voltar correndo pra

Minas. Mas nada como a experiência. Fui indo e com jeito me entendi

com o verão. Adorar, me desculpem, não adoro. Podendo, fujo pra

serra.

Como disse anteriormente, a expressão do exílio e suas variantes aplicam-se ao “eu”

discursivo do texto. No excerto acima, esse “eu” mistura-se com as reminiscências

de Otto que, do local de exilado, relembra de sua terra natal. Inicialmente, o autor

vale-se, mais uma vez, de uma figura antitética para construir a imagem carioca. Em

oposição ao calor que quase matava o cronista “sufocado” no Rio de Janeiro, São

João del-Rei é um experiência vivenciada na memória. A friagem mineira

demandava esquentar lençóis e até o sotaque caipira é alçado para engendrar essa

passagem entre o praiano e o montanhês, sem a praia, cabia “quentar fogo” no frio

da montanha.

No entanto, o corte da Mineiridade vem com o adaptar-se ao calorão do Rio de

Janeiro. A experiência no calor “úmido e pegajoso” transformou Otto em um

emigrado, conforme citei anteriormente. Ele se acostumou ao novo modo de vida e

Minas, apesar da vontade de correr para lá, é apenas um quadro na parede. Assim, o

estado natal de Otto é substituído pela serra, que permite a ele fugir do clima quente

da cidade carioca.

Todo mundo trabalhava no centro da cidade. No segundo verão que

passei aqui na “pedreira” do jornal, já estava mais escolado. Fiz o mapa

da sombra. Andava de um lado para o outro, sempre evitando o

braseiro do Sol. Sabia onde de a brisa soprava. Ali na esquina do Café

Simpatia, Ouvidor, Gonçalves Dias e Avenida, ali era uma brisa de lavar a

alma. E ainda tinha um refresco de coco. Você abria o casaco e vinha

aquela carícia.

Para se tornar um emigrado de fato, Otto demorou apenas um ano. No segundo verão

dele já estava “escolado” e sabia como se proteger do calor de sufocar. Interessante

perceber que Minas deixa a cena, mas a adaptação ao clima quente ainda é um

problema para o autor. Prova disso é que tem que criar sua própria cartografia de

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acomodação. E os pontos que melhor se adéquam às suas necessidades são ruas e

bares ventilados com a brisa marinha e com uma água de coco. O braseiro, agora, era

um mal que deveria ser cortado. Impossível “quentar” fogo.

Outra abordagem que permite entender essa adaptação de Otto é o chamado

multiculturalismo, ou seja, aquilo que aglutina diferentes perspectivas identitárias

diante do mundo e é um dos elementos responsáveis pela aculturação. Essa deve ser

vista como aquilo que causa a perda de certos traços identitários quando se navega

num processo migratório, mesmo que sem sair do lugar. Nesse sentido, muitas vezes,

deslocados de seus países, os indivíduos são engolidos, mas nem sempre assimilados,

pelo etnocentrismo de determinadas comunidades. Orbitam pelas ruas de grandes

centros, mas podem não ser integrados ao le grand marché da transnacionalização e

globalização dos bens materiais e simbólicos que convertem cidadãos em

consumidores.

Assim, Otto encontra-se num contexto multicultural, no qual ele só legitima seu

discurso a partir do momento em que promove um processo de antropofagia do

carioca e de autoantropofagia do mineiro. O cronista precisa de um deslocamento

constante, entre as várias instâncias discursivas geradas em diferentes recortes

sociais, para consolidar o lugar de fala que sustenta. Para isso, o trânsito é inevitável,

somente pela travessia é que consegue relatar as experiências que acumula ao longo

da vida. A conclusão da crônica, ora em análise, mostra o caráter cosmopolita de

Otto. Mais que carioca ou mineiro, o autor desponta como um cidadão do mundo:

Tão bom quanto passar na porta do cine Metro Passeio. Vinha lá de

dentro aquele hálito de ar refrigerado, novidade rara naquele tempo.

Anos depois, fui fazer um bate-papo na Universidade de Lovaina (é

Louvain em português). Titulo: Sombra e Água Fresca. Nada melhor

para falar do Brasil do que esse dístico. Passei um certo aperto. Na

língua dos outros a gente não se move à vontade. Mas aqui, entre nós,

tenho ou não tenho razão? É o que está na bandeira ideal do nosso

coração.

Outro deslocamento opera na construção identitária do Carioquice de Otto. Ele volta

ao passado e lembra-se da sensação térmica causada pelo ar condicionado. Essa

caminhada descompromissada, o flâneur a vadiar, entretanto, não fica apenas no Rio

de Janeiro. Desembarca para seu exílio como adido cultural na Bélgica, onde professa

a palestra “Sombra e Água Fresca”. Dístico que o narrador julga como característico

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do Brasil. O efeito de sentido produzido pode ser visto como o do país que não

trabalha. Isso porque, como o próprio Otto deixa entrever, fica difícil explicar a

metáfora em língua estrangeira. Mas compartilha a ideia com o leitor quando faz uma

pergunta retórica se tem razão, e afirma que esse é o sonho dos brasileiros. Em várias

de suas crônicas, Otto, com seu sense of humour, critica a bandeira brasileira, acha

estranha a combinação de cores e não compactua com os dizeres positivistas do final

do século XIX de “Ordem e Progresso”. A substituir o original por uma referência

dele, o autor constrói um local de fala privilegiado, já que pelo apoderamento da

realidade cria um mundo que pode ser inculcado pelo interlocutor. E é justamente

esse poder a que me dedico na seção final deste capítulo.

2.4 Ideologia e poder simbólico no lugar de fala de Otto

Há quem diga ser o presente uma abstração, o passado uma ressiginificação e que o

futuro uma projeção. Entendo que a construção dessas três dimensões está atrelada

ao discurso e, por isso mesmo, o verbo construir relata a experiência que não

demanda a vivência real, mas a criação de universos que os sujeitos vivenciam na

sociedade. Isso não só demarca um território de apoderamento como institucionaliza

diferentes campos sociais, a partir do momento em que a realidade é apropriada,

decodificada e transmitida por processos confluentes em diferentes campos de

domínio da ação humana.

Um desses campos é o da ideologia. À cultura pode ser imposto um establishment

que circunscreve as posições dos sujeitos dentro de um universo reificado. As

práticas sociais são descritas/legitimadas/sustentadas por um discurso construído por

vozes que criam condições ideais de poder, como é o caso dos políticos mineiros que

garantem sua hegemonia através da velha fórmula da centralidade, conciliação e

ponderação. Assim, a conciliação mineira pode ser vista como uma ideologia de

classe, referendada socialmente e que estabiliza uma dada formação cultural. Trata-

se, portanto, de algo já enraizado socialmente, o que constitui uma representação

social forjada para o político mineiro. O mesmo acontece com o carioca, descrito

como aquele que tem a rua como escritório, como local privilegiado de socialização.

Com base marxista, mas tentando fugir ao mero descritivismo alemão da reprodução

das condições de produção, Althusser (1980) destaca não só a importância do Estado

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enquanto mecanismo de repressão para manutenção do establishment, mas procura

elencar como formas mais sutis de dominação são produzidas pelos e para os

Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). A luta de classes constitui-se no campo da

ideologia e a metáfora do topos marxista é retomada ao atribuir centralidade à

chamada infraestrutura ou base econômica (forças produtivas + relações de

produção), e sua determinação no que concerne aos dois andares superiores da

superestrutura: o jurídico-político (direito e Estado) e a ideologia (religiosa, moral,

jurídica, política dentre outras).

Althusser (1980) produziu duas teses que extrapolam aquilo que ele não considerou

como teoria, mas como descrição dos marxistas. A primeira delas é negativa.

Considera que “(…) a ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com

as suas condições reais de existência” (p.77). As ideologias representam o mundo

real, funcionam como espécie de sombra platônica projetada em parede de caverna

que cria uma representação ideal do mundo real. A ideologia, portanto, opera no

sentido de fortalecer essas relações imaginárias que se desenvolvem entre os sujeitos

e fortalece certas classes.

A segunda tese althusseriana contradiz, de certo modo, a primeira, ao afirmar que “a

ideologia tem uma existência material” (ALTHUSSER, 1980, p.83). Nesse ponto, a

construção ideológica é algo tangível dentro de determinado aparelho e funciona para

legitimar os interesses de determinada classe. As ideias de um sujeito que age

materialmente dentro de contratos sociais que são regulados pelos AIE. Dito isso, o

autor chega às suas duas principais assertivas: “1 – Só existe prática através e sob

uma ideologia; 2 – Só existe ideologia através do sujeito e para sujeitos” (idem, p.91).

Mas, esta teorização por si só é inócua já que, lembro, opera na prevalência da

infraestrutura sobre a superestrutura. Assim, considera tão somente a ideologia como

formadora do sujeito social num contexto econômico. No meu entender, a

constituição do indivíduo em sujeito recorre a outros meios que não só a ideologia

de base econômica.

Tal perspectiva, que diminui o poder de fogo da infraestrutura, encontra eco nas

palavras de Antonio Gramsci (1987), para quem o poder econômico não é tão

determinante quanto se pensa. O autor acentua que devem ser “combatidas” ideias

que mostrem que alterações políticas ou ideológicas vêm diretamente da base. Isso

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porque é difícil identificar-se a estrutura que influencia a política; porque erros dos

dirigentes podem ter formação histórica ou porque atos políticos advêm de

necessidades internas, como organizar um partido. Assim, o poder da infraestrutura

deve ser posto à prova. Não basta a legitimação topológica marxista para a

constituição e materialização do sujeito. Entra em jogo o poder simbólico que

Althusser (1980) não discute, e as interações entre os sujeitos, principalmente após a

fase fordista do capitalismo e à transformação do jornalismo em empresa de mercado.

Isso reforça a hipótese sustentada acima sobre o lugar de fala de Otto – não estamos

diante de um texto de um sujeito mineiro ou carioca, mas de um jornalista da Folha

de S. Paulo. Essa formação social da linguagem é condição sine qua non para que se

forme o consenso. O sujeito se reconhece no outro, graças à produção do hic et nunc

discursivo, e não pela língua enquanto sistema. Trata-se, portanto, do simbólico que

atravessa a linguagem graças a ação dos sujeitos discursivos. É importante ressaltar

que essa teia de relações entre discursos não nos permite identificar o fundador de

quem diz o quê, mas nos permite verificar como nomes ou qualificadores são

reproduzidos socialmente por meio de lugares de fala institucionalmente

privilegiados. Assim, nos termos de Bakhtin (2006), a ideologia não é algo apenas

determinado pelo econômico, mas “reflete e refrata” mudanças sociais que são

amplamente perceptíveis nos usos da língua.

Quando um objeto vira um símbolo, uma imagem que representa algo, ele também

carrega consigo atributos externos, então passa a refletir e refratar uma ideologia.

Não se pode confundir o produto de consumo com o signo ideológico. Um triângulo

sozinho não possui ideologia, mas quando empregado na bandeira de Minas Gerais,

representa o aspecto revolucionário da Conjuração Mineira, portanto, carregado de

uma ideologia. O mesmo acontece com a imagem de Cristo Redentor, que é só

significado dentro do contexto religioso e turístico.

É importante ressaltar que o homem que se assujeita diante desses construtos,

segundo Gramsci (1987), deve ser superado por aquilo que classifica como

“catarsis”:

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Pode-se empregar a expressão ‘catarsis’ para indicar a passagem do momento

puramente econômico (ou egoísta-passional) ao momento ético-político, isto é, a

elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto

significa, também, a passagem do “objetivo ao subjetivo” e da “necessidade à

liberdade”. A estrutura da força exterior que subjuga o homem, assimilando-o e o

tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma

nova forma ético-política, em fonte de novas iniciativas (GRAMSCI, 1987, p. 53).

A visão gramsciana permite dizer que a Mineiridade ou o Carioquice podem até ser

descritos como fruto de uma construção ideológica engendrada por determinados

atores sociais. Mas, a questão do assujeitamento não é tão simples, já que pressupõe

indivíduos passivos diante dos AIE. Mais do que isso, o homem prosaico é o grande

produtor da cultura, mesmo que baseada no senso comum. Não se pode furtar, assim,

de conceber o cotidiano como lugar privilegiado de produção das realizações

humanas e locus pelo qual circulam o poder e a ideologia formados discursivamente.

Além disso, como muito bem assinalou o autor italiano, não se pode preterir o

indivíduo como um ser pensante. Ele pode e é atravessado por diferentes vozes que

o constituem como ser social, mas isso não significa que ele seja um recipiente vazio.

A mídia aparece como um importante campo de distribuição da ideologia, já que as

possibilidades técnicas da imprensa moderna são extraordinárias para disseminar

acontecimentos e ideias. Tal aspecto inerente aos meios de comunicação modernos é

outro fator que pode determinar o tom ideológico das culturas regionais representadas

nos textos de Otto. O autor produz para um jornal e seu produto simbólico garante a

inserção de suas ideias em uma comunidade vasta de leitores. Mas há que se levar

em conta que o jornal se apropria e é apropriado por outros elementos:

(…) parece-me fundamental reconhecer que existem relações de poder

sistematicamente assimétricas que estão baseadas em fatores diferentes dos de classe –

que são baseadas, por exemplo, em fatores de sexo, idade, origem étnica – e parece-me

essencial ampliar o marco referencial para a análise da ideologia para dar conta desses

fatores (THOMPSON, 1995, p.127).

Nesse sentido é importante o conceito de campo que Pierre Bourdieu (1989)

estabelece. Como entidade abstrata, o campo está em todos os lugares e é capaz de

aglutinar centros de interseção de diversos setores da ação humana. Mesmo que se

recuse, ao sujeito não existe a possibilidade de saída. Bourdieu (1989) toma como

exemplo a moda:

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(…) Estes [diferentes campos], em consequência das particularidades das suas funções

e do seu funcionamento (ou, mais simplesmente, das fontes de informação respectivas),

denunciam de maneira mais ou menos clara propriedades comuns a todos os campos:

assim, o campo da alta costura levou, mais diretamente do que qualquer outro universo,

a uma das propriedades mais importantes de todos os campos de produção cultural, que

é da lógica propriamente mágica da produção do produtor e do produto como feitiços –

sem dúvida porque, sendo mais legítimo culturalmente, ele censura de modo menos

vivo o aspecto “econômico” das práticas e está menos protegido contra a objetivação,

que implica sempre uma forma de dessacralização (p.67)

Assim, os campos envolvem todos os sujeitos e se inserem na dinâmica da realidade

de uma forma que é impossível sair deles. Os próprios campos dispõem de

mecanismos de anulação de iniciativas que tentem se desviar do caminho. Ao relatar

o dogmatismo religioso, Bourdieu (1987) registra que ele próprio cuida para inibir

ações dos laicos que tendam a desestruturar o campo. Não por acaso isso é obtido

por meio do poder simbólico, que é materializado através do habitus ou agentes

empenhados em prosseguir com a institucionalização social.

Dito isso, a noção de habitus traz consigo a questão desses agentes disseminadores

do poder simbólico. Entendo que isso reforça o caráter abstrato do campo no que diz

respeito à sua capacidade de delimitar a ação das pessoas, por isso é necessário

observar como o poder circula pela sociedade. Na percepção de Foucault (1996)

somos ditos antes mesmo de dizer algo:

(…) Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há

muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem

ser percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-

se, por um instante, suspensa (FOUCAULT, 1996, p.05).

O poder, igualmente, é gerado quando lugares de fala privilegiados atravessam os

indivíduos e os transformam em seres assujeitados. Entendo, portanto, que a forma

de nomear, qualificar ou mesmo indicar uma ação a um determinado objeto parte de

discursos anteriores, os quais preservam a hegemonia de seus produtores. Nesse

sentido, o poder circula por diferentes tempos e espaços, legitimando e perpetuando

valores institucionais que parecem intangíveis, mas que acabam materializados na

reprodução do discurso de certos valores inculcados socialmente. Mas vejo ainda que

os sujeitos podem rebelar-se contra isso, pois a individualidade não é obliterada.

Estabelece-se, então, uma relação dicotômica no processo de formação do homem.

Ele pode ser assujeitado, mas pode se blindar. Apesar disso, sempre estará dentro do

campo e sofrerá a influência do habitus.

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Assim, de um ponto de vista da subjetivação, acredito que não é procedente negar a

ideologia, mas creio que ela e os demais campos exercem uma influência maquínica

que aparelham o habitus e institui o poder que circula por mãos invisíveis através dos

diferentes grupos sociais. Dessa forma, são naturalizadas crenças, valores e o sujeito

pode ser domesticado dentro dum sistema amplo de interações entre indivíduos e

entre indivíduos e instituições. Para analisar como Otto é um produtor discursivo que

pode subjetivar certos contornos identitários, parto da crônica “O melhor é ser

mineiro”, publicada na Folha de S. Paulo dia 25 de novembro de 1991:

O MELHOR É SER MINEIRO

RIO DE JANEIRO, 25/11/1991—Na entrevista que o repórter André

Petry fez com o governador de São Paulo, nas páginas amarelas de

Veja, Fleury elogia Collor e Quércia, critica os juros altos e fala bem do

Marcílio. "O senhor não fala mal de ninguém?", perguntou o repórter.

Resposta: "Isso não adianta muito. A situação é tão grave que não é

preciso citar nomes ou criticar pessoas. Hoje a melhor forma de se

comportar em política é ser mineiro".

A partir de uma citação do ex-governador de São Paulo, Luiz Antônio Fleury Filho,

Otto encontra o argumento para sua crônica, o qual reside justamente no modo

mineiro de ser na política. Ao afirmar que “Hoje a melhor forma de se comportar em

política é ser mineiro”, o efeito de sentido produzido é o da conciliação. Dessa forma,

pressupõe-se que um político mineiro é hábil com as palavras e “não fala mal de

ninguém”.

Não por acaso, como disse no capítulo primeiro, os políticos mineiros são construídos

socialmente como seres parcimoniosos. O próprio Otto se define assim na crônica

“Isto cansa, mas assusta”: “Nasci e estudei em São João. Talvez por isto os mineiros

somos considerados ordeiros e até conservadores. Nossa vocação é mais de bombeiro

do que de incendiário” (Folha de S. Paulo, 13/09/1991, p.02). Ao dizer isso, o

cronista confirma a informação de Fleury. Ambas as afirmativas, portanto,

engendram um lugar de poder, já que cabe ao mineiro solucionar os problemas em

momentos de crise. Por isso, Minas desponta como o coração do Brasil, o ponto de

confluência capaz de definir os rumos do país. Uma “Pequena Pátria”, conforme

acentua Otto.

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Esse lugar de poder já foi legitimado socialmente. Isso porque um governador

paulistano já foi subjetivado e naturalizado com o discurso da conciliação. Isso

reforça esse apoderamento da realidade, pois há uma reprodução discursiva pelo

menos em cinco níveis: um do governador, um do repórter André Petry, um da

Revista Veja, um de Otto e outro do Jornal Folha de S. Paulo. Isso reforça o caráter

do político mineiro como agente conciliador. Não é possível afirmar de onde foi

gerado tal discurso, mas é possível ver que ele circula na sociedade, marcando o

apoderamento de um grupo social pela fala de outrem. No entanto, Otto questiona o

que é ser mineiro no próximo parágrafo da crônica:

O governador não explica, nem o repórter indaga o que é ser mineiro.

Por certo não é nascer em Minas. Pelo jeito, a metáfora é tão clara que

nem precisa de esclarecimento. Que diabo será "ser mineiro", pergunto

eu, mineiro de quatro costados, nascido e criado em São João dei Rei.

Não sei se vocês se lembram do Rubião. Machado de Assis assim o

define no Quincas Borba: "Singelo como um bom mineiro, mas

desconfiado como um paulista".

O locutor fica sem saber do que se trata ser mineiro. A resposta não está na certidão

de nascimento. O que corrobora minha hipótese de que não se herdam atributos, eles

são construídos com as experiências de vida. Mas, ao dizer que a metáfora é clara,

Otto acaba por se cegar, pois, nascido em São João del-Rei, pergunta-se o que é ser

mineiro. A reposta mais clara vem de um carioca, assim como a posição de Otto

quando da escrita do texto. Machado de Assis, em seu livro “Quincas Borba” informa

que o mineiro é “singelo”, ao passo que o paulista é “desconfiado”.

Novamente, é alçado um lugar de poder ao dizer que o mineiro é singelo. Em

contrapartida, o paulista é construído como “desconfiado”. Isso cria uma valência

positiva para o montanhês, pois atribui a ele um status privilegiado, de pessoa doce.

Dessa forma, o poder simbólico opera através da reprodução discursiva do que é ser

mineiro. Mas esse poder é novamente questionado por Otto, já que, ao deslocar-se

da posição de carioca para a de mineiro, não se reconhece a si enquanto o que é

atribuído pelos outros ao grupo social do qual ainda se sente um membro:

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O romance, uma obra-prima, é de 1891. Um século. Quem diria hoje

que o paulista é desconfiado? Que o mineiro é singelo, talvez, por causa

daquela história de comprar bonde. Mas até os bondes acabaram e não

foram vendidos para Minas. As palavras vão passando por variações

semânticas no curso do tempo. Para Eduardo Frieiro, em seu Feijão,

angu e couve, não existe "o" mineiro, como o viu Tristão de Athayde em

A voz de Minas. É só um estereótipo. É o que também sustenta

Francisco Iglésias.

Otto retoma o livro de Machado de Assis justamente para questionar se o mineiro

pode ser considerado, de fato, um ser singelo. A constatação do qualificativo vem

com a compra de bonde. Com o crescimento de Belo Horizonte, os mineiros se

deslocavam até o Rio de Janeiro para comprar bondes para a capital mineira, o que

gerou uma pilhéria popular sobre essa questão.

É interessante perceber que, quando se aproxima de uma reposta para problema

relativo ao que é ser mineiro, Otto alça o recurso do discurso indireto. Com isso não

se compromete como os lugares de fala ditos por outrem. Fato que vem marcado pelo

acionamento de três teóricos da Mineiridade: Eduardo Frieiro, Tristão de Athayde

(Alceu Amoroso Lima) e Francisco Iglésias. O primeiro e o último apostam no

caráter estereotípico, o segundo já acredita na existência de um mineiro de sangue,

que cumpre a missão de preservar as tradições do passado, conforme mencionei no

capítulo primeiro.

Ao citar tais autores, Otto tenta camuflar sua própria opinião, algo característico do

texto jornalístico. No entanto, não furta à resposta sobre o que é ser mineiro.

Indefinido, o cronista vale-se de três autores que entram em conflito justamente para

marcar sua posição de incerteza sobre uma definição dos montanheses.

No entanto, o uso do discurso indireto não deixa de marcar um locus de poder, pois

ao acionar opiniões assimétricas sobre o que é ser mineiro, Otto reforça as

representações que se tem de seu Estado natal e concorre para a naturalização de

status que nega ou afirma a condição do geralista. Na continuação da crônica ora em

análise, o autor continua o seu descritivismo, mas já começa a tomar partido e

demonstrar o que pensa sobre o ser mineiro:

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Por causa do ouro, Minas teve uma formação eminentemente urbana.

Foi obrigado a cultivar astúcia, paciência e teimosia, diz Sylvio de

Vasconcellos em seu Mineiridade. Isto não justifica, porém, que se veja

no mineiro só ronha e esperteza. Ou um sujeito sem caráter, bifronte e

oportunista. Murista, como se diz hoje. Afinal, de onde era o

Tiradentes? Qual o papel de Minas na Revolução de 1930? Em 1937, um

único ministro se opôs ao golpe: Odilon Braga, mineiro. Contra a

ditadura foi o Manifesto dos Mineiros, de 1943.

Otto continua o descritivismo histórico de Minas Gerais. Ao que tudo indica, ele tenta

blindar-se de expressar uma opinião própria ao acionar outras vozes que definam o

ser mineiro. Mas isso só reflete seu posicionamento em torno de Minas Gerais, pois

seu discurso acaba incorporando e sendo atravessado por outros elementos que

reproduzem a subjetivação em torno do recorte social do qual não mais faz parte, já

que cumpre exílio em terras cariocas.

Ratifico tal constatação a partir do momento em que cronista toma uma posição e

desconstrói a adjetivação negativa que é imposta ao homem de Minas Gerais. Otto

garante que o montanhês não é apenas “ronha” e “esperteza” ou sujeito “sem caráter”.

Para confirmar sua tese, cita vários mineiros e o Manifesto do qual foi o autor e

celebrizou uma de suas muitas frases, neste caso a de que “Minas está onde sempre

esteve”. Também é importante mencionar que os nomes escolhidos por Otto para

referendar seu pensamento são de heróis da nacionalidade. Isso, novamente, produz

o efeito de sentido que nega a fala inicial do ex-governador de São Paulo, Luiz

Antônio Fleury, de que o mineiro é caladinho, esperto em sua atuação política.

A confirmação de tal status vem com a conclusão da crônica, quando, para sustentar

seu argumento de que os mineiros são muito mais que “muristas”, Otto elenca um

vulto de nomes que contribuíram para Brasilidade:

Por ocasião do AI-5, Pedro Aleixo, mineiro, não mandou às favas os seus

escrúpulos. Ergueu sua voz solitária contra o monstro. O general Lott

era mineiro de Sítio. Em 1954, o mineiro Tancredo propôs a resistência

armada na dramática reunião que precedeu o suicídio do Getúlio. Em

1964, o estouvado general Mourão Filho era mineiro. Magalhães Pinto

no governo tomou partido. Mineiro é um quixote como Sobral Pinto. De

São João dei Rei, é o procurador geral Aristides Junqueira. Como era

Gabriel Passos. Que a história é essa de ser mineiro?

O fecho da crônica de Otto traz uma série de nomes que fizeram parte da Mineiridade

e, por conseguinte, da Brasilidade. Diferentemente do que disse Fleury, Otto afirma

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que os mineiros não são calados, mas mandam “às favas” os conflitos sociais que

tomam conta do país. Esse mandar às favas, no entanto, remete à ambivalência do

mineiro. Ao mesmo tempo em que ele é o revolucionário, expressão máxima contida

na figura de Tiradentes, ele é o posto fiel da balança que, fleumaticamente, consegue

administrar situações conflituosas, como o fez Tancredo Neves na abertura do regime

democrático brasileiro no final da década de 1980.

Nesse sentindo, ressalto que nenhum desses mineiros ficou circunscrito ao seu Estado

natal. Todos cruzaram a fronteira e se estabeleceram numa região fronteiriça,

intersticial. Apesar de relatar a vida dos poetas montanheses, Umberto Werneck

(1992) sinaliza o sintoma que a intelligentsia mineira tinha para descer a montanha.

“(…) Aqui se vai falar, também, da propensão que têm esses escribas para fazer as

malas, fincar barraca em outro canto – e, lá de fora, ficar olhando, cada vez mais

obsessivamente, para sua terra natal” (p.13).

Werneck (1992) sugere ainda que a mineiridade é muito mais forte por parte de quem

está do lado de fora. Por isso, atribui a estes diaspóricos o título de “mineiros

profissionais” (p.187). Numa espécie de sionismo mineiro, políticos montanheses

tentaram restabelecer escritores e jornalistas em sua terra natal. Mas o movimento

acabou por se frustrar. O mesmo sendo verificado com Otto:

Outro governador udenista, Magalhães Pinto, no começo da década de 60, também

andou sonhando pescar coestaduanos no litoral carioca. Um deles em especial: Otto

Lara Resende. Tentou-o, primeiro, com a miragem de uma Secretaria da Cultura, que

não chegou a ser criada senão muitos anos mais tarde. O escritor foi a Belo Horizonte,

assuntou, assuntou – e tomou o avião de volta ao Rio. Magalhães, mais adiante,

conseguiu que ele fosse, por um breve tempo, diretor do Banco Mineiro de Produção

(WERNECK, 1992, p.191).

Pouco antes da década 1980, Tancredo de Almeida Neves foi eleito governador de

Minas. Houve um esforço hercúleo para “anistiar” os exilados. Alguns, como o

cantor Milton Nascimento, bem que tentaram estimular os colegas. Mas foi em vão.

Depois de feita a travessia pelas montanhas, muitos preferiram o exílio eterno como

é o caso de Otto, que tem seu corpo enterrado no Rio de Janeiro.

É importante essa constatação, pois de longe e assimilado por outras culturas, o autor

pode construir subjetivações cartográficas que não lhe vêm da racionalidade da

presença, mas do sentimentalismo deslocado no passado. Isso pode evidenciar a

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criação de uma imagem de Minas Gerais romanceada. Apesar do muito que Otto fala

ser experienciado pelos geralistas, ele o faz por meio do campo simbólico e, portanto,

reproduz uma realidade representada. Dessa forma, seu deslocamento por fronteiras

porosas produz lugares de fala que podem culminar com um apoderamento do mundo

real convertido em sombra idealizada nas paredes das cavernas da mente de Otto.

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Capítulo III

IDENTIDADES INTERSTICIAIS:

LIMINARIDADE, ENTRE-LUGAR E

DESCONSTRUÇÃO EM OTTO

3.1 Cartografias porosas e espaços desterritorializados no discurso de Otto

Na década de 1940, o mundo colecionava errantes. Expulsos ou não de seus países, uma legião

de fugitivos da 2ª Guerra Mundial perambulava de uma nação a outra da Europa numa diáspora

sem fim. Atravessar a fronteira, contudo, não significava apenas escapar da expiação bélica;

representava uma peregrinação, muitas vezes sem volta, para o estrangeiro, para o estranho.

Todos numa jornada rumo a novas identificações, a novos modos de ser, já que a acomodação

em terras diferentes provavelmente requisitava a incorporação do gesto do “outro” como parte

do “meu”. “Parte”, pois os poucos trapos levados na bagagem foram suficientes para alinhavar

retalhos de memórias que não se puíram com o passar dos anos, mas que reforçaram uma moda

colorida, nuançada em diferentes tons, justamente por congregar costureiros e modelos

transnacionais.

No Brasil, não foi muito diferente. Apesar de longe do reich, a Ditadura Vargas (1930-1945),

período também conhecido como regime liberal populista, forjou um cenário político bastante

tenso. Diferentes partidos e ideologias engrossavam o debate em torno da nação. Mas uma das

principais características da época foi a modernização e a urbanização. O país ensaiava uma

mudança de economia agrária para industrial. Isso produziu um fluxo migratório que deslocou o

homem do campo para os grandes centros urbanos, especialmente os do Sudeste. O sotaque

caipira era démodé, e boa parte da população queria encenar um modo cosmopolita de ser.

Não por acaso foi, nesse período, que Otto desceu a montanha e transformou-se num flâneur em

terras cariocas. A Ville Merveilleuse, apelido dado ao Rio de Janeiro em 1912, pela francesa

Jeanne Catulle Mendes, era o destino predileto da intelligentsia brasileira até meados do século

XX. Apesar de prestes a perder sua capitalidade para Brasília, fato ocorrido em 1960, a cidade

experimentava uma renovação em sua autoestima. Aposentava o título de “Paris dos Trópicos”,

enquanto incorporava uma cor local aos seus qualificadores, optando por ser conhecida como

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“Paraíso Tropical”. Lugar que viu a “Garota de Ipanema” circular como “Princesinha

do Mar” e aos poucos deixou de ser uma cópia anacrônica da França.

Se Brasília trazia o impetuoso vigor do progresso, aos cariocas isso pouco importava.

Debochavam dos candangos com letras e planger de violões que cantavam as belezas

do Rio de Janeiro. A Bossa Nova de Tom Jobim, João Gilberto e Vinícius de Moraes,

com seu cantinho e seu violão, era laudatória da suavidade pulsante da paisagem

praiana. O avião que trazia Tom & Os Cariocas era um convite ao Brasil e ao mundo

para participar dessa grande celebração que era o Rio de Janeiro:

Minha alma canta/ Vejo o Rio de Janeiro (…) / teu mar, praias sem fim/ Rio, você foi

feito pra mim/ Cristo Redentor/ Braços abertos sobre a Guanabara/ Este samba é só

porque/ Rio, eu gosto de você/ A morena vai sambar/ Seu corpo todo balançar/ Rio de

sol, de céu, de mar/ (...) (JOBIM, 1962).

E Otto não fugiu ao chamado. Transferiu-se para a capital carioca em 1945. Época

de boêmia, dos cafés em hotéis da Avenida Atlântica, dos bares de Ipanema. O

mineiro recém-chegado adaptou-se rapidamente e logo fundou uma confraria – “Os

quatro Cavaleiros de um Íntimo Apocalipse” – cujo título foi escolhido pelo próprio

Otto para nomear a si e aos amigos Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Hélio

Pellegrino. Começava uma nova jornada em sua vida, em um novo espaço, que não

era enclausurado pela montanha, mas aberto pelo horizonte sem fim da praia.

A nova cartografia ressignificou as identidades de Otto. No entanto, chamo a atenção

para o fato de que a formação desse novo sujeito recobra um imaginário que perpassa

construções discursivas e simbólicas diversas. Entendo por construções discursivas

o conjunto de enunciados que são gerados em uma dada situação de interação, que

podem produzir um determinado efeito de sentido e gerar, ou não, uma mudança

social. Por sua vez, vejo as construções simbólicas como elementos

institucionalizados socialmente, como a religiosidade, a política, a tradição, as quais

são acionadas para e pelos discursos.

Cabe ressaltar que é preciso recortar o conceito “discursos”. Usado no plural, pode-

se referir a uma miríade de enunciados gerados em diferentes esferas – jurídica,

médica, econômica – e, por isso mesmo, ser depositário de uma tipologia bastante

extensa, o que torna possível a existência de diferentes gêneros textuais e seus

diferentes níveis de hierarquia social. O “discurso” a que me refiro aqui é o midiático,

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mais especificamente o cronístico. Margarethe Born Steinberger (2005),

pesquisadora da área de Comunicação e Linguagens da UFABC Paulista, faz uma

ponderação relevante sobre o discurso midiático. Para a estudiosa, ele não traz em si

um caráter de originalidade, mas recupera outros discursos institucionais de modo

simplificado26. Essa máquina de reciclagem reconverte de forma pasteurizada

determinadas produções textuais facilitando o acesso à informação. Além disso, a

velocidade com que se reproduz é outro fator que lhe garante certa proeminência em

relação aos discursos gerados em outros locus:

(…) As linguagens institucionais – em seus usos contextualizados do capital linguístico

mais geral – também articulam visões de mundo. Assim, por exemplo, as linguagens

jornalísticas, diplomática, militar, acadêmica (e os seus respectivos gêneros de

expressão) vivem uma espécie de guerra de representações, cada uma tentando

suplantar a outra com “sua visão de mundo”. Não se trata, entretanto, de uma luta justa.

A linguagem jornalística leva nítida vantagem em relação às demais, pois só ela tem

aquele poder combinado de fazer multiplicar em grande escala e velocidade sua versão

dos fatos e, ao mesmo tempo, criar uma versão legitimada socialmente com o selo da

alta confiabilidade (STEINBERGER, 2005, p.163, grifo da autora).

Mas, essa alta confiabilidade a que se refere a autora não é sinônimo de confiável. É

preciso observar as condições em que essa tradução de um discurso a outro ocorre,

pois ela pode se destinar a determinados fins, gerando ideologias e estabelecendo

fluxos de poder dentro de determinados espaços. Um exemplo disso é a chamada

propriedade cruzada de mídia, isto é, quando um mesmo grupo detém vários meios

de comunicação como jornais, rádios, tevês, web sites. Geralmente ligados a famílias

de tradição política regional, esses conglomerados midiáticos podem induzir a

recepção segundo os interesses imediatos de seus proprietários.

Esse parêntese é fundamental, pois Otto não é apenas receptor daquilo que é

veiculado pela imprensa, mas produtor do que é criado pelo jornal. É neste sentido

que afirmo que sua nova inserção cartográfica e, por conseguinte, suas identificações,

encontram-se intrinsecamente ligadas às práticas discursivas e simbólicas das quais

fez parte como plateia e ator. Isso significa dizer que analisar o artefato textual de

26 Adriano Duarte Rodrigues (2002) propõe uma oposição nesse exercício de tradução de um discurso a outro,

diferenciando os discursos esotérico de exotérico: “Esotérico é aqui um termo técnico para designar o discurso

destinado aos membros de uma instituição, exigindo a sua compreensão o domínio das suas representações

simbólicas próprias, o que o torna relativamente opaco para os estranhos, aos que não pertencem ao corpo legítimo

dessa instituição. Exotérico, pelo contrário, aplica-se às modalidades discursivas que não são reservadas a um corpo

institucional em particular, mas destinadas a todos indiscriminadamente” (p.220).

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115

Otto requer que se observem as condições de produção textual, a geração de

determinados efeitos de sentido e as possibilidades de interpelação ideológica de seus

interlocutores. Isso porque, conforme salientou Steinberger (2005), o discurso do

cronista propagava-se em um dos mais poderosos meios de difusão de mensagens: a

mídia impressa.

Essa proeminência assumida pelos media na sociedade global vai reconfigurar a

relação do sujeito com o mundo e criar novos mapas identitários. A localização e o

contato com o “outro” não se definem mais tão somente pela presença, mas por

diferentes culturas e identidades que foram trazidas pelos meios de comunicação para

bem próximo do indivíduo, o que gerou um novo posicionamento diante do universo

e uma diluição das fronteiras que limitavam a mise-en-scène dos contatos sociais.

Steinberger (2005) chama a atenção para o fato de que essa midiatização do espaço

engendrou uma nova episteme geopolítica diferente daquelas previstas em outros

períodos históricos. Para a autora, a indústria cultural e do entretenimento

globalizaram a cultura por meio de um “sistema pós-moderno-midiático”, bem

diferente das relações que foram estabelecidas pelos sistemas medieval-religioso e

moderno-científico (p.23).

Disso resulta que, ao se pensar sobre o que é um carioca, um mineiro, ou um “cidadão

do mundo”, requer que o faça por meio de uma geopolítica própria, realocada por

meio desse sistema pós-moderno-midiático, pois a construção identitária sobre

diferentes recortes sociais entra no campo da midiatização, o qual acaba por

naturalizar certos conceitos. Antes de prosseguir, contudo, é preciso salientar a

diferença que existe entre “novo” e “atual” em jornalismo. Em analogia aos conceitos

semióticos de Charles Sanders Peirce, Steinberger (2005) explica que o novo ocupa

a categoria dos “sinsignos” que têm o caráter de contingente, ao passo que o “atual”

relaciona-se com os “legissignos”, que possuem a faceta do habitual. Tal

conceituação vai ser determinante para a midiatização, pois a naturalização de um

predicado referente a uma determinada sociedade, penso, deve partir do novo para se

tornar atual, habitual. Por isso, a constituição de uma geopolítica moderna não deve

ser vista como um conceito indissociável da História. É na relação que os sujeitos

mantêm entre si e com os acontecimentos do mundo que os discursos e, por

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conseguinte, os espaços, são formados e validados, graças à nova episteme pós-

moderno-midiática.

Imediatamente à midiatização dos conceitos de cartografia do sujeito, o espaço é

redimensionado no campo do simbólico. Isso significa que ele passa a ser concebido

como uma representação do real, pois é construído segundo uma gramática da

discursividade geopolítica midiática. Os produtores desse espaço não são mais

qualquer coisa natural, mas agentes sociais, com intenções políticas, econômicas e

até mesmo espirituais. O espaço, portanto, adquire uma feição que não é dominada

pelas leis da natureza, mas pelo jogo de interesses humanos que lhe definem nova

significação. Tal constatação pode ser vista na crônica “Cota Zero”, publicada por

Otto na Folha de S. Paulo, dia 24 de janeiro de 1992:

COTA ZERO

RIO DE JANEIRO, 24/01/1992— Outro dia mesmo, o crescimento da

população era motivo de orgulho. Quando o Rio chegou a um milhão de

habitantes, foi uma festa. Deu até manchete. Era aqui a capital da

República. O projeto de uma capital lá no fundo do sertão era letra

morta, mais uma, no cemitério da Constituição. São Paulo botava banca

de metrópole cosmopolita. O maior parque industrial da América Latina.

A crônica parte de uma situação neutra – “Cota Zero” – algo sem valor positivo ou

negativo. Mas é importante antecipar que o título escolhido é um intertexto

estabelecido com o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade, publicado

no livro Alguma Poesia, de 1930. A condição inicial, portanto, é pouco reveladora.

Contudo, a neutralidade para aqui. O começo do primeiro parágrafo traz à luz a

perspectiva que o cronista tem em relação ao crescimento demográfico – “Outro dia

mesmo, o crescimento da população era motivo de orgulho.” – a presença do verbo

“ser”, conjugado na terceira pessoa do singular do pretérito imperfeito do indicativo,

acusa que o aumento populacional não é mais motivo de orgulho em relação ao lugar

de fala de Otto. Fato que pode ser confirmado pelos vocábulos “festa” e “manchete”,

os quais estão ligados ao passado, quando o Rio de Janeiro atingiu a marca de um

milhão de habitantes. Além disso, a “manchete” no jornal reforça a tese de que os

espaços passam a ser cartografados pela mídia e, no caso do Rio de Janeiro, reitera a

posição de destaque da cidade.

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117

Tal constatação vem assinalada imediatamente com o rebaixamento do então

“projeto” de Brasília. A cidade idealizada por Juscelino Kubistchek não passava de

um mito. Otto recupera esse discurso e atribui ao Planalto Central uma construção

ideológica de local no “fundo do sertão”, o que produz um efeito de sentido negativo

para futura capital nacional, equivalente ao lugar no qual “Judas perdeu as botas”.

Como uma cidade borgeana, Brasília era imaginada, ao mesmo tempo em que

reiterada no discurso cronístico, como um espaço do fantástico - “letra morta (…) no

cemitério da Constituição”.

A construção de uma ideia progressista em compasso com o crescimento

populacional é amplificada em relação ao que Otto diz sobre São Paulo. Apesar de

usar o desqualificativo “botava banca de metrópole cosmopolita”, que produz o efeito

de sentido de superioridade petulante, o cronista retifica o valor atribuído à cidade ao

constatar que São Paulo despontava como “O maior parque industrial da América

Latina”, como se fosse um fazer mea-culpa à arrogância do cosmopolitismo do

paulistano.

A construção deste espaço privilegiado do Rio de Janeiro e de São Paulo é destacada

pelas relações sociais que são travadas nele e para ele. O espaço, assim, funciona

como uma representação que os homens mantêm entre si, mas uma representação de

forma subjetiva, pois “o espaço produzido é um resultado da ação humana sobre a

superfície terrestre que expressa, a cada momento, as relações sociais que lhe deram

origem” (MORAES apud STEINBERGER, 2005, p. 62). Isso significa que a imagem

que Otto constrói das duas maiores cidades brasileiras não está localizada apenas nas

estatísticas do censo demográfico ou de pesquisas sobre o crescimento industrial,

mas no poder simbólico que é atribuído a esses territórios, haja vista que é por meio

do seu discurso midiático que é legitimada essa cartografia que privilegia o Rio de

Janeiro e São Paulo.

A continuação da crônica deixa claro como era atribuída a noção de

desenvolvimento, portanto, status, segundo o tamanho e o caráter cosmopolita que

os espaços urbanos ostentavam:

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A gente ia aí encontrar o Mário de Andrade, tomava chope no

Franciscano, batia um papo na rua Lopes Chaves e pulsava no nosso

peito aquela exaltação. Pátria, latejo em ti! Perto de Belo Horizonte,

ainda quase Curral del Rei, perto das velhas cidades mineiras, Ouro

Preto, São João del Rei, São Paulo já trazia, impaciente, a vibração da

arrancada gigantesca. A frase do maior parque vinha escrita nos bondes

amarelos, ou vermelhos? Eram vermelhos. Amarelos eram os de Belo

Horizonte.

Na memória de Otto, São Paulo, marcado na crônica pelo advérbio “aí”, era uma

viagem à intelligentsia brasileira. Na cidade do desenvolvimento industrial, também

era possível encontrar um Mário de Andrade e viver a romântica experiência boêmia

à Rua Lopes Chaves, então endereço do escritor de “Paulicéia Desvairada”. No

entanto, mais do que estar num espaço urbano, físico, passear por São Paulo

significava um encontro marcado com o progresso. Era preciso fugir do

provincianismo e se ambientar com o cosmopolitismo, deixar pulsar no peito a

exaltação e não olhar para trás, para o velho. Tal assertiva é corroborada na

continuação do parágrafo, já que em oposição às “velhas cidades mineiras”, São

Paulo estava “impaciente”, agitada com sua “arrancada gigantesca”. Ao jovem

mineiro em trânsito, o espaço simbólico da capital do progresso significava um “elo

partido” com as retrógradas Minas Gerais.

A certificação do encontro com um espaço urbano progressista é marcada na palheta

de cores dos bondes de Minas Gerais e São Paulo. Enquanto os paulistanos eram

vermelhos, “(…) uma cor quente, transbordante de vida e agitação”, os mineiros eram

amarelos, que apesar de significar luz, “origina (-se) do baixo-Latim hispânico

ammarellus, diminutivo do Latim amarus, ‘amargo’”27. Assim, era preciso deixar o

provincianismo e tomar o bonde do progresso.

Ressalto, contudo, que abandonar as Alterosas para experimentar um estado de ser

cosmopolita não significa destruir a experiência mineira. Penso que os mapas

identitários de Otto recobram uma imaterialidade espacial, que Steinberger (2005)

define como o “espaço capitalista, apropriado pela crise do sujeito e pela abolição

dos espaços referenciais, afirmando um espaço abstrato de quebra das

homogeneidades” (p.99). Isso quer dizer que o cronista não é tão somente mineiro,

27 Disponível em www.significadodascores.com.br Acesso em: 02/08/12

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nem paulista ou carioca. Sem uma ancoragem em um determinado ponto de

referência, ele circula por diferentes lugares e coleciona vozes que permitem

identificar diferentes rastros culturais em suas múltiplas identidades. Ao autor, não é

possível um bairrismo claustrofóbico, apesar de o regionalismo ser uma marca forte

em sua escrita, mas sim um universalismo que congrega diferentes estados de ser em

sua formação cultural.

Estas clivagens cartográficas que Otto acumulou ao longo de toda a sua vida

demonstram sua fragmentação em identidades múltiplas. O seu “eu” não-presente

“aqui” nem “lá”, mas também presente “aqui” e “lá” é recuperado por seu discurso

que ora se localiza no presente, ora no passado; mas, acima de tudo, no interstício

entre espacialidades e temporalidades que se misturam e constituem o espírito

cosmopolita e errante do autor. É por meio dessa perspectiva que a geopolítica deve

ser vista como um fenômeno cultural amplo que não só cuida do que é tangível, bem

como daquilo que é intangível. Conforme argumenta Steinberger (2005):

[…] A espacialização e a temporalização das identidades nacionais é um tema

importante para essa geopolítica crítica, que desconstrói a “noção convencional e

totalizante de fronteira” em narrativas fragmentárias com “nós” versus “outros”,

“iguais” versus “diferentes”, “próximo” versus “distante”, “seguro” versus “perigoso”,

“indiferente” versus “responsável” (p.104).

Esta abordagem permite afirmar que o discurso ottolararesendiano não deve ser

compreendido dentro de fronteiras sólidas. Apesar de o foco da dissertação ser as

vozes mineiras e cariocas que ecoam na voz de Otto cronista, não posso me furtar de

considerar o sotaque universal que repousa em sua escritura. Isso indica sua diluição

em fronteiras fluidas previstas pela geopolítica crítica. Tal consideração deve-se ao

fato de o autor ter vivenciado intensamente os diversos lugares pelos quais passou.

Mesmo empunhando o autoconferido “mineiro de quatro costados”, Otto foi mesmo

um cidadão do mundo, um sujeito errante que colecionou experiências por suas

andanças e contatos com culturas diversas. A continuação da crônica revela como o

caráter universalista está inscrito no artefato textual do autor:

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E verdes eram os do Rio. Verde, amarelo, vermelho, fossem estas ou

outras cores, já se vislumbrava, ou se via, ofuscante, o arco-íris do

futuro. Não era miragem, só dois pássaros voando. Era um pássaro na

mão, ansioso pelo horizonte que, promissor, sim, também era real. A

ditadura do Estado Novo aqui dentro não passava de uma bota

apertada, prestes a ser descalçada. Tolhia, mas deixava andar pra

frente. Lá fora, o horror da guerra. O mundo em cólicas de parto, para

inaugurar o dia de amanhã. Já se entreviam os dedos róseos da aurora.

Novamente aparecem as tonalidades que acabam por construir um imaginário em

relação aos espaços articulados pela memória de Otto. Se em Minas Gerais os bondes

eram amarelos e, em São Paulo, vermelhos; no Rio de Janeiro, eram verdes, cor que

“simboliza a renovação, fertilidade, crescimento e saúde”28. A presença dessa cor

retoma a ideia contida no primeiro parágrafo, pela qual o crescimento demográfico

do Rio de Janeiro sinalizava o progresso. Apesar de esses matizes integrarem o

ambiente constitutivo de cada cultura, o cronista os dilui em um caleidoscópio

frenético representativo do “arco-íris do futuro” desenvolvimentista. Essas nuanças

ratificam o tom regionalista do autor, que recupera elementos diversos de sua

formação cultural, mas também produzem o efeito de sentido universalista, pois,

independentemente de cada tom separado na palheta, há uma mistura entre eles que

forma um espectro geral sobre o “horizonte” brasileiro. A nova cartografia colorida

do cenário nacional não figurava como algo intangível, mas materializada na

oposição dos verbos “vislumbrar” e “ver”. Enquanto o primeiro está no campo das

conjeturas, das possibilidades, o segundo aciona algo tangível, presentificado diante

do campo de visão, portanto verdadeiro, como na máxima de São Tomé, que

necessita ver para crer. Esse otimismo em relação ao desenvolvimento do Brasil vem

marcado pela interdiscursividade que Otto estabelece com o ditado popular, pois o

dia iluminado de amanhã não é representado por “dois pássaros voando”, mas por

“um pássaro na mão”.

Tal materialidade desenvolvimentista vem atrelada ao contexto político da época.

Apesar da “ditadura do Estado Novo”, ela não “passava de uma bota apertada”, que

ia ser “descalçada”. Com essa afirmação, Otto acaba por atenuar o caráter ditatorial

28 Disponível em www.significadodascores.com.br Acesso em: 02/08/12

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do Estado Novo, já que o afrouxamento da ordem permitia o progresso nacional. Esse

sentido é gerado em oposição ao cenário internacional. Enquanto no Brasil o

“horizonte” era “promissor”, “lá fora” havia o pânico gerado pela Segunda Guerra

Mundial. Fato suficientemente forte para impedir o desenvolvimento do mundo.

Contudo, o timbre niilista é abafado pelas “cólicas do parto”, prestes a inaugurar o

“dia de amanhã”. Nem o belicoso sistema planetário seria impeditivo para o

desenvolvimento. O que é reiterado pela presença do adjetivo “róseo” que qualifica

o substantivo “aurora”. Na definição dos significados das cores, rosa “significa

romance, sensualidade e beleza feminina. Aliás, culturalmente, o rosa é uma cor

associada ao feminino”29. Essa definição, portanto, anula o terror da guerra, ao passo

que evoca a figura feminina como progenitora do progresso.

Retomo, aqui, a importância que os deslocamentos de Otto tiveram na sua formação

discursiva. É por meio do diálogo entre uma cultura e outra que o cronista consegue

aglutinar tanto o sotaque regional quanto o global. Com isso, afirmo que ele ocupa

uma cartografia especial, pois emergem de seus enunciados imaginários sociais que

se constroem e se desconstroem entre várias formações identitárias. Ao cronista é

permitido ocupar tanto o lugar de fala do autóctone, quanto o do estrangeiro. Isso

porque o “eu” que nomeia e qualifica Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo ou

“Lá fora” tem uma inserção social privilegiada. Ele pode ter seu discurso localizado

tanto no hic et nunc, quanto ser aquele que se deixa levar por meio das reminiscências

para construir uma posição de sujeito que retoma as suas origens.

Os interstícios identitários de Otto são sintomáticos de uma formação discursiva

polifônica, a qual abriga nos seus interdiscursos várias construções culturais que são

acionadas constantemente para (re) produção do imaginário social sobre o que é ser

um carioca, um mineiro ou um paulistano. Mas observo que as possibilidades de

formações discursivas tão assimétricas são amarradas por um único núcleo em

constante deslocamento. Assim, atribuir ao discurso de Otto um local privilegiado de

formação do imaginário significa dizer que seu produtor encontra-se numa situação

social particular, a qual permite o ser estrangeiro lançar os olhos do lado de fora para

29 Disponível em www.significadodascores.com.br Acesso em: 02/08/12

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construir determinadas posições de sujeito que ocupam determinados deslocamentos

espaciais. Mas ele também é o nativo credenciado a falar sobre a sua cultura, pois

facilmente a retoma por meio de suas memórias.

A evidência da qualificação do estrangeiro, contudo, não exclui a possibilidade de

autorreferenciação identitária. Como sujeito inserido em uma lógica própria de

significação e capaz de compartilhar um painel simbólico rico em matizes próprios,

Otto está posicionado numa cartografia que lhe permite limitar-se dentro de suas

próprias qualificações. Essa constatação sustenta minha hipótese sobre as identidades

intersticiais do autor, pois ora ele ocupa a posição de sujeito congênito, ora ocupa o

lugar de forasteiro. No entanto, como discutirei posteriormente, essas

territorialidades que parecem opostas, acabam por se amalgamarem em um único

centro significador.

À luz do que acabei de dizer, ressalto que não apenas a territorialidade vai ser

determinante para a formação dessa nova geopolítica, como também o elemento

tempo. Por isso, a História é um fato imprescindível quando se quer analisar os

mapeamentos sociais. Um exemplo disso pode ser visto na continuação da crônica

de Otto:

O penumbrismo, a tristura decadentista, isto era coisa do passado até

nas artes e nas letras, de súbito despertadas em 1922. "Ah, 'como dói

viver quando falta a esperança!"— o suspiro tísico do Manuel Bandeira

de 1912 era tão antigo e fora de moda quanto o gramofone de 1910 do

Murilo Mendes. Tudo de repente andava depressa. E na própria

velocidade residia uma deusa que cumpria cultuar. Até Noel Rosa tinha

cantado o progresso — e o progresso é natural. Bom dia, avenida

Central!

A construção espacial, como disse, também é determinada pelo fator tempo. Em

oposição ao passado, o presente e o futuro trazem a renovação progressista.

Steinberger (2005) acentua que os espaços são constituídos em consonância com as

épocas em que estão situados e, por isso mesmo, um período posterior a outro gera

um “espaço de catástrofe” em relação ao anterior. Otto produz esse efeito de sentido

quando marca discursivamente que “o penunbrisimo, a tristura decandestita” ficaram

em outro período. O cronista encontra os elementos de sustentação para sua tese ao

acionar o exemplo da Semana de Arte Moderna em 1922, a qual propôs uma

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reinauguração “nas artes e nas letras”. Também traz como argumento a qualificação

de “tísico”, atribuída a Manuel Bandeira, e ao démodé “gramofone” de Murilo

Mendes.

Imediatamente ao passado decadente, o presente e o futuro inauguravam uma nova

forma de conceber a passagem do tempo – “Tudo de repente andava depressa”. A

verificação de Otto sobre as mudanças trazidas com o caminhar dos anos ocorre na

medida em se tocam um “eu” do passado com um “eu” do presente/futuro. A

conivência e a convivência entre essas instâncias enunciativas demonstram que,

apesar das identidades do cronista fluírem por temporalidades distintas, elas acabam

por definirem uma posição de encontro do sujeito em relação ao novo. Ele é

assumidamente do passado, pois tudo passa a ser rápido demais; mas, ao mesmo

tempo, ele é o ser do contemporâneo, já que vivencia a experiência da fugacidade.

Essas identidades compósitas estão atreladas à nova cartografia urbana, o que indica

que tanto a espacialidade quanto o ethos do sujeito definem-se mutuamente, num

jogo de significação que leva em consideração a influência do ambiente sobre o

indivíduo e vice-versa.

Não é difícil perceber que o progresso é algo que assusta e que causa admiração – “E

na própria velocidade residia uma deusa que cumpria cultuar”. Mas esse tom

laudatório vem interrompido pela citação de Noel Rosa. A ironia quase britânica de

Otto, seu sense of humour, deixa translúcido o pesar do sambista carioca com a

modernidade. Só é possível entender esse desgosto com leitura da letra da música.

Se Rosa havia “cantado o progresso”, o fez com repúdio. Isso porque no samba

“Século do Progresso”, ele lamenta que: “(…) Chegou alguém apressado/ Naquele

samba animado/ Que cantando dizia assim:/ No século do progresso/ O revólver teve

ingresso/ Para acabar com a valentia” (ROSA, 1937). Atrelado ao desenvolvimento,

portanto, veio a violência, que se tornou um fato corriqueiro, “natural” da nova

geopolítica das grandes cidades. A modificação do ambiente urbano no século

passado alterou também as formas de sociabilidade das pessoas. Com a Reforma

Pereira Passos, entre 1902 e 1906, o Rio de Janeiro passou por um processo de

sanitarismo. O prefeito, homônimo às mudanças da cidade, desenhou uma cartografia

urbanística que dilatou o tamanho das ruas e criou a Avenida Central, atual Avenida

Rio Branco. Essa Reforma impeliu o cidadão pobre para os morros que formariam

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as atuais favelas. Com esse caráter negativo do progresso, fica evidente o tom irônico

ottolararesendiano, que encerra o parágrafo com a saudação, nada gratuita – “Bom

dia, avenida Central!”.

A ratificação dessa ironia e das ressalvas com o progresso retoma o primeiro

parágrafo da crônica – “Outro dia mesmo, o crescimento da população era motivo de

orgulho”. Contudo, é na última parte do texto que aparece de maneira desvelada a

posição do cronista em relação ao desenvolvimento urbano:

Nuns poucos decênios, armamos o cenário para o banditismo, a

violência, a criminalidade. O açodado bota-abaixo abria espaço à cidade

de perfil americano. A cidade sem rosto. Os orgulhosos arranha-céus.

Todo passado é remorso. Adeus, português suave dos sobrados.

Chalezinhos suíços, morada ingênua, adeus. Jardim, quintal, vade retro!

Lá vamos nós, Brasil das megalópoles, de parelha com Nova York,

Londres, Paris. Tóquio que se apresse. Stop. Foi o futuro que chegou, ou

o Brasil que parou?

Logo no início do excerto acima, Otto dialoga com a letra do samba de Noel Rosa.

Ao lado do progresso, veio o “banditismo, a violência e a criminalidade”. Bastaram

apenas algumas décadas para que essa situação fosse instaurada. E o cronista inclui-

se como responsável por essa nova cartografia, já que emprega o verbo “armar” na

primeira pessoa do plural do presente do indicativo – “armamos”. Ao tomar assento

nesse processo de reambientação do espaço da urbe, Otto também diagnostica novos

mapeamentos das relações interpessoais geradas pelo novo território. A “cidade de

perfil americano” ameaçou a tão aclamada sociabilidade carioca com a produção de

uma massa de sujeitos “sem rosto”. Isso significa dizer que a nova dinâmica citadina

também reconfigurou as identidades sociais. Não por acaso, como já foi dito em

capítulo anterior, o Rio de Janeiro passou a ser conhecido, no final do século XX,

como a “Miami da América do Sul”, que substituiu o flâneur das orlas de Ipanema e

Copacabana pelos consumidores dos shoppings centers da Barra da Tijuca.

Mas, ao lado desse Otto carioca, convive o Otto mineiro. Se um dos atributos da

subcultura da Mineiridade é o tradicionalismo, há que se observar que essa

característica ecoa no discurso do cronista. Ao afirmar que – “Todo passado é

remorso” – ele não só expia culpa pelo agigantamento da cidade, como também

produz um discurso, quase lamuriante, pela perda dos símbolos do passado como

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“sobrados”, “chalezinhos” e o “quintal”, os quais foram obliterados pelo progresso

instituído pela cidade cosmopolita “de parelha com Nova York, Londres, Paris”. Até

Tóquio, megalópole tecnológica, espécie de “cybercity”, precisava ficar atenta para

não ser suplantada pelas conurbações brasileiras.

A enunciação mais evidente desse remorso que concerne à privação das coisas do

passado vem nas últimas linhas do texto. Como já disse quando da análise do

primeiro parágrafo da crônica, seu título – “Cota Zero” – estabelece uma relação

intertextual com o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade. Essa

referência ao discurso drummondiano é recuperada novamente. Enquanto no original

o poeta afirma/indaga que: “Stop./ A vida parou/ ou foi o automóvel?”, na versão

ottolararesendiana o questionamento é se – “Foi o futuro que chegou, ou o Brasil que

parou?” Ambas as produções textuais comportam o efeito de sentido de perplexidade

e repúdio com o desenvolvimento. Assim como o objeto automóvel é menos

importante do que a vida, o “futuro” desenfreado, desordenado representa uma

reificação do Brasil. Essa geopolítica global, portanto, paralisa o país, posto que, para

Otto, ele passa a sofrer um processo de aculturação ao incorporar o modo de vida

difundido por outras nações.

Há que se notar que a midiatização dos discursos geopolíticos concorre para a

construção de determinados referenciais de mundo. Steinberger (2005) acentua que

o lugar de produção da informação jornalística acontece em meio a “sistemas de

conhecimentos (sistemas de referência), em contextos históricos e geográficos de

relações de poder que interferem sobre modos institucionalizados de ver e ordenar

espaços” (p.190). Por meio desta perspectiva, o lugar de fala do jornalista Otto torna-

se uma das instâncias responsáveis pela formação do imaginário em torno da cidade

do Rio de Janeiro. Assim, ele não é tão somente alguém que compactuou, armou o

cenário para esse progresso às avessas, mas um sujeito enunciador que confirma e

reproduz a representação da violência e da perda das identidades como qualificativo

da metrópole.

A crônica “Cota Zero” de Otto constrói um espaço representacional de Minas Gerais,

Rio de Janeiro, São Paulo e “Lá fora”. É por meio de seu discurso que é (re)

produzido o imaginário acerca das identidades que flutuam sobre esses locais. Apesar

de não ser o cronista o responsável pela constituição do cenário desenvolvimentista,

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ele se inclui como um dos agentes que contribuíram para a modernização do país. A

constatação desse “fazer parte” só é possível pelo seu deslocamento entre diferentes

identidades e por essas espacialidades distintas. Por isso, a afirmação de suas

identidades esbarra na sua errância por diferentes ambientações. As clivagens do

cronista não devem ser vistas como pedaços de um sujeito cindido, mas como

elementos que se encontram no interstício identitário, formando um Otto regionalista

e universal ao mesmo tempo.

Essa mistura entre o regional e o global está de acordo com aquilo que Néstor Garcia

Canclini (1995, p.86) chama de “glocalize”. Um neologismo de empresários

japoneses que articulam em suas estruturas comerciais o local, o nacional e o global.

Cambiado do econômico para o simbólico, pode-se dizer que os elementos da

Mineiridade funcionam como âncora imaginária para o descentramento

ottolararesendiano. São os dobres da memória que permitem ao cronista situar-se

num mundo descentrado. Mas, chamo a atenção para o fato de que, na posição que

ocupa, Otto é um ser pluridimensional. Enquanto ser deslocado de Minas Gerais, os

mineiros tornam-se estranhos para ele. Enquanto mineiro que se faz pela memória,

os estranhos são aqueles que o abrigam em sua diáspora. Entendo que tal processo

de desconstrução de si mesmo reflete na ideia continuada de sua posição líquida entre

os vários lugares e tempos por que passou. Por isso, essa múltipla inscrição, no caso

de Otto, vai ser construída nos diferentes referenciais que analisei até então. Ora o

mineiro, ora o cosmopolita, não é por acaso que Canclini (1995) acentua que

“construímos mais intensamente o próprio a partir do que imaginamos sobre os

outros” (p.91).

Ao pensar que a Carioquice e a Mineiridade devem boa parte de seu ethos ao espaço

geográfico, sou levado a crer que determinados ambientes modelam as identidades

graças às redes de sociabilidade que neles se (re) produzem. Enquanto a montanha

limita o horizonte e dificulta o deslocamento, a praia permite uma visão infinita e

convida o flâneur para viver um eterno feriado. Contudo, penso que, em relação a

Otto, a liminaridade porosa entre o morro e o mar dilui-se em montes de areia, que

convidam tanto para o passeio descuidado quanto para a escalada concentrada. Isso

significa dizer que, tanto a memória das cidades mineiras, quanto a vivência no Rio

de Janeiro, são expressões de uma suplementariedade descentrada. Assim, suas

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crônicas lidam com espaços desterritorializados, mas construídos simbolicamente no

gênio criativo do autor. “Os imaginários urbanos continuam sendo constituídos pela

memória de cada cidade e de alguns bairros emblemáticos, por circuitos e cenários

idealizados, rituais em que os habitantes se apropriam do território urbano, narrativas

singulares que o consagram” (Canclini, 1995, p.114).

Diferentemente do rito tradicional, que conferia à vestimenta o elemento

diferenciador do grupo, na chamada modernidade tardia os elementos que

identificam o grupo compactuam com um imaginário que extrapola o que está

circunscrito ao clã e engendram sistemas que, podendo operar no ficcional,

constroem as comunidades segundo signos diferenciadores. É neste sentido que

Canclini (1995) defende as identidades como um processo de narrativa do simbólico:

A identidade surge, na atual concepção das ciências sociais, não como uma essência

intemporal que se manifesta, mas como uma construção imaginária que se narra. A

globalização diminui a importância dos acontecimentos fundadores e dos territórios que

sustentam a ilusão de identidades a-históricas e ensimesmadas. Os referentes de

identidade se formam, agora, mais do que nas artes, na literatura e no folclore – que

durante século produziram os signos de distinção das nações –, em relação com os

repertórios textuais e iconográficos gerados pelos meios eletrônicos de comunicação e

com a globalização da vida urbana (Canclini, 1995, p.124).

Penso que o espaço privilegiado para que isso ocorra seja a cidade multicultural.

Nela, o olhar é enxovalhado por uma miríade de signos incalculáveis. Deambula-se

por uma grande vitrina e o tempo todo ocorre um hiperestímulo sensorial. Otto tem

ao seu dispor não apenas os objetos imediatos da cultura carioca, como também

converte em mercadoria de seu fazer textual aquelas imagens mineiras que lhe

assombram a memória. Aqui, ele se torna um flâneur que passeia por diferentes

mundos que se suplementam. Os campos simbólicos da Mineiridade e da Carioquice

interpelam-se e determinam um espaço sígnico engendrado pelo autor que acaba por

extrapolar as fronteiras do carioca e do mineiro. Esse passear pelo tempo

incomensurável do passado e do presente produz narrativas tão peculiares que as

identidades do autor hibridizam-se numa desconstrução constante do que é ser

mineiro e carioca. Transforma-se o “eu” passadista num “outro” presentificado e

vice-versa. Mas, diferentemente de uma dicotomia em que é possível separar os

pares, Otto possui o semblante liquidificado por essa cartografia temporal

caleidoscópica. Mistura-se tudo e, pela luz refletida no espelho, formam-se seres

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múltiplos, com diferentes inscrições, mas que desnudam simbolicamente elementos

multiculturais em sua formação identitária.

É nesse frenesi social pós-moderno que vejo uma releitura em relação às identidades.

Não é possível situar um ser em relação à semelhança ou diferença que tem com um

grupo. Mas, como elementos multiculturais, os sujeitos que habitam a teia social

estabelecem encontros inesperados e contingentes que sublinham, sobremaneira, os

deslocamentos entre diferentes cartografias espaços-temporais, tanto num aspecto

coletivo, quanto num aspecto individual. Assim, o sujeito se constitui e é constituído

por uma polifonia constante. Antes de ser um mineiro ou um carioca, a identidade de

Otto é mapeada através dos interstícios entre uma cultura e outra(s). Essa porosidade

reflete a capacidade que o discurso tem de embrenhar-se por diferentes campos

sociais para formar, constitutivamente, as posições de sujeito adotadas pelo autor

quando de sua construção textual. O limite para as identidades que acionamos e que

são atribuídas a nós não está mais contido na fronteira do espaço e do tempo, mas é

fluido o suficiente para atravessar a membrana que separa lugares e temporalidades

distintas a se projetarem de uma nova maneira em novas locações. Canclini (1995)

lembra que “[H]oje a identidade, mesmo em amplos setores populares, é poliglota,

multi-étnica, migrante, feita com elementos mesclados de várias culturas” (p.142).

Diante dessa nova tendência epistemológica sobre as identidades, entendo que não

há uma prevalência do global, do regional ou do local, mas que as três instâncias se

suplementam a fim de que a universalização de certos produtos possa ser garantida,

por meio da incorporação de certos elementos diferenciadores da universalização.

Isso significa dizer que, apesar de Otto poder ser considerado um sujeito do mundo,

o traço peculiar das culturas que habitam sua alma manifestam-se de forma

suplementar, permitindo que o sujeito possa ser considerado um compósito entre as

diferentes vozes que perpassam o seu discurso.

3.2 O “Eu” entre vários lugares e vários tempos: um híbrido errante

Consonante a essa ideia de que Otto circula por lugares distintos, porém constitutivos

entre si, entendo que a possibilidade do constante deslocamento é o que permite ao

cronista a construção de um discurso gerado por lugares de fala que recobram

formações culturais distintas. Por isso, chamo a atenção para o fato de que as relações

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de identidades não se configuram como elementos orgânicos ou preexistentes aos

sujeitos. Mas, os caracteres identitários que se acumulam nos seres vêm de uma

temporalidade e de uma rede de relacionamentos engendrados socialmente, segundo

uma lógica que desterritorializa o indivíduo no sentido de produzir, mutatis mutandis,

uma miríade de posicionamentos que obedece a um ciclo ininterrupto dentro dos

argumentos sustentados pelo prefixo pós. Tal asserção coaduna com a abordagem de

Medeiros (1998, p.07), o qual define Otto como “(…) o mais carioca de todos os

mineiros”. Essa transitividade sugere que o cronista pode ser considerado um ser em

constante movimento, mas que aglutina diferentes posições de sujeito, as quais

forjam identidades dialógicas, múltiplas e plurais.

Adoto, então, a perspectiva do sujeito híbrido ao me referir a Otto. A hibridação é

um conceito tomado de empréstimo à biologia. Mas, incorporado ao sistema

culturalístico, é ressignificado: “(…) entendo por hibridação processos

socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existam de forma

separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”

(CANCLINI, 2008, p. XIX. Grifo do autor). As “práticas discretas” a que se refere

Canclini designam um conjunto de realizações já hibridizadas e que tendem a se unir

a outras práticas sociais que também não são puras. Para o autor, a hibridação quer

“reconverter30 um patrimônio (…) para reinseri-lo em novas condições de produção

e mercado” (2008, p. XXII. Grifo do autor).

Nesses termos, a perspectiva de um encontro cultural entre a Mineiridade e a

Carioquice em Otto leva-me a crer que tanto uma quanto outra manifestação

identitária resulta de infinitas formações culturais que se atraem, repelem-se e

atraem-se novamente, num fluxo circular ininterrupto que atravessa o cronista

engendrando um discurso híbrido. Ora se tem o mineiro de quatro costados em

protagonismo, ora o carioca de beira-mar em destaque. Contudo, há que se considerar

que tais atravessamentos não são imiscíveis. Diferentemente de água e óleo que não

se misturam, a enunciação produzida pelo cronista possui um caráter de cruzamento,

que opera na construção de identidades múltiplas, corruptíveis entre si.

30 Esse termo é empregado no sentido de que determinada classe de sujeitos sociais adquire práticas de outras classes

para se inserir neste novo agrupamento.

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A constatação empírica de tal posicionamento parte da reflexão da crônica “O Jovem

Poeta Setentão”, que Otto publicou no jornal Folha de S. Paulo, dia 28 de fevereiro

de 1992. No excerto que se segue, Otto e uma personagem reconhecida

nominalmente apenas no final do texto estão num ritmo de transição para novas

posições de sujeito. Esse ritmo fluido, de deriva, é responsável por alinhavar espaços

e temporalidades distintas, as quais serão definidoras de novas identidades dos dois

personagens. O efeito de sentido produzido pela crônica revela que ocupar um espaço

fronteiriço esboça novas arquiteturas identitárias que, neste caso, são construídas pela

preservação do que é familiar e pela incorporação do novo:

O JOVEM POETA SETENTÃO

RIO DE JANEIRO, 28/02/1992—Até onde me lembro, o Carnaval não

o empolgava. Em São João del Rei, onde estudou, e depois em Belo

Horizonte, não guardo reminiscência carnavalesca do nosso

convívio. Nos primeiros tempos do Rio, a gente corria para Minas,

serra acima, toda vez que se podia escapar da rotina. Data dessa

época o diário em que registrou sua experiência de jovem mineiro

em trânsito para virar carioca. Não deixou de ser mineiro. Minas,

sua pequena pátria.

O título da crônica – “O Jovem Poeta Setentão” – não é claro o suficiente para que

se identifique sobre quem Otto está falando. Contudo, relata um ethos de jovialidade

para um senhor de setenta anos. Apesar de não se poder se afirmar que Otto

compartilha desse aspecto juvenil, é possível dizer que ele corre parelho com a idade

do tal poeta. Isso vem marcado na posição híbrida que é gerada pelo discurso

ottolararesendiano. O sujeito enunciador, lotado no presente, precisa deslocar-se até

o passado para narrar sua história – “Até onde me lembro, o Carnaval não o

empolgava”. A expressão inicial da crônica produz o efeito de sentido de

insegurança, pois a certeza sobre o gosto do outro em relação ao carnaval é opaca,

graças à atuação oscilante da memória. Este fato é amplificado, quando Otto sinaliza

que não se lembra de passagem “carnavalesca” entre ele e o amigo, tanto nas ruas

históricas de São João del-Rei, quanto em Belo Horizonte. O cronista confirma a

inexistência de um espírito carnavalizado quando comenta que – “Nos primeiros

tempos do Rio, a gente corria para Minas, serra acima, toda vez que se podia escapar

da rotina”. Entendo que é negada a existência de uma carnavalização conjunta entre

os dois personagens, pois Otto afirma que, sempre que era possível, fazia o caminho

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inverso ao da emigração mineira. Independentemente de ser carnaval no Rio de

Janeiro, considerado “o maior espetáculo da Terra”.

Contudo, o trecho que mais me interessa nesse parágrafo da crônica relata o “trânsito

para virar carioca”. Foi, por meio da escrita íntima no diário, que o personagem de

Otto registrou sua deriva identitária. Deslocou-se de uma dada posição de sujeito para

assumir outra. No entanto, apesar da possibilidade de virar carioca, o amigo de

infância do cronista “não deixou de ser mineiro”. Aliás, Minas Gerais aparece como

a terra pela qual o exilado chora e sente saudades – “Minas, sua pequena pátria”.

Apesar dessa marca romantizada, ressalto que essa caracterização do Estado como

Pátria traz em si uma construção ideológica. Isso porque, no discurso popular e

também em estudos sobre os políticos mineiros, esses aparecem como figuras

fleumáticas e conciliatórias, por conseguinte, as Alterosas são vistas como o coração

do Brasil e a unidade da Federação responsável pela convergência dos interesses

sociais.

A ação de virar carioca registra a localização do sujeito em uma região fronteiriça.

Enquanto pesa a melancolia das montanhas sobre a alma dos mineiros, segundo Lima

(1984), também entram em cena a alegria carioca, a carnavalização do Rio de Janeiro.

Esse conflito, muito mais que a pacificação entre diferentes comunidades simbólicas,

é o fio detonador das identidades pós-modernas. Não se tem mais um lá e um aqui,

mas uma tensão entre um lá e um aqui, a qual culmina com a implosão do sujeito

unívoco e o parto do ser polifônico, perpassado por uma celeuma cultural. Esse novo

ser também não é gerado por um mecanismo binário, como na oposição superior e

inferior, mas ele nasce por meio de uma transitoriedade constante que forma o sujeito,

um real que não se encontra nem na saída nem na chegada, mas na travessia, como

asseverou Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas. Por isso, Homi Bhabha

(1998) é enfático ao afirmar que o presente não é o elo para outras formações

temporais, mas serve para sublinhar a não-linearidade que constrói o sujeito: “(…)

nossa autopresença mais imediata, nossa imagem pública, vem a ser revelada por

suas descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias” (p.23).

Essa descontinuidade encontra ressonância no momento em que as fronteiras

domésticas são atravessadas e o espaço da intimidade se choca com a esfera pública,

num movimento de mistura. Bhabha (1998) sugere que o estranhamento que

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sentimos quando passamos por um processo de desterritorialização não vem do

dualismo: espaço privado versus espaço público, mas do conflito que nos une a

espaços, esferas e tempos variados. É nesse jogo de amarras de pontas separadas que

surge a identificação deslocada do indivíduo:

(…) A atividade negadora é, de fato, a intervenção do “além31” que estabelece uma

fronteira: uma ponte entre o “fazer-se presente” começa porque capta algo do espírito de

distanciamento que acompanha a re-locação do lar e do mundo – o estranhamento

[unhomeliness] – que é a condição das iniciações extraterritoriais e interculturais. Estar

estranho ao lar [unhomed] não é estar sem casa [homeless]; de modo análogo, não se pode

classificar o “estranho” [unhomely] de forma simplista dentro da divisão familiar da vida

social em esferas privada e pública. O momento estranho move-se sobre nós furtivamente,

como nossa própria sombra (…) (BHABHA, 1998, p.30).

Dentro desse estranhamento, encontra-se um eterno devir, que abriga múltiplas

construções dos sujeitos. É aquele que se lembra do passado, mas que vive um

presente em eterno deslocamento. Cruzar esses elementos tão distintos reforça a ideia

de que o indivíduo desterritorializado é depositário de identidades com tantos matizes

quanto forem possíveis. Esse novo sujeito, aponta Bhabha (1998), é o responsável

pelo surgimento de uma escritura universal. “Talvez possamos agora sugerir que

histórias transnacionais de migrantes, colonizados ou refugiados políticos – essas

condições de fronteira e divisas – possam ser o terreno da literatura mundial, em lugar

da transmissão de tradições nacionais, antes o tema central da literatura mundial”

(p.33).

O parágrafo seguinte do texto de Otto registra como essa escrita íntima do

personagem da crônica choca-se com uma variedade de espaços não-íntimos, o que

acaba repercutido numa arquitetura identitária plural. Além disso, por estar num

espaço de fronteira, o interstício vai ser determinante de uma escrita mais universal

do que regional:

31 O “além” a que Bhabha (1998) se refere trata-se de buscar algo que não é do hic et nunc, mas que acaba por sê-lo

já que depende dele para se localizar e poder se deslocar para outros espaços e tempos. Nas palavras do autor, trata-

se de “um distúrbio de direção (…) um movimento exploratório incessante” (p.19). Significa o transitar por

diferentes lugares, por trajetórias emulsificadas que constroem múltiplas identidades desenhadas pelo confronto

entre as várias posições que os sujeito ocupam e pelos discursos que constroem em referência a estes

posicionamentos vacilantes.

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Mas entendeu o Rio como perfeito carioca. O tal diário era escrito em

forma de carta que me destinava. Fez aí o seu aprendizado para a prosa

de jornal que viria depois a assumir. Alternativa profissional, a que lhe

restava. Terá sido escolha, opção? Eu entendia que era melhor

mergulhar na redação e preservar, íntegra, a paixão literária. Mas a

poesia perturbava o seu entendimento com o jornal. Era

fundamentalmente poeta.

Enquanto no excerto anterior a personagem de Otto foi caracterizada como alguém

que não deixou de ser mineiro, aqui, no entanto, ela já aparece como um sujeito que

“entendeu o Rio como um perfeito carioca”. Essa constatação reforça minha hipótese

sobre o deslocamento liminar como responsável pela constituição daquilo que chamo

de identidades intersticiais. Ao atravessar o espaço e posicionar-se em diferentes

cartografias, o sujeito não apenas traz consigo os elementos da origem como

incorpora outros caracteres alocados na cultura estrangeira. O ato de se reconhecer

como um sujeito que vivencia o conflito com o “outro”, com o estrangeiro, conforme

sinalizou Bhabha (1998), vem representado pela escrita íntima – “O tal diário era

escrito em forma de carta que me destinava”. É por meio do contato com aquele que

é quase igual a si, aqui representado pelo destinatário Otto, que o personagem

consegue registrar a aquisição dos novos apanágios identitários. Isso porque, ao se

reconhecer em Otto, acentua as próprias diferenças que acumulou com a mudança

para o Rio de Janeiro.

“O tal diário”, contudo, não registra tão somente o processo de desterritorialização

pelo qual passou o personagem, mas sublinha a incorporação de novos elementos

simbólicos que iria utilizar na futura profissão – “Fez aí o seu aprendizado para prosa

de jornal que viria depois a assumir”. Novamente, o debruçar-se sobre o que é

estranho ao familiar, corrobora o que disse Bhabha (1998), pois, de um apego aquilo

ao qual estava acostumado, viu-se na necessidade de aprender um novo gênero

textual, mais fechado do que o registrado por seu característico lirismo poético. A

mudança para o Rio de Janeiro e a escrita no diário em forma de missiva produziu

um enfrentamento entre suas identidades. Como bem escreveu Otto, “a poesia

perturbava seu entendimento com o jornal. Era fundamentalmente poeta”. A escolha

da profissão transforma-se num tormento, pois, ao se decidir jornalista, contrasta-se

com o poeta. Não cabe, senão, fazer conviver essas identidades suplementares dentro

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de um único sujeito. Construindo-se e desconstruindo-se, nas diferentes posições que

pode ocupar.

Isso significa dizer que esse tipo de identidade não é forjado nem por aquilo que a

personagem é inicialmente – um poeta – nem por aquilo que viria a ser – um jornalista

– mas pelo intervalo intersticial entre essas duas posições de sujeito. Isso porque

ocorre um processo de desejo de incorporação do diferente, ao mesmo tempo em que

se preserva o familiar, como pode ser verificado no fato de que, mesmo jornalista,

“era fundamentalmente um poeta”. Assim, existe nestas identidades intersticiais uma

articulação entre coisas localizadas num hic et nunc e num ‘além’. Este processo de

identificação, segundo Bhabha (1998), ocorre a partir de três condições. A primeira

é que a autoexistência está atrelada a uma alteridade. Parte-se de algo interno em

relação a algo externo. A segunda é trabalhada a partir do desejo de “ser” o que não

“sou” e ocupar o lugar do outro. A última condição define que o processo de

identificação nunca é previamente produzido, mas depende do lugar em que se está

lotado e das redes de relacionamento que são construídas.

Assim, para esse personagem da crônica de Otto não resta alternativa senão habitar

aquilo que Bhabha (1998) chama de entre-lugar. Uma região fronteiriça que acaba

por induzir o sujeito a uma dupla inscrição. Diferentemente do que muitos pensam,

entendo que essa dupla inscrição não limita o sujeito a um binarismo dialético, mas

abre as possibilidades para que se formem oposições constituintes de um ser amplo,

com liberdade para circular entre várias fronteiras, sempre incorporando o novo, mas

mantendo os laços com aquilo que foi responsável pela sua formação cultural. Tal

assertiva é confirmada na continuação da crônica:

Logo se viu que, cronista, e dos melhores, não deixou de ser poeta.

Continuou a escrever poesia. Foi fiel à sua vocação. Também na

crônica está visível o seu corte lírico, inquieto, metafísico. Em prosa

ou em verso, só foi poeta. Por isto sonhou com profissões

impossíveis. Por que não aviador? Lá fomos nós estudar inglês na

avenida Brasil, ali pertinho da praça da Liberdade, para o concurso

que nos levaria a ser pilotos. Quem sabe pilotos de guerra.

Essa ambivalência temporal entra em consonância com a cartografia pós-moderna do

espaço-nação. Ao mesmo tempo em que se quer afirmar-se como contemporâneo,

recuperam-se artefatos do passado para consolidar o espaço nacional, nesse caso

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representado metonimicamente por Minas Gerais como uma Pátria. Por isso, segundo

Bhabha (1998), “As problemáticas fronteiras da modernidade estão encenadas nessas

temporalidades ambivalentes do espaço-nação. A linguagem da cultura e da

comunidade equilibra-se nas fissuras do presente, tornando-se as figuras retóricas de

um passado nacional” (p.202). Por isso, os espaços em branco do hic et nunc acabam

por recuperar, da tradição, elementos que lhe ajudam a compor uma significação

familiar e uma ancoragem, para que não se perca no deslocamento constante entre as

fronteiras.

Todavia, tanto Otto, quanto seu amigo de infância, por estarem passando por uma

deriva identitária, demandavam romper as amarras do passado e constituírem-se

como sujeitos estranhos a si mesmos – “Por isto sonhou com profissões impossíveis”.

E é justamente esse desconforto gerado por “um ser” e “um não ser” que acontece a

epifania, o estalo de encontrar-se consigo mesmo. Tal busca desencadeia-se no

aventurar-se por outros campos profissionais. Como kamikazes, caem em outros

territórios, multiplicam-se em outros sujeitos para tentarem construir uma identidade

impossível de ser pronunciada no singular. Pois, conforme argumentei, o sujeito

moderno, acrescido do prefixo pós, é construído socialmente entre as cisões

patrocinadas por diferentes campos simbólicos, campos esses que se interpelam o

tempo todo.

A ambivalência da nação pós-moderna caracteriza-se pelo acesso a um tempo

distante, num local também distante, mas que se materializam em um espaço e tempo

comuns e, por isso mesmo, num ambiente de interseção, de fronteira. A ideia de

nação, portanto, deve ser ressignificada:

(…) A nação não é mais o signo de modernidade sob o qual diferenças culturais são

homogeneizadas na visão ‘horizontal’ da sociedade. A nação revela, em sua

representação ambivalente e vacilante, uma etnografia de sua própria afirmação de ser

a norma da contemporaneidade social (BHABHA, 1998, p.212. Grifo do autor).

Se a norma dessa nova nação é ser “ambivalente e vacilante”, os sujeitos, conforme

afirmei anteriormente, encontram-se num processo de constante travessia. Mas, se o

entre-lugar e o entre-tempo recobram um deslocamento da presença para um locus

no qual as identidades recuperam o vivido, Otto e seu amigo de infância, apesar de

experimentarem novas possibilidades de ser e por terem enfrentado a transitoriedade

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contínua ao longo da vida, sempre buscam a origem para se autorreferenciarem em

meio a tantos deslocamentos:

Idéia mais doida, mas que achei viável. O futuro estava aberto à nossa

frente. E comportava todas as hipóteses. Todos os sonhos. Ele se

divertia contando que, aos quinze anos, me revelou a existência do

uísque. Ainda agora me pergunto se vi mesmo aquela garrafa de White

Horse. Sim, claro que vi. E fomos tomar o café com leite do café Java.

Mais um ano e seguiu para Porto Alegre. Trouxe de lá o descobrimento

de Mário Quintana.

Apesar de “doida” a ideia de ser aviador, ela era somente uma entre tantas

possibilidades que se descortinavam com o futuro que “comportava todas as

hipóteses. Todos os sonhos”. No entanto, esta profusão de imagens que se desenhava

sob os olhos dos dois adolescentes é ressignificada pelo momento da escrita da

crônica. O tempo presente também é o tempo da memória. Por isso, reencontrar-se

com a primeira dose de “uísque” e com a titubeante lembrança da “garrafa de White

Horse” requer de Otto um deslocamento. Ele só pode visitar essas cenas episódicas

se se liberta de sua presença no presente para localizar-se no presente do passado.

Isso me permite ratificar a hipótese de que o sujeito pós-moderno é aquele do

interstício espaço-temporal. Vive na contingência eterna da tradução de signos que

não possuem uma significação ancorada, pois é justamente o momento intervalar, o

suplemento entre um passado e um presente, um entre-tempo que determina seu

descentramento. Essa clivagem do indivíduo culmina com o que Bhabha (1998) diz

sobre as incertezas do “eu” multifacetado diante do que fomos e nossos devires. Mais

do que isso, a emergência de um sujeito internacionalizado só é possível pela

formatação de uma rede de significação que não se traduz literalmente, mas pela

interpelação da diferença cultural:

(…) O que deve ser mapeado como um novo espaço internacional de realidades

históricas descontínuas, é, na verdade, o problema de significar as passagens

intersticiais e os processos de diferença cultural que estão inscritos no “entre-lugar”, na

dissolução temporal que tece o tempo “global”. É, ironicamente, o momento, ou mesmo

o movimento, desintegrador da enunciação (…) que torna possível a expressão do

alcance global da cultura. E, paradoxalmente, é apenas através de uma estrutura de cisão

e deslocamento – “o descentramento fragmentado e esquizofrênico do eu” – que a

arquitetura do novo sujeito histórico emerge nos próprios limites da representação, para

“permitir uma representação situacional por parte do indivíduo daquela totalidade mais

vasta e irrepresentável, que é o conjunto das estruturas da sociedade como um todo

(JAMESON apud BHABHA, 1998, p.298).

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Com a citação acima entendo que, apesar de desintegrado de suas origens e diante do

universalismo globalizado, Otto e o amigo conseguem localizar-se e produzir uma

enunciação significativa quando retomam um tempo e um espaço que não estão

presentes no momento da escrita, mas na memória. Tomar parte no global demanda

olhar para a aldeia. Apesar de isso representar um momento de silêncio na

enunciação, pois é preciso transpor a fronteira e recuperar o que está no passado, é

justamente esse silêncio que permite às identidades fragmentadas se conectarem

umas às outras constituindo algo significativo. A diferença cultural expressa nesses

fragmentos interpela vários signos, por isso uma identidade será sempre incompleta.

Ela precisa ir e vir, desconstruir-se em vários elementos para recompor-se como algo

familiar. É nesse sentido que observo que a moldura significativa da textualidade

ottolararesendiana produz um estranhamento autossignificatório do sujeito, pois

articula ideias a partir de locais de fala diferentes. O tempo que secciona o autor é o

mesmo do estranhamento. Ora mineiro, ora carioca, ora nem uma coisa nem outra,

sua conformação incide sobre esse deslocamento contínuo entre os vários Ottos que

compõem o Otto. É neste interstício que surge a polifonia, a qual acentua as

identidades plurais, mas que se constituem justamente pela sobreposição desses

diferentes rastros identitários, formando o ser liminar.

O último parágrafo da crônica deixa evidente como a composição identitária recobra

a costura de múltiplas clivagens pelas quais o sujeito é constituído. Viaja-se de uma

dimensão a outra para deparar-se consigo mesmo:

Sua simplicidade, lição para toda a vida. Líamos os poetas para

encontrar a nossa própria definição. De dia e de noite, a conversa

interminável. A gente ia puxar angústia, que ele definiu assim: descer ao

fundo do poço escuro, onde se acham as máscaras abomináveis da

solidão, do amor e da morte. Pois é, Paulo Mendes Campos. Num dia

assim, em pleno domingo de carnaval é que você nasceu. Hoje, quem

pode crer? Você estaria chegando aos setenta anos.

Otto está prestes a fornecer o nome de seu companheiro. No entanto, nas primeiras

linhas do parágrafo, permanece o tom de mistério em torno de quem se fala. A esta

figura vaporosa é atribuído o ethos da “simplicidade”, que serve de inspiração para

todos. Mas, o que chama a atenção é a eterna busca por uma identidade – “Líamos

os poetas para encontrar a nossa própria definição”. Tal lembrança do cronista reforça

o deslocamento a que ele e seu amigo prestavam-se no empreendimento de se

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autorreconhecerem. O trecho que se segue – “De dia e de noite, a conversa

interminável” – produz o efeito de sentido de continuidade na busca pela

identificação. Mesmo que para isso fosse preciso descer no fundo do poço da angústia

para desmascarar a corporeidade que recobria a alma. Assim, os pesados sentimentos

de “solidão”, “amor” e “morte” servem como deixa para que Otto revele ao seu leitor

quem é o “o jovem poeta setentão”. Trata-se de Paulo Mendes Campos que, pela

proximidade e pela afeição que teve com Otto, chega a se confundir com esse, como

se fosse uma espécie de “alter Otto”.

Somente agora é possível compreender o porquê de o cronista tentar escavar da

memória lembranças carnavalescas de Paulinho, como o chamava Otto. Foi em pleno

domingo de carnaval que o amigo nascera. E, depois de setenta anos, seu aniversário

novamente coincidia com um domingo de Momo. No entanto, entre os confetes e

serpentinas lançados ao ar, só era possível reencontrar-se com o amigo através das

reminiscências, já que ele havia falecido dia 1º de julho de 1991. Assim, apesar de

existir a identidade do cronista, aquele que endereça o seu texto ao leitor, há que se

considerar que outras identidades são acionadas por Otto para conseguir significar a

amizade que nutriu uma vida inteira por Paulo Mendes Campos.

Por isso, entendo que a constituição do sujeito pós-moderno se dá por meio de uma

identidade intersticial. Uso esse termo para me referir a uma modalidade de

identificação que não está assentada em sujeitos dialéticos ou que se sucedem em

uma narrativa histórica linear. Mas, emprego o conceito com o fito de caracterizar a

formação de um ser pluridimensional, ou seja, aquele que emerge a partir da

diferença espacial e temporal que o circunscreve a diferentes formações culturais. A

liminaridade, no entanto, não consiste numa posição antitética entre estas diferenças,

mas entre diferenças costuradas como suplemento uma da outra. Isso fica patente na

análise da crônica, pois para gerar o lugar de fala de cronista, Otto precisa recorrer a

outras identidades de não-cronista, de forma que possa coletar o material necessário

para contar sua história. Portanto, é apenas quando atravessa a fronteira de uma

posição à outra e consegue equilibrar-se no interstício, que o autor constrói suas

identidades compósitas.

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3.3 Desconstruir para reconstruir: différance e suplemento em Otto

Agora, imagine se pudéssemos atravessar uma sucessão de fronteiras até que

atingíssemos o interior de um buraco negro descolado do espaço e do tempo que

conhecemos. Imagine também se esse fosse o limite máximo que conseguíssemos

alcançar. O que encontraríamos por lá? Um nada absoluto que não permitiria

nenhuma possibilidade do ser? Ou nos confrontaríamos com uma dimensão em que

todas as redes espaços-temporais se interligariam em conexões rizomáticas

incomensuráveis que nos tornariam plenos, repletos de nossa existência per si?

Ao que tudo indica, com a filosofia moderna, tais questões se resolveriam com o

acionamento de pares antitéticos e hierárquicos capazes de solucionar problemas

existenciais que tangenciam a história humana. Estaríamos num tudo ou nada, num

começo ou num fim. Mas, se entre esses pares fosse possível encontrar respostas

intermediárias, discursos do meio? Isso mudaria por completo a visão logocêntrica e

implodiria aquela plácida sensação que temos, quando estamos na segurança de

nossos lares e amparados por aquilo que os relógios nos oferecem. No entanto, penso

que é justamente, quando nossos lares e relógios começam a padecer de distúrbios

referenciais, que sentimos a necessidade de encontrar algo que não está nem aqui,

nem ali, nem acolá, mas que se encontra na liminaridade entre essas estranhas coisas.

Transformamo-nos, pois, no ser no limite, o qual, incessantemente, busca amarrar

seus pés ao cais para não cair em uma deriva eterna e sem significado. Mesmo que o

deslocamento contínuo seja inevitável, é o nó de marinheiro atado à canela que nos

tranquiliza, já que é por meio dessa amarra que podemos adentrar o oceano com a

convicção de que possuímos uma bússola que nos orienta em direção daquilo que

somos.

Apesar da ilusão de nos guiarmos por nós mesmos, os caminhos e os tempos da

viagem são enunciados por outrem, pelo guia, pela bússola. Trata-se de um jogo

constante em que se pensa fazer por si mesmo, mas que se constrói pela voz do outro.

Um mecanismo de transmutação incessante entre um ir e um vir, entre um “si” e um

“ti” e entre tudo o que os espaços em branco dessas dualidades nos oferecem. Nossa

existência, pois, torna-se uma eterna passagem, já que se ouvir a si e construir outra

imagem de si significa transpor a fina película do tímpano e permitir que diferentes

claves constituam as notas dissonantes da orquestra do ser. Isso significa dizer que

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nos construímos pelos e para os outros, o que implica perda de uma identidade

unívoca e centrada no “eu”. E mais, essa mesma primeira pessoa pode ocupar o lugar

que cabe a uma terceira, clivando-se infinitamente numa rede de fios incontáveis.

O sujeito, então, atua a partir da interpelação de vozes externas. Absorve a

polissemia32 e acaba por excretar aquilo que não é próprio de si. Isso acontece na

medida em que decodifica – na interação com o outro – e codifica – na interação

consigo mesmo – uma espécie de terceiro elemento, que o filósofo argelino radicado

na França, Jacques Derrida (1991b, p.20) chama de “representação”. Tal conceito é

elaborado a partir do vocábulo “diferir”, que por sua vez se liga ao étimo latino

differe. Apesar de existir a acepção de “divergir”, “discordar”, para o filósofo francês,

differe deve ser empregado como “atrasar”, “procrastinar”. Assim, a representação

deve ser vista como uma ausência que é substituída por um signo. Portanto,

representar demanda temporizar algo, pois encontramos esse mesmo algo num

momento diferente do que poderíamos encontrar e requer também um espaçamento,

pois recorremos a outro algo, em outro lugar para criar a representação, a presença

por meio da imagem daquilo que está “em”.

Esse atraso entre os objetos e suas representações vai ser um dos principais conceitos

do pensamento derridiano, pois, com a impossibilidade de algo existir em sua

totalidade presentificada, serão gerados centros múltiplos de significação. Esse

descentramento, se assim é possível chamá-lo, vai operar naquilo que Derrida

postulou como “desconstrução”, uma espécie de avalanche sobre os conceitos

ortodoxos da metafísica, a qual tende a naturalizar pontos-chave e polêmicos da

sociedade moderna ocidental, por meio de binarismos dicotômicos, como belo/feio,

sagrado/profano. Pela metafísica, os problemas existenciais se dissolveriam através

da antítese e, por meio de uma hierarquização artificial, o primeiro elemento da dupla

seria o ideal a ser seguido.

No entanto, a partir de uma percepção heteróclita do discurso e, longe de pasteurizar

o debate em torno dos problemas da linguagem, Derrida (1991b) quer menos destruir

do que propor um abalo aos preceitos que, tendencialmente, hierarquizam o campo

32 Emprego o termo em seu uso prosaico, sem preocupar-me com as teorizações acerca do assunto. Contudo, optei

por polissemia e não por polifonia pelo fato de Derrida utilizar o primeiro vocábulo.

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social numa verticalização que tem suas bases assentadas em Hegel e Marx.

Desconstruir, portanto, significa uma empreitada de reconfiguração dos binarismos

trazidos pela metafísica ou qualquer discurso que se preste à verdade absoluta. Não

interessa mais a oposição entre conceitos como dentro/fora, bom/mau, mas adentrá-

los em seu interior para que se produzam significações que possam ser chocadas

horizontalmente, de forma a evitar a hierarquização. Isso torna o ato de significação

contingente, pois desloca, (re) elabora, (re) constrói conceitos que, opostos em uma

dialética inflexível, jamais poderiam ser forjados. Assim, a desconstrução rompe as

barreiras fixas entre um lá e um aqui, entre um passado e um presente, acentuando a

necessidade de implodir, sem destruir, a camisa de força do pensamento ocidental, o

qual pode enclausurar as possibilidades de entendimento do mundo além de suas

aparências. Considero que é nesse sentido que se pode falar de centros múltiplos que

passam a interferir na significação, pois não se vê o mundo mais como uma dicotomia

total, mas como várias liminaridades que se constroem mutuamente sem cessar.

Pergunto-me, portanto, o que significa ser Otto? Muito mais que mineiro ou carioca,

significa pertencer a vários centros que se amalgamam para compor suas identidades

múltiplas, intersticiais. Antes de prosseguir, no entanto, preciso explicitar que não

vejo as identidades ou representações como conceitos excludentes, pois a

constituição do ser ocorre tanto em escala individual quanto coletiva. Aliás, é preciso

que fique claro que minha posição é a de que as duas instâncias se misturam na

composição do homem liminar. Pois, como disse anteriormente, o ser é perpassado

por vozes que o constituem, o que significa que seu “eu” encontra-se intrinsecamente

conectado a um “nós”. E, se para se identificar, o sujeito deve diferir de seu

posicionamento presente, isso significa que ele deve recorrer a outros seres

deslocados em centros que não necessariamente o seu. Assim, retomando a

argumentação em torno de Otto, penso que suas identidades são construídas por meio

de uma ausência. Quando viaja para as terras do passado, é mineiro por não ser

carioca e, quando se transporta para o presente, significa que é carioca, pois já não é

mais mineiro. Entretanto, o que estabeleci aqui foi uma dicotomia logocêntrica, já

que defini o que se é pela oposição do que não se é. Refletir sobre as múltiplas

identidades do jornalista requer pensar no ritual de passagem, o que quer dizer que

as memórias do mineiro caminham em direção as do carioca, assim como o então

carioca retorna ao passado mineiro. Por isso, seu presente nunca é uma presença

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totalizante, tampouco um binarismo entre um estar aqui ou estar lá, mas um

deslocamento contínuo entre posições que se tocam como moléculas de água dentro

de uma panela de pressão.

Esses encontros ininterruptos entre os múltiplos “Ottos” permitem que venha à baila

a categoria derridiana da “desconstrução”. Não é possível analisar as identidades do

jornalista como apenas mineiro ou apenas carioca, mas é necessário vê-lo no

interstício entre uma coisa e outra. Se o logocentrismo exclui um europeu de um não-

europeu por características como branco/negro, rico/pobre, com a desconstrução,

evidencia-se que o sujeito circula tão livremente por uma cultura e outra que acaba

por significar-se através do que os dois recortes sociais lhe informam. É nesse sentido

que atribuo a desconstrução a Otto. Desconstruir-se como mineiro não quer dizer

destruir-se para se tornar carioca, mas significa que existe um “eu” diferente

habitando o mineiro, e vice-versa. Essa possibilidade de viajar pelo espaço e pelo

tempo constitui-se como leitmotiv do ser em eterna desconstrução de si. Faz-se

mineiro, faz-se carioca continuamente, mas sem obliterar um e outro, já que, tanto

no discurso, quanto nas identidades, aparece a polissemia dos diferentes “eus” e dos

diferentes “nós” que perpassam as liminaridades do jornalista.

A percepção desse híbrido torna-se mais evidente quando partimos para uma

investigação textual, pois é por meio desse artefato que nos é possível escavar a

interpelação de vozes que ecoam na voz do locutor. A desconstrução intui não

somente sobre os significados revelados pela superfície, mas por aquilo que está

decantado no texto. Creio que a possibilidade de investigação do além-texto justifica

a assertiva sobre a “morte do autor”, posto que não podemos mais identificar uma

voz onipotente, senhor do papel e do lápis. Como argumenta o pesquisador mineiro

Audemaro Goulart (2003), o desconstrucionismo derridiano tem justamente a função

de deslocar essa supremacia monofônica e acentuar que, por trás da estrutura

imediata do texto existem outras vozes que acabam por minar o poder absoluto do

autor:

Entretanto, é preciso admitir que a desconstrução visa a questionar a estrutura interna

dos textos, com a finalidade de pôr a descoberto aquilo que os sintomas dos enunciados

acobertam. Essa estrutura deixa ver, na sua superfície, uma espécie de voz monolítica

que quer se fazer a expressão da verdade, algo definitivo e irrefutável que sufoca

inúmeras outras vozes que são impedidas de ecoar (GOULART, 2003, p.10).

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Nesse sentido, é preciso deixar o comodismo logocêntrico para identificar que não

existe um “eu-absoluto”, mas um compósito de seres dentro de um mesmo ser. É a

partir das margens, portanto, que se devem procurar os efeitos de sentido produzidos

pelo texto. Apesar de conter sua própria significação, a tessitura textual não se depara

com liminaridades neutras, mas com conjunturas formadas em outras esferas e que

falam para e pelo artefato textual. Entendo que esse choque com os interstícios que

não são neutros (“brancos”, segundo Derrida), cumpre a inesgotável metáfora da

desconstrução. Isso porque é através do desmonte e da ultrapassagem das linhas que

se revelam aos olhos que podemos analisar os fragmentos presentes na significação.

Passo, agora, à análise de uma crônica de Otto com o objetivo de explicitar como

suas identidades encontram-se em constante desconstrução. O texto foi publicado na

Folha de S. Paulo por ocasião da morte de Paulo Mendes Campos33, amigo de

infância de Otto:

CHEGAMOS JUNTOS AO MUNDO

RIO DE JANEIRO, 03/07/1991— Apesar da minha aversão a relógio de

madrugada, assim que acordei olhei as horas. Eram quatro e dez, como

eu adivinhava. Cansado, e essa crueldade de me acordar tão cedo.

Escuro lá fora, passei os olhos pela pilha de livros. Ia pegando a Bíblia

quando vi no chão o tablóide aberto: “O bêbado”. O poema é antigo:

por que republicado logo agora? Um erro de impressão pôs uma bomba

onde há uma pomba: "Do mais alto beiral nasce uma bomba".

A partir do título – “Chegamos juntos ao mundo” – é possível perceber que há uma

evasão do presente de Otto para outro centro de significação de seu discurso, a saber,

o seu nascimento e o de Paulo Mendes Campos. Essa viagem é revelada a partir da

leitura que situa o locus de produção da crônica – “Rio de Janeiro, 03/07/1991”. A

desconstrução é imediata e polissêmica. O carioca reconhece a si no ato de escrever

a crônica, mas a voz que lhe perpassa o tímpano é a do mineiro. Chegar junto ao

mundo produz o efeito de sentido de um deslocamento: “sou um carioca que escreve,

mas um mineiro que dita”. Essa quase psicografia indica que o espaço e o tempo da

presença não podem ser marcados isoladamente, mas se encontram com outros locais

e temporizações que lhes atribuem sentidos que diferem entre si. Tal constatação é

33 Paulo Mendes Campos morreu dia 1º de julho de 1991.

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evidenciada com a presença do objeto relógio. Enquanto máquina, ele funciona tão

somente como marcador de uma unidade de medida para algo abstrato. Porém, na

crônica, o relógio opera para acentuar a desconstrução. “Eram quatro e dez da

manhã”, mas para Otto essa marcação era pouco significativa, pois sua referência

temporal estava localizada num outro momento. Era a hora da reflexão bíblica, que

o jornalista aprendeu a dedicar-se desde cedo, com a tradicional e rígida educação

religiosa (católica) que recebeu de seus pais na infância são-joanense.

Todavia, entre esse tempo marcado pelos ponteiros da madrugada e o tempo da

Bíblia, configura-se uma terceira margem: a do tempo do tabloide aberto no chão.

Sabe-se que, pela rotina jornalística, o que se espera de um veículo impresso é que

ele apresente notícias factuais, referentes aos acontecimentos da ordem do dia, o

chamado hard news. Mas, o gesto de apanhar a publicação caída sobre o chão

transporta Otto para outra temporalidade. Ele é o carioca a flanar sobre as notícias

contemporâneas, ao mesmo tempo em que se assume um sujeito de outra época e de

outro lugar. O encontro dessas identidades vem como uma ressaca titubeante, o jornal

lhe lança “O bêbado” 34, o qual funciona como a ignição de uma máquina do tempo

que lhe assombra a visão – “O poema é antigo: por que republicado logo agora?”

Aqui, Otto passa por um momento de deslocamento, desconstruindo-se como

sonâmbulo para se fazer desperto em outro contexto, o da escritura do passado. O

lapso do desvio é momentâneo, nem por isso puro. Imediatamente à surpresa com a

republicação do poema, vem-lhe de súbito um estado de consciência. O jornal

equivocou-se com o paronímico “bomba” e “pomba”. Disso resulta outra

temporalidade marcada pelo desconstrucionismo derridiano. Otto assume a posição

de um copidesque ao editar o texto no exato momento da leitura. Porém é possível

identificar outros rastros de consciência neste ato de correção: um vem do Otto com

sua rígida formação ginasial em São João del-Rei, outro vem daquele errante do

passado que se lembra da palavra exata da poesia de Paulo Mendes Campos.

Chamo a atenção para o fato de que, nesta curta cena da narrativa cronística, várias

posições de sujeito são alçadas por Otto. Isso só é possível por causa de uma

constituição identitária que não se limita ao dualismo logocêntrico entre

34 Poema publicado por Paulo Mendes Campos em seu primeiro livro (A palavra escrita, 1951), em que o poeta

narra o desconcerto do bêbado com o nascer do dia e o moralismo das pessoas que, seguras da claridade como seu

tempo e território, passam-se por “tontos de lucidez” diante do trôpego sujeito noturno.

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passado/presente. Mas, como disse anteriormente, ocorre pelo fato de o cronista

desconstruir-se em camadas, ressignificando-se diante de um texto que lhe cai como

um objeto mágico aos seus pés. Por trás do mero episódio de se levantar ainda de

madrugada, aparecem inúmeros tempos e lugares que constroem um sujeito não

somente carioca ou mineiro, mas que se constitui a partir de desvios incessantes que

lhe permitem ocupar dimensões várias não previstas pela rigidez das dicotomias

metafísicas.

Aqui, é preciso atentar para o conceito de jogo. Ao assumir que o signo tem um

caráter “contextual” e “relacional”, ou seja, que funciona dentro de um contexto e

em relação com outros signos, Derrida acaba por desconstruir a ideia de centro uno.

Entendo que isso se dê pelo fato de que, podendo ocupar infinitas significações, os

signos acabam por compartilhar centros múltiplos. Tal indeterminação significativa

instaura a condição de jogo permanente da significação. “Dessa forma, é preciso

dizer que o jogo surge como a possibilidade de desbancar a tradicional crença de um

significado transcendental, uma vez que as substituições infinitas, decorrentes do

jogo, impedirão que se pense num centro, numa origem fixa, num ponto de presença”

(GOULART, 2003, p.17).

Se um ponto de presença se faz desnecessário, então, estar aqui ou ali não importa.

O que realmente conta é a capacidade destes “aquis” e “alis” se constituírem

mutuamente, forçando as passagens do limite, da fronteira. Na continuação da

crônica, Otto força as portas para esse deslocamento e outra vez se encontra

“mosaiquicamente” distribuído em múltiplas dimensões. Entretanto, para que fique

mais claro aquilo que argumentei até agora, sublinho a necessidade de avaliar outro

conceito de Derrida. Em conferência na Sociedade Francesa de Filosofia (janeiro de

1968), ele lança as bases para uma nova forma de entendimento das relações da

escritura: trata-se da différance35. Ela consiste menos em fios separados do que em

“feixes” de linhas que se costuram incessantemente (DERRIDA, 1991b, p.34).

Através de uma concepção bastante filosófica, o autor considera que a différance é

35 O termo différance é um neologismo de différence. Em francês, a substituição da vogal “e” pela vogal “a” é

inaudível, presta-se apenas ao reconhecimento gráfico. Mas, em um nível semântico, as duas palavras são bastante

distintas e definem por completo o pensamento do filósofo. Dada a dificuldade de um equivalente em língua

portuguesa – já constatado por tradutores - optei em manter os vocábulos no original, pois dessa forma não corro o

risco de comprometer o pensamento de Derrida. Apenas usarei diferença e diferança quando das citações diretas da

obra.

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algo que não cobra um corpo presentificado, essencial, oposto entre tempos e lugares.

Em contrapartida, o seu original, a différence, é aquilo que se constrói por meio de

duras oposições. A construção de uma différance, justamente por não lidar com a

essencialidade dos objetos em espacialidades e temporizações demarcadas,

pressupõe que categorias dissociadas possam formar estruturas amalgamadas que se

cruzam, engendrando um todo significativo. Independe de um hic et nunc:

A diferança é o que faz com que o movimento da significação não seja possível a não

ser que cada elemento dito "presente", que aparece sobre a cena da presença, se

relacione com outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a marca do elemento

passado e deixando-se já moldar pela marca da sua relação com o elemento futuro,

relacionando-se o rastro menos com aquilo a que se chama presente do que àquilo a que

se chama passado e constituindo aquilo a que chamamos presente por intermédio dessa

relação mesma com o que não é ele próprio: absolutamente não ele próprio, ou seja,

nem mesmo um passado ou um futuro como presentes modificados. É necessário que

um intervalo o separe do que não é ele para que ele seja ele mesmo, mas esse intervalo

que o constitui em presente deve, no mesmo lance, dividir o presente em si mesmo,

cindindo assim, como o presente, tudo o que a partir dele se pode pensar, ou seja, todo

o ente na nossa língua metafísica36, particularmente a substância e o sujeito.

(DERRIDA, 1991b, p.45).

Derrida (1991b) está chamando a atenção para o fato de que o signo não pode ser

engessado entre um significante e um significado37, como duas coisas opostas. Da

mesma forma, o sistema de significação que atribuímos às coisas do mundo não pode

ser inscrito num presente como uma parte estanque do tempo. Esse presente deve ser

o momento de passagem entre um espaço e um tempo do passado e outro do futuro.

Isso significa dizer que algo só se faz presente quando remete a um passado

enunciador, ao passo que esse mesmo presente demanda uma posição em um

referencial posterior. No parágrafo seguinte da crônica, ora em análise, é possível ver

como esse deslocamento da presença opera na (des) construção do ser presente:

36 O que autor quer nos informar é que o jogo entre différence e différance não se encontra inscrito, necessariamente,

na língua enquanto sistema. Mas, opera num campo mais amplo que considera as relações sócio-históricas como

peças-chave para se produzir as dependências significativas que fazemos em torno dos signos. 37 Esta relação é derivada da obra de Ferdinand de Saussure: Apesar de conferir status científico ao estudo da

linguagem, Saussure é criticado por estabelecer uma relação artificial entre as palavras e as coisas, desconsiderando

o uso social da linguagem. Além disso, ao afirmar que “[P]ropomo-nos a conservar o têrmo signo para designar o

total, e a substituir conceito e imagem acústica respectivamente por significado e significante; êstes dois têrmos têm

a vantagem de assinalar a oposição que os separa, quer entre si, quer do total do que fazem parte” (1975, p.81),

Saussure entra em desacordo com Derrida, para o qual a miscibilidade da significação e o uso social que as pessoas

fazem do signo é imprescindível na constituição dos significados.

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Como o sono também levanta vôo, passo ao escritório. Um, dois, três

livros do Paulo Mendes Campos, atrás de "O bêbado". Vou repassando

dedicatórias, crônicas, versos e saudades. Recortes amarelecidos de

jornal. Paro na entrevista feita por Maria Julieta Drummond de

Andrade: "Quem é você, Paulinho?". PMC estava chegando aos sessenta

e dois anos de idade: ''Sou um sujeito familiar, que gosta das pessoas do

seu sangue e do time de amigos que foi formando pela vida afora".

Ao deixar o estado de letargia, Otto é o carioca que passeia pelo espaço referencial

doméstico. Contudo, a visita aos livros de Paulo Mendes Campos o transporta para

outra dimensão – “Vou repassando dedicatórias, crônicas, versos e saudades”. O

verbo no gerúndio – repassando – indica uma ação presente e em andamento.

Contudo, como no flashback cinematográfico, o substantivo “saudade” proporciona

um corte de câmera que remete o jornalista a outro espaço e a outro tempo. Sua

presença é imediatamente deslocada para o passado e sua face carioca é reconstruída

com o reflexo da mineira.

O processo se assemelha ao jogo de uma imagem dentro da outra chamado mise en

abime. Otto produz, a partir de sua presença carioca, várias imagens de si. Como já

disse anteriormente, Paulo Mendes Campos é uma espécie de alter Otto do jornalista,

isso significa que a saudade é apenas o fio desencapado que culmina com o curto-

circuito das várias posições que Otto formula sobre si, dentro de si mesmo. O

encontro da presença com o passado cria uma representação que se reconstitui a partir

de múltiplos centros significantes. Tem-se um ser a deslocar pelo apartamento, outro

a se deslocar pelo passado e outro que se reconhece no depoimento de seu alter Otto:

“Sou um sujeito familiar, que gosta das pessoas do seu sangue e do time de amigos

que foi formando pela vida afora”.

Vejo que o depoimento de Paulo Mendes Campos refuta justamente o binarismo

entre passado/presente. Isso porque reconhece que boa parte de suas identidades

foram sendo formadas pelos amigos que cultivou ao longo de sua vida. Assim, por

mais que a presença possa ser percebida como o “eu” num hic et nunc, ela se encontra

em contato direto com outras dimensões que não as do imediatismo. Entendo ainda

que é justamente essa coleção de amizades que imprime uma descontinuidade, pois

seres lotados em diferentes cartografias e temporalidades são constitutivos do poeta

e, logo, de Otto. Não por acaso, o tempo da différance não é cronológico. Tampouco

sua espacialidade se guia por fronteiras fixas. Mas, esse “feixe” derridiano marca o

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tempo fora do tempo e o espaço fora do espaço. Ele amarra nossa atemporalidade

contemporânea e nossos deslocamentos virtuais com tradições que não se encerram

em nossa corporeidade contingente, mas que, justamente por ser incerta, nos realoca

em urdiduras que se cruzam, cortam-se, costuram-se. Assumimos nosso ser em

função de múltiplas inscrições cósmicas e deslizamos sem mais abalos pelo mundo

que cabe em nossa mão. GPS38 rizomático que se suplementa por meio de raízes que

brotam em diferentes solos.

Creio que, em épocas de revoluções telemáticas, quando a tensão entre o público e o

privado é dirimida, já que demandamos o olhar do outro sobre nós para que possamos

existir, espécie de cruzamento entre Eros e Tânatos39, nossas aparições tornam-se,

cada vez mais, soluções quimicamente impuras. Misturamo-nos num movimento

centrípeto, centrífugo, descentrado, e desconstruímo-nos para nos reconstruirmos

num pêndulo que nunca para, que se choca constantemente com outras identidades.

Mas são essas clivagens mosaíquicas que nos constituem em um todo miscível.

Nossa différance é, pois, um cadinho de tempos, de lugares e de vozes constitutivos.

Por isso, é necessário refletir que a operação entre significante e significado não deve

ser vista como algo fechado. O equívoco ocorre justamente por se mutilarem as

possibilidades de significação que a linguagem possui. O que Derrida (1991b) faz é

desconstruir uma lógica pressupostamente verdadeira para o mundo. Com alvo na

liguagem (o jogo entre a différence, a qual é baseada em binarismos totalizantes, e a

différance, a qual aglutina várias possibilidades de significação), o filósofo francês

propõe um desmonte das verdades absolutas, ao analisar, dentro da própria

linguagem, os elementos catalisadores e legitimadores das ordens estabelecidas.

Isso indica que a différance opera no campo da representação, pois há que se levar

em conta uma ausência, algo que não está nem aqui, nem agora. Nesse sentido,

considero a différance através de um esquema suplementar em que lugares e

temporalidades distintas acabam tocando-se continuamente para que façam sentido.

Entender como esses signos trabalham requer que se busquem pistas, “rastros” que

38 Global Positioning System ou Sistema de Posicionamento Global. Trata-se de um aparelho que recebe dados via

satélite e oferece a localização exata do local em que se encontra a máquina. 39 Uso a metáfora de Eros e Tânatos, pois acredito que, ao mesmo tempo em que o olhar de outrem nos traz à vida,

um simples piscar é o suficiente para nos matar.

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os definam, um diante do outro, enquanto elementos a significar. Isso implica dizer

que não faz sentido alçar dicotomias entre uma coisa e outra, mas estabelecer uma

relação de suplementariedade, que concorre para a formação de um sentido.

A différance, então, desemboca no esquema da consciência. Se esta pode significar

“estar presente a si a consciência” (DERRIDA, 1991b, p.48), entendo que os objetos,

mesmo que deslocados no espaço e no tempo, só ganham sentido quando

presentificados. Mas este presente não é desestruturador de uma ordem de coisas

marcadas em outros lugares e outras temporalidades. Ele é o aglutinador

momentâneo que traz do passado a estrutura implícita para o futuro. Assim, a

différance funciona como o elo partido entre différences e, por isso mesmo, atua no

sentindo de projetar uma categorização que não se limita à língua enquanto sistema,

mas a uma relação de interpelação social que produz seus sentidos por meio dos laços

que se formam no tempo, no espaço e nas inter-relações pessoais, uma mistura, um

descentramento. Por isso, a différance recobra um estar presente, mas um estar

presente que não se limita ao momento presente, mas que (des) constrói neste outras

representações deslocadas. E, por esta mesma razão, as oposições entre uma coisa e

outra, entre um signo e outro se anulam, na medida em que as différences são

amarradas na consciência, num estar presente pela différance.

No parágrafo seguinte da crônica de Otto é possível perceber como a différance opera

na constituição do seu “eu”. O jornalista não é tão somente aquele que vive no

presente e rememora romanticamente o passado, mas é aquele que busca na memória

cacos que lhe constituem em um todo híbrido:

Afinal, cá está o bêbado. No A palavra escrita. Está republicado sem

uma única modificação. Falta, porém, o espaço em branco que separa a

fala dos que andamos certos e orgulhosos na manhã, diante desse ser

obscuro. Releio a orelha que escrevi para Poemas, 1979: "Chegamos

juntos ao mundo, ele e eu. Dezesseis anos depois, ele e eu concluíamos

em São João del Rei o que então se chamava, e era, o curso de

humanidades. É bem provável que nos tivéssemos por preparados. Para

quê? Para a vida. E logo para as letras".

O encontro com “o bêbado” transporta Otto para outro momento. Sua presença não

é a do apartamento, a do carioca, mas aquela em que se depara com os versos do

amigo cultivado “pela vida afora”. Percebo que, esse chocar consigo mesmo, em

outro espaço e em outra temporalidade, acontece por meio da “palavra escrita”. Ao

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relatar o diálogo entre Fedro e Sócrates, Derrida (1991a) recupera o conceito

platônico de phármakon. Traduzido, pode significar tanto remédio quanto veneno.

Contudo, o phármakon não deve ser visto por meio do dualismo entre remédio e

veneno. Embora Platão recuse a passagem incessante entre os dois conceitos

(remédio e veneno), Derrida conclui que “[N]ão há remédio inofensivo. O

phármakon não pode jamais ser simplesmente benéfico”. Ao definir que o remédio

possui um lado perigoso, Derrida acaba por acionar a différance, portanto, “[O]

phármakon é sempre colhido da mistura” (1991a, p.46).

Tal conceito surge a partir do encantamento que a escritura causa a Sócrates. Num

intenso debate filosófico com o jovem Fedro, o filósofo grego conclui que

phármakon é uma repetição deslocada, descentrada da palavra falada. Ao mesmo

tempo em que comete um parricídio, por eliminar a necessidade da voz de seu

progenitor, a escritura se torna um remédio, pois cabe a ela, justamente, a função de

preservar essa memória que poderia se esfacelar com tempo:

Não que o lógos seja o pai. Mas a origem do lógos é seu pai. Dir-se-ia, por anacronia,

que o “sujeito falante” é o pai de sua fala. Não se tardará a perceber que não há aqui

nenhuma metáfora, se ao menos se compreende assim o efeito corrente e funcional de

uma retórica. O lógos é um filho, então, é um filho que se destruiria sem a presença,

sem a assistência presente de seu pai. Por seu pai que responde por ele e dele. Sem seu

pai ele é apenas, precisamente, uma escritura. É ao menos o que diz aquele que diz, é a

tese do pai. A especificidade da escritura se relacionaria, pois com a ausência do pai.

Uma tal ausência pode se modalizar ainda de formas diversas, distinta ou confusamente,

sucessiva ou simultaneamente: ter perdido seu pai de morte natural ou violenta, por uma

violência qualquer ou por parricídio; em seguida, solicitar a assistência, possível ou

impossível, da presença paterna. Solicitá-la diretamente ou pretendendo prescindir dela

etc. Sabemos como Sócrates insiste sobre a miséria, deplorável ou arrogante, do lógos

entregue à escritura: “… ele tem sempre a necessidade da assistência de seu pai (…):

sozinho, com efeito, não é capaz nem de se defender nem de dar assistência a si mesmo

(DERRIDA, 1991a, p.22-23).

A escritura pode assassinar o pai, mas sempre vai cobrar sua presença. Entendo que

a lógica aqui requer pensar a necessidade de um ente (presente) e, ao mesmo tempo,

solicitar um não-ente (deslocado), pois se a escritura pode ser vista como um filho,

ela sempre será remetida a um pai. Por isso, penso que essa mesma escritura pode

honrar a memória paterna, ao invés de simplesmente destruí-la, como pensou Platão.

No parágrafo supracitado da crônica de Otto, a palavra escrita funciona como um

phármakon para o jornalista, o qual sai de si e viaja pelo tempo. Entretanto, a

escritura não comete um parricídio, pois o texto que Otto tem em suas mãos não é

uma letra morta, mas aparenta-se a um diálogo de um pai com um filho – “Falta,

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porém, o espaço em branco que separa a fala dos que andamos certos e orgulhosos

na manhã, diante desse ser obscuro”.40 Esse trecho da crônica sublinha, de fato, que

a escritura rouba a substância viva da palavra, pois ela não é dita, mas recuperada

pelo que está escrito no papel. Contudo, a transferência do cronista para outro lugar

que não o presente produz um efeito de sentido dialógico. É como se Otto e Paulo

Mendes Campos conversassem sobre o equívoco da edição. Isso é reiterado com a

leitura que se faz de Poemas. Por meio do artefato textual, Otto retorna a 1979 para

recriar, do presente, o locus de produção da orelha do livro do amigo. A esse presente

incorporado ao passado, surge outro mais remoto: o do nascimento dos dois

personagens, marcado na expressão “Chegamos juntos ao mundo”. Novamente, tem-

se um mecanismo de desconstrução acionado no discurso de Otto, pois seu “eu”

carioca é perpassado por um “eu” de nascimento que, no ciclo do

desconstrucionismo, é lançado para outro “eu”: o da adolescência dos amigos –

“Dezesseis anos depois (…)”.

Outro fator que me leva a crer que a escritura não é de todo ruim para a “memória

viva e conhecedora”, termo referido por Derrida (1991a), é gerado no fecho do

parágrafo supracitado de Otto, quando este afirma que a formação em “humanidades”

preparou a ele e a Paulo Mendes Campos para “vida” e conclui, por meio da

conjunção coordenada conclusiva “logo”, que estavam preparados para as “letras”.

Com essa assertiva, o que o cronista nos informa é justamente o lado remédio do

phármakon. Tal acepção do termo platônico se torna possível, pois a ligação que o

cronista faz com a “vida” são justamente as “letras”, o que remete ao plano da escrita.

Isso quer dizer que, antes de cometer qualquer espécie de assassinato, a escritura, no

caso de Otto, deve ser vista como uma espécie de parturiente que lança ao mundo um

sopro de vida e não um arsênio que vai matar a experiência do ser.

A esse argumento, adiciono ainda o fato de que a memória total é algo inconcebível.

Mesmo que não esteja sujeita à escritura, deixa-se contaminar pelo fora a partir do

momento que depende de signos para lembrar-se. Aqui, Derrida (1991a) chama a

atenção para o suplemento, algo excedente, desnecessário, mas que se liga a outra

40 No original, a segunda estrofe do poema de Paulo Mendes Campos se inicia da seguinte forma: “Nós que andamos

certos e orgulhosos na manhã/ E nos apossamos do dia como nosso território natural,/ Como entenderemos este ser

obscuro/ Cujos passos se extraviam e se afastam de nós” Disponível em: http://www.ocampones.com/?p=4883

Acesso em 13/06/12.

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coisa para lhe permitir a significação. Diferentemente do complemento, que se trata

de duas coisas opostas, o suplemento é algo estranhamente inscrito, que faz parte,

mas que excede como um corpo estranho ao objeto. “O suplemento aqui não é, não

é um ente (on). Mas ele não é também um simples não-ente (me ón). Seu deslizar o

furta à alternativa simples da presença e da ausência” (p.56).

Então, como definir o suplemento como algo inscrito, que é e não é parte do objeto?

Derrida (1991a) esclarece o problema ao explicar a relação entre a memória e a

escritura, em suas palavras: “Assim, ainda que a escritura seja exterior à memória

(interior), ainda que a hipomnésia não seja a memória, ela a afeta e a hipnotiza no

seu dentro” (p.57). Creio, portanto, que o suplemento possui uma mobilidade tal que

pode-se furtar de estar presente, mas a presença não pode furtar-se de que ele esteja

presente para significar. Assim procede que, quando presentificamos algo, na

realidade recorremos a um acessório inscrito neste algo. O exemplo se aplica ao

descentramento de Otto, pois, ele só pode constituir-se enquanto carioca a partir do

suplemento que não o qualifica como carioca, mas como qualquer outra coisa. O

reconhecimento do ser carioca é o não-ente carioca. Contudo, argumento que esse

não-ente carioca é um rastro que habita o carioca. Dessa forma, ao invés de entender

a suplementariedade como uma simples différence, percebo-a como uma différance

que ata corpo e alma, não permitindo que um escape do outro. Caso contrário, seria

a não-significação, a morte. Isto, penso, funda o grande paradoxo do suplemento,

pois ao mesmo tempo em que ele é um excedente, algo dispensável, ele é também

fundamental para constituir a significação. Conforme acentuou Derrida (1991a), se

nem a memória existe em sua plenitude, é necessário recobrar a presença de signos

para efetivá-la.

Esta falta de plenitude da memória aliada aos signos externos que lhe sustentam a

lembrança podem ser vistos na continuação da crônica:

Há quarenta e oito horas, em Belo Horizonte me dei conta de que me

encontrava no que hoje lá se chama o Savassi. Meu irmão Márcio parou

o carro e descemos. A pé, passo a passo, fui reconstituindo o que era no

nosso tempo o Abrigo Pernambuco. Onde está a casa do Paulo?

Desorientado, eu confundia Paraúna com Cristóvão Colombo, ou

Contorno. Até os nomes desapareceram. Como se chama esta praça?

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Aqui, Otto faz um corte total no tempo e no espaço. Sai de seu apartamento e de suas

lembranças para viver o presente que era construído a partir de suas memórias ainda

em terras cariocas – “Há quarenta e oito horas, em Belo Horizonte me dei conta de

que me encontrava no que hoje lá se chama o Savassi”. Mas argumento que o

processo pelo qual o cronista passa com o deslocamento para a capital mineira é o de

desconstrução: 1º) ele é o carioca, o estrangeiro que chega a terras desconhecidas,

fato comprovado pelo intervalo de 48 horas para conseguir se ambientar em Belo

Horizonte. Tal localização ocorre na medida em que desconstrói as imagens do

apartamento para experienciar a cartografia da presença; 2º) Ao se localizar, contudo,

não o faz por meio da presença, mas do presente que é suplementado por sua

juventude na cidade mineira – “me dei conta de que me encontrava no que hoje lá se

chama o Savassi”. Otto não reconhece a presença, a não ser pelo deslocamento, haja

vista o acionamento do advérbio de tempo “hoje”, que serve como conector para o

passado. Fica nítido que seu norteamento ocorre apenas pela différance, ou seja,

precisa fazer com que se misturem passado e presente para sentir a fruição da cidade

na qual já morou. Ao cronista, só é possível capturar o hoje por meio da relação

suplementar deste com o ontem; 3º) Acontece, porém, que o momento de fala de Otto

não coincide com o do mineiro que retorna do exílio. Isso fica marcado com o dêitico

“lá”. Este advérbio de lugar é usado por alguém que se refere a determinado local,

mas que não está neste lugar. Assim, acentuo a desconstrução, tanto do mineiro,

quanto do carioca, por outras identidades que informam Minas Gerais a partir da

lembrança. O “eu” presente do advérbio “lá” corrobora a questão da différance e do

suplemento, pois a localização no “aqui” evidencia-se possível apenas pela relação

com o que está distante no espaço e no tempo, “lá”.

O desconstrucionismo das identidades do cronista continua com o jogo de alternância

entre temporalidades distintas, mas que estão inscritas umas nas outras. Prevalecem,

no discurso de Otto, formas variadas de lidar com o presente, mas que acabam

diferindo pela presença deslocada. Vejamos: quando desce do carro e caminha pela

cidade, o cronista afirma que – “fui reconstituindo o que era no nosso tempo o Abrigo

Pernambuco” – nesse enunciado há três temporalidades distintas, mas que estão num

jogo de interpelação constante. A primeira posição de sujeito alçada é a do “eu”

cronista que recorre ao pretérito imperfeito do indicativo do verbo “ir” para

suplementar seu presente, ou seja, a presença da escrita demanda o deslocamento

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para o passado. Tal deslocamento é acentuado em seguida quando o “eu” cronista

assume a presença por meio da posição de sujeito transeunte marcada pelo verbo

“estar”, conjugado na terceira pessoa do presente do indicativo – “Onde está a casa

do Paulo?” – o “eu” aqui é o da presença. O cronista deixa de ser cronista para

vivenciar, novamente, sua presença em Belo Horizonte. Na sequência, este “eu” da

presença é deslocado para o futuro e a voz que assume a enunciação é a do “eu”

cronista – “Desorientado, eu confundia Paraúna com Cristóvão Colombo, ou

Contorno. Até os nomes desapareceram.” Mas esse discurso é, outra vez,

suplementado pela temporização passada, haja vista os verbos “confundia”, no

pretérito imperfeito do indicativo, e “desapareceram”, no pretérito perfeito também

do indicativo. Contudo, mais uma vez, o “eu” cronista do presente é suplementado

pelo passado e alterna sua posição. Volta a experimentar o “eu” transeunte da

presença – “Como se chama esta praça?”. Estes deslocamentos contínuos

caracterizam a desconstrução plena do sujeito. O discurso de Otto só consegue

produzir sua significação por meio das viagens revezadas por temporalidades que se

diferem. Apesar da ausência representacional em seu discurso, já que sua presença

precisa se ausentar para significar, o jornalista não destrói nenhuma identidade para

construir outra. Disso resulta que a desconstrução, a différance e o suplemento jogam

o tempo todo com as posições de sujeito assumidas por Otto, comprovando a tese a

qual sustento sobre suas identidades intersticiais.

Tal consideração desemboca no esquema da repetição. Se o suplemento é algo que

não pertence, mas está inscrito na memória, esta acaba por repetir a aparência, o

modelo das coisas que o suplemento lhe fornece. Observo que em Otto, se

considerarmos apenas suas posições enquanto carioca e mineiro, o que se passa é

uma repetição. O ser carioca possui um mineiro suplementar e vice-versa. Cabe a um

e a outro, quando aciona as lembranças para se desconstruir e deslocar-se de uma

posição a outra, repetir o que os signos (fora) da Mineiridade ou da Carioquice lhe

informam. Assim, o sujeito carioca, para se reconhecer mineiro, repete todo um

conjunto de práticas e valores simbólicos da cultura de Minas Gerais que carrega

consigo. Apesar de parecer duas construções opostas (différence), Mineiridade e

Carioquice, na realidade, acabam por se consagrarem miscíveis, haja vista o eterno

movimento de passagem entre uma posição e outra no sujeito discursivo Otto. Assim,

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a relação suplementar é aquela que, no momento da presença, substitui uma ausência,

considerando-se a falta de uma unidade plena:

A invisibilidade absoluta da origem do visível, do bem-sol-capital-pai, o se furtar à

forma da presença ou da entidade, todo esse excesso que Platão designa como epekéina

tês ousías (além da entidade ou da presença) dá lugar, se podemos ainda dizer, a uma

estrutura de suplência tal que todas as presenças serão os suplementos substituídos à

origem ausente e que todas as diferenças serão, no sistema das presenças, o efeito

irredutível do que permanece epekéina tês ousías (DERRIDA, 1991a, p.120).

A citação me leva a pensar novamente no phármakon. Sua dualidade como veneno e

remédio se dissolve quando passamos a encarar a escritura como algo suplementar.

Digo isso, pois, se a presença demanda uma ausência, já que para se constituir recorre

a vários centros significadores, não se pode pensar apenas na dicotomia veneno e

remédio prescrita por Platão. O phármakon vai extrapolar essa fronteira rígida e, ao

tomar a palavra escrita para si, vai fazê-lo a partir de uma miríade de espacialidades,

temporalidades e semióticas, o que não se justifica enquadrá-lo como responsável

pela morte da memória viva. Pois, inclusive esta, não é translúcida o suficiente para

que se furte de outros elementos quando demanda lembrar. Entendo, com isso, que

não se pode dizer que a escritura é simplesmente boa ou má, mas que ela é parte

seminal para que a memória funcione, já que esta tem uma data de validade e uma

capacidade de armazenamento finito. O parágrafo final da crônica de Otto mostra

justamente como a escritura pode ser benéfica para a memória. Não fossem as

lembranças impressas, o jornalista não conseguiria (des) construir suas identidades:

Bem visível, lá está a placa: praça Diogo de Vasconcelos. Ainda bem que

nas crônicas e nos poemas do Paulo encontro a nossa Belo Horizonte. E

o adro da igreja de São Francisco de Assis. Em São João del Rei. Nosso

primeiro universo. Nossa pátria pequena, Minas. Daí a pouco, Joan

telefona: o Paulo morreu. Não, não estamos preparados. Confuso

sentimento de que era preciso ter feito alguma coisa. Sim. Era

previsível. Mas não precisava ser irreparável.

A orientação do cronista é reativada pela placa que lhe informa o nome do lugar no

qual se encontra – “Bem visível, lá está a placa: a praça Diogo de Vasconcelos” –

isso reforça minha hipótese de que diferentes signos suplementam a memória viva e

que esta, por si só, não é capaz de significar-se sem que recorra a algo que lhe é

externo. Por isso, o Phármakon não é tão somente um elemento dicotômico, cindido.

Ele não deve ser visto apenas como veneno ou remédio, mas com um suplemento de

igual importância para o ato de rememorar. Tal asserção é confirmada na sequência

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da crônica de Otto – “Ainda bem que nas crônicas e poemas do Paulo Mendes

Campos encontro a nossa Belo Horizonte. E o adro da Igreja São Francisco de Assis.

Em São João del-Rei. Nosso primeiro universo. Nossa pátria pequena, Minas.” – a

escritura assume para o cronista uma posição de protagonista do ato de experienciar.

Apesar de não poder afirmar que Otto não consiga se lembrar do passado a não ser

por meio daquilo que foi escrito pelo amigo, o efeito de sentido produzido é que a

escritura de Paulo Mendes Campos é o campo que permite a desconstrução do

presente para que se experiencie novamente o ser mineiro.

A constatação de que o phármakon não é apenas remédio ou veneno é reforçada pela

ininterrupta passagem espaço-temporal que vem atrelada ao ato de leitura de Otto.

De uma presença que se orienta pela placa indicativa do nome da praça, aparece o

presente, o qual é reconstituído por outra voz, localizada no passado, mais

precisamente nas crônicas de Paulo Mendes Campos. Essa voz que ecoa dos textos

do amigo de Otto o dirige para fora da presença, que não é a carioca, tampouco a da

Praça Diogo de Vasconcelos, mas aquela da rememoração. Funciona como um poder

mágico de parar o tempo e se reencontrar em outra Belo Horizonte, em outra São

João del-Rei com suas igrejas centenárias. Caso considerasse a escritura apenas por

seu viés negativo, seria inconcebível a Otto reconstruir seu “primeiro universo”. A

memória só ganha plenitude e consegue significar quando o jornalista visualiza

outras temporalidades nas crônicas de Paulo Mendes Campos.

Ressalto, contudo, o caráter ideológico que vem embutido nessa polissemia que

interpela o discurso de Otto. Reconstruir Minas Gerais não é apenas reconstruí-la

como espaço romântico da memória, mas como uma “pátria”. Como já dito em seção

anterior deste capítulo, Minas Gerais foi construída discursivamente como um Estado

de convergência dos interesses nacionais. Local de políticos conciliadores e

ponderados capazes de atribuir ordem ao Brasil. Com essas características, as

Alterosas seriam uma pátria em sua essencialidade política, por isso serviria de

exemplo de convergência para os interesses do resto do país.

Mas, por meio de um corte abrupto, a desconstrução opera no sentido de recuperar a

consciência que vagava livremente – “Daí pouco, Joan telefona: o Paulo morreu”. A

presença aqui não é a do cronista, nem a do mineiro a reviver o passado por meio da

leitura de outrem, mas daquele sonâmbulo que titubeava madrugada afora e acaba

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definitivamente chamado à realidade imediata com o telefonema trazendo a notícia

de morte. A constatação do passamento de Paulo Mendes Campos – “Não, não

estamos preparados” – é uma presença no tempo da informação transmitida por Joan

e não ao da escritura da crônica. Mas, imediatamente ao fato noticiado, Otto recupera

a presença do momento de escrita da crônica e encerra seu texto assim como o abre,

flanando em uma différance que não o localiza em nenhum ponto fixo, mas que

desconstrói seu “eu” mais íntimo em diferentes dimensões significativas – “Confuso

sentimento de que era preciso ter feito alguma coisa. Sim. Era previsível. Mas não

precisava ser irreparável” – como se quisesse recuperar algo que não mais lhe é

possível. A não ser por meio desse mecanismo de deslocamento que alça Otto

incessantemente para (re) viver aquilo que está distante, aquilo que se tornou uma

representação, um remorso.

Assim, com esse capítulo busquei demonstrar que as cartografias do sujeito

encontram-se orientadas por um sistema pós-moderno-midiático. A mídia constrói

mapeamentos do mundo através de fronteiras porosas, o que reconfigura os espaços,

permitindo que a relação do “eu” com o “outro” não seja determinada apenas pelo

encontro face a face, mas por uma rede informacional que gera novas identidades, ao

passo que cria o “cidadão do mundo”. Além de produtor dessa nova espacialidade,

considero Otto como receptor desse novo cenário. O espaço vai ser construído como

uma representação, pois é na confluência entre localizações passadas e presentes que

o cronista determina o norte de sua bússola discursiva. Por isso, é por meio do

conceito que Canclini (1995) chama de “glocalize”, que percebo os interstícios

identitários de Otto como responsáveis por sua formação polifônica. As clivagens

existem, é verdade, mas há muito mais um sujeito compósito.

Além disso, procurei demonstrar que é por meio dos atravessamentos do “entre-

lugar” e do “entre-tempo”, termos discutidos por Bhabha (1998), que o indivíduo

acumula experiências que engendram suas identidades plurais, formando um ser

híbrido. O sujeito, perpassado pelas vozes dessas regiões fronteiriças, não está nem

aqui, nem lá, mas lá e aqui se manifestam indissociavelmente nesse ser. Portanto,

configura-se a implosão de um sujeito unívoco, pois o presente não é o elo de

temporalidades distintas, mas o momento que marca a não-linearidade, a “travessia”.

Trata-se de uma manifestação do devir – do vir a ser – mas que depende do passado

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e do futuro projetados sobre o presente. Nesses termos, Otto é o habitante do entre-

lugar e do entre-tempo já que seu conceito de nação é ressignificado como

“ambivalente e vacilante”, nos termos de Bhabha (1998). Isso significa dizer que

espaços e tempos distintos se cruzam sem parar. Não é mais possível pensar um

sujeito centrado como em outras épocas históricas.

Por fim, procurei ratificar a minha hipótese sobre as identidades intersticiais por meio

de categorias de pensamento propostas por Jacques Derrida. Com suposições que

tocam diversas obras do autor, tentei alinhavar seus conceitos centrais, estabelecidos

ao longo de suas investidas acadêmicas. Comecei por cotejar a parte empírica da

análise com o conceito de desconstrução, pelo qual um sujeito se decompõe em suas

várias identidades para se recompor como um ser significador dos sentidos que lhe

atravessam o discurso. Para isso, é inevitável não recorrer à différance, neologismo

derridiano que indica que as clivagens identitárias se misturam ao invés de

simplesmente travarem uma guerra entre si, uma différence. Isso me conduziu à

questão da suplementariedade, a qual indica que os objetos e a memória de cada um

possuem elementos intrínsecos que até podem ser considerados acessórios, de pouca

relevância, mas que são fundamentais para amarrar os discursos polifônicos que

constituem o sujeito. Dessa forma, independentemente das clivagens identitárias de

Otto, elas se suplementam num jogo incessante, permitindo que o cronista ocupe

várias dimensões constitutivas do seu ser.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todos os gestos seriam inúteis. Nada salva e tudo nos perde e atraiçoa. O temor sustenta

minhas interrogações e de repente me sinto só, perdidamente só e anterior a todos, como

se ninguém mais houvesse. Tudo desaparece na refração das águas da memória. Vejo

as imagens deformadas, mas que persistem, fantasmas íntimos.

(…)

(…) Não me pertenço e nem me encontro. O tormento da lembrança, como cãibra,

paralisa os gestos e sobrepõe ao que é o que já foi. Calculadamente percorro o caminho

da fatalidade, onde os abismos espreitam e aguardam a imagem quebrada, e cem vezes

traída (RESENDE, 2002, p.12).

As imagens estilhaçadas da memória são parte fundamental na escrita de Otto. Não por acaso a

errância foi, desde cedo, ingrediente que fez parte de sua vida. Em São João del-Rei, como

costumava dizer, viveu anos pesados de uma cidade “medieval”. Barroca na arquitetura e na

alma. Descreveu esse cenário em seu único romance, O braço direito. Na cantoria religiosa e nos

dobres dos sinos, Otto foi criado dentro da institucionalizada tradicional família mineira. Isso,

sem dúvidas, deixou marcas indeléveis na memória do escritor. Prova disso é que assinalou que

a infância não tem a ternura que a ela é atribuída, mas que os pequenos são capazes de articular

maldades como qualquer espírito humano. Fez dessa lição a obra de contos Boca do inferno, o

que lhe rendeu uma boa dor de cabeça, já que a ala tradicional da Igreja Católica não teria aceitado

o conteúdo publicado.

Boca do inferno foi publicado quando Otto já morava no Rio de Janeiro. Mas antes de se tornar

carioca, Otto se tornou um belo-horizontino, em 1938. Por lá se enturmou rapidamente e

frequentava a boêmia literária da Rua da Bahia, com os amigos Paulo Mendes Campos e

Fernando Sabino, para citar os mais próximos. Nessa época entrou para o jornalismo como

cachorro entra na igreja: viu a porta aberta. Seu pai, Antônio de Lara Resende era diretor de um

jornal católico e foi aí que Otto se aventurou por aquilo que sua incerteza inquietante sempre

titubeou em chamar de profissão. Mas, com certeza, foi o palco em que melhor se apresentou

durante toda sua vida.

A incerteza de Otto atrasou sua ida para o Rio. Enquanto seus amigos já moravam à beira mar,

ele desceu a montanha apenas em 1945. Seu estabelecimento foi definitivo, fato comprovado

pelo seu sepultamento na cidade em 1992. Habitou a rua e virou um flâneur carioca. No entanto,

apesar da citação inicial dessas considerações finais indicarem uma memória translúcida, a volta

ao passado nunca abandonou o jornalista. Passear por Minas e pelos amigos mineiros era uma

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obsessão que Otto carregou para sempre. Com isso, ele fez confluir em um só lugar

os desígnios da tradição mineira e o jeito espontâneo do carioca. O que tentei

demonstrar ao longo de toda a dissertação.

Mas Otto não foi apenas essa dualidade aparente, ele viveu mesmo foi no interstício.

Circulou por tantas culturas que absorveu o bocado suficiente de cada uma. Tornou-

se um ser multicultural e carregou os sotaques regional e global em único lugar. Essa

polifonia, no entanto, é vista com certa parcimônia. Conforme acentuei no capítulo

segundo, a agência do habitus dentro dos campos sociais pode atuar maquinicamente

no sentido de subjetivar a sociedade. Assim, quando se fala em Mineiridade ou em

Carioquice, entendo que são formas de representar simbolicamente esses recortes

culturais, mas formas simbólicas que podem gerar locais de poder, pois muitas vezes

elas nomeiam, qualificam e tendem a naturalizar características de uma realidade de

fato representada.

Com isso, quero dizer que o discurso produzido pelo e para os diversos recortes

sociais carregam consigo aquilo que chamei de realidade de fato representada, ou

seja, em alguns casos, a apropriação do real o ressignifica e o processo de

desconstrução opera no sentido de reconstruir a realidade, conforme os desígnios do

sujeito detentor do discurso. Isso implica, portanto, a reconfiguração do mundo,

segundo o discurso daqueles que têm o poder institucionalizado de fala. No caso de

Otto, quando ele assume a figura do narrador do texto, ele pode tornar-se esse locutor

com poder de nomear e qualificar as diversas culturas da qual faz parte.

Apesar de não ser meu objetivo continuar um estudo dos processos ideológicos e de

formação do poder pelo discurso, entendo que esse tópico da dissertação era uma

lacuna a ser sanada desde a época em que participei do projeto de Iniciação Científica

sob orientação do professor Dr. Guilherme Jorge de Rezende, o qual me acompanhou

nesta empreitada de mestrado como um desdobramento da pesquisa que realizamos

juntos na graduação. Era uma dívida que acumulávamos em relação a um processo

mais crítico no que tange aos lugares de fala instanciados por Otto.

Feita essa ressalva, considero que o trabalho ainda não se encontra terminado.

Assumo outra dívida para uma pesquisa futura: o eterno exílio de Otto. Apesar de ter

tocado em passant no assunto, vejo que a matéria pode ser destrinçada em uma

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pesquisa de doutorado. A justificativa e a relevância de tal empreitada seria o

ineditismo de um trabalho sobre o livro de Otto: O Rio é tão distante – Cartas a

Fernando Sabino, lançado em 2011 pela editora Companhia da Letras. Penso que

esse material contém importantes elementos para o estudo do exílio de Otto. Além

disso, vejo a demanda de se construir um referencial crítico a respeito da memória e

do exílio para abordar um tema muito em voga no meio acadêmico. Creio ainda que

esse pode ser um diferencial teórico-metodológico e uma contribuição de uma futura

tese de doutoramento.

Essa pesquisa, portanto, não se encerra aqui. Pelo contrário, ela abre margem para

discutir mais aprofundadamente as identidades alçadas por Otto e como seus

deslocamentos são constitutivos de uma realidade de fato representada. Apesar de

acreditar ter contribuído com alguns pontos teóricos e também com outros de

relevância social, penso que um estudo da diáspora de Otto será um importante

mecanismo para entender como o “abandono do lar” é um sintoma do sujeito pós-

moderno e que o exílio extrapola a questão fronteiriça, já que muitas vezes nos

exilamos de nós mesmos e acabamos estrangeiros dos mundos dos quais fazemos

parte.

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ANEXOS

NOSSA RICA VIRTUDE

RIO DE JANEIRO, 09/04/1992—Não sei se você é do tempo em que pobre passava na porta de

sua casa e, bem-educado, tocava a campainha. Você, ou alguém por você, atendia. Com uma lata

na mão, o pobre pedia um resto de comida, pelo amor de Deus. Você dava ou não dava, segundo

tivesse comida e disposição. Se dava, punha na lata o sobejo do dia. O pobre, reverente, lhe

agradecia. E louvava o seu bom coração. Deus lhe pague e lhe dê em dobro. Amém, dizia você.

Era um rito civilizado. A gente até conhecia o pobre de vista e de nome. Freguês pontual,

procurava não incomodar. Passava entre uma refeição e outra. Se eram dois ou três, tratavam de

se entender entre eles. O pobre vinha uniformizado de pobre. Tinha cara de pobre, cabelo de

pobre, barba de pobre. Olhar de pobre. Uns olhos humildes que se voltavam para baixo. Um leve

brilho Só lhe era permitido quando pronunciava o santo nome de Deus.

As crianças da casa conheciam cada um dos que estendiam a mão à caridade pública. Ou familiar.

Um ou outro pobre era meio tantã. Engrolava palavras, podia cheirar mal e vestir andrajos que

desconheciam água e sabão. Um tipo assim aceitava roupa velha. Daí a uns dias voltava nos

trinques. Melhorava o visual. Às crianças se recomendava cuidado. Caridade, sim. Mas nada de

intimidade. O pobre podia estar doente. A pobreza em si não era contagiosa, ao contrário dá

riqueza. Mas doença de pobre era um horror.

Quando o pobre não trazia a sua própria lata, um desmazelo, a família dispunha de uma vasilha

para a emergência. Podia ser um prato rachado, ou de folha-de-flandres. Nem o cãozinho nem o

gato podiam comer nessa vasilha. Bicho de estimação é delicado. Pega doença à toa. Se o pobre

tinha uma úlcera, ou um defeito físico evidente e FEIO, tinha o cuidado de não o exibir. Nunca

ninguém lhe perguntava se doía. Doesse ou não, isto era lá com ele.

Era um tempo em que se respeitava a intimidade do pobre, mesmo sem estar garantida pela

Constituição. As crianças bem-educadas não perguntavam por que o pobre era pobre. Nem por

que não tinha casa pra morar. Ou comida pra comer. Curiosidade tinha limite. Se o pobre

cheirasse a álcool, aí dele. Há de ver que lhe deram dinheiro. Perdia ponto e até a comida, se logo

não se corrigisse. Vício, não, de forma nenhuma. Bem-comportado, o pobre abrilhantava o

escrínio de nossas virtudes.

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INFELIZICIDADE

RIO DE JANEIRO, 06/06/1992 – Freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem do

Curral del Rei está situada em campos amenos, na extensa planície de uma serra onde

manam imensas fontes de cristalinas e saborosas águas. A atmosfera é salutar. O

clima da região é temperado. Está circundada de pedras e outro materiais que se

podem fazer soberbos edifícios. A natureza criou este lugar para uma famosa e linda

cidade. Abra aspas lá em cima e feche-as por favor.

Isto é um trecho de uma carta do Padre Francisco de Paula Arantes, escrita em 1829.

Foi citado pela Mônica de Azevedo Meyer, que coordenou em Belo Horizonte o

recente 5º Seminário Nacional sobre Universidade e Meio Ambiente. Pois veja só:

nesse pedaço do paraíso, em 1897, era instalada a capital de Minas. Na virada do

século, em 1900, a aprazível cidade tinha 13.472 habitantes. 55.563, em 1920. Só em

1940 iria chegar aos 200 mil. Sem nenhum medo de ser feliz.

Agora você imagine o susto do pobre do padre Arantes, se desembarcasse hoje

naquele sítio. Bom profeta até que ele foi. Mas não podia imaginar que o bicho

homem fosse capaz de degradar uma cidade até o ponto a que chegou. Triste

Horizonte. Sim, é o nome do poema de Carlos Drummond de Andrade. A BH dele

era uma província saudável, de carnes leves pesseguíneas. Um remanso muito manso,

que nada tinha a ver com a brutal BH de hoje.

Os parnasianos, Bilac à frente, chamavam BH de cidade-jardim. Em 1924, no seu

famoso “Noturno”, Mário de Andrade cantava os poros abertos da cidade, que

aspiravam com delícia o ar da terra elevada. Posso dizer que ainda era assim a BH

do meu tempo. Bando peripatético de jovens, fruíamos inocentes, ou não tanto: a

alegria da noite e a ausência de males na jovialidade infantil do friozinho.

Outro dia eu estava em Los Angeles e vi o que foi o pavoroso quebra-quebra. Todo

mundo começou na mesma hora a discutir – o que fazer? Que fizemos de nossa

cidade? Perguntavam-se, perplexos, mil e um scholars. Muito mais do que lá, é o

caso também de repetirmos nós a indagação. Aqui juntamos à miséria um monte de

horrores. A urbs inviável. Monstruoso ajuntamento, úlceras à mostra. No Rio, até o

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mar, incansável lavadeira, está podendo dizer que BH não tem nem um [?]41 uma

menina violentada, coitadinha.

41 O símbolo [?] indica que não foi possível transcrever a palavra do original. Apesar do acervo da Folha Online

disponibilizar todo seu arquivo no site, algumas páginas apresentam manchas ou borrões de tinta que inviabilizam

a leitura. Neste caso, persisti no uso da crônica, pois a palavra ausente não interfere em minha análise.

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SUSPENSE CARIOCA

RIO DE JANEIRO, 11/09/1991— A esta altura do ano, o dia ainda está frio. Vou dar

uma volta para desenferrujar as pernas. Na farmácia, vejo que os preços voam alto.

Aumento de cem por cento num frasquinho de nada. O balconista sorri. É isso aí.

Nem dá mais vontade de comentar. O controle de preços, se existe, deve estar sendo

feito pelo Ministério da Aeronáutica, em convênio com a Nasa. Estico a caminhada

até a banca de jornais mais bem fornida.

Com tanta leitura atrasada, me encho de revistas. Vamos ver o que dizem os Estados

Unidos, a França, a Inglaterra. Deve ser tudo mais ou menos a mesma coisa. Até as

capas se repetem, ao dar notícia do que vai pela URSS, quatro letras que em 1934

eram título de um poema de Murilo Mendes: "Volta para a comunidade dos filhos de

Deus, ó pródiga, ó generosa. E verás a dança múltipla dos irmãos que te aclamam, ó

irmã transviada".

Pouco movimento na rua. Comércio fechado. Sábado de manhã. 7 de Setembro. Só

agora me dou conta de que é feriado. De pé tomo um chope em homenagem ao Hélio

Pellegrino. No bar Jóia não vejo o Tarso de Castro. Esse pessoal anda muito relapso.

Quando dou por - mim, infleti (como diria o Emilio Moura) à direita, na rua J. J.

Seabra. Segunda-feira vão inaugurar o Quadrifoglio Caffé. Do Baixo Lagoa pra cá,

o pedaço está se tornando o "quartier des restaurante". O fino.

Entre o hospital do INPS e a igreja de são José, vou indo, distraído. Ninguém nesta

quadra. Epa, lá vêm dois tipos estranhos. Estão se aproximando altos, um de busto

nu. Cabelos, roupas, jeito, parecem que saltaram de um videoclip. Já não dá pra

mudar de rumo. Muito menos de calçada. Um deles tem uma faca na mão. Uma faca

só lâmina. Cinco, quatro, três metros. Está cortando uma ripa. Ou afiando a faca.

Uma peixeira.

Entrei num conto do Borges e o jeito agora é sair. Dois bandido e nenhuma dúvida.

Fundos da igreja de são José. Mais um passo, a hípica. Vozes, gente, cavalos. Aí meu

Deus, são José está de costas. Assaltantes? Pararam. Bem diante de mim. São José,

valei-me. O de busto nu me dirige a palavra. Estou mais frito do que um ministro do

Collor. Ah, sim. A rua J. J. Seabra? Essa aí, aponto. Seguem adiante o meu pulso está

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um pouco acelerado. Tentação de olhar para trás: lá se vão os dois meliantes. Cidade

cordial, o Rio. Assusta, mas não mata.

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DIFÍCIL PORQUE SIMPLES

RIO DE JANEIRO, 18/10/1991 – Da minha parte, gostei dessa alcunha – república

do pão-de-queijo. Pode existir fora de Minas, não sei. Mas em Minas, o pão-de-queijo

é uma quitanda especial. Superior. Se você não sabe o que é, não procure no

dicionário. O dicionário é insípido. Provável que nem registre a palavra. Cumpre

sabê-la na boca, no remoto paladar, inconsútil. Gosto, aroma, vista, é tudo junto. Uma

só onda que envolve. Impregna. E volta sempre, pavloviana.

A violência e a torta de maçã, dizem os americanos, são típicas dos Estados Unidos.

A insólita aproximação me desagrada. Lado a lado, o sabor doméstico da torta e o

horror da violência. Tentativa de dar a violência como natural. Até inofensiva. Já a

república do pão-de-queijo, não. Junta o ideal republicano ao que há na casa de

objetivamente gostoso. Maternal. A suculenta e universal palavra pão. Duas vezes

simples.

Aí é que está. A dificuldade na simplicidade. Comecei a indagar aqui e dali e já ia

pelo caminho enciclopédico. A receita é fácil. Há varias. De Ouro Preto, de São João

del Rei, de Diamantina. Varia no detalhe, mas o que importa é jeito. A arte. Como

no jardim, se a mão não é boa, nada feito. A mão para amassar e sovar. A exata pitada

de sal. O forno quente, pré-aquecido. Quanto tempo? Não olhe o relógio. A hora fala,

manifesta. No forno e em você.

No Serro Frio havia a Maria Pão-de-Quijo. Pergunto à Geralda, que é serrana,

quantos pãesinhos cabem num tabuleiro. Para meio quilo de polvilho, digamos.

Polvilho azedo, claro. Nunca contei. Pequenos segredos que esconde até de si mesma.

Não estão na memória. Estão no sangue, circulam pelo coração. Quem prova é que

não esquece. Só não gosto da bola de grude, dentro. Pão-de-queijo não tem miolo. Já

a Heleninha adora, embatumado.

Bisneta de uma quitandeira como a d. Zuzuca, como é que pode? Mas tanto não nega

a raça que me fala da universalidade da nossa quitanda. Churrascaria, supermercado,

restaurante, por toda parte. Inventaram o pão-de-queijo congelado, que heresia!

Venho do forno de barro, do lado de fora da cozinha. Nunca se sabia quantos estavam

sendo assados. Não dava tempo de contar. Era assando e comendo. Ah, pobre Brasil,

assim mereça essa República!

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SOMBRA E ÁGUA FRESCA

RIO DE JANEIRO, 22/12/1991 – O verão está no auge. Natal branco lá no Norte.

Aqui, pelo menos no Rio, a neve é o calorão que bota pra fora toda a Carioquice da

cidade. E de seus habitantes, claro. O carioca se espalha. Por mais festiva que seja a

neve, chega um ponto em que enche. Dá nos nervos. Uma coisa é o cartão postal dos

flocos caindo em silêncio. A neve do Natal é assim. É o ideal, pelo menos. Ou neve

grã-fina das estações de inverno. Outra coisa é a neve que entulha a rua, suja, plebéia.

Neste sentido é que digo que o calor tem a vantagem de ser mais festivo. Extroverte.

O carioca fala alto, se expande. Na zorra da praia, ou no botequim, tomando chope,

está à vontade. Abraça, dá palmada nas costas do outro. Se não é, fica íntimo em dois

minutos. Que é que há, ó meu? Está me estranhando? Sabe lidar com o verão, como

se lida com um cão bravo. Quando cheguei ao Rio para viver, foi uma opção

definitiva. Mas eu não sabia o que é trabalhar duro no calor carioca.

Parece mentira, mas o maior frio que senti na minha vida foi em São João del Rei.

Em junho, julho, sem aquecimento, era de bater queixo. Tinha de aquecer os lençóis

e “quentar” no fogo. E olhe que já estive no Pólo Norte. Estão vendo que no Rio em

dezembro, janeiro, roupa pesada, eu quase morria sufocado. Até hoje me lembro

daquele abafo úmido e pegajoso na minha pele. Dava vontade de voltar correndo pra

Minas. Mas nada como a experiência. Fui indo e com jeito me entendi com o verão.

Adorar, me desculpem, não adoro. Podendo, fujo pra serra.

Todo mundo trabalhava no centro da cidade. No segundo verão que passei aqui na

“pedreira” do jornal, já estava mais escolado. Fiz o mapa da sombra. Andava de um

lado para o outro, sempre evitando o braseiro do Sol. Sabia onde de a brisa soprava.

Ali na esquina da Café Simpatia, Ouvidor, Gonçalves Dias e Avenida, ali era uma

brisa de lavar a alma. E ainda tinha um refresco de coco. Você abria o casaco e vinha

aquela carícia.

Tão bom quanto passar na porta do cine Metro Passeio. Vinha lá de dentro aquele

hálito de ar refrigerado, novidade rara naquele tempo. Anos depois, fui fazer um bate-

papo na Universidade de Lovaina (é Louvain em português). Titulo: Sombra e Água

Fresca. Nada melhor para falar do Brasil do que esse dístico. Passei um certo aperto.

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Na língua dos outros a gente não se move à vontade. Mas aqui, entre nós, tenho ou

não tenho razão? É o que está na bandeira ideal do nosso coração.

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O MELHOR É SER MINEIRO

RIO DE JANEIRO, 25/11/1991—Na entrevista que o repórter André Petry fez com o

governador de São Paulo, nas páginas amarelas de Veja, Fleury elogia Collor e

Quércia, critica os juros altos e fala bem do Marcílio. "O senhor não fala mal de

ninguém?", perguntou o repórter. Resposta: "Isso não adianta muito. A situação é tão

grave que não é preciso citar nomes ou criticar pessoas. Hoje a melhor forma de se

comportar em política é ser mineiro".

O governador não explica, nem o repórter indaga o que é ser mineiro. Por certo não

é nascer em Minas. Pelo jeito, a metáfora é tão clara que nem precisa de

esclarecimento. Que diabo será "ser mineiro", pergunto eu, mineiro de quatro

costados, nascido e criado em São João dei Rei. Não sei se vocês se lembram do

Rubião. Machado de Assis assim o define no Quincas Borba: "Singelo como um bom

mineiro, mas desconfiado como um paulista".

O romance, uma obra-prima, é de 1891. Um século. Quem diria hoje que o paulista

é desconfiado? Que o mineiro é singelo, talvez, por causa daquela história de comprar

bonde. Mas até os bondes acabaram e não foram vendidos para Minas. As palavras

vão passando por variações semânticas no curso do tempo. Para Eduardo Frieiro, em

seu Feijão, angu e couve, não existe "o" mineiro, como o viu Tristão de Athayde em

A voz de Minas. É só um estereótipo. É o que também sustenta Francisco Iglésias.

Por causa do ouro, Minas teve uma formação eminentemente urbana. Foi obrigado a

cultivar astúcia, paciência e teimosia, diz Sylvio de Vasconcellos em seu

Mineiridade. Isto não justifica, porém, que se veja no mineiro só ronha e esperteza.

Ou um sujeito sem caráter, bifronte e oportunista. Murista, como se diz hoje. Afinal,

de onde era o Tiradentes? Qual o papel de Minas na Revolução de 1930? Em 1937,

um único ministro se opôs ao golpe: Odilon Braga, mineiro. Contra a ditadura foi o

Manifesto dos Mineiros, de 1943.

Por ocasião do AI-5, Pedro Aleixo, mineiro, não mandou às favas os seus escrúpulos.

Ergueu sua voz solitária contra o monstro. O general Lott era mineiro de Sítio. Em

1954, o mineiro Tancredo propôs a resistência armada na dramática reunião que

precedeu o suicídio do Getúlio. Em 1964, o estouvado general Mourão Filho era

mineiro. Magalhães Pinto no governo tomou partido. Mineiro é um quixote como

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Sobral Pinto. De São João dei Rei, é o procurador geral Aristides Junqueira. Como

era Gabriel Passos. Que a história é essa de ser mineiro?

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COTA ZERO

RIO DE JANEIRO, 24/01/1992— Outro dia mesmo, o crescimento da população era

motivo de orgulho. Quando o Rio chegou a um milhão de habitantes, foi uma festa.

Deu até manchete. Era aqui a capital de República. O projeto de uma capital lá no

fundo do sertão era letra morta, mais uma, no cemitério da Constituição. São Paulo

botava banca de metrópole cosmopolita. O maior parque industrial da América

Latina.

A gente ia aí encontrar o Mário de Andrade, tomava chope no Franciscano, batia um

papo na rua Lopes Chaves e pulsava no nosso peito aquela exaltação. Pátria, latejo

em ti! Perto de Belo Horizonte, ainda quase Curral dei Rei, perto das velhas cidades

mineiras, Ouro Preto, São João del Rei, São Paulo lá trazia, impaciente, a vibração

da arrancada gigantesca. A frase do maior parque vinha escrita nos bondes amarelos,

ou vermelhos? Eram vermelhos. Amarelos eram os de Belo Horizonte.

E verdes eram os do Rio. Verde, amarelo, vermelho, fossem estas ou outras cores, já

se vislumbrava, ou se via, ofuscante, o arco-íris do futuro. Não era miragem, só dois

pássaros voando. Era um pássaro na mão, ansioso pelo horizonte que, promissor, sim,

também era real. A ditadura do Estado Novo aqui dentro não passava de uma bota

apertada, prestes a ser descalçada. Tolhia, mas deixava andar pra frente. Lá fora, o

horror da guerra. O mundo em cólicas de parto, para inaugurar o dia de amanhã. Já

se entreviam os dedos róseos da aurora.

O penumbrismo, a tristura decadentista, isto era coisa do passado até nas artes e nas

letras, de súbito despertadas em 1922. "Ah, 'como dói viver quando falta a

esperança!"—o suspiro tísico do Manuel Bandeira de 1912 era tão antigo e fora de

moda quanto o gramofone de 1910 do Murilo Mendes. Tudo de repente andava

depressa. E na própria velocidade residia uma deusa que cumpria cultuar. Até Noel

Rosa tinha cantado o progresso— e o progresso é natural. Bom dia, avenida Central!

Nuns poucos decênios, armamos o cenário para o banditismo, a violência, a

criminalidade. O açodado bota-abaixo abria espaço à cidade de perfil americano. A

cidade sem rosto. Os orgulhosos arranha-céus. Todo passado é remorso. Adeus,

português suave dos sobrados. Chalezinhos suíços, morada ingênua, adeus. Jardim,

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quintal, Vade retro! Lá vamos nós, Brasil das megalópoles, de parelha com Nova

York, Londres, Paris. Tóquio que se apresse. Stop. Foi o futuro que chegou, ou o

Brasil que parou?

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O JOVEM POETA SETENTÃO

R1O DE JANEIRO, 28/02/1992—Até onde me lembro, o Carnaval não o empolgava.

Em São João del Rei, onde estudou, e depois em Belo Horizonte, não guardo

reminiscência carnavalesco do nosso convívio. Nos primeiros tempos do Rio, a gente

corria para Minas, serra acima, toda vez que se podia escapar da rotina. Data dessa

época o diário em que registrou sua experiência de jovem mineiro em trânsito para

virar carioca. Não deixou de ser mineiro. Minas, sua pequena pátria.

Mas entendeu o Rio como perfeito carioca. O tal diário era escrito em forma de carta

que me destinava. Fez aí o seu aprendizado para a prosa de jornal que viria depois a

assumir. Alternativa profissional, a que lhe restava. Terá sido escolha, opção? Eu

entendia que era melhor mergulhar na redação e preservar, íntegra, a paixão literária.

Mas a poesia perturbava o seu entendimento com o jornal. Era fundamentalmente

poeta.

Logo se viu que, cronista, e dos melhores, não deixou de ser poeta. Continuou a

escrever poesia. Foi fiel à sua vocação. Também na crônica está visível o seu corte

lírico, inquieto, metafísico. Em prosa ou em verso, só foi poeta. Por isto sonhou com

profissões impossíveis. Por que não aviador? Lá fomos nós estudar inglês na avenida

Brasil, ali pertinho da praça da Liberdade, para o concurso que nos levaria a ser

pilotos. Quem sabe pilotos de guerra.

Idéia mais doida, mas que achei viável. O futuro estava aberto à nossa frente. E

comportava todas as hipóteses. Todos os sonhos. Ele se divertia contando que, aos

quinze anos, me revelou a existência do uísque. Ainda agora me pergunto se vi

mesmo aquela garrafa de White Horse. Sim, claro que vi. E fomos tomar o café com

leite do café Java. Mais um ano e seguiu para Porto Alegre. Trouxe de lá o

descobrimento de Mário Quintana.

Sua simplicidade, lição para toda a vida. Líamos os poetas para encontrar a nossa

própria definição. De dia e de noite, a conversa interminável. A gente ia puxar

angústia, que ele definiu assim: descer ao fundo do posso escuro, onde se acham as

máscaras abomináveis da solidão, do amor e da morte. Pois é, Paulo Mendes Campos.

Num dia assim, em pleno domingo de carnaval é que você nasceu. Hoje, quem pode

crer? Você estaria chegando aos setenta anos.

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CHEGAMOS JUNTOS AO MUNDO

RIO DE JANEIRO, 03/07/1991— Apesar da minha aversão a relógio de madrugada,

assim que acordei olhei as horas. Eram quatro e dez, como eu adivinhava. Cansado,

e essa crueldade de me acordar tão cedo. Escuro lá fora, passei os olhos pela pilha de

livros. Ia pegando a Bíblia quando vi no chão o tablóide aberto: "O bêbado". O poema

é antigo: por que republicano logo agora? Um erro de impressão pôs uma bomba

onde há uma pomba: "Do mais alto beiral nasce uma bomba".

Como o sono também levanta vôo, passo ao escritório. Um, dois, três livros do Paulo

Mendes Campos, atrás de "O bêbado". Vou repassando dedicatórias, crônicas, versos

e saudades. Recortes amarelecidos de jornal. Paro na entrevista feita por Maria Julieta

Drummond de Andrade: "Quem é você, Paulinho?". PMC estava chegando aos

sessenta e dois anos de idade: ''Sou um sujeito familiar, que gosta das pessoas do seu

sangue e do time de amigos que foi formando pela vida afora".

Afinal, cá está o bêbado. No A palavra escrita. Está republicado sem uma única

modificação. Falta, porém, o espaço em branco que separa a fala dos que andamos

certos e orgulhosos na manhã, diante desse ser obscuro. Releio a orelha que escrevi

para Poemas, 1979: "Chegamos juntos ao mundo, ele e eu. Dezesseis anos depois,

ele e eu concluíamos em São João del Rei o que então se chamava, e era, o curso de

humanidades. É bem provável que nos tivéssemos por preparados. Para quê? Para a

vida. E logo para as letras".

Há quarenta e oito horas, em Belo Horizonte me dei conta de que me encontrava no

que hoje lá se chama o Savassi. Meu irmão Márcio parou o carro e descemos. A pé,

passo a passo, fui reconstituindo o que era no nosso tempo o Abrigo Pernambuco.

Onde está a casa do Paulo? Desorientado, eu confundia Paraúna com Cristóvão

Colombo, ou Contorno. Até os nomes desapareceram. Como se chama esta praça?

Bem visível, lá está a placa: praça Diogo de Vasconcelos. Ainda bem que nas

crônicas e nos poemas do Paulo encontro a nossa Belo Horizonte. E o adro da igreja

de São Francisco de Assim. Em São João del Rei. Nosso primeiro universo. Nossa

pátria pequena, Minas. Daí a pouco, Joan telefona: o Paulo morreu. Não, não estamos

preparados. Confuso sentimento de que era preciso ter feito alguma coisa. Sim. Era

previsível. Mas não precisava ser irreparável.