MEMÓRIA

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MEMÓRIA Roberto Godoy, médico neurocirurgião com vasta produção científica publicada A+a- Imprimir Há duas maneiras pelas quais o cérebro adquire e armazena informações: a memória de procedimento e a memória declarativa. Essas duas formas divergem tanto no que diz respeito aos mecanismos cerebrais envolvidos, como nas estruturas anatômicas. A memória de procedimento (também chamada implícita) armazena dados relacionados à aquisição de habilidades mediante a repetição de uma atividade que segue sempre o mesmo padrão. Nela se incluem todas as habilidades motoras, sensitivas e intelectuais, bem como toda forma de condicionamento. A capacidade assim adquirida não depende da consciência. Somos capazes de executar tarefas, por vezes complexas, com nosso pensamento voltado para algo completamente diferente. Por outro lado, a memória declarativa (também chamada explícita) armazena e evoca informação de fatos e de dados levados ao nosso conhecimento através dos sentidos e de processos internos do cérebro, como associação de dados, dedução e criação de ideias. Esse tipo de memória é levado ao nível consciente através de proposições verbais, imagens, sons, etc. A memória declarativa inclui a memória de fatos vivenciados pela pessoa (memória episódica) e de informações adquiridas pela transmissão do saber de forma escrita, visual e sonora (memória semântica). Analisando a memória quanto ao tempo de armazenamento das informações, pode-se classificá-la em memória de trabalho, memória de curto prazo e memória de longo prazo.

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MEMRIARoberto Godoy, mdico neurocirurgio com vasta produo cientfica publicada A+a- ImprimirH duas maneiras pelas quais o crebro adquire e armazena informaes: a memria de procedimento e a memria declarativa. Essas duas formas divergem tanto no que diz respeito aos mecanismos cerebrais envolvidos, como nas estruturas anatmicas.A memria de procedimento (tambm chamada implcita) armazena dados relacionados aquisio de habilidades mediante a repetio de uma atividade que segue sempre o mesmo padro. Nela se incluem todas as habilidades motoras, sensitivas e intelectuais, bem como toda forma de condicionamento. A capacidade assim adquirida no depende da conscincia. Somos capazes de executar tarefas, por vezes complexas, com nosso pensamento voltado para algo completamente diferente.Por outro lado, a memria declarativa (tambm chamada explcita) armazena e evoca informao de fatos e de dados levados ao nosso conhecimento atravs dos sentidos e de processos internos do crebro, como associao de dados, deduo e criao de ideias. Esse tipo de memria levado ao nvel consciente atravs de proposies verbais, imagens, sons, etc. A memria declarativa inclui a memria de fatos vivenciados pela pessoa (memria episdica) e de informaes adquiridas pela transmisso do saber de forma escrita, visual e sonora (memria semntica).Analisando a memria quanto ao tempo de armazenamento das informaes, pode-se classific-la em memria de trabalho, memria de curto prazo e memria de longo prazo.A memria de trabalho, que alguns acreditam ser parte da memria de curto prazo, atua no momento em que a informao est sendo adquirida, retm essa informao por alguns segundos e, ento, a destina para ser guardada por perodos mais longos, ou a descarta. Quando algum nos diz um nmero de telefone para ser discado, essa informao pode ser guardada, se for um nmero que nos interessar no futuro, ou ser prontamente descartada aps o uso. A memria de trabalho pode, ainda, armazenar dados por via inconsciente.A memria de curto prazo trabalha com dados por algumas horas at que sejam gravados de forma definitiva. Este tipo de memria particularmente importante nos dados de cunho declarativo. Em caso de algum tipo de agresso ao crebro, enquanto as informaes esto armazenadas neste estgio da memria, ocorrer sua perda irreparvel.A memria de longo prazo a que retm de forma definitiva a informao, permitindo sua recuperao ou evocao. Nela esto contidos todos os nossos dados autobiogrficos e todo nosso conhecimento. Sua capacidade praticamente ilimitada.No h uma estrutura ou uma determinada poro do crebro reconhecidamente depositria de informaes, embora se acredite que o lobo temporal esteja envolvido com a memria dos eventos do passado. Entretanto, so conhecidas vrias estruturas cerebrais envolvidas com a aquisio e o processo de armazenamento de dados.MECANISMOS DA MEMRIAAinda no se conhece definitivamente o mecanismo, ou os mecanismos, pelo qual o crebro adquire, armazena e evoca as informaes.No obstante, alguns modelos so propostos para explicar essa funo do crebro humano.O primeiro dos modelos propostos, tem como base a atividade eltrica cerebral. Assim, a informao seria guardada em circuitos eltricos, ditos reverberantes. Evidncia desse mecanismo obtida pela existncia de conexes neuronais recorrentes, ou seja, por ramificaes da clula nervosa (neurnio) que voltam ao seu prprio corpo, reestimulando-a. possvel que esse mecanismo esteja presente na manuteno das informaes nas memrias de trabalho e de curto prazo.O segundo modelo baseia-se na produo de substncias qumicas que conteriam um cdigo relacionado s informaes. Esse modelo supe que os neurnios possam sintetizar ARN (cido ribonucleico) e que essa substncia conteria um cdigo da memria da mesma forma que o ADN (cido desoxirribonucleico) contm a codificao gentica. Embora se tenha verificado aumento da sntese de ARN em fases de aprendizado, atualmente acredita-se que essa sntese seja responsvel mais pelo funcionamento celular do que pela criao de um cdigo qumico, de forma a ter-se relegado a um segundo plano essa hiptese.Outro modelo, conhecido por modelo conexionista, pressupe a alterao das conexes entre os neurnios. Todos os neurnios emitem ramificaes que se comunicam com as de outros neurnios, tendo umas, carter estimulante e outras, carter inibitrio para a clula a que se destinam. A transmisso do impulso nervoso feita no ponto de encontro dessas ramificaes com a clula alvo, ponto esse denominado sinapse. A hiptese que haveria alterao da funo sinptica criando novos circuitos neuronais e seriam esses circuitos que codificariam as informaes. Esse modelo tornou-se bastante plausvel depois que se comprovou, experimentalmente, o aumento da resposta sinptica com a aplicao de estmulos repetitivos.Assim, acredita-se que o substrato da memria o aumento da funo sinptica (hipertrofia) ou a criao de novas sinapses. Esse modelo bastante interessante, pois, alm de esclarecer como so guardadas as informaes, permite explicar, tambm, a atenuao das lembranas, fenmeno conhecido por todos, e que ocorreria em virtude da diminuio da funo sinptica causada pelo desuso.AMNSIAA amnsia uma entidade patolgica provocada por diversas causas em que o indivduo perde a capacidade de reter informaes novas (amnsia antergrada) ou de evocar as antigas (amnsia retrgrada).As amnsias so sempre causadas por agresses ao crebro e podem ter carter transitrio ou permanente, sendo algumas delas destacadas a seguir:1) Sndrome de Korsakoff Doena descrita como decorrncia do alcoolismo crnico pode, no entanto, ter outras causas. A amnsia o sintoma predominante nessa sndrome, sendo caracteristicamente do tipo antergrado.2) Amnsia traumtica Mesmo que no percam a conscincia, pessoas que sofrem um trauma de crnio de certa intensidade, muito frequentemente, esquecem-se dos fatos que ocorreram minutos antes do trauma (amnsia retrgrada) e tambm, dos fatos que ocorreram aps o trauma (amnsia antergrada). Existe certa relao de proporcionalidade entre a intensidade do trauma e o tempo de amnsia.3) Amnsia global Esse tipo de amnsia est correlacionado com grave e difuso comprometimento cerebral. De forma definitiva, instala-se a amnsia tanto antergrada quanto retrgrada, ou seja, o indivduo perde a capacidade de reter novas informaes e de evocar seu estoque antigo de informaes. Tal situao ocorre em demncias, traumas muito graves e intoxicaes por monxido de carbono.4) Amnsia global transitria Nessa situao, a amnsia dura algumas horas, no ultrapassando um dia, e a recuperao completa. O indivduo tem comportamento normal, mas no retm nenhuma informao durante o episdio, ou seja, apresenta amnsia antergrada completa e essa lacuna na memria da pessoa permanece depois da recuperao. A causa desse distrbio no est, ainda, totalmente esclarecida, mas parece estar ligada a uma isquemia transitria que afeta as partes internas do lobo temporal. Essa patologia tem curso benigno, sendo excepcional um segundo episdio.5) Amnsia ps-operatria H cerca de 50 anos, um neurocirurgio americano, para poder tratar um paciente com crises convulsivas que no respondia ao tratamento com remdios, fez uma cirurgia para retirar, de ambos os lados, certas partes do lobo temporal (hipocampo e poro medial). Esse paciente obteve controle das crises, mas ficou com amnsia antergrada muito intensa, Por isso, at hoje, existe a dvida de que o benefcio obtido tenha compensado, se considerarmos o dficit adquirido. Quanto lembrana de fatos e conhecimentos anteriores cirurgia, esse paciente no sofreu alterao.ESQUECIMENTOAo contrrio da amnsia em que h perda de uma capacidade, o esquecimento uma falha na reteno ou na evocao dos dados da memria.Trata-se de fenmeno muito comum que, em maior ou menor grau, ocorre com qualquer pessoa.No entanto, cada vez maior o nmero de pessoas que se sente incomodado com o problema e que busca soluo.A principal questo, no que se refere ao esquecimento, determinar sua causa. Alguns postulam que ocorre uma debilitao dos traos de memria com o passar dos anos. Outros, no entanto, acreditam que novos conhecimentos podem interferir e prejudicar a memria.O desuso provocaria um enfraquecimento dos circuitos da memria, conforme o modelo conexionista, tornando cada vez mais difcil o acesso a essas informaes. Isso pode explicar parte do problema, mas no todo ele. fato que, com o passar da idade, as pessoas tm mais dificuldade para lembrar fatos passados, mas essa dificuldade mais intensa em relao aos fatos recentes, enquanto fatos remotos marcantes, ainda que no utilizados com frequncia, podem ser lembrados facilmente, inclusive em detalhes.Considerando-se o processo de interferncia, sabe-se que um novo aprendizado pode interferir com um antigo que lhe guarde alguma semelhana ou que lhe possa ser associado. Assim, a cada nova informao haveria modificao naquelas j sedimentadas. O acmulo de informaes, ao longo do tempo, faria com que pessoas de mais idade tivessem maior dificuldade em relao evocao da memria.Nenhuma dessas causas explica totalmente a ocorrncia do esquecimento, mas no podem ser descartadas como componentes do problema.H, no entanto, outro aspecto importante a ser considerado.No possvel evocar uma informao, se ela no foi devidamente arquivada. Para que o ser humano possa reter na memria determinada informao, necessrio que sua ateno esteja voltada para isso. Sem ateno, no h qualquer possibilidade de guardar-se um fato e, sem guard-lo, no h como recuper-lo depois.O combate ao esquecimento deve levar em conta a ateno e o poder de concentrao, bem como os fatores que o facilitam ou o dificultam. Tambm se deve atentar para os fenmenos do desuso e da interferncia de novos aprendizados.FATORES INTERFERENTESO crebro humano est sujeito a estmulos externos atravs dos sentidos, a estmulos internos advindos do organismo e a estmulos de ordem emocional. H quem acredite que o ser humano s consegue pensar, porque h interao desses estmulos.Com a ateno e o poder de concentrao no diferente. Assim, h fatores externos e internos que facilitam ou dificultam a ateno.O interesse pessoal sobre determinado assunto faz com que certas pessoas possam quase que decorar informaes com uma nica e simples leitura. de conhecimento geral que quanto maior o interesse, mais facilmente se aprende.A vivncia de fatos com alta carga emocional faz com que os mesmos permaneam para sempre na memria. So os chamados fatos marcantes na vida de uma pessoa que, mesmo ocorrendo uma nica vez, no so jamais esquecidos.Por outro lado, as preocupaes com os problemas dirios, a ansiedade e, em muitos casos, a depresso, so fatores que turvam a ateno e, como consequncia, impedem a reteno de informaes novas, gerando a impresso de que a memria est falhando.Esses fatores, em geral, no afetam diretamente a memria, mas, sim, a ateno e a concentrao. No entanto, quando muito intensos, podem provocar alteraes temporrias da memria. o caso dos conhecidos brancos que ocorrem em situaes de ansiedade intensa.H, ainda, um outro fator ao qual se comea a dar ateno. Trata-se da relao e possvel interferncia entre as memrias explcitas e implcitas.Toda atividade humana, inclusive as puramente intelectuais, tendem a ser automatizadas. Muitas de nossas atividades so repetidas diariamente e, ao longo do tempo, vo deixando de ser conscientes, passando a ser executadas sem que dediquemos a elas a menor ateno. Com o avanar da idade, a maioria das pessoas comea a executar s atividades e tarefas que j realizou um sem-nmero de vezes. Isso, evidentemente, dificulta manter a ateno e, consequentemente, a reteno na memria dos fatos ocorridos e das informaes veiculadas nesse perodo.Esse fenmeno mais comum do que se imagina, e tem como exemplo a leitura automtica, em que o leitor ao cabo de uma pgina no consegue se lembrar de uma linha sequer.A maioria das pessoas com problema de esquecimento, na realidade, nada tem de errado com sua memria, mas, sim, com os mecanismos que levam a informao at a memria.A MEMORIA HUMANA E A ESCRITAO ser humano desenvolveu a capacidade de transmitir conhecimento a seus semelhantes. Talvez tenha sido essa capacidade que permitiu sua sobrevivncia como espcie e, certamente, foi ela que lhe deu a supremacia na escala evolutiva.Nos primrdios da civilizao, bastou que esse conhecimento fosse transmitido por uma linguagem que misturava sons e gestos. Como isso era transmitido de gerao em gerao e como quem conta um conto aumenta um ponto, criaram-se histrias fantsticas. Surgiram as lendas das quais at hoje temos notcia.Durante a era do gelo, a humanidade sobreviveu graas caa de grandes animais, mas essa fase terminou. O ambiente mudou radicalmente e o ser humano foi obrigado a encontrar outras fontes de alimentao. Da, surgiu a agricultura e, com ela, a sedentarizao, a organizao social em cidades e o acmulo de riquezas.A humanidade percebeu que no havia mais como confiar somente na memria e, por volta do ano 3.100 a.C., surgiu a escrita. No princpio, era um simples rol de riquezas estocadas em armazns, mas logo o homem comeou a us-la com finalidade religiosa, cultural e comercial.Com o grande salto cultural dado pelos gregos no perodo clssico, a escrita tornou-se o principal instrumento na transmisso do saber e, paralelamente, um instrumento de poder poltico.No entanto, a escrita no foi aceita por todos. Plato, atravs de Scrates em seu dilogo com Fedro, nos traz ao conhecimento uma lenda egpcia. Thot, deus a quem era consagrada a ave bis, inventou os nmeros e o clculo, a geometria e a astronomia, o jogo de damas, os dados e a escrita. Durante o reinado de Tamuz, o deus ofereceu-lhe suas invenes, dizendo-lhe para ensin-las a todos os egpcios. Mas Tamuz quis saber de suas utilidades e, enquanto o deus explicava, o fara censurava ou elogiava, conforme essas artes lhe parecessem boas ou ms.Quando chegaram escrita, Thot disse que aquela arte tornaria os egpcios mais sbios e lhes fortaleceria a memria. No entanto, Tamuz respondeu-lhe que a escrita tornaria os homens esquecidos, pois deixariam de cultivar a memria. Ao confiar apenas nos livros, s se lembrariam de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e no em si mesmos. Os homens tornar-se-iam sbios imaginrios.Nesse mesmo dilogo, Scrates considera a escrita como algo que limita o pensamento, que engessa as ideias. Um discurso escrito, dizia ele, ser sempre o mesmo, repetido inmeras vezes sem que se lhe possa agregar novas ideias.Ironicamente, se hoje sabemos muito da filosofia de Scrates, porque Plato a escreveu.Analisando a questo frente a nossos conhecimentos sobre a memria humana, podemos, no entanto, afirmar que escrever uma forma salutar de ampliar nosso banco de dados. Salutar, porque preciso esquecer para poder lembrar. Explicando: nossa memria no pode guardar absolutamente todas as informaes que lhe chegam, sob risco de bloqueio. armazenando somente o que interessa e associando convenientemente os dados estocados que a memria pode ser evocada.De qualquer forma, a escrita est a, imutvel ao longo do tempo (a no ser, claro, em algumas dessas pssimas tradues com que por vezes nos deparamos), pronta para ser consultada quando precisamos e, sobretudo, liberando o crebro humano para a associao dos conhecimentos armazenados e a criao de novas ideias.A ttulo de ilustrao, sabe-se que, com treinamento intenso e adequado, uma pessoa pode reter uma sequncia de 50, 100 algarismos. No entanto, com papel e lpis, qualquer um ter a mesma sequncia guardada, com um mnimo de esforo.Finalizando, no podemos nos esquecer do que dizia Confcio Bem, ele dizia O que mesmo ele dizia? Acho que me esqueci, teria sido melhor escrever.Publicado em 27/12/2012