Melancolia em Sérgio de Castro Pinto

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Melancolia segundo Sérgio de Castro Pinto

atos falhos

sequer os ensaio.

mas meus atosfalhosencenam-se assim:

eles já no palcoe eu aindano camarim.

Introdução

A leitura do poema pretende extrair, dos seus elementos estilísticos e estruturais, o traço melancólico com que Castro Pinto parece desenhar, em momentos distintos, o quadro de sua poesia. A orientação por uma análise apoiada na psicanálise se impõe a partir do próprio título, que remete o leitor a um termo psicanalítico, e se confirma pelo tom de tristeza diluído ao longo do texto. Na busca pela significação do poema, propomos uma travessia de mão dupla, em que conceitos freudianos e recursos de teoria literária se cruzam para elucidação do efeito poético. O estudo de cada um dos estratos do poema deve revelar como a melancolia, com sua retórica de ruínas, se infiltra nas camadas do texto e se aloja entre as palavras. Esperamos que o estudo dos elementos constituintes do texto poético nos surpreenda, como sugere Roman Jakobson1, por suas simetrias e contrastes inesperados. Como ponto de partida, recorremos à crítica de João Bastista B. de Brito, porto-seguro para qualquer releitura de Castro Pinto. No percurso de interpretação, outros poemas de Castro Pinto devem vir à tona como exemplos da textura melancólica que se instaura em fragmentos diversos de sua poesia. Filtrar do lirismo a melancolia é nosso melhor pretexto para seguir as veredas do poema ao encontro da poesia. Não propomos, contudo, um percurso exato, com a precisão do analista, apenas o olhar aprendiz, a meio caminho, como quem, no espaço-limite da janela, vê as sombras da paisagem.

Signo e Imagem em “atos falhos”

Em Signo e Imagem em Castro Pinto, João Batista, ao discutir procedimentos técnico-estilísticos do poeta, ressalta, em sua temática, a idiossincrasia epolocal, que consiste em “assumir como desconhecido aquilo que, no universo referencial, é perfeitamente conhecido do leitor”2. Adotando uma postura explanatória, o eu lírico redefine o objeto, retomando conceitos no âmbito do senso comum, a nível enunciativo ou referencial. No primeiro caso, ocorrem, nos planos semântico, sintático e lexical, redundâncias de significações, estruturas ou palavras. No segundo, o enunciado confirma as expectativas do leitor, contrapondo-se à noção de poesia como imprevisibilidade do discurso. Em “atos falhos”, constata-se essa “homologação conceitual” do termo em psicanálise, cujo efeito estético reside, portanto, não na logopéia poundiana, mas no jogo fanopaico de suas imagens.

1 JAKOBSON, Roman. “Poesia da Gramática e Gramática da Poesia”. In: Linguística. Poética. Cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1970. p. 73. 2 BRITO, João Batista B. de. Signo e Imagem em Castro Pinto. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1995. p. 68.

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Mais adiante no texto, no capítulo “Imagens em Fragmento”, João Batista ressalva a carga imaginativa do poema “atos falhos”, tecido “com o duplo sentido das palavras e a dialética do figurado e do literal”. Apontando para a ironia do termo “assim”, o crítico sugere que o poema, ao mesmo tempo em que remete ao termo psicanalítico, propõe uma idiossincrasia, no sentido de que os atos falhos do poeta seriam outros, à margem do conceito em psicanálise. Partindo dessa premissa, se instaura a possibilidade de uma leitura metalingüística do poema como desnudamento do processo criador, em que o poeta se distancia do eu lírico, eximindo-se de qualquer retratação subjetiva em sua poesia. O autor resgata ainda no texto o sentido de teatro como “casa de espetáculo”, relacionando-o à “função de habitar”, uma constante na obra de Castro Pinto. Como reduto do “eu”, como lar onde o indivíduo se revela sem máscaras, o teatro é o espaço para a representação das verdades que se esquivam das palavras no discurso oral ou na criação literária. João Batista desmonta, em sua análise, o quiasmo de sentido existente no texto ao opor a artificialidade da representação teatral à espontaneidade dos atos falhos e a naturalidade do camarim à atitude racional do falante.

Um percurso com o olhar

O estrato gráfico determina o contato inicial com o poema, a percepção de sua concepção plástica, a apreensão visual do texto. Seu primeiro elemento, o título, nos remete aos escritos de Freud sobre os atos falhos, apontados como pequenos incidentes ou manifestações frustradas do inconsciente, lapsos, esquecimentos momentâneos de nomes, perdas de objetos3.

Os atos falhos revelam idéias e associações inconscientes que interferem em atos psíquicos conscientes. Resultam do cruzamento de duas intenções: uma intenção manifesta, perturbada, e uma intenção latente, perturbadora. A intenção ou tendência oculta tenta manifestar-se apesar da censura, alterando a intenção ostensiva e levando o sujeito a dizer ou fazer o oposto do que pretendia. O ato falho se constrói em torno de três discursos, cada um dos quais possui uma estrutura única: o discurso público, cuja ordem padrão o inconsciente modifica; o discurso inconsciente, cuja ordem a censura controla; o discurso do lapso, cuja ordem é estabelecida pela gramática privatizada. Como desvio da norma, com fragmentos dos discursos consciente e inconsciente, o ato falho se aproxima da poesia, com suas palavras, sílabas e letras que explodem como estilhaços do “eu”.

Walter Benjamin relaciona o ato falho à fotografia e ao cinema e compara a psicanálise com a visão particular do objeto através do olho mágico da câmara. Assim como a psicanálise salva do fluxo o ato falho e revela o inconsciente pulsional4, a câmara lenta focaliza o movimento e capta a reação inconsciente. Benjamin comenta que o ato falho desnuda relações psíquicas imperceptíveis à consciência da mesma forma que a câmara revela uma expressão imperceptível ao olhar. A tela do cinema e o instantâneo da fotografia ampliam a percepção ótica dos atos falhos ao redimensionar o espaço da cena e fixar a imagem secreta. Em “Pequena História da Fotografia”, Benjamin sugere que a fotografia, como o ato falho, traduz uma “centelha do acaso, do aqui, do agora, com o qual a realidade chamuscou a imagem”5. O autor argumenta que a natureza vista através do olhar não é a mesma que a câmara registra, porque o olhar captura o gesto ensaiado, o percurso consciente, enquanto a câmara guarda o ato falho, o percurso inconsciente.

Se os atos falhos são passagens para o interior do “eu”, fendas no mecanismo de recalque, o título do poema, remete o leitor a um diálogo com a persona poética que se

3 CAMPOS, Lúcio Flávio. Introdução à Psicologia. Recife: Art-Cópia, 1974. p. 156. 4 BENJAMIN, Walter apud ROUANET, Sérgio Paulo. “Do lapso à salvação do particular”. In: Édipo e o Anjo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. pp. 11-43. 5 BENJAMIN, Walter. “Pequena História da Fotografia”. In: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. pp. 91-107.

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dispõe a expor seus erros e desacertos. A mesma postura de desabafo se estampa em outros títulos como “diário”, “aerofobia”, “sobre o medo”, “quase em ‘braille’”, “o vivo provisório” e ainda em O Cerco da memória, publicado em 1993. O eu lírico confessa a intenção de compartilhar seus atos falhos, mas avisa que não o fará com todas as letras, mas nas entrelinhas, com letras minúsculas, no hiato do lapso. Não será, portanto, uma conversa literal, mas um exercício de escuta, em que o leitor deverá procurar, no silêncio, a palavra não-dita, a verdade escondida no texto submerso. Será uma confissão às avessas, entre a revelação e o segredo, exigindo do leitor a atenção do particular6, capaz de fazê-lo mergulhar no ato falho e resgatar o desejo.

O título, que engloba as estrofes por usa posição de destaque, assume uma dupla feição no texto: funciona, ao mesmo tempo, como elemento catafórico, indicador do tema, e como primeiro verso, “atos falhos”, objeto da referência anafórica, contida em “sequer os ensaio”. Essa ocorrência da expressão com duas funções distintas parece incorporar, no estrato gráfico, a própria dinâmica do ato falho como emissão única e particular, mas com um duplo sentido: a explicação racional do falante e o significado latente.

Explicado o título, podemos captar a imagem visual do poema como um todo em que chama atenção, de imediato, a ausência de letras maiúsculas e a disposição dos versos. Trata-se de um poema curto, como tantos outros do autor, em que o conflito interior explode em versos breves, densos, com poucas palavras. “Entre as grades / do poema jaula”, as frases se comprimem em palavras, a confissão é telegráfica, o grito de dor silencia, e o poeta, de mãos atadas, se cala perplexo, em face do absurdo da vida. O estrato gráfico tem um papel marcante na poesia de Castro Pinto, em que a concisão, por vezes, beira o hermetismo, e o jogo de palavras deixa o leitor desconsertado entre o dito e o não dito. É o que observamos em “antenas de tv”, em que o poeta explora a analogia entre o tubo de imagens e um aquário, a antena e um peixe descarnado.

cardumes descarnadoscardumes de telhadoscardumes desgarrados

do aquá(rio) da - >

Entre a palavra e o silêncio

O poema não segue um padrão métrico ou estrófico tradicional. A função do título como verso inicial faz da primeira estrofe um dístico, entretanto, isolado em seu papel como elemento organizador, o título preside sobre três estrofes: a primeira é um monóstico, estrofe formada por um único verso, e as duas seguintes, tercetos, estrofes de três versos. A dupla função da seqüência “atos falhos”, ora como título, ora como verso, subvertendo o modelo de estrutura poética, sugere a própria dinâmica dos atos falhos que rompem a padronização do discurso. Ao mesmo tempo, esse aspecto plural do título nos remete às considerações de I. Tinianov sobre a dinâmica da palavra na obra literária:

“a unidade da obra não é uma totalidade simétrica fechada, mas um todo dinâmico que se desenvolve; entre seus elementos não existe nenhum signo estático de igualdade ou de adição, mas há sempre um signo dinâmico de correlação e integração. A forma da obra literária deve ser compreendida como dinâmica.”7 (grifo nosso)

As estrofes são heterométricas, isto é, apresentam versos com diferentes números de sílabas. Ao longo do poema, há versos monossílabos, trissílabos, tetrassílabos e

6 ROUANET, Sérgio Paulo. op. cit., p. 36. 7 TINIANOV, I. apud LOTMAN, I. M. “Sobre algumas dificuldades de princípio na descrição estrutural de um texto”. In: SCHNAIDERMAN, Bóris. Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979. p 131.

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pentassílabos. O primeiro verso da segunda estrofe termina com um enjambement e obriga o leitor a fazer uma pausa para desmembrar a série em seus constituintes – atos e falhos. Ao sentido psicanalítico do termo, o poeta acresce, com essa desconstrução, o sentido literal: atos incorretos, falhos. A expressão, enriquecida pela manipulação literária, exige interpretações mais amplas que extrapolam a simples conotação.

atos falhos/ __ / __ (3 sílabas)

sequer os ensaio__ / __ __ / __ (5 sílabas)

mas meus atos__ / / __ (3 sílabas)falhos/ __ (1 sílaba)encenam-se assim

__ / __ __ / (5 sílabas)

eles já no palco/ __ / __ / __ (5 sílabas)e eu ainda__ / __ / __ (4 sílabas)no camarim__ __ __ / ( 4 sílabas)

São três o número de versos das duas últimas estrofes, o número total de estrofes do poema e o número de sílabas do próprio título. Essa correspondência parece aludir ao ímpar, ao que foge à estabilidade do número quatro, simbologia que Marta Peixoto identifica em João Cabral. Os versos que se referem aos atos falhos têm um número ímpar de sílabas, uma vez que exprimem o imprevisto, o instável, o inconsciente; já os dois últimos versos, que aludem ao poeta, têm quatro sílabas, pois se ligam ao racional, ao “controle intelectual seguro”8 que o número par sugere. Enquanto os atos falhos estão no palco, expostos ao improviso, ao gesto não ensaiado, o “eu” se refugia entre as quatro paredes sólidas do camarim, onde não há riscos e a vida é um texto conhecido, sem a instabilidade das emoções.

O ritmo binário predomina sobre o ternário uma vez que a maioria dos vocábulos, quanto ao número de sílabas, são dissílabos (“atos”, “falhos”, “palco”, “sequer”, “meus”) e quanto à sílaba tônica, são paroxítonos (“atos”, “falhos”, “ensaio”, “encenam”, “palco”, “ainda”). No último verso, ocorre alternância quaternária, corroborando a hipótese de que o número quatro assume um caráter simbólico no texto, vinculando-se à idéia de segurança e razão. Essa seqüência do ritmo binário ao quaternário marca outras composições poéticas como os versos iniciais de “aerofobia”: “dou duas voltas”/ “na chave”/ “da porta”, e em “poeta vs poema”:

às vezes, fera presae acuada

entre as gradesdo poema-jaula

doma-o o chicote das palavras.

8 PEIXOTO, Marta. Poesia com Coisas. São Paulo: Perspectiva, 1983. p. 141.

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Considerando-se que o título é também o primeiro verso do poema, há três rimas toantes (“falhos”, “ensaio”, “atos”, “falhos”, “palco”), com reiteração das vogais a partir da última sílaba forte, e uma única realização de rima soante (“assim”, camarim”), em que ocorre uma homofonia fixa no final do verso. As rimas são emparelhadas (“atos falhos”/ “sequer os ensaio”// “mas meus atos”/ “falhos”), em uma seqüência por contigüidade, ou alternadas (“mas meus atos”// “eles já no palco”// “encenam-se assim”// “no camarim”), em uma seqüência por alternância simétrica. Em “atos falhos”, ocorre uma homofonia ou rima interna, sugerindo, no contexto do poema, que o eu poético não pode evitar seus erros, pois “atos” e “falhos” são uma rima provável. A melancolia mantém o cerco ao poeta, repete seus mecanismos no esquema do verso e da vida.

Nos quatro primeiros versos, que aludem à ocorrência de atos falhos, observa-se a monorrima, com reiteração, em seguimentos contínuos, de fonemas com diferentes pontos de articulação. A distribuição rítmica das vogais a e o, uma anterior e outra posterior, dificulta a emissão por exigir, dos órgãos da fala, um ponto de articulação incomum. Essa repetição sonora, em torno da estabilidade do número quatro, parece intensificar a incidência dos atos falhos de que se queixa o eu lírico. O único verso branco do poema, “e eu ainda” retrata o lamento do “eu” por ter de improvisar as cenas e não poder ensaiar a vida. Como exceção fônica, o verso reforça a dificuldade do poeta em adaptar-se à urgência do quoditiano, em que, por vezes, ficamos para trás com nossos erros, sem encontrar as respostas e as rimas.

Os processos aliterativos, construídos com imagens de ruptura e memória, traduzem a dissolução e a melancolia em torno das quais se constrói o texto. Os fonemas consonânticos propiciam o endurecimento da linguagem poética e a dissociação da forma, que se vincula à melancolia. O fonema sibilante s ocorre no primeiro e quarto versos em posição inicial e medial, produzindo um efeito estilístico de suavidade: “sequer os ensaio”, “encenam-se assim”. A fluidez do som intensifica a idéia de que os atos falhos ocorrem naturalmente, sem empecilhos, alheios ao desejo consciente do eu lírico. Sem nada que os impeça, insurgem-se no discurso e no vida, deixando para trás o poeta com suas explicações e seu fracasso. Diante da constatação de que os passos lhe escapam ao controle, o poeta se entrega à tristeza e à melancolia de quem nada pode fazer.

Esse tom de lamento, de languidez contagia todo o texto com a reiteração dos fonemas nasais m ou n: “ensaio”, “encenam-se”, “assim”, “ainda”, “camarim”.

Nos versos “sequer os ensaio” e “encenam-se assim”, ocorre o processo de assonância da vogal e; do mesmo modo, a vogal a se repete em “mas meus atos”, “encenam-se assim” e “eles já no palco”. Essas repetições de seqüências sonoras parecem dificultar a emissão e tensionar a relação entre o significante e o significado9.

A dupla função do título, as rimas entre estrofes distintas, os versos livres e a predominância de rimas toantes, infrações ao “lirismo comedido”, representam, no estrato fônico, as infrações às normas comportamentais, os erros do poeta. Dilacerado pela culpa, o “eu” se entrega à melancolia por não poder controlar os lapsos verbais e as rédeas da vida.

9 VIANA, Chico. Pseud. de Francisco José Gomes Correia. O Evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1994. p. 146.

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Na teia das palavras

A poeticidade de um texto se constrói através do uso literário da palavra que assume, ao mesmo tempo, a condição de signo e coisa. Ao presentificar os objetos, mostrando-os sob uma ótica surpreendente, a poesia fala não ao nível dos conceitos, mas das realidades10. A análise do léxico pode nos revelar escolhas de palavras que passariam desapercebidas em uma leitura superficial do texto.

O poema lança mão de uma linguagem simples, sem arcaísmos ou neologismos, capaz de ampliar o significado da expressão “atos falhos”, definida em psicanálise como “lapsos ou ações sintomáticas”, e atribuir-lhe o sentido conotativo de “atitudes impensadas” ou “atos de uma peça teatral”.

O único adjetivo empregado no texto, “falhos”, particulariza o universo da persona poética que, em sua melancolia e desencanto, em tudo vê o fracasso. Os substantivos, “atos”, “palco”, “camarim”, e os verbos “ensaio” e “encenam-se” guardam a idéia da vida como uma peça teatral, mas que paradoxalmente não se pode ensaiar. O tempo verbal presente dá um caráter de permanência aos atos que se repetem de forma cíclica, sem que o poeta possa impedi-los. O destino unifica passado e futuro no instante presente: não há como escapar à sucessão dos dias impregnados de erros. Na solidão do camarim, o “eu lírico” limita-se a recordar os atos da vida e seus deslizes no palco. Essa mesma sensação de desânimo diante do rumo tomado pela existência permeia o poema “no quadragésimo assalto”, em que explodem a melancolia e a frustração dos quarenta anos: quando abro / a torneira / da pia // e resgato / d’água / o rosto // dos meus / dias / correntes, // a toalha / o estanca: // sonado boxeur / beijando / a lona, // sou o meu / segundo / pedindo-me / desistência // no quadragésimo / assalto / da existência.

Os pronomes pessoais dêiticos “os” e “eles” (referência em anáfora a “atos falhos”), “meus” e “eu” (referência exófora ao “eu lírico”) determinam o tom de desabafo que permeia o poema. Sentimento idêntico traspassa o poema “recado a pound”, em que Castro Pinto expõe sua visão pessoal acerca da idéia de Ezra Pound sobre o artista ser a “antena da raça”11.

eu sou a panee a interferência dos meus fantasmas

no tubo de imagens dos poemas.

As conjunções “mas” e “e”, no segundo e no sexto versos, respectivamente, “mas os meus atos”// “e eu ainda”enfatizam a idéia de adversidade entre o gesto planejado e o improviso da vida. Além de estabelecer conexões lógicas e garantir a coesão dos enunciados, as conjunções coordenadas denotam a ótica racional com que o poeta julga seus erros. Os advérbios (“sequer”, “assim”, “já”, “ainda”), categoria gramatical predominante no texto, retratam a impotência do “eu” em gerenciar suas ações. Em face do tempo e seus obstáculos, o poeta, vencido diante de si mesmo, no espelho do camarim, compreende que o rascunho da vida não pode ser passado a limpo.

10 D’ ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto. São Paulo: Editora Ática, 2000. p. 21.11 BRITO, João Batista B. de. op. cit., p. 209.

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Na rede da sintaxe

Roland Barthes destaca a importância do estudo sintagmático do texto como forma de apreensão da imagem poética a partir das ligações do signo em sua extensão, do arranjo e da combinação com outros signos ao longo da frase12. Uma vez que a linguagem literária se constrói em torno do desvio da norma13, parece-nos interessante identificar as metataxes ou figuras de gramática que operam sobre a estrutura sintática e causam o efeito poético.

O primeiro verso do poema surpreende-nos de imediato pelo uso do pronome oblíquo sem antecedente, obrigando o leitor a buscar, no título do poema, o objeto da referência. A inclusão do título no corpo do poema, formando um dístico com o verso inicial, portanto, é determinada pela estrutura sintática. Considerando-se o dístico “atos falhos”/ “sequer os ensaio”, percebemos nitidamente a prolepse, tipo particular de hipérbato, que consiste na antecipação enfática de um termo da frase. A ordem direta, característica da linguagem não-poética, implicaria na supressão do pronome, então com a função de objeto direto pleonástico : “sequer (os) ensaio”/ “atos falhos”.

Essa simples desconstrução anula completamente a poeticidade dos versos, conferindo-lhes a lógica linear da prosa. As infrações da sintaxe que garantem a literariedade do texto são as mesmas que o tornam confuso, justamente por refletirem o estado psíquico do eu lírico. Em “noturnos”, a fragmentação sintática causada pelo hipérbato traduz o mesmo dilaceramento interior da persona poética, reproduzindo, no plano da expressão, o caos das emoções.

nas fronhas da infância,ensaquei meus sonhos.

hoje, ensaco pesadelos.

e cada noite,- mais do que a cabeça –pesa-me o travesseiro.

Trazendo-se o título para composição do dístico, “atos falhos”/ “sequer os ensaio”, ocorre metataxe por acréscimo devido à repetição da seqüência “atos falhos” na segunda estrofe, embora sob o corte sintático do enjambement: “atos falhos”/ “sequer os ensaio”// “mas os meus atos”/ “falhos”. A repetição e o pleonasmo, formas de redundância, exprimem o tom obsessivo e o desejo do melancólico em preencher o vazio, causado pela perda da Coisa. “Macaxeira”, um poema sobre um louco que anda pelas ruas, faz da repetição um recurso estilístico para exprimir a obsessão de uma idéia fixa:

um jeito de quem montao mundo em pêlo.

um jeito de quem usa esporassobre as mil rodasque trafegam nos seus nervos.

um jeito ruralde quem liberta os cavalosdo carro que deseja ser.

um jeito de quem pisa fundodesrespeitando os semáforos do mundo.

12 BARTHES, Roland. “A imaginação do signo”. In: Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 46.13 USPENSKIJ, B. A. “Sobre a semiótica da arte”. In: A Linguagem e os Signos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972. p. 86.

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A elipse, metataxe por supressão, reduz o plano da expressão e amplia o plano do conteúdo, deixando ao leitor a tarefa de suprir as lacunas do texto14. A ausência do artigo definido “os” no título do poema, compatível com a ordem indireta da construção poética, ganha nitidez se o verbo é anteposto ao objeto: “sequer ensaio”/ “(os) atos falhos”. Na mesma seqüência, o sujeito elíptico “eu” salta aos olhos quando a ordem direta é estabelecida: “(eu) sequer ensaio”. No último terceto, a omissão do verbo “estar” é quase imperceptível em face da estruturação concisa dos versos: “eles já (estão) no palco”/ “e eu ainda (estou)”/ “no camarim”. A elipse transpõe, para o estrato sintático, a pulsão de morte, a ânsia de eliminar o sofrimento, a busca do nada absoluto. Ao omitir as palavras, o eu poético, na verdade, anseia apagar as marcas da dor pela perda do objeto e atingir o nirvana pela supressão do desejo.

O título e o primeiro verso: “atos falhos”/ “sequer os ensaio” funcionam como epifonema, figura de estilo que, não sendo um tropo, integra a estrutura retórica do texto. Exprimem uma reflexão breve e generalizante, capaz de sintetizar todo o conteúdo do poema: a desarmonia entre o corpo físico e o estado psíquico. O eu lírico se ressente de não controlar o rumo dos seus atos e deixar-se levar pelas circunstâncias como se houvesse um hiato intransponível entre vontade e ação. Seu corpo, dissociado do “eu”, toma atitudes, age por conta própria, deixando-o perplexo.

Nas malhas da polissemia

O conceito de isotopia de Greimas, posteriormente aprofundado por Rastier, como um campo semântico subjacente ao texto, constituído pela rede de reiterações sêmicas e pelo cruzamento de várias isotopias15, parece-nos um instrumento útil para elucidar o diálogo do eu lírico com sua dor.

O título, “atos falhos”, sugere uma isotopia do lapso em psicanálise, a qual se confirma em “sequer os ensaio”, pois para Freud, os atos falhos são manifestações do inconsciente que escapam ao controle racional.

“Atitudes que parecem ocasionais e que, em psicanálise, são atribuídas a conflitos inconscientes de realização no comportamento. Os atos falhos incluem a linguagem falada e escrita, gestos, movimentos e atitudes. (...) Os atos falhos são devido a uma situação de ambivalência conflitiva de motivação inconsciente”16

Essa isotopia aponta para o sentido literal, que emana de uma primeira leitura: o poeta não aceita que alguns de seus gestos fujam à sua vontade, irrompendo livres de qualquer censura do superego.

Uma segunda isotopia forma-se em torno do universo do teatro, retomando o clichê de que a vida é um palco. Com “atos”, “ensaio”, “encenam-se”, “palco” e “camarim”, o eu poético elabora a alegoria de que corpo e mente não possuem uma unidade. Esse dilaceramento leva o corpo a agir por suas próprias leis, sem subordinar-se à censura da mente. “Palco” e “camarim” resumem a dualidade do “eu” entre as antíteses da vida, diante da impossibilidade de conciliação de opostos. A melancolia, portanto, surge do conflito entre vontade e ação, razão e gesto. Sem forças para lutar contra os impulsos do corpo, o “eu” entrega-se à culpa e à autodepreciação. Com advérbios “já” e “ainda”, forma-se uma outra antítese, que reforça essa impossibilidade do eu lírico em manter o

14 D’ ONOFRIO, Salvatore. op. cit., p. 21.15 RASTIER, F. “Sistemática das isotopias”. In: GREIMAS, A. J. et alii. Ensaios de Semiótica Poética. São Paulo: Cultrix, 1976. 16 MIELNIK, Isaac. Dicionário de Termos Psiquiátricos. São Paulo: Livraria Roca, 1987. p. 24.

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compasso entre a lucidez da mente e a insensatez do corpo. No camarim, o poeta se isola do fluxo da vida para julgar suas ações como um espectador diante da cena. Em câmara lenta, no intervalo da sucessão irremediável dos dias, repassa atitudes impulsivas e lapsos de sua atuação no palco. Nesse contexto, a caminhada individual é uma seqüência de erros e arrependimentos, de atos incorretos, de gestos impensados, entre resignação e culpa. Longe das luzes do palco, no claro-escuro do camarim, o “eu” encontra um refúgio para os olhares de acusação da platéia, mas paradoxalmente se defronta com seu rosto fracassado no espelho. É inútil fugir de si mesmo, de seus atos falhos, de seus desacertos:

a vida é dose!

de goleem gole- com um olhocheio de rume o outrosem rumo –o mundo é um porre!

Seguindo o conselho de Roland Barthes, para quem o texto não sugere uma única, mas várias leituras17, podemos buscar uma outra isotopia, a da vida como representação. Nesse caso, “atos”, “encenam-se”, “palco” e “camarim” traduziriam a ruptura do “eu” com suas aparições em público. Assumindo diferentes papéis sociais, sob máscaras distintas, o eu poético em nenhuma delas se revela, guardando-se na reclusão do camarim. São falhos seus atos, nesse caso, porque são representações, embora não ensaiadas, tiradas de improviso na urgência da vida. Recusando-se a mostrar sua face, o “eu” ressente-se por, mesmo assim, não conseguir fugir do sofrimento. Seu verdadeiro rosto se reflete no espelho do camarim: sem a maquiagem e as vestimentas próprias do teatro, o poeta percebe quão inútil tem sido sua fuga, quão falha tem sido sua encenação. Em meio a tantos personagens, o “eu” dilacerado pela culpa de ser um “eterno fingidor” se entrega à melancolia. Queixa-se de ter sido traído por seus atos que, entre cenas e gestos, na ânsia de agradar à platéia, o deixaram sem rumo, na solidão. Resta ao eu lírico encontrar, em seu percurso de ator, o significado da vida, o roteiro de sua história, a identidade dilacerada em tantos personagens, peças teatrais e atos falhos. É inútil fugir de si mesmo como o poeta mesmo diz em “3 x 4”:

entro na fotografiacomo quem do mundose homizia.

sem livrar o flagrante.

(instantâneo eu sei que souneste mundo lambe-lambe)

O poema tece em torno do termo psicanalítico “atos falhos” uma metáfora ao ingressá-lo na atmosfera do teatro. Equiparando as ações aos atos de uma peça teatral, o eu poético coloca-se na posição de um ator impedido de ensaiar , razão única do seu fracasso em cena. A vida, como roteiro ou representação, se realiza de improviso, sob os aplausos e vaias da platéia, no palco, retrato do mundo. O espaço intraduzível do “eu”, entre o ser e o parecer, a lógica e a emoção, concretiza-se na imagem do camarim, contraponto ao palco e suas máscaras. Diante do espelho e das roupas nos cabides, o eu lírico se vê, não mais como ator, mas como crítico, sem metáforas, em sua nudez absoluta.

17 BARTHES, Roland. op. cit., p. 216.

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Bibliografia

BARTHES, Roland. “A imaginação do signo”. In: Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970. pp. 41-7.

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BRITO, João Batista B. de. Signo e Imagem em Castro Pinto. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1995.

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